As pragas do Egipto continuam a cair sobre nós, a última dos quais foram as calamidades que se abateram sobre as províncias do Norte, Cabo Delgado, sobretudo, e a província de Nampula.
Parece sermos um povo que seja destinado a lamentar-se, a ler o livro das lamentações, e a ter que fazer um exame de consciência e perguntar o que fizemos ao bom Deus e ao mundo para que todas as pragas caiam sobre nós.
Mas de vez em quando temos boas notícias.
As meninas da UP foram campeãs regionais. As meninas do Ferroviário ganharam o Campeonato Africano de Basquetebol. São notícias que nos confortam e alegram o nosso coração que tanto precisa.
Ontem, o Venâncio Mondlane, no seu encontro, como foi noticiado, com parlamentares da União Europeia, disse ter falado pela primeira vez com o Presidente Nyusi. Esta é uma boa notícia. Pegamos pela parte positiva, e é isso que conta, é que eles estão a falar. Nós agradecemos e encorajamos que este processo de diálogo possa continuar e que possa chegar a um bom fim, para que se encontre uma normalidade nova, quer dizer, transformada, que pretenda reformar tudo que é possível que tenha que ser reformado, mas que essa reforma se faça em paz.
Volto ao dilema de Kant. A ideia de que a revolução e as transformações são necessárias, mas que a gente tem que encontrar maneira para que elas se façam de maneira pacífica, sem perdas de vidas humanas, mais do que aquelas que já perdemos, quer por baleamentos, quer por motins, ou quer até por doenças, pessoas que não conseguiram chegar ao hospital, até para serem curados.
Viva este diálogo, que ele continue e que nos traga frutos. Nós moçambicanos estamos esperançosos e fazemos todo o barulho, como os "tifosi" no futebol, para que esta partida onde se joga a nossa vida, o nosso futuro, continue e que chegue ao bom termo.
Vimos o quanto custou, ao longo da Historia, a ousadia de pensar diferente relativamente aos cânones e padrões oficiais. E então qual será o sentido de pensar diferente no Moçambique contemporâneo? Parece que qualquer resposta a esta pergunta implica uma compreensão do que seja “Moçambique contemporâneo”, isto é, o Moçambique do presente.
Como é que se caracteriza o Moçambique de hoje?
O período particular em que realizamos este evento, assinalando o dia mundial da Filosofia, parece caracterizar, de forma muito eloquente, o perfil social e politico do Moçambique contemporâneo. Este conflito eleitoral, em que estamos mergulhados, resume bem o perfil de um país em grave crise geral; de uma sociedade cujo corpo é atacado por um cancro violento; uma sociedade com as suas bases de sustentação abaladas, correndo, mesmo, o risco de, a qualquer momento, desabar!
E que causas estarão por detrás desta crise, cujo desfecho é ainda imprevisivel? Parece que podemos identificar as raizes, as causas desta crise, num sistema de governação absolutamente bloqueado; um sistma de governo inadequado para garantir, minimamente, o cumprimento das três principais funções clássicas do Estado: a segurança do povo; a aplicação da justiça de forma igual para todos, e a promoção do bem-estar económico, social e cultural de todos os cidadãos.
A seguranca do povo e do seu território está gravemente ameaçada, por um lado. Por outro, o povo sente a justiça formal, a justiça dos tribunais, cada dia mais distante de si, e mais gravemente, a justiça social, a justica distributiva, de acesso e beneficio da riqueza nacional, cada dia mais distante, e reduzido a mera quimera.
A marca das desigualdades sociais aprofunda-se a cada dia, com o contínuo aumento do fosso entre um grupo que acumula riqueza de forma ostensiva e por vezes, até escandalosa, e a vasta maioria, que se afunda na mais abjecta miséria. Num texto que publica na sua conta do Facebook, no dia 17 de Novembro corrente, o sociólogo Elisio Macamo faz uma caracterização deste grupo privilegiado, dando-lhe a designação, muito sugestiva, de ““elite do atraso “... uma classe política que vive do acesso aos recursos do estado para a sua própria reprodução – governo e oposição”.
Dias antes, falando no programa “Grande Entrevista” da STV, outro respeitado académico moçambicano, o pedagogo Brazão Mazula, tinha caracterizado este grupo como “alta burguesia que se serve do partido para se enriquecer. (Este grupo) não produz nada e não cria empresas nem empregos; é um grupo que vive longe do povo; está lá (no Partido) por status; para ganhar imunidade...”
É este o Moçambique contemporâneo em que assenta a presente crise eleitoral. E este contexto é sustentado por um discurso oficial que explora até à exaustão a legitimidade histórica, resultante da luta pela libertação da terra do jugo colonial, feito heróico de todo o povo moçambicano, entretanto privatizado por essa minoria predadora, e transformado em sua “muralha da China” com um fim claro: a manutenção do status quo do monopolio geral do poder, em todas as suas acepções.
E em que pode consistir um pensar diferente daquele instrumental à manutenção deste status quo?
Esse pensar diferente vai consistir em abordar, de forma tão honesta e franca quanto possível, as razões da crise profunda em que a sociedade moçambicana mergulhou. Vai consistir em inquirir sobre a qualidade das políticas públicas aprovadas e a consistência da sua implementação. Pensar diferente vai consistir em negar a existencia de Homens, Mulheres, leis ou regulamentos que sejam sagrados, portanto revestidos de intocabilidade bíblica, mesmo que comprovadamente hostis ao bem-estar geral e à vida harmoniosa na sociedade.
Pensar diferente no contexto contemporâneo de Moçambique pode consistir em advogar por um sistema de governo mais representativo dos cidadãos e dos seus legítimos interesses; por um sistema de governo mais adequado a uma distribuição mais equitativa do poder e dos recursos da Nação. Um sistema de governo com instituições menos vulneráveis à captura pelo crime organizado; instituições públicas protegidas de manipulações a favor de agendas e interesses privados, fora da lei e prejudiciais ao Bem Comum. Um pensar diferente apontando para um Estado de direito democrático, que promova a cidadania e politicas ousadamente concebidas para mitigar as desigualdades de género e as assimetrias regionais.
Mas, no presente contexto, este pensar diferente não pode ser expresso livremente, sem consequências. Para todo o pensar diferente; para todo o pensar susceptivel de provocar tremor aos paradigmas oficiais, de questionar de forma fundada o status quo, para esse tipo de pensamento, há-de sempre haver a correspondente.... “santa inquisição”, com o seu séquito de arautos, a que o povo chama de “lambe-botas”. E esta Santa Inquisição” não precisa de ser legal, ou institucionalizada.
Esta “santa inquisição” cobra o custo da “ousadia” de pensar diferente. E o preço pode tomar mútiplas formas, como: a marginalização; a pura ostracização no local de trabalho; o bloqueio ao acesso a oportunidades públicas, como ascensão a cargos públicos;a promoções na carreira; ao acesso a concursos de obras públicas ou de prestação de serviços, entre outras. Tudo como forma de pressão para a desistência ou “rendição” daquele que ousar pensar diferente. E o lema é claro e simples: “doa a quem doer”!
No limite, o pensar diferente no Moçambique contemporâneo pode incluir a quebra das próprias pernas, fracturadas à paulada na berma de uma estrada. Ou mesmo o risco de ser crivado de balas, no escuro da noite, senão mesmo em plena luz do dia.
Concluindo: pensar diferente no Moçambique contemporâneo, não sendo proibido por lei, ele não é, contudo, totalmente gratuito. Sobretudo considerando uma sociedade em permanentes crises e todas mal resolvidas ou, simplesmente, escondidas como poeira debaixo do tapete: aquele que tiver a ousadia de levantar este tapete... deve contar com o risco de lá estar à sua espera um escorpião, pronto para o atacar com o seu venenoso ferrão. Pela sua ousadia!
(Excerto de uma comunicação feita no ambito do dia mundial da Filosofia, assinalado no dia 21 de Novembro de 2024).
No meio da Eduardo Mondlane estão os desprezados. Eles impedem que os carros transitem e ocupam determinados o asfalto. Muitos são oriundos do outro lado da fronteira, onde a fome e a miséria fazem a sua ignóbil condição. Estão rebelados.
Erguem cartazes. Têm apitos. Estão obstinados na sua luta. Um BTR abre alas sem estrépito. Segue-se-lhe um outro, numa velocidade enraivecida. As suas rodas impenitentes sobre uma das jovens manifestantes. Aquele BTR voa na direcção da sua ignomínia e ignora no chão uma vida destroçada. Não se calam assim as vozes dissonantes, antes pelo contrário. Assim se justifica a sua veemência e premência.
Perante este ou outros semelhantes e sórdidos actos, o silêncio torna-se cúmplice destes crimes e anuncia que entre nós foi derrotada a humanidade. Estamos costas voltadas e já não temos empatia. Nada, porém, justifica a barbárie. A barbárie no seu esplendor. A irracionalidade. A bestialidade. A incivilidade.
As ondas possuem uma propriedade conhecidíssima, transportam energia, sem necessariamente, transportar matéria. Na sua propagação as ondas cantam a história da Humanidade, os sonhos de um povo, os gritos dos escravos e a fantasia das sereias. O mar se veste a rigor e comunica. Explica aos insulares o sentido da musicalidade, e aos continentais, que toda a vida terrestre depende do mar. As ondas, vaidosas, fazem a comunicação mais eficiente e nítida que conhecemos. A vida é uma onda.
Gimo Abdul Remane Mendes, de seu nome extenso, curiosamente, a meio de um nome islamizado, manteve o Mendes. Ele é um profundo conhecedor do mar, seus segredos e alma, e dos ciclos das ondas como ninguém. Entende as lições das marés baixas, os perigos das altas e o silêncio de marés mortas. Nasceu escutando e decifrando os sons das pristinas praias de Mossuril, vila adjacente ao litoral que, em tempos de cordialidade, bate de frente com a majestosa Ilha de Moçambique, essa antiga capital e berço de tantos mistérios e ritmos que enfeitiçam.
A cidade de Nampula, capital e Rainha do Norte, esse ponto de entroncamento para onde convergem todos os eixos sociais, culturais e económicos, na realidade da sobrevivência, celebrou mais um aniversário. Mês de Agosto. O maior presente que a cidade e província, hoje, tão descaracterizada, ainda, poderiam oferecer, com originalidade, aos naturais e visitantes, são as suas vibrantes vozes e talento musical do litoral e do interior. Artistas que simbolizam a prova maior da miscigenação que repescou o mais nobre de dezenas de povos e culturas. Mas, Nampula não produziu nem centenas, e, muito menos, milhares de vozes de ponta. Foram só dezenas que, com algum privilégio, atingiram patamares nacionais, continentais ou até mundiais. Os que lograram atingir esses pódios, fizeram-no, à perfeição, com marcas que flutuam sob o anonimato dos ventos, no fervor das geografias e dos ciclos lunares que beijam as ondas.
Gimo Remane esse iconoclasta e dono de uma voz arrebatadora que, cantando na sua língua original, Emakhuwa, se autorizou a ser perseguido por uma sonoridade secular, a viajar com a serenidade e calmaria do tufo requintado, enfim, prendeu-se a uma entoação que balança e requebra as cinturas, sempre com o rigor e vigor de uma voz que não teme os ventos. Ele se converteu-se, por mérito próprio, num dos maiores, quem sabe, no mais bem-sucedido artista da província, além-fronteiras, com distinções e premiações bem-sucedidas. Ele quis ser original e pagou bem o preço de ser erudito. Com a banda original que ajudou a estruturar e criar, tão original quanto icónica, o Remoinho, Eyuphuro, cantaram e encantaram Nampula, Moçambique e o mundo. Vivíamos os primeiros anos do sonho da libertada e da identidade cultural, da independência, quando, ainda, deslumbrados viajávamos no comboio azul da revolução entre o Setembro da vitória, e o Junho da explosão.
Nampula celebra sua festa de elevação a cidade a 22 de Agosto. Gimo abraço o mundo a 23 de Agosto de 1955. Mês e época dos ventos das monções, e de todos os recomeços. Seu Pai Abdul Remane António Mendes, enfermeiro, na época com o título oficial de auxiliar de enfermagem, era o alquimista que cuidava da saúde de uma população discreta e constituída por pescadores e camponeses, que acreditavam em outras formas e poderes para tratar de suas mazelas. A espiritualidade e o misticismo de outros poderes divinos.
Sua Mãe, Lina Abdulremane, filha de Tove Jensen Mendes, um sul-africano que também andou por Mossuril, e que teve influência na educação da sua mãe. Ela era de profissão mais liberal e que cuidava da família, e dos assuntos mais domésticos, era de uma linhagem das lideranças locais reforçada pelo lobby que tinham junto do governo colonial. Ela foi a primeira responsável por incutir, no seu filho, o gosto pela música e pela educação cultural que ele preservou até à actualidade.
Convenhamos, Gimo Remane, nasce, então, numa época e com uma família mediana e com as condições bem mais que suficientes para ter uma vida digna e regrada. O primeiro infortúnio na sua vida regista-se com a partida prematura de seu Pai, Abdul Remane António Mendes. Gimo tinha (2) dois anos. Este vazio foi sentido pela família com pela vila de Mossuril. Gimo, com lamenta, não tem a oportunidade, nem a menor possibilidade de conviver com seu Pai e, muito menos, desfruta das inúmeras histórias que este tinha para contar. Esta ausência nunca foi substituída e a família se ressentiu dessa perda. Para compensar, viveu dos fascinantes episódios contados pela sua Mãe e pelo avô Mendes, das brincadeiras dos amigos e da sabedoria de um povo que nunca abandona as crianças. Esta época difícil molda sua personalidade e sua postura.
Mossuril cresce e prospera como vila, com mercados vigorosos de peixe, oleaginosas e verduras, e como ponto de transição, quase obrigatório, para quem se deslocasse de carro para uma das praias mais concorridas da região norte, a praia das Chocas-mar. Na sua infância foi tratado como Gimo Onsiriri, na prática, Gimo de Mossuril, que era já uma forma de o acarinharem e enaltecer aquele espírito de guerreiro. Os nomes que recebemos se transfiguram e moldam personalidades. Respeitado por ser filho de uma família bem estabelecida e de prestígio tem o apoio de todos, mas quer viver a sua própria epopeia. Viveu e fez a sua infância no bairro Onrira.
Ainda, na infância da idade, ele foi herdando as inúmeras e indiscritíveis influências de uma cultural afro-árabe e mestiçada, de povos e mercadores visitantes que, com alguma regularidade, ali exerciam o comércio com os locais. Eram mercadores oriundos de Omã, Índia, em particular Gujarati, Indonésia e Malásia e depois, naturalmente, Portugal que ainda trouxe os goeses e chineses de Macau. Alguns já com residência na região, outros produtos de novas gerações. Mas, chegam, igualmente, de Zanzibar, da Tanzânia e Quénia. Pela Ilha, Mossuril, Lumbo e Angoche saíram, com muita mágoa e dor, milhares de almas moçambicanas que levaram o seu DNA para o mundo. Os escravos. Um cruzamento que espalhou as matrizes culturais deste povo que, fez da sua cultura, uma das mais ricas que Moçambique ostente e se orgulha.
Mossuril era, então, esse paraíso de pura beleza e encanto, um observatório privilegiado para o mar, e em dias serenos, para a própria Ilha de Moçambique e as restantes bem nas proximidades. Mas a vila ganhava vida como porto de chegada de pequenas embarcações, com origem no própria Ilha e outros pontos, como Angoche e Nacala, que ali descarregavam o produto da sua pescaria, do transporte de mercadoria e de passageiros.
As águas de Mossuril tipicamente cristalinas, atreladas a um céu azul-celeste de tirar o fôlego aos privilegiados, era mais que um cartão-postal, mas um delírio criado por Deus. Foi nestas praias e paraíso tropical que Gimo Onsiriri brincou com seus amigos, jogou futebol de praia, viu os grupos culturais de Tufo, aprendeu a arte de pescar, viu Mestres fabricarem embarcações Dhow, e começou a entender que tinha um mundo a seus pés. Maturava sua idade e preparava seu futuro.
Apaixonado pelos grupos culturais locais, ele seguia, com regularidade, as mulheres e os grupos de dança de Tufo, esta espécie de Taarab em Zanzibar, e prestava redobrada atenção sobre o sequencialmente dos ritmos dos tambores. Esta era uma escola natural de preservação cultural, mas um marco indelével de transição de conhecimento geracional. Foi nestas praias de Mossuril que, entre um mergulho e outro na praia, ele começa a libertar sua voz, primeiro para si mesmo, sempre na imitação, depois, para a sua província, seu país e seu mundo. Sua voz de muito instinto, e, alguma rouquidão, parecia seguir essa ondulação, umas vezes se confundido com a voz dos próprios ventos, outras vezes, embalado pelo ritmo daqueles tambores. Cantar era preciso e viver não era preciso. Vivia no limite e aprendia tudo.
Gimo pode não ter tocado viola de lata, como a maioria dos músicos que tocam em áreas suburbanas, todavia, educou seu ouvido para os sons agudos do ritmo Tufo. Viola de lata foi sempre instrumento obrigatória. Os trovadores improvisam seus versos ao som destas violas. Na realidade, todo este litoral sobrevive de Nigungo e Nsope, para além de Tufo, como a base essencial. Estas danças e, amiúde, os grupos que se criam fazem uso e recurso desta acústica de batuques e tambores e, ainda, dos estridentes instrumentos metálicos. Também, usam um apito, que produzindo sons mais graves, parece destoarem, porem, são os marcadores da cadência dos e da execução dos próprios passos de dança. Depois, tudo se complementa com a sensualidade. Existe um erotismo marcante na dança Tufo que se complementa com a educação tradicional ou os ritos de iniciação tão comuns da sociedade matrilinear e de todo o norte do país.
A Mãe Lina Abdulremane toma consciência de que Mossuril, apesar do seu potencial, seria demasiado pequena para os sonhos do seu filho. Era necessário conhecer a cidade e os segredos do colonizador. Conhecer a iluminação e aprender novas línguas. Decide enviá-lo para a Ilha de Moçambique. A Ilha o recebe cordialmente para que ele pudesse beneficiar da magia. Na Ilha dá continuidade aos seus estudos e, posteriormente, para a prática cultural que se impregnara em seus sentidos e sentimentos. Aprende a tocar viola durante uma semana, na casa de um familiar onde esteve hospedado. Depois foi talento natural e o seu ouvido.
Os grupos de Tufo prosperavam e pipocavam em todas as esquinas. Competiam pelos prémios nos concursos da municipalidade. Um dos mais famosos foi o grupo Estrela Vermelha. Perdura até aos dias de hoje. Novas roupagens, mas a mesma sensualidade. Gimo conheceu o grupo e viu suas aparições públicas. Convenhamos, aqui reside o berço da sua criatividade e musicalidade. A Ilha de tantas histórias e poemas, músicos e velejadores.
Se a Ilha de tantas histórias e segredos que lhe abre as portas, de par em par, para o início de uma marcante carreira musical, melhor cultural, foi a cidade de Nampula que o levou para a capital e para os extremos do mundo. Entre a escola, quase única que a Ilha disponha, na cidade de cimento, e a música popular e dos grupos de Macuti, ele arruma tempo para o desporto, para a praia e para a sua religião. Pode não ser devoto, mas é um crente com fé e faz jus aos ensinamentos espirituais. Vive com familiares e aprendem outras lições de vida, de bem-estar e convívio fraterno entre as pessoas. Contempla hortas a fio aquela ponte que parece não ter fim. Obrigatório para os ilhéus frequentaram a praia. Naquelas praias o tempo se deita para contemplar a obra feita por Deus, a generosa mãe natureza.
Mas a Ilha para além de ter o poder de convidar Deus e o tempo para repousaram, ela própria vive num sono interminável. Tudo se faz tão devagar, que parece que todos vivem e convivem parados. Sem pressa e sem velocidades. Pouco ou quase nada acontece com os nativos. As iniciativas, mais ousadas, se originam da perspicácia e sensatez de alguns dos seus filhos que vivem no exterior. Não admira, pois, que todos tentem viver imigrantes. Sonham com Nampula.
O mundo além-mar. Terra firme e onde tudo acontece e o mercado gira. Limitado pelos estudos na Ilha, ele migra para a grande capital. Nampula. Sente esse pulsar de uma cidade que tem de tudo um pouco. Escolas de níveis mais elevados, mercados complexos, ferrovias e representantes de tantos outros distritos. A rádio pode ser captada com nitidez e a piscina do Ferroviário vira o sonho da meninice. Nampula era então o centro ideológico e dos vestígios de uma época de glória. Um novo mundo, ortodoxo, algumas vezes, desregrado noutras.
Em Nampula Gimo não tem tanto contacto com os grupos culturais dispersos, muito pelo contrário, convive de muito perto com o som metálico e vibrante das violas e guitarras eléctricas, das diferentes bandas musicais que proliferam, um pouco por toda a cidade. Na época, José Júlio Patinho, uma espécie de trovador, fazia as delícias das grandes massas. Cantava em português e em Emakhuwa. A Rádio Moçambique, à procura de uma programação mais em linha com a revolução, na época, era única e procurava fazer parte do projecto de unidade nacional. Se subdividia entre tocar os hinos gloriosos da revolução, o substrato da epopeia libertadora, reproduzir alguma música pop internacional, com destaque para a brasileira, Soul e funk americano, que ganhava força. Procurava música dos vinhos como Tanzânia e África do sul. Mas, a moda recaia em Roberto Carlos e Erasmo Carlos.
A música local não perdia espaço, porém, eram poucos os que o conseguiam gravar e fazer furor. Foi a oportunidade para os ouvintes do Norte, numa rádio quase sem potência de difusão e em versão analógica, abriu as brechas para outros músicos moçambicanos como Fany Pfumo, Alexandre Langa, Pedro Ben, Wazimbo e Salimo Muhammad, nosso Simeão que Deus decidiu chamar para os shows no palco superior.
Mas, Nampula tinha as suas bandas e desfilavam em diferentes palcos e casas de pasto. Os dois Jaimitos, incluindo Jaimito Matapa, ainda estudantes, já revistavam o cancioneiro angolano e imitavam Rui Mingas e o famoso Duo Ouro Negro e o Djambo da marrabenta. Copiavam Roberto Carlos. Esta era uma nova forma de olhar para a música, já com instrumentos mais modernos e com amplificação sonora. Gimo Remane se associa a Salvador Maurício e sai em busca do seu espaço. Leva na bagagem seu repertório e acha que outros ritmos como djarimane, namahandga, e o masepua, poderiam fazer furor. Esta veia cultural o distingue dos músicos da cidade. A simplifica e vai às raízes cultivar seu talento.
Salvador Maurício era um etnomusicólogo e se dividia entre a música e uma posição no funcionalismo público da nova e revista máquina administrativa. Tinha a vantagem de estar próximo dos círculos do poder. Gimo Remane equacionou, muito bem, que essa seria uma oportunidade de ouro para se associar a Salvador Maurício, bem conhecido na praça, e, assim, propor essa mistura de sons entre a sua base musical, Tufo, Nsope e Nigungo e musicar esse substrato com instrumentos de percussão modernos, gerando então esse swing africano mais moderno e nem por isso sem raiz cultural. Propôs, então, que o seu repertório tivesse como substrato a língua emakhuwa, apenas, numa época em que a língua local ainda tinha limitações, mas, nem por isso, auditório garantido.
Na realidade, apesar de a língua portuguesa ser conhecida, nunca serviu como factor comunicativo para a grande maioria das pessoas. Cantar em emakhuwa era por demais vantajoso e expressava a força de uma ideologia cultural subjugada. Os músicos do sul do País, igualmente, faziam essa opção.
Não admira, por conseguinte, que esta proposta tenha sido ousada no começo, todavia, muito bem aceite por largos sectores da população que congregava um número significativo de chumbo, Maconde e outros. Essa obsessão pela língua materna pode ter gerado alguma incompreensão. Não obstante, persistiu e com o seu parceiro de ocasião, Salvador Maurício, seguiu em frente e formou a sua primeira banda, o Eyuphuro e gravaram as suas primeiras músicas. No começo, até para os jovens de Nampula, esta era uma banda da Ilha de Moçambique e não da cidade. Depois, pelo sucesso, passou a ser a grande banda de Nampula.
Já decidido e pronto para mostrar seu potencial Gimo Remane, nome pelo qual melhor o identifica, compõe a sua primeira música de sucesso, a famosa Amuara a N’Raki, traduzido como a esposa do Senhor Raqui. Uma senhora que se aproveitava da ausência do esposo para pintar a cara de Mussiro e sair para a rua. Letra simples, mas que tocou os corações de todos. Virou sucesso e teve uma aceitação tremenda. A meio de tantos géneros musicais aquela proposta musical vincava e marcava o seu pedaço e espaço. Decorria o ano de 1981 e iniciava uma carreira sem precedentes e arrasadora.
No mesmo ano Gimo Remane sente que poderia explorar outros limites em outras geografias. Numa aventura e achando que tudo seria fácil viaja para o Maputo. Tenta a sua sorte junto da RM e da EME de Eduardo Mondlane Júnior, o grande promotor musical da época, com equipamentos de ponta e que era responsável pela promoção de um vasto conjunto de jovens músicos. Moçambique começava a passar por um período de carências. Faltava de tudo num pouco. Era o preço de se ter optado por políticas comunistas, e por se ter ajudado o Zimbabwe na sua luta de libertação. No Maputo tem colosso para enfrentar e um naipe de bandas que não abriam os espaços de forma facilitada.
A RM era sempre quem mais ajudava a divulgar e passava o sucesso do norte de Gimo Remane como esse cartão de visitas inquestionável e indubitável. Não se consegue firmar e regressa a sua cidade de Nampula. Por alguma razão, nem sempre bem compreendida, entra, igualmente, em rota de colisão com Salvador Maurício. Mas, nessa altura já tem outros integrantes de peso para a sua banda Eyuphuro. Esse remoinho capta Omar Issa, um talentoso guitarrista de enorme tarimba e com muita criatividade, que havia tocado em outras bandas de Nampula, e era dos mais serenos e ponderados e exímio conciliador. A experiência de Omar Issa, já falecido, e a criatividade de Gimo Remane assentam como uma luva. Era o ponto certo e o catalisador de uma nova e auspicia realização. Para gáudio dos seguidores, Nampula ganhava uma bandas que tinha estrelas e reputação.
Não tardou, por conseguinte, que esse remoinho tivesse efeitos demolidores. Gimo Remane, eventualmente, continuava fazendo essa incessante busca por novos talentos. Surgiram Mussa Abdala, Chico Ventura e Belarmino Monteiro. Estes dois já na eternidade. Nesta safra, surge Zena Bacar e Aida Humberto. Zena com a voz mais sensual, que não precisou de um segundo convite para provar seus dotes. Se firmou como a voz feminina do Eyuphuro e autêntica estrela nacional. Cantava deslaça, qual diva, e isso ajudou a popularizar o seu talento. A aposta se manteve em maquetizar ritmos do litoral e buscar temas sociais relevantes. Nampula ganhava, quiçá a sua melhor banda dos tempos modernos, um veículo promotor da cultura local, e o remoinho que parecia não ter fim. Saíram de um espaço de conforto e conquistaram o mundo.
As carências trouxeram as organizações não-governamentais e outros expatriados para todo o país. Nampula não foi excepção. Recebeu vários, de entre russos e vietnamitas, escandinavos e holandeses. A cidade tem algo que atrai estrangeiros. Deve ser a forma liberal de estar e viver. Entretanto, para Gimo Mendes e sua banda Eyuphuro sobreviver de música virou tarefa árdua e quase impossível. Os patrocínios sumiram, o Estado descapitalizado era a solução, e só mesmo os shows geravam alguma limitada receita. Nem os direitos de propriedade eram respeitados. Era música do povo e todos poderiam usufruir.
Gimo Remane se apaixona na época por uma jovem que, mais tarde, virou sua esposa. Charlotte original da Dinamarca. A esposa cedo entendeu que deveria apoiar a veia criadora do esposo. Redobram as suas responsabilidades na continuidade do Eyuphuro. Fazem algumas campanhas para angariar apoios. Era a forma que a esposa Charlotte encontrava para ajudar o Homem de seu coração e o grande amor de sua vida. Ajudava de forma directa, primeiro, seu namorado, e depois esposo, a financiar o grupo e minimizar as limitações financeiras graves. Na sua rede de contactos permitiu que o grupo chegasse aos festivais de Verão na Europa e, mais tarde ao tão desejado World Music project, de quem o Eyuphuro foi um dos grandes representantes de Moçambique, a semelhança dos Ghorwane.
O mundo clamava por novos sons e estas propostas de Moçambique agradaram a equipa de Peter Gabriel. Eyuphuro ganhava nova vida e embarcava para um rumo que parceria ser de arco-íris e sem final a vista.
O World Music era nada mais e nada menos que a música de origem e circulação não ocidental. Eram as canções das minorias, de outras latitudes, dentro desse mundo musical tão complexo e dominado pelo pop, rock and roll e a musical country.
Nos shows na Europa o Eyuphuro ganha notoriedade e visibilidade. Tocavam os corações pela ligeireza de suas canções, seus trajes religiosos e uma Zena que encantava com sua voz de ouro. Começam com shows arrebatadores na Escandinávia e logo chegam ao coração da Europa. Gravam seu primeiro disco entre 1989 e 1991 nos estúdios de gravação Mama Mosambik, ainda hoje temos como um dos trabalhos musicais mais tecnicamente irrepreensíveis. Esta possibilidade abre espaço para eles incorporem outros sons da província, tais como o djarimane, namahandga, e o masepua. Estes ritmos são requintados com outro dinamismo harmónico como são os casos do swing africano e esse híbrido latino e árabe.
Para a Europa era um outro pop vestido de outras harmonia e sonoridade. Peter Gabriel que foi o vocalista do Genesis e enveredou por uma carreira a solo, tendo-se afirmou como um dos mais carismáticos artistas da época, aproveita este potencial da música africana e como produtor de vídeos ajuda a divulgar a música do Eyuphuro e o remoinho é reconhecido em toda a Europa.
Na primeira digressão para a Europa eles permanecem cerca de seis meses em tournée. Visitam a Holanda, Dinamarca, Bélgica e Suécia. Foram gravados dois álbuns, nessa longa digressão e as dinâmicas do grupo, sem reservas, passou a ser entre Moçambique, que pouco tinha para oferecer, financeiramente, e o ocidente de onde vinham o grosso de receitas da banda. Gimo Remane recorda esse momento e fala do apoio imensurável da sua esposa, que não sendo das lides musicais, procurou formas de patrocinar a banda no começo. Charlotte tem, por conseguinte, o seu mérito na afirmação da identidade do Eyuphuro, e nas apostas ousadas que foram efectuadas noutros continentes. Aliás, os primeiros instrumentos que a banda usou foram produto da generosidade de amigos e de alguns expatriados da esposa de Gimo Remane. Gimo recorda, também, que tudo isto permitiu que criasse diversas composições, porém, muitas delas ficaram por gravar.
Gimo Remane era o baluarte do grupo. Fazia os arranjos e compunha. Mas era, igualmente, o produtor, pois, ele próprio, assoberbado, cuidava de organizar as digressões e a venda dos álbuns. Eyuphuro já era uma grande certeza no panorama musical nacional e isso exigia robustez, coordenação e musculatura financeira mais ajustada. A economia de guerra e o início de um processo de democratização do país criaram, ainda, mais problemas de sustentabilidade do grupo. A existência do público crescia intra e extra muros. Mas, existia algo mais profundo e grave. A pirataria musical. Todos os seus CDs apareceram no mercado negro. Internamente, pouco ou quase nada conseguiam lucrar, porque num mercado musical desregrado e instável nunca tiraram proveitos. Então, a base de sustento eram sempre as digressões e os proveitos dos discos vendidos além-fronteiras.
Em 1992, Gimo Mendes opta pelo mais difícil na sua vida e carreira musical. Vai viver com a esposa Charlotte para a Dinamarca, na cidade de Aarhus, na costa este da península de Jutlândia. Esta a segunda mais importante cidade da Dinamarca. Desde, então, aqui se radicou e trabalha. Trinta e três (33) anos de uma residência condicionada pelo amor e matrimónio, e que ditaram a prolongada ausência das lides musicais moçambicanas. O cenário musical moçambicano passou a dispor de Gimo Romane esporadicamente. A sua banda Eyuphuro, qual remoinho que perdia a força, foi sobrevivendo de esporádicos convites, até desaparecer do cenário musical de forma física. Assim são os remoinhos, concentram sua máxima forma no epicentro e depois, só a cauda faz os últimos estragos, até que enfraquece para que novos remoinhos possam surgir. Esses sons das profundezas do mar se enfraqueceram de forma irremediável. Zena Bacar continuou cantando no Maputo, emprestada à diferentes grupos e actuações quase oficiais; o resto da banda se desfez para a tristeza da cidade e província de Nampula. Eyuphuro virou memória, mas seu inigualável repertório musical perdura para sempre.
Na Dinamarca Gimo Remane estudou música a nível superior e criou um estúdio próprio. Recorre aos amigos e estudantes para a produção de suas músicas, além de realizar concertos um pouco pela Dinamarca e outros países. O melhor, ainda, tem sido o facto de ter começado a leccionar em algumas escolas de música no continente africano. Pai de dois filhos, ele os influencia para a música igualmente. Todos os filhos de peixe sabem nadar e os naturais de Mossuril entendem de música.
Nas poucas conversas que temos mantido, ele fala da Artist Take Action, uma associação de carácter cultural e humanitário que, de entre outros, procura congregar diferentes sensibilidades culturais e liberais para estimular esta ligação com a cultura e o seu Moçambique que não sai do Horizonte. Consegue apoios para aparições em Moçambique, porém, sente que essa forma esporádica de dar corpo a sua criatividade musical é insuficiente e ineficaz. Mas, dá os passos certos, sem nunca querer exagerar e dar um passo maior que a perna.
Gimo já saiu de Nampula como um Rastafarian. Manteve essa tradição até aos dias que correm. Convicto e com fé de gigante. Rastafarianismo por vezes tido como uma designação ofensiva, longe de nos querer injuriar, equivale, então, a essa religião judaico-cristã com origens afrocêntricas. Está convencionado que surgiu na Jamaica, na década de 1930, entre negros descendentes de africanos escravizados. A sua legião está espalhada um pouco por todo o mundo e Gimo, de forma consciente, mantém os traços de uma longa juventude da qual ele não quer se excluir.
A sua produção continua profícua. Mais se assemelha a um imperativo de consciência. Recebo músicas que ele produz e que, certamente, deve estar preparando um novo álbum. O último álbum que lançou em Moçambique, data já de 2014 ou 2015, e se designava raízes da minha terra. Uma crítica ao que tem sido vinculado no ocidente sobre o continente africano, colocando como local de guerras, epidemias e fome.
Mas, igualmente, surgiu como um tributo à Nelson Mandela. Pode ser que o álbum não tenha feito tanto furor, num momento em que o país experimenta novos cordões, época de modernidade, ritmos como Pandza e Amapiano, com exuberante influência sul-africana, para não mencionar os sons dançantes de Angola. Mas, diga-se, de passagem e em abono de verdade, que o novo naipe de músicos, mais jovens e com recursos tecnologia, oferecem linguagem ajustada à juventude, comunicam melhor, fascinam as mentes com repetições e batidas repetidas. Cada época transporta suas as aspirações. Gimo ainda teria muito para oferecer ao seu país.
Na sua longa estadia na Europa, Gimo Mendes continua ganhando prémios e diferentes menções honrosas. Já foi outorgado e laureado como melhor artista africano do ano na Dinamarca, no longínquo 2009. Antes, fora distinguido com o prémio Danish World Music, em 2007. Mais recentemente gravou o CD Melo, que significa amanhã, em Emakhuwa. Ele próprio define esta nova obra como pertencendo aos espaços e épocas onde os seres humanos se reencontram, as ideias florescem, e se recriam na intersecção e na compreensão. Assim se criam os laços de fraternidade e comunhão. Esta atmosfera de que a vida carece, para que, sejamos todos parte desta humanidade sem distinções de raça, credo e traços culturais.
Nas diversas entrevistas e blogs onde se podem ler entrevistas que o artista, amiúde, providencia, sem dúvidas, vale recordar sua apreciação sobre o estágio actual da música. Na sua opinião, grande parte dessa música espelha uma certa apatia da nova vaga de músicos em investigar ou mesmo recriar o património rítmico moçambicano. “Não tenho nada contra ninguém que compra um computador e programar os sons que o japonês fez para começar a cantar. Aliás, muitos nem cantam, só falam com uma certa musicalidade. O que não aprecio é isso estar a passar como identidade musical moçambicana, porque não é”. Assim desabafa Gimo Remane ao mesmo tempo que faz um apelo para que a nova geração preste mais atenção às suas raízes culturais. Na prática, Gimo Remane vive com algum descrédito sobre a evolução da criação cultural mais aturada. A tecnologia, aqui e em toda a parte, começa a colocar essa pesquisa etnológica e cultural, como parte de uma história distante.
Quando as estrelas reluzirem e o crepúsculo se der por vencido, porque o arco-íris intercala as tardes e noites, deslumbrarão as emoções deste povo saudoso e inconformado, que não pretende esquecer as suas estrelas que ecoaram pelos vários cantos desde mundo. Gimo Remane é um deles e devemos essa gratidão pelo que fez pela música local, mas, o que continua fazendo na formação de jovens na Europa e, de certa forma, noutros quadrantes. Enquanto, não chega aos 70, cuja cerimónia será realizada aqui na pátria que o viu nascer, a sua carreira musical será, eternamente, feita de encontros e desencontros, porem, com as esperanças e certezas de que, o seu talento, perdurara para todo o sempre. (X)
Não chove em noite de lua cheia. É um saber secular, nem por isso, enciclopédico. Endogeneidade conceptual que transforma o comum em algo super natural. Mas os tempos mudaram, as vontades também. Agora, chove desregradamente. Noutros tempos, a chuva, em jornada solarenga, até simbolizava casamento de macacos. Eles próprios se apadrinhavam, e contemplavam o doce sabor arco-íris.
Encontrei o velho Nahota Mustafa, ainda imperial, absorto em seus pensamentos, descrente da vida e desconfiado dos tempos. Debutamos nas saudações, nessa expedita e metódica forma de reencontros, com as cordialidades costumeiras. Aprimoramos os rituais e as apologias à paz, na gentílica praxis Namúli, tão adulterada pelos tempos.
A saudação continua um procedimento que revela respeito e cordialidade; segue os preceitos e, de forma hábil, auxilia a dirigir a conversa para o objectivo que pretendemos. Na Ilha, por tradição, os critérios hierárquicos definem as normas do respeito e da fraternidade.
Nahota, ou comandante do Dhow, esse milenar barco à vela, quem sabe oriundo do Omã, lá no médio oriente, e que galga as ondas pela nossa costa, também, vive intrigado com a natureza. Esmiúça suas esperanças para contemplar a serenidade do mar, os dias carregados ou vazios de tudo. São as águas que oferecem os frutos para a colheita, ventos para a sementeira, nesse movimento de ondas sobre as quais transbordam as saudades. Ele vê a sua Ilha, aqui onde Luís de Camões, poeta sénior português, também, naturalizado residente, foi celebrado nos seus 500 anos. Nenhum outro lugar fora das fronteiras de Portugal se importou, tanto com ele.
Esta Ilha perdeu a sua graça e resvala agora em novas inquietações e mistérios. Nahota, continua incrédulo e contempla o oceano que deixou de ser tudo até a infelicidade felicidade. Ele se preocupa com a tecnologia avassaladora, pois, ninguém mais precisa do seu conhecimento. Os seus ajudantes vivem presos ao celular; dominam a previsibilidade; se recusam fazer ao mar em dias de tempestade. Sequer sabem contar os números dos passageiros, pela ganância de mais uma moeda ou uma nota de pequeno valor. Esta é a crueldade dos novos tempos.
Nahota também diz que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra”. Já vimos isto escrito em livros de José Saramago. Para ele, o fim da viagem parece ser o fim da história. Todos os dias, ele testemunha muitos centímetros de areia que desaparecem nas praias cristalinas. Os sintomas climáticos que um dia podem afundar a sua ilha. Incomoda que não existam mulheres pilotando embarcações, apesar da ilha receber mulheres conduzindo viaturas todos os dias. Afinal, por onde anda essa emancipação?
Os Dhows, essas incontornáveis embarcações que, ainda, sobrevivem os tempos e as adversidades, transportam pessoas, bens e sonhos, perdurando no imaginário e nas esperanças mais imediatas dos insulares. Sem eles a vida terminaria. Eles são o valor de oxigénio para a sobrevivência da ilha e dos seus habitantes. Junto das areias das praias operam os estaleiros de construção destes Dhows. Nahota acha que já não existem mestres. A sabedoria de construção desaparece todos os dias. Os barcos e as suas madeiras são duvidosos.
Para a construção dos Dhows, os instrumentos utilizados são exclusivamente ferramentas manuais, desgastadas pelo tempo, mas, ainda assim, tão úteis quanto funcionais. Trabalham com madeiras nobres como o Mogno, a Teca e até a madeira da mangueira e do coqueiro. Tudo à volta serve. As cordas são feitas de cascas do fruto do coco, que permanecem dentro água, durante mais de três dias, para depois virarem cordas resistentes que asseguram que as partes amarradas permaneçam sólidas e coesas. Esta é uma corda que nenhuma tecnologia consegue superar. A cola é, igualmente, feita das cascas de árvores e é tão efectiva quanto segura. A cada esquina tem meia dúzias de artesãos, feitos Mestres, que estruturam sua organização social e económica, em boa parte, na construção e utilização destas embarcações.
Quase toda a actividade piscatória da Ilha, e das localidades da costa, Lumbo, Mossuril, Cabaceiras, Lunga e etc. é feita com recurso ao Dhow. Também eles fazem a navegação de cabotagem para o transporte de passageiros. Transportam a história da glória, da heroicidade e dos desígnios de um litoral que deu vida ao continente e reconfigurou sonhos de viajantes e exploradores, traficantes, religiosos, falsificadores e piratas.
Nahota anda preocupado pois estas embarcações, agora, também transportam os noivos e seus familiares entre gentes de Zanzibar e as belas macuas miscigenadas da sua Ilha. Casamentos misteriosos que todos conhecem e ninguém comenta; fingem desconhecer. Ele confirma que existem dezenas de moças casando com jovens de Zanzibar e que viajam indocumentados ao cair da noite. Quem sabe até candidatos à insurgência.
Ninguém sabe ao certo de onde vieram os Nahotas. A Ilha de Moçambique, esse ponto de encontro de poetas e escritores, reinventou-se para a sua sobrevivência, abrigando alguns desses artistas, enquanto outros se dispersaram Norte a cima ou Sul abaixo. Os Nahotas são as marcas e o orgulho do cruzamento de civilizações e culturas. Eles representam técnicas de construção naval suaílis, árabes que criaram os entrepostos e, com eles, a miscigenação tecnológica.
Ao longo dos anos, poucos se preocuparam em documentar ou assimilar a técnica de fabricação dessas embarcações, o que transformou aqueles que detêm esse conhecimento numa verdadeira elite. Uma espécie de conhecimento que passa de pai para filho e de filho… para mais ninguém.
Estes Nahotas continuam os maiores conhecedores dos tempos e dos espaços, são responsáveis por edificar estas conexões e perpetuá-las ao longo dos séculos. Através das suas embarcações, os Nahotas registaram segredos inconfessáveis. Se no passado, eram as pessoas mais respeitadas, o presente lhes virou as costas. Hoje, eles vêem seu prestígio esmorecer, sendo ofuscados pela modernidade.
Nahota controla todo o processo de construção da sua embarcação. De forma discreta, revela confiança para deixar a equipa trabalhar, porém ao mesmo tempo a insegurança que os novos tempos propiciam. Com as falsificações, ele sabe que podem trocar as melhores peças de madeira e colocar em risco o seu Dhow. Manter a chama da técnica e da mestria preservada não é apenas garantir que o Dhow jamais desapareça, mas é o assumir que a economia da costa se mantenha intacta.
Ele e o grupo de amigos e operadores das embarcações falam sobre as mudanças climáticas, noutros termos, como uma pura invenção política e distante do que sempre foi uma realidade naquela parcela do litoral. Eles assumem que as campanhas políticas, nem sempre, se preocupam em explicar essas mudanças. Porém, quando se assumem na governação, então, justificam tudo, ou quase tudo, como fazendo parte do pacote dessas mudanças. Depois, tiram partido para explicar os ciclones naqueles longos comícios que tem mais de palmas do que conteúdos.
Se os ciclones sempre existiram, então, porque, agora, são mudanças climáticas e não ciclones? Ao longo da vida sempre experimentaram ciclones e essa foi a definição. Os mestres dos mares, com suas habilidades e conhecimentos únicos, exigem uma comunicação diferente para serem convencidos. Os Nahotas consideram-se possuidores de poderes especiais, que transcendem a compreensão comum e funcionam como uma reserva científica e climática para a população em geral.
Para todos Nahotas, as mudanças climáticas seriam uma mitomania que gera testemunhos invertidos inverídicos e desafortunados. Mas, se por um lado estão preocupados com essas mudanças, por outro, vivem o stress de uma pesca cada vez menos abundante e difícil. Por conseguinte, a pesca esta longe de ser comparada aos bons e áureos tempos, onde a ilha tinha peixe de sobra para as famílias locais e para a revenda noutras paragens.
Todos os anos, argumentam, as águas, endiabradas e sem escrúpulos nem generosidades, galgam e cavalgam precisos centímetros das suas praias. A este fenómeno lhe foi explicado que correspondia ao avanço do mar sobre a terra. Mas, se interroga, porque razão o mar não roubava a terra antes? Tive de explicar que esta é a batalha que o planeta perdeu. Os pecados que a terra e os homens começam a pagar em vida. Uma espécie de inversão de valores. Sentido contrário da natureza e do próprio mar, nas suas mares mais altas.
A nossa conversa se estendeu pelos ventos. Nahota Mustafa acha que os ventos estão, no mínimo, estranhos e indereccionados. Seguem sentidos esdrúxulos e despojados de bom senso. Trocam de velocidade e direcção sem que se faça um sualat no interior do Dhow. Como observou Chinua Achebe “a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra”.
Falamos da sazonalidade de espécies de peixe que viravam sazonais. Os grandes cardumes migram e procuram outros espaços. Nesta época, a pesca reduzia e os cardumes fintavam as redes de pesca. Sem ventos seguros e nem pescado, as carências deixam os pescadores, e todos os Nahotas, sem o menor sentido de racionalidade e muito menos de sustento. Eles não entendem se as suas vidas se fazem de política ou religião, ou se nenhuma delas. Instala-se, então, a desilusão, e a fé e a esperança são esvaídas.
Nestas explicações, prestei atenção ao canto das mulheres que aproveitam a maré vazia para colectar crustáceos. O seu canto tem tanto de melancolia como se desespero. Falam de jovens que partiram mais para o Norte e nunca mais regressaram. Mas, também, falam sobre os filhos que não aprendem o essencial na escola. Comenta-se também sobre os jovens que bebem incessantemente durante os finais de semana, começando na noite de quinta-feira e só parando no domingo. Os seus filhos bebem de tudo possível e imaginário; vorazes consumidores. Elas desencontram esse sustento e usam o tempo para ensaiar novas melodias e asseguram que precisam de repetir às canções. Os tempos difíceis oferecem temáticas inesgotáveis. As vozes são afinadas e libertam as suas emoções e almas. ‘Quem canta seus males espanta’.
Como escreveu o poeta e filósofo Rainer Maria Rilke, “O futuro entra em nós, para nos transformar em algo que ainda não somos”. A tarde se esfumava lentamente, ameaçando desaparecer com o crepúsculo, cujas cores vibrantes iam do laranja à púrpura, tingindo o céu com tons tão profundos quanto os pensamentos de Nahota Mustafa. Ele queria continuar a conversa, mas não parecia convencido pelas minhas explicações, talvez achando minhas palavras tão efémeras quanto o vento que soprava ao longe.
Eu, que não sei prever os ventos do dia seguinte, sentia o peso de sua desconfiança, pois ele, com sua experiência milenar, sabia ler o tempo e entender a linguagem oculta da natureza. Por isso, duvida da minha capacidade de falar sobre os tempos que virão, as dificuldades que o país enfrentará, e os ventos que, segundo seus instintos, serão mais fortes e constantes.
Dou exemplos, tentando ser didáctico, mas percebo que ele finge acreditar. Seus olhos, que se perdem de forma vigilante no horizonte, revelam a verdade de sua descrença. Ele vê além das minhas palavras e sente o que eu não consigo prever – os sinais da natureza que sempre foram seu guia. Nahota, com sua sabedoria enraizada nos ciclos do mar e do vento, percebe que o futuro, tão incerto para mim, para ele está escrito nas águas e nas brisas que, sem erro, moldaram sua vida e a de seus antepassados.
Teríamos de interromper para que ele pudesse regressar à Mesquita, a Masjid, em busca de reconciliação com Allah. Contudo, aquela casa de oração havia sido alvo de novas regras, e muitos dos sermões já não traziam o apelo nem a convicção de outrora. Os jovens, que estudavam no estrangeiro, voltavam falando de outras escrituras sagradas, levantando questionamentos que antes não faziam parte da rotina daquela comunidade. No entanto, a fé ainda permanecia firme, como a última esperança de que os tempos pudessem, de alguma forma, regressar à normalidade.
Hoje, a segurança marinha tornou-se essencial. Estes experientes comandantes de Dhows, que carregam consigo os sonhos e o sustento de tantas comunidades costeiras, precisam agora estar mais atentos do que nunca aos procedimentos de segurança e outros cuidados necessários. As exigências sobre os Nahotas vão além do conhecimento tradicional, requerendo novos saberes sobre como proteger vidas nas águas oceânicas, onde os riscos estão sempre à espreita. Pilotar um dhow continuará sendo o privilégio de poucos, mas a sobrevivência e bem-estar de muitos dependem dessa habilidade.