Entre as figuras de grande gabarito literário e intelectual que marcaram o tempo e o destino da Primeira República, o nome de Leite de Vasconcelos é dos que mais se destaca. Era um homem de uma soberba, eclética e monumental cultura geral. Como publicista movia-se por todos os meios de comunicação com um engenho invejável, da rádio à escrita nos jornais, da televisão ao teatro. Era, à época, a maior figura do nosso espaço mediático. Prolífero, fecundo, abundante. Poderia ser ferozmente mordaz, mas nunca deixava de ser afável ou até mesmo cordial. Tinha argumento vívido e sagaz quando polemizava e era um prazer ouvi-lo. Não tergiversava. Era acutilante, mas com urbanidade e elegância. Era facundo. Das vezes que tive a benesse de me entrevistar com ele nunca tive a pretensão de o ombrear na conversa. Escutava-o apenas. Falasse do que falasse, fosse de autores ou livros policiais (de que era um leitor omnívoro) ou de nomes exemplares da literatura universal, ou do país e dos nossos desencontros, era um prazer escutá-lo. Dominava a arte da argumentação. Era fino na análise, quase viperino na crítica. A sua conversa, também direi dele, melhorava o silêncio. Isso é apanágio de poucos.
Os seus pais haviam chegado a Moçambique entre os finais da década de 20 e primórdios dos anos 30. A sua família cultivava a primazia de ter os filhos no mesmo lugar. Não obstante a guerra, a mãe, grávida, embarcou para Portugal para o ter em Arcos de Valdevez. Com 4 meses trouxe-o de volta. Mocímboa da Praia, Chemba, Gorongosa marcam a sua geografia infantil e juvenil. Na Beira fundará a Associação dos Jovens de Moçambique. Escusado será dizer que a censura e a proibição irão exercer-se sobre a mesma. Ainda intentaram encenar uma peça de teatro. Debalde.
O pai era funcionário na indústria do algodão. Viveu sempre longe das cidades. A importância da rádio na sua vida justifica-se, também, por esse facto biográfico. Iria para a cidade prosseguir os estudos nos Irmãos Maristas. O espaço, a liberdade, a felicidade são os acenos do interior. Quando chegou a Portugal, já adulto, ficou chocado com a pobreza e a sua rudeza: viu, pela primeira vez, brancos pobres.
Cumpriu, como meteorologista na Força Aérea, o serviço militar entre 1964 e 1968. Estou Ciências Sociais. Regressa a Moçambique. Tem uma breve passagem pelo Banco Standard Totta. Considerava-a uma experiência atroz. A despeito, começa a escrever. Essa fase da sua investida poética está espelhada nos poemas à volta do “ciclo da cidade”. Era o tempo dos cafés e da tertúlia. A contradição entre o jovem branco criado no mato e a cidade revela-se neste ciclo e nesses poemas. Mas também as interrogações mais profundas – se quisermos mais ontológicas – sobre a sua condição social e a realidade política de Moçambique e a sua evolução histórica. Um sentimento de culpa exorcizado na poesia.
Em 1969 concorre e é admitido como locutor da rádio. Tivera uma experiência breve no Aeroclube da Beira com um programa da rádio. Aliás desde essa altura até ao fim será jornalista e a rádio será o seu meio primordial. Nesses anos fazia um programa que se intitulava “A noite e o ouvinte”, no qual divulgava a actividade literária de então. É através desse programa que contactará Rui Knopfli e Eugénio Lisboa. Na mesma altura participava, na Associação Africana, nos saraus de poesia. Um grupo de dança e de música, que iria redundar no Grupo João Domingos, animava os espectáculos da Associação Africana. Foi aliás nesta agremiação que conheceu José Craveirinha. Recitava os poemas de Craveirinha, de Noémia de Sousa e de Rui Nogar. Eram subversivos. Leite de Vasconcelos dizia espantosamente bem.
Nessa altura também irá colaborar no jornal da Associação dos Naturais de Moçambique, “A Voz de Moçambique”, chegará a ser seu chefe de redacção. Rui Knopfli, Eugénio Lisboa e Adrião Rodrigues faziam a vez do conselho editorial. Foi nessa época que conheceu (também) António Quadros, que irá animar, com Rui Knopfli, a publicação dos cadernos de poesia “Caliban”, iniciativa eivada de subversão. Por vezes, encontrava-os no café Djambo. João Pedro Grabato Dias (um dos heterónimos de Quadros) tem poemas que falam abundantemente dessa tertúlia, no Djambo, e da cidade alvoroçada. Leite de Vasconcelos ia lá ouvir os mestres. Um dia, Knopfli pede-lhe colaboração para “Caliban”, o que virá a ser uma circunstância biográfica e poética de grande significado.
Em 1972 proíbem-no de trabalhar na rádio. A sua voz é banida. Ironicamente será esta mesma voz que dois anos depois irá dar expressão à senha do 25 de Abril em Portugal. Vai para Londres, contacta a Frelimo, queria ir para a Tanzania juntar-se à Frente. Aconselham-no a ir a Portugal. Lá seria mais útil à causa. Trabalha, inicialmente, no “Expresso”, semanário fundado por Pinto Balsemão e alguns dos seus companheiros da chamada Ala Liberal, que estava nos antípodas do regime. Ele está no escol de jornalista precursores do jornal. Não muito tempo depois, com um angolano e um guineense, criam, na Rádio Renascença, um programa chamado “Limite”. Manuel Tomás que saíra com ele de Moçambique participa da aventura. Como o nome denuncia queriam experimentar os limites da censura. O programa tinha grande audiência, o que levou o Movimento das Forças Armadas a contactá-lo para passar a senha do 25 de Abril. A voz que lê os versos da canção de Zeca Afonso e que está na origem do desencadeamento da revolução é a de Leite de Vasconcelos.
A Frelimo pede-lhe para permanecer em Lisboa e vai trabalhar para a delegação do Rádio Clube de Moçambique. Ficará, entre Agosto de 1974 e Abril de 1975 quando, finalmente, retorna a Moçambique e para a Rádio Moçambique, sucedânea do Rádio Clube. Vive intensamente a utopia revolucionária, como repórter, como cidadão. Entre Maio e Junho de 1975 acompanha o trabalho do então Primeiro-Ministro do Governo de Transição, Joaquim Chissano, na preparação da independência. Contacta vilas, povoações, a população e o chamado país real. Acompanha, ulteriormente, o Presidente Samora na célebre e triunfal viagem do Rovuma ao Maputo iniciada em Dar-es-Salaam. Reporta a independência. Entre os seus companheiros da Rádio está outro poeta, Gulamo Khan. Vivem, exultantes, esses momentos tremendos de profundas mudanças.
No número duplo 3 e 4 dos cadernos de poesia “Caliban”, em Junho de 1972, aparecem 3 poemas de Leite de Vasconcelos (“Sociedade de consumo”, “Sem causa” e “Sensualidade”) ao lado da colaboração poética de José Craveirinha, Orlando Mendes, Sebastião Alba, Glória de Sant’Anna, Frey Ioannes Garabatus, Jorge Viegas, entre outros. “Pelo entardecer / o sol será rubro e fulgurantemente marítimo / iremos mais sós que nós / no périplo costumado dos lugares permitidos / fazer amor com as montras e os cartazes / revestidos da passividade orgásmica / no passeio dos tristes”. A cidade, um dos seus temas obsessivos, na primeira fase da sua criação, assume já um lugar central na sua poética. Dará corpo, anos depois, ao “ciclo da cidade”. Poemas onde encontramos “pensamentos enlaçados / mãos afastadas / e na testa o mesmo vinco de ferocidade”. A cidade estava, por assim dizer, arraigada à sua poesia. Como a morte ou o amor. Sobretudo o amor sensual, táctil, corpóreo, inteligível e sensível.
Em “Sensualidade” escreve: “À porta da cantina bebia odor e seios pequenos / que passavam adivinhados ou nus nas muanacages / e segregava árvores e sombras onde deitá-las comprimi-las / iniciá-las no meu mistério de frio e de suor”. O lirismo amoroso aqui na sua indisfarçável sensualidade. Muitos anos depois, Leite de Vasconcelos escreverá alguns dos mais belos poemas da nossa lírica (“De imaginar Somente”): “Amo-te na rua quando passas / não pelo rosto / não pelas graças / que vão contigo quando passas” (…) “Amo-te na rua Rosa Ana Helena / quando passas / deixas (devagar despida) / imaginar somente Rosa Ana Helena” em “Irmão de Universo”.
Em Outubro de 1985 o poeta publicou, nas páginas da “Gazeta de Artes e Letras” da “Tempo” o poema “Lamento”. Lembro-me da impressão que me causou aquele belíssimo poema. Aliás, em Janeiro de 1987, num texto fatalmente juvenil (“A viagem da nossa poesia”) faço uma referência ao texto e ao espanto que então me causara. Leite de Vasconcelos, então Director Geral da Rádio Moçambique, onde eu debutava na profissão, chama-me à conversa e trata-me como seu igual. Não tenho sequer 20 anos. A minha admiração por ele, que já era bastante, ensoberbece.
“Lamento” é, seguramente, um dos mais belos poemas de amor da língua portuguesa. Na época encontrei alguma alusão estética ao poema “Namoro” de Viriato da Cruz. Leite de Vasconcelos não enjeitou a confinidade poética entre os dois textos, ambos de uma espantosa beleza e raro lustro. Não resisto a citá-lo na íntegra: “Cantei-te serenatas em noite de cetim / com timbilas e violinos / preparei-te um jantar de ushua e lagostim / com cebolas e pepinos. // Falei segredos a búzios da Macaneta / e mandei-tos pelo correio / aluguei à semana o estro de um poeta / e fiz um verso à curva do teu seio. // Colhi flores de madrugada nas Barreiras / abri uma machamba em Matutuíne / disse-te amor em trinta línguas estrangeiras / passeei-te no bazar em Xipamanine. / Comprei um anel de pêlo de elefante / um disco de sungura / um sofá, uma cama e uma estante / um fato azul e um garrafão de sura. // Levei-te às farras das noites de sábado. / À sombra das acácias / contei-te lendas de um tempo passado. / Deixei de ter notícias / e o fluir da tua ausência não se estanca. / Namorado, só, itinerante. / Busco-te nas ruas, encontro-te na Franca / perdi-te em casa dum cooperante.”
Bastava ter escrito este poema para Leite de Vasconcelos pertencer ao panteão dos grandes poetas. É, indubitavelmente, um dos meus poetas electivos. Escreveu tantos outros. A sua grandeza não lhe sobrevinha apenas dos textos líricos. Os seus poemas mais reflexivos ou até ontológicos são igualmente exemplares. Um dos mais belos, “Receita para uma infração" (lembra “Receita para se fazer um herói” de Reinaldo Ferreira): “Toma nas mãos uma manga / dessas que verdes o Knopfli sente / na infância do palato // Tens cinquenta anos / dois rins em greve até à morte / e um que pertenceu a alguém que desconheces / e por morto não soube a quem doou / a faculdade de mijar ainda”. Ou “Telegrama para Manuel Bandeira”, ou “O débito”, ou tantos outros.
A publicação de “Irmão de Universo” (1994) levou o tempo das nossas vicissitudes. Mas veio estabelecer um dos mais importantes revelados na década de 70, a geração à qual pertence Heliodoro Baptista, que tinha a sua firme admiração. Aliás, numa entrevista a Michel Laban afirma: “Penso que a literatura é uma literatura ainda em formação e que nós temos, neste momento, na poesia, uma voz que eu considero muito importante – além do Craveirinha, obviamente –, que é a do Heliodoro Baptista”.
Depois de um longo interregno a poesia veio-lhe numa enxurrada. Nascem os poemas que irão dar corpo a “Resumos, Insumos e Dores Emergentes” (1997) publicado após a sua morte. Escreveu teatro “As Mortes de Lucas Mateus” (2000), argumento para um filme “O Lento Gotejar da Luz” (2001) e não chegou a ver as suas crónicas coligidas em livro: “Pela Boca Morre o Peixe”(1999). “A Nona Pata da Aranha” (2004) revela-nos um contista primoroso. A cidade, o amor e a morte são os seus temas obsessivos. Todos os grandes poetas, afinal, têm os seus temas recorrentes.
Entrevistei-o em Julho de 1990 (eu tinha 23 anos e ele justamente o dobro da minha idade, 46 anos) e disse-me, nessa longa conversa, quando o interroguei sobre as suas influências, que se considerava próximo da poesia de Craveirinha, não formalmente, “mas pela atitude poética que se espelha na sua obra”, disse-me ainda que tinha “uma dívida para com o Rui Knopfli e com a revista “Caliban”. Outras referências? “Outros dois poetas com dívida importante são o António Gedeão – mesmo formalmente há algumas influências na minha poesia – e o Jorge de Sena. Mas depois há tantos outros.” Fernando Pessoa, Luís de Camões.
Falámos sobre o país, o drama da morte de Samora Machel, o papel dos intelectuais ou a ausência dele, da autocensura que muitos jornalistas se auto-impuseram, da guerra que nos corroía e desgraçava e quando lhe perguntei que aspecto destacaria nos 9 anos da nossa independência fez o diagnóstico que ainda hoje nos persegue: aviltou o proselitismo.
Não viu o melhor do seu labor publicado. A 29 de Janeiro de 1997, Teodomiro Leite de Vasconcelos, nascido a 4 de Agosto de 1944 – passam hoje 80 anos – emigrou para o páramos dos eleitos. A sua voz ainda reverbera em alguns de nós, pese embora o esquecimento e o descaso a que votamos alguns dos nossos melhores seja a franquia dos néscios.
Leite de Vasconcelos, poeta, contista, cronista, argumentista, dramaturgo, jornalista, locutor, actor, publicista, homem de rádio e de televisão, polemista, homem de uma grande cultura e de um gabarito incomum, é, definitivamente, uma das mais belas vozes da poesia moçambicana, uma das suas plumas mais esplendentes, uma das suas mentes mais cintilantes e estimulantes, irrefutavelmente a maior figura mediática dos primórdios da nossa independência.
Lisboa, 4 de Agosto de 2024
José Pastor, de seu nome José António Pastor Duarte Silva, nascido em Nampula, a 29 de Julho de 1954, foi poeta, contista, encenador, activista cultural, professor. Um homem dilacerado pela paixão pela vida e pela devoção aos amigos. Poeta solitário e, paradoxalmente, solidário. Encontrou na morte, aos 39 anos, uma espécie de redenção. Quase trinta anos depois do seu gesto extremo, o livro “Com a Saliva Mais ao Sul” subtraiu-o do silêncio.
A geografia da sua breve vida resume-se a Nampula, Maputo, Xai-Xai e Cuba. Assinou também como Si Silva e Broeiro Duarte São Pedro. É quase tudo do muito pouco que se sabe desta personagem quase elusiva que passou, como um cometa entre nós e cuja poesia permaneceu desconhecida ao longo de décadas. Somos pródigos no esquecimento e na desmemória, no descaso e na displicência. Assim tratamos os nossos poetas.
É em meados dos anos 80 que faz publicar poemas e contos em páginas literárias, sobretudo na “Gazeta de Artes e Letras” da vetusta e mítica revista “Tempo”. Posteriormente, os seus textos irão corporizar algumas antologias de poesia e de conto dedicadas à celebração da literatura moçambicana.
Numa entrevista, recolhida no livro “Fazedores da Alma”, de Marcelo Panguana e Jorge de Oliveira, dado à estampa em 1999, José Pastor, que proferiu as palavras que servem de título e mote ao volume, narra um episódio que está na origem da destruição da sua produção literária e que seria aquilo que antecederia o seu suicídio. À pergunta sobre este seu gesto extremado, o poeta responde e eu cito: “Isso aconteceu-me quando um dia decidi: vou suicidar-me. Então preparei tudo, com um ritual dramaticamente bem preconcebido. Foram destruídos poemas, contos, cartas e fotografias. Morreu uma parte do passado. Nasceu uma fogueira. A memória ganhou com tudo isso. Organizado o plano, decidi dormir pela última vez. Acontece que me levantei de manhã muito bem-disposto e ri-me da ideia do dia anterior.”
Esta entrevista não está datada, pelo que só posso intuir que ocorreu muito antes de 26 de Agosto de 1993 e era o prenúncio de que o poeta ir pôr termo à sua vida. Parecia ter uma vida contagiante, empolgada, arrebatada, culta e inteligente. Na verdade, vivia atormentado. Os seus tumultos estavam, afinal, como sintagmas nos seus escritos.
O tema do suicídio, que aparece nesta entrevista, não era inédito. Os seus amigos sabiam-no, pelo menos os mais próximos, com alguns dos quais ele partilhava as suas angústias, marcadas a cada página de “Com a Saliva Mais ao Sul” que exprime os seus tormentos e anuncia aquele epílogo trágico da sua vida.
Perguntado, na mesma entrevista, se a ideia de morte não o assustava, o poeta contrapõe: “Amo demasiado a vida, vivo-a com tanta liberdade e com tanto gozo, que temer a morte, algo absolutamente normal para um belo fim de percurso, seria, no mínimo, ridículo, e indigno para uma pessoa que amou a vida até à exaustão.”
Era um homem inquieto, as palavras brotavam-lhe das mãos, ocultavam o sol que ele cantava, com a espessa neblina que lhe ia no interior do seu ser, na sua alma, para usar um vocábulo que lhe era caro. Escrevia sobretudo poemas de amor. De um amor apolíneo quase sempre, mas num tormento dissimulado. Um amor dilacerado e dilacerante.
Era solar e lunar, impetuoso ou recolhido, expressivo e resguardado, assombrado e assombroso. Gostava dos seus amigos. Queria-os na sua solidão habitada. Sobretudo na Matola, à sombra das suas árvores. Amava os livros, falava abundantemente de escritores, comerciava leituras. Cuba era a sua segunda pátria. Era fervorosamente cubano. Fidel e a revolução tinham nele um implacável defensor.
Publicou muito pouco e o pouco que deu a conhecer eram textos brilhantes. O poema que escreveu sobre o massacre em Maluana é de uma beleza virulenta, é pungente e um dos marcos da nossa lírica. “A pessoa de Josefane ficou no massacre de Maluane, mas seu corpo veio a Maputo para pôr velas.” Este brutal, violento e belo poema não está no livro. Como não estão uma data de poemas que reclamam um resgate.
O livro “Com a Saliva Mais ao Sul” está dividido em duas partes. A primeira, intitulada “Respirar do Fogo”, ocupa quase dois terços da obra, recolhe poemas de amor, de um amor arrebatado, incessantemente carnal, experiência de liberdade e gozo, vocábulos que ele usa na entrevista acima citada e no registo dessa fruição quase sempre desesperada, nessa solidão imperecível, nessa busca do ser amado, nesse encontro e nessa perda, nesse júbilo e nesse esmorecimento, nessa alegria e nessa consternação, nessa euforia e nesse desalento, muitas vezes, quase sempre, em belos versos, pungentes versos, melancólicos versos.
“Quando no chão da nossa
intimidade sulcamos a terra.”
Começa assim o livro que fala desse “Outono que desconhecemos” e “vive de amores possíveis”, mas “em a sua própria mitologia / a sua lógica da carne, do sangue, / do sexo e da lágrima”.
Poesia, magia, solidão, tormento: “Hoje faço-me o favor / de fazer um poema atormentado”, diz o poeta.
Arrebatamento, nostalgia: “Nunca mais foste tu.” Tristeza, sempre a tristeza: “Hoje o dia está tão triste, / tão triste como têm sido / os últimos dias”. Ou: “Há dias em que a tristeza me invade sem pedir licença.” Nessa poesia, diria o autor, “nocturna e esbatida”, onde se acrescenta: “sou triste porque lavro a minha dor”. Poeta solitário sempre: “Estou só e em casa.” Ou por outra: “Desperto sempre de madrugada / e a tristeza volta com / seu veneno.”
Apesar do título nos remeter para o “fogo”, esta é uma poesia lunar e não solar. É uma poesia onde se canta o abandono e a solidão, o inverno, o nevoeiro e o dilúvio, a morte, sempre a morte a rondar os versos e o poeta: “Quero morrer deitado / porque sempre vivi de pé.”
Aqui está o testamento e o testemunho do “náufrago delirando na jangada” e sempre o canto do “amor possível”: “No teu corpo negro / lavrei o suor, / as minhas mãos rociaram /um perfume / natural e afrodisíaco / e bebi da intemporalidade do teu sangue /africano por excelência.”
Esse amor, cripticamente másculo, virilmente arrebatado, visceral e cantado em versos como estes: “E de repente, os músculos ficaram / tensos, as veias em relevo, os olhos / em teias de / lagrimas, e teu áspero /cabelo passou pelos meus ombros.”
Ou estes versos: “de guerreiro à conquista / do meu corpo”, “Teu corpo tem a força / telúrica da Terra”, “Até quando o teu regresso / ao meu corpo selvagem”, “Roçar do teu corpo possante”, “Beijos, gemidos, e todo o suor, / órgãos genitais entrechocando-se.”
A perda está sempre presente, a ausência do ser amado, a saudade e a nostalgia, a melancolia. Mas também o desprendimento desse “amor possível” (di-lo obsessivamente) no qual o poeta exalta o facto de “nunca teres deixado / que o tédio fosse a principal neblina / nas nossas vidas”.
É dessa “respiração do fogo” do “Universo numa explosão/ de átomos dissimulados”, desses “corpos viris” e dessa “morte que agora me chama”: “Vou embora, amor. Só tenho / pena de ti. As asas da morte / não são tão medonhas como se dizem.”
Há sinais muitos claros dessa morte anunciada. “Em breve serei a simples / cinza de um sonho (…) Largo a vida, tudo o que fiz, / o fardo da dor e da solidão.”
Muitos destes versos são a cartografia dessa busca do silêncio e da morte, desse desespero e do seu inevitável epílogo: “Falta pouco para a grande decisão, / para que haja uma explosão de noites / dentro de mim, para que sangrem as flores / que me fazem respirar, para que a seivaque me alimenta seja a da árvore abatida.”
Estes versos são de uma violenta beleza. São pungentes e belos, como é aliás a grande arte. E mesmo no fim desta primeira parte, ou primeiro livro, anoto ainda estes versos: “Não me esqueço que sou apenas / uma tintilação transparente / da grandiosidade da criação, / entre os benefícios e os custos / não reclamo glórias e alvíssaras.”
A segunda parte – “Com a Saliva Mais ao Sul” - é um longo e fragmentado poema e não se exonera do seu registo lírico, mas aqui está o poeta mais onírico. Provavelmente texto mais ontológico, mais ensimesmado, mais absorto em si, mais reflexivo, mais indagador e mais perturbado e perturbante, mais sombrio e desesperado. Mas sempre o amor. O amor desesperado. Sempre a morte. A morte inexpugnável. “Se é um erro exteriorizar-se / a dor profunda que se sente, / é um ferro que nos fere / quando assumimos o brutal silêncio.”
Para além do combate ao silêncio, a obsessão da morte ronda o poema: “Se sofro é por uma cama,
um sono descansado, / até que uma campa merecida / se rodeie de ciprestes.” Poema ominoso, poesia ominosa. Atingida pela “rugosidade das pedras” ou pela “fragilidade da vida”, fissurada por essa “fantástica melancolia”: “Porque sou um rio / decidido a lançar-se ao oceano / na procura de formas de suicídio / mais marítimas”.
Escreve este poeta sombrio, taciturno, mergulhado na obscuridade, que procura a “simbiose de Marte e morte” e que reconhece: “Da minha actividade vulcânica / nasce um mar sombrio / sequioso de sequoias.”
Nessa “procura do Norte no breu”, recorrente este discurso do suicídio: “De gládio na mão, / não / esquecerei um gladíolo de bolso / para o redobro da força /no possível suicídio.” E logo a seguir o poeta diz: “Conheço a dor da inquietação irremediável.” Os versos embora taciturnos são pungentes: “E quero um enérgico palpitar nas mãos e nos pulsos, / lançar naus ao sangue tropical no Inverno /e ainda: o fragor dos dedos acenando / o terno adeus final, /o mais compreendido entre os humanos.”
Poesia “a coberto da névoa densa”, como escreve o poeta. Poemas de amor e de desespero, como disse e repito. Nos quais cabem ainda estes versos que parecem um apelo: “e nos teus fortes braços sinto-me seguro.” No entanto, acrescentará a seguir: “Amor, na Terra somos amantes a abater!”
Parece a expressão de uma renúncia, de uma resignação, de uma cedência. Por isso mesmo diz adiante: “Não nos desviemos definitivamente/ das rotas do sábio silêncio.” Este poema, este longo e sensual poema, é também por isso um poema desse amor visceral, impossível direi eu, inscrito num mapa de melancolias: “Teu corpo dócil à nudez / no estio calmoso do trabalho da erecção.”
Versos atravessados por esse amor viril, másculo, vigoroso: “Dá-me do teu beijo fatigado, /e dos destroços da espuma /provocados pela ancoragem.”
Poesia que não recusa o desalento, a angústia, a descrença, o desânimo. Longo poema atormentado, que fala de uma prostração, que não esconde a derrota, que ancora na desesperança, no esmorecimento e na tristeza. Essa mágoa e esse padecimento estão assombrosamente inscritos nos últimos versos:
“ Quero atravessar o deserto,
o desastre.”
Proclama o poeta no seu desconsolo final. À beira do seu infortúnio, perante uma dor irremissível. “ Negrejo, e esta é a remendagem da alma. / Vejo-me espelhado num múrmuro / abismo ignorado.”
Assim termina o livro, tão belo quanto dilacerado, tão profundamente consternado, tão atravessado pelo desconsolo, pela dor, pela angústia, tão condoído e, provavelmente, sem indulgência, tal foi o destino do poeta que seguiu os sinais aqui cartografados e se matou, talvez buscando na morte essa redenção, essa expiação, essa absolvição.
Este é um livro tremendo de um poeta espantoso, de uma alma formidável, de um homem surpreendentemente excepcional, com uma ânsia de viver esplêndida, ainda que isso pareça uma contradição na sua breve e portentosa vida.
Este belo e dolorido título “Com a Saliva Mais ao Sul”, devolve-nos um admirável poeta, assombrado e assombroso, no seu desencanto e no seu desespero, no seu júbilo pelo amor visceral que viveu, na sua atracção pelo abismo e pela morte, nesta cartografia de um suicídio anunciado em sinais premonitórios, neste rosto elusivo e arisco por vezes, desenhado nestes versos com a subtileza e a elegância que fazem dele uma voz exemplar na literatura moçambicana e que aqui se cumpre celebrar, nos 70 anos do seu nascimento, depois de décadas em que esteve proscrito no silêncio e no esquecimento.
Engoliram luas as crianças de Changara.
Os olhos delas são pássaros tristes sem voo
que no desespero da fome acumulada
comem estrelas como se fossem grãos de milho.
Quando as sementes secaram nos campos
e o sangue secou nas veias dos rios
e a seiva secou nas veias das plantas
e o sol secou os celeiros da aldeia,
serpentes famintas silvam em volta
do peito cindido. Uma toupeira chora
ao frémito dos embondeiros. Grave,
arde sobre a erva amarga a dor:
Das luas engolidas pelas crianças
quantas tardará a ecoar nos jornais?
(“Changara”, Julius Kazembe)
Julius Kazembe é, indubitavelmente, um dos mais importantes poetas do pós-independência, da geração que esplende nos anos 80, menestrel de grande quilate, com dicção e timbre próprios. A sua produção, no entanto, é escassíssima, avara e está dispersa por jornais, coligida em duas ou três antologias. É, também, por abulia própria ou incúria nossa, um dos menos conhecidos e celebrados, entre as presunçosas glórias domésticas e o fogo fátuo em que estas (ufanas vozes) se consomem exaustivamente.
As suas efemérides literárias resumem-se a publicações de um punhado de poemas na página literária do “Diário de Moçambique”, “Diálogo”, sob o magistério de Heliodoro Baptista, ou na “Gazeta de Artes e Letras” da vetusta revista “Tempo”, sob a batuta de Luís Carlos Patraquim. Tanto um como outro são nomes decisivos na sua biografia literária.
Na sequência de uma quezília familiar, sai de casa muito cedo e é acolhido pelo poeta Heliodoro Baptista, que não só o acoita, como o industria literariamente. Baptista escolhe uma centena de títulos de obras-primas universais, sobretudo no domínio da ficção narrativa (romance) e impõe-lhe o repto da leitura. Acresce que será aluno de Lídia Jorge, que se revelará, nos anos 80, como uma prodigiosa escritora, autora de romances, contos e poesia, hoje consagradíssima. O mote estava dado.
Por indicação de Heliodoro, acompanha o contista Carneiro Gonçalves e é companheiro na viagem que resultou num trágico epílogo a 20 de Janeiro de 1974. O autor de “Contos e Lendas” deveria seguir, depois da capital moçambicana, para Lisboa e ali integrar a redação do “Expresso”. Ao jovem poeta, à beira dos 20 anos, o desconsolo de uma frustrada tentativa de se juntar à Frente de Libertação.
No título emblemático que foi “A Tribuna”, então dirigido pelo poeta Rui Knopfli, irá integrar a sua redacção, na companhia de Mia Couto, Luís Carlos Patraquim e Ricardo Santos. Aliás, Couto, Patraquim e Kazembe irão praticar os primeiros tentames da crónica literária, sobre o quotidiano, experiência que se verá consagrada, nos anos ulteriores, por outras caligrafias que vão estabelecer o género entre nós. Posteriormente, integrará o grupo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique). Estamos já imersos na revolução e cada um deles experimenta o entusiasmo, os arroubos, as demandas, as questiúnculas, as contradições, a mofina daqueles tempos.
A Beira, a sua Beira natal, ficara para trás. Terá, depois do jornalismo, uma passagem pelo Ministério do Comércio Interno, viverá de traduções nos ominosos anos 80 e trabalhará, como funcionário local, para o FNUAP. Uma importante passagem pelo Zimbabwe, outra pelos Estados Unidos, onde se vai doutorar em Sociologia e, depois, o estabelecimento em Pretória, onde leccionará na Universidade, também subscrevem as etapas da sua vida.
A sua pátria literária, no entanto, será sempre a Beira. Bebera do mesmo fino de Heliodoro Baptista, que tendo nascido em Gonhane, é um poeta beirense. Ou dos nomes mais insignes da nossa poesia, ali nascidos, como Mia Couto, Filimone Meigos, Carlos Cardoso, Miguel César, Simeão Cachamba, Bahassan Adamogy, Adelino Timóteo, ou António Pinto de Abreu (este, tendo visto a luz em Chimoio é, indubitavelmente, das mesmas águas do Chiveve). Aqui está a sua linhagem. Simeão Cachamba, pouco antes de morrer, no prefácio e na chancela do livro “Mussodjy”, de Bahassan Adamogy, acena à Geração Diálogo, em homenagem a estes nomes – acrescente-se o nome de Elton Rebello, nascido em Vilanculos, mas criado literariamente nas mesmas águas – que redigem páginas importantes nos armoriais da nossa literatura. Ora, todos eles, à excepção de Kazembe, tiveram a sua obra redimida em livro.
Quando, Fátima Mendonça e eu, organizámos a “Antologia da Nova Poesia Moçambicana”, demarcando-a a partir de 1975 e escrutinando a partir daí a produção que ocorrera neste espaço geográfico, político e cultural chamado Moçambique, num tempo em que era ainda escassa a publicação em livro de muitos dos autores antologiados, socorremo-nos do que estava na imprensa literária e de originais que muitos dos poetas acederam confiar-nos.
De Julius Kazembe escolhemos sete poemas todos eles publicados na então “Gazeta de Artes e Letras”, entre Setembro de 1984 e Outubro de 1988, designadamente: "O Girassol”, que começa com um verso belíssimo: “O brilho inteiro das galáxias”, que poderia ser o axioma do seu labor poético; “Changara”, outro poema espantoso, aliás encima este texto: “Engoliram a lua as crianças de Changara”; “A Teia”, que não desmentia o estro do poeta: “Dormimos versos cercados de cal”; “O Espelho dos Magos”, dedicado a Heliodoro Baptista; “A Musa Prostituída” (dedicado a Luís Carlos Patraquim); “Eros” e “Adiemos os brindes para mais tarde”. Não deveria haver muito mais no seu bornal. Muitos destes poemas tinham sido publicados na “Diálogo” também.
Segue-se-lhe, então, um longo silêncio. Para além do caso de Brian Tio Ninguas, pseudónimo do jornalista Baltazar Maninguane, que morreu, aos 25 anos, em 1987, poeta que permanece inédito em livro, Julius Kazembe volta a ser o único poeta que não terá a sua poesia chancelada em livro. Refiro-me, claro está, aos que se revelaram no pós-independência e que constavam da nossa antologia. Todos os outros, em vida ou postumamente, tiveram as suas obras impressas em livro.
Por apatia do poeta ou omissão nossa, a verdade é que o seu nome se tornou invisível nos certames onde se apregoam, afanosamente, pressurosos nomes e se consagram glórias precipitadas. No entanto, estamos diante de um dos mais importantes poetas revelados no pós-independência, apesar da sua avara produção. Kazembe, não tenho dúvidas, pertence à estirpe dos eleitos. É daqueles poetas raros, cujo estro é capaz de imagens e metáforas surpreendentemente belas e poderosas. O poema “Changara”, que cito acima na íntegra, é caso flagrante. Mas toda a sua escassa poesia é assim: depurada, decantada, burilada. Há ali um “labor limae” (trabalho árduo, paciência, disciplina), há ali escrutínio e oficina, há ali uma cadência e uma musicalidade. Quando o ouvimos dizer, o que Kazembe faz primorosamente, percebemos o seu trabalho elaborado com a palavra e a sua intuição melódica. Ele é um artífice da palavra. Um perfeccionista.
A poesia, a verdadeira poesia, é isso: alegoria, imagem, tropo. Metáfora. Um grande poeta é aquele que é capaz dessas imagens poderosas e surpreendentes: “brilho inteiro das galáxias”, cito-o de novo, ou, no mesmo poema, capaz destes versos: “um barco é uma faca que rasga / essas dunas cheias de sortilégios”. Ou quando diz ainda: “a espantosa liquidez / das suas coxas / somos peregrinos / submissos” no poema “A Musa Prostituída”. Ou, no mesmo poema, quando escreve este verso: “com o seu mijo ictérico”. Isto é de um eleito.
Poeta capaz destes versos sumptuosos: “quisera ter as mãos que tem a água / para quando vertido sobre ti / te permear até ao último favo / contigo trançar um cesto de vime”. Isto é de um grande poeta. O mesmo que lhe adivinha “o tropel antigo dos fuzis”. Aliás, os fuzis que espantam “os fulvos pássaros da nossa infância” (outro verso lapidar) atravessam, subliminarmente, toda poesia de Julius Kazembe. Lembram aquela “Alegoria” de Heliodoro Baptista: “Em Inhaminga, meu amor, / estão as armas apontadas para o céu / mas só há pássaros”. Isto é brutal, isto belíssimo, isto é assombroso.
Julius Kazembe condói-se não só com as crianças de Changara. É capaz de nos alertar do medo que trespassa o “território de algozes / sitiado por veraneantes / tubarões sem pergaminhos / a tecerem contas de piolhos / de cócoras sob os autoclismos”. Poeta socialmente atento: “Venho de um continente / de transmigrados de calamidade / em calamidade / com meninos que morrem / desapercebidamente / no dorso das suas mães / a caminho dos centros / de emergência da cruz vermelha”. (“O Espelho dos Magos”).
Num belo e pungente hino à Beira, poema justamente assim intitulado, que, depois de muitos anos de silêncio, houve por bem publicar, aqui há meses, Julius Kazembe volta a ser acutilante: “E a chuva de cada Idai / só reflutua valas e / fantasmas de outrora”. Nestes versos fissurados ou injuriados, o poeta interpela-se e interpela-nos com uma virulência lexical: “Vagalumes vagabundos / assombram a noite / no matagal da Manga, donos / escarnados ao relento / sem lápides nem epitáfios. / Ainda os há por remir?”. O poema termina com estes versos: “O farol do Macúti plissa / o mar e os ventos da noite, / talvez lampeje em surdina / sinais dos náufragos da terra / onde jazem as nossas placentas”. Isto é de uma beleza aterradora e de uma violência imagética e poética. É, no fundo, o glossário dos nossos naufrágios ou o dicionário das nossas ruínas, das nossas quedas e dos nossos soçobros.
O poeta Julius Kazembe persegue, na sua escassa e belíssima poesia, estes “sinais dos náufragos da terra”. Tenho notícia da sua escrita recente e verifico para além do seu alto quilate, do seu gabarito, do seu jaez e da sua perfeição, da sua voz grave, profunda, inquieta e inquietante, que percute ainda encrespada ou “desdobrando-se em arco-íris / para a morte sobrevivida / entre os gomos do canto”. Mesmo quando, “sem darmos por ela, o fermento / destas lágrimas de terebentina / entrança já tatuagens de alento / para uma teia mais pura e cristalina” (“A teia”, esse lancinante aceno ao irmão Oswaldo). O poeta continua obstinadamente avaro, escasso, valioso.
Julius Kazembe é, a seu modo e no seu tempo, um grande poeta, de epifanias e de cintilações, de lampejos e de sopros, encarnação rara de um estro igualmente raro, dono de uma profunda e única voz, por vezes sussurrada ou até ciciada, com uma dicção própria e equipada de poderosas imagens, com um timbre seu, onde a busca das palavras se acasala à música, ao som e à melodia, numa admirável melopeia, o que faz dele um dos maiores poetas moçambicanos da minha geração (à falta de melhor termo) e um dos menos conhecidos, celebrados ou festejados. Hoje, Júlio Fernando de Sousa Júnior, de seu nome civil, nascido na Beira, Sofala, a 26 de Julho de 1954, faz 70 anos e eu aqui, na minha persistente altercação contra o descaso e a desmemória, contra a amnésia e o esquecimento, faço-lhe esta saudação de amigo, admirador e seu mais novo.
“O diálogo está partido no sentido de que existem muitos interesses, até interesses de pessoas a se sobreporem sobre as associações e as câmaras. Inspira-me à reflexão sobre o diálogo público-privado, no sector empresarial, o facto de estarmos, simultaneamente, no fim do mandato do governo. Teremos eleições a 09 de Outubro de 2024, ao mesmo tempo que a actual liderança da CTA – Confederação das Associações Económicas de Moçambique também está em fim de mandato. Assim sendo, é importante que as duas lideranças que dialogam neste âmbito tenham mentes abertas para que o DPP tenha mais sucesso.
O Presidente da República, que é o Chefe do Governo e nomeia o governo, deve evitar nomear pessoas que irão criar intriga no lugar de encontrar soluções para o desenvolvimento económico nacional. A própria liderança da CTA deve ter em consideração que os associados devem respeitar as suas obrigações e exigirem os seus direitos”.
AB
“Com origem na palavra latina dialŏgus que, por sua vez, provém de um conceito grego, um diálogo é uma conversa entre duas ou mais pessoas, que manifestam as suas ideias ou afectos de forma alternativa. Neste sentido, um diálogo é também uma discussão ou uma troca de impressões com vista a chegar a um entendimento. Ainda que o diálogo se inicie por meio de diferentes pontos de vista, sendo isso crucial para que o mesmo exista, um bom diálogo é desenvolvido com base num ambiente de reciprocidade e conscientização. Os primeiros diálogos que se têm informações são do ano de 1433 no Oriente Médio e Ásia, com disputas na civilização suméria que foram preservadas em cópias”.
In Conceito do Diálogo
Hoje, pretendo reflectir sobre o Diálogo em Moçambique, usando a minha experiência do diálogo no sector empresarial e, como diz o título desta reflexão, o “Diálogo Moçambicano está partido”. Efectivamente, o nosso diálogo na busca de soluções próprias do sector está demasiado partido e são as seguintes partes resultantes dessa cisão:
1) Equipa dos Governantes;
2) Associados da Confederação das Associações Económicas de Moçambique;
3) O diálogo propriamente dito (formal) entre a CTA e o Governo de Moçambique.
1 – Equipe dos Governantes: o que irei abordar aqui representa o meu pensamento, a minha opinião pessoal. Não vincula qualquer organização ou grupo de organizações, pelo que deve ser considerado como pensamento pessoal.
Muitos membros da equipa governamental, que são chamados ao diálogo, usam o seu espaço ou posição para instigar a divisão entre a parte com quem dialogam. Muitas vezes, quando o sector privado apresenta uma preocupação, que pode ser da maioria, no lugar de se debater o assunto colocado, procuram ver como dividir o grupo, para tirar proveito, através do enfraquecimento desse mesmo grupo. Só que esta fórmula tem efeito temporário, porque, no lugar de encontrar soluções, resulta em medidas paliativas e, a breve trecho, volta-se à estaca zero.
Mais, esse grupo da equipa de governantes procura, entre os Associados da Confederação das Associações Económicas de Moçambique, aqueles membros que são suscetíveis de serem facilmente corrompidos para a agenda de perturbação do próprio diálogo. Esses associados passam a ter privilégio de serem ouvidos em primeiro lugar e deixa-se de fora aqueles a quem se deve procurar para o diálogo. Por outras palavras, a equipa de governo, muitas vezes, no processo de diálogo, não procura soluções que se pretende, mas baralhar para tirar proveito das diferentes sensibilidades da sua contraparte.
2 – Associados da Confederação das Associações Económicas de Moçambique: infelizmente, alguns membros da Confederação das Associações Económicas de Moçambique (suas lideranças), por vezes, parece não conhecerem o seu lugar em relação à própria Confederação de que são membros com todos os direitos e legitimidade. Muitas vezes, nota-se a tentativa de “competição” da organização Mãe - “CTA” e seus Associados. Disto resulta que, muitas vezes, a equipa do governo faz uso disso para tirar melhor proveito da situação. Para agravar, não existem instrumentos de gestão que possam permitir a tomada da decisão dos dirigentes da Associação Mãe, no caso a CTA.
Alguns Associados da CTA são usados, pelos parceiros do governo, para semearem discórdia interna entre os privados, quer do ponto de vista individual quer do ponto de vista colectivo. O exemplo dessas guerrinhas é que se tem visto, muitas vezes, Associações ou Câmaras de Comércio a assinarem Memorandos de Entendimento com diversas instituições públicas sobre matérias que, muitas vezes, não fazem parte do seu escopo de actividade. Pior do que isso, se formos a analisar, passado um ou dois anos, podemos concluir que esse memorando não passou de show, os membros dessas Associações nem conhecem e não teve “pernas” para andar.
Sem se aperceberem ou sem medirem o impacto desses comportamentos, no fim do dia é o próprio sector privado que sai prejudicado, é importante que esses líderes Associativos devem compreender que as equipas do Governo irão sempre mudar, mas os problemas do sector privado irão prevalecer, muitas vezes, com enormes prejuízos para o nosso sector privado. Por isso mesmo, na minha opinião, os líderes Associativos devem tomar consciência disso, caso contrário, esses dirigentes deveriam ser expulsos nos grupos associativos por se mostrarem tóxicos para os interesses do sector.
3 – Diálogo propriamente dito (formal) entre a CTA e o Governo: Desde já, é preciso reconhecer que o Diálogo Público Privado, formalmente, liderado pela CTA e o Governo, constitui um veículo importantíssimo. Do ponto de vista formal, é quase perfeito, por isso, não há como atacá-lo, porém, peca pelo seguinte o seguinte:
a) O Diálogo Público Privado em Moçambique não está formalizado, apesar de estar devidamente estruturado e a decorrer com regularidade, o que se pode considerar louvável. A questão seria o que leva o Governo de Moçambique a não formalizar este diálogo! O sector privado está refém da vontade das contrapartes. Neste diálogo, os pelouros da CTA não são devidamente tratados pela sua contraparte, as coisas mudam de figura, sempre que se aproxima o CEMAN, o encontro com o Primeiro-ministro e nas proximidades do CASP com o Chefe do Estado.
b) Na relação entre o sector privado e o governo, no processo de auscultação, não existem prazos de reação para a emissão de parecer sobre uma determinada Lei, que vai ao Conselho de Ministros ou à Assembleia da República. Acontece que, muitas vezes, um certo Ministério manda a proposta de Lei à CTA e exige uma opinião em 72 horas. Nota-se disto que a instituição, simplesmente, pretende formalizar que foi ouvido o sector privado.
c) A Comissão Consultiva de Trabalho é um espaço de diálogo constituído à base de um Decreto. No entanto, de ano para ano ou de Governo para Governo, esta instituição tem vindo a perder relevância. O Decreto determina quem são os seus membros, define claramente a forma de funcionamento entre outros, mas muitos governantes não participam, infelizmente.
Face ao exposto, na minha opinião, é urgente a mudança de mentalidade com relação ao diálogo, de forma a trazer mudanças efectivas naquilo que se pretende que mude, porque o diálogo visa a mudança de algo ou a introdução de novas formas de fazer as coisas. As Associações, que se filiam à CTA, devem ter noção dos direitos e obrigações que tem em relação à própria Confederação e nunca ser o veículo para criar divisão no seio da Associação Mãe.
Há um aspecto não revelado no grupo das três partes do diálogo, que são os antigos dirigentes estatais que se tornam privados. Esses homens ou mulheres entram no associativismo, mas muitas vezes não no sentido de constituírem uma mais-valia para os privados, mas para tirarem proveito da sua posição anterior e influenciar para o sucesso das suas pretensões. Esses senhores e senhoras também são tóxicos no diálogo público privado.
É verdade que o nosso sector privado é incipiente, muitas vezes, os membros do sector público, por várias razões, como reforma, desvinculação ou outro, passam para engrossar o sector privado, o que em si é bom, mas quando essas pessoas não servem para ajudar na advocacia a favor do sector, não vale a pena.
Adelino Buque
“O povo moçambicano, provavelmente, não soube escolher o seu empregado, contudo, desafio a TVM a não ter o papel ridículo, através de reportagens ridículas, para dar a entender que a greve decretada, com efeito a partir de 29 de Julho, com duração de 21 dias, não tem adesão. Que não venha dizer que todos os serviços estão a funcionar. Entendam, a questão não é a presença do pessoal médico, a questão é a existência dos meios para que o pessoal médico possa trabalhar e curar os doentes. Aos médicos que, por alguma razão, não irão aderir à greve, no mínimo, não sejam ridículos, procurando diabolizar os vossos colegas que estarão em greve porque a causa é nobre. Quanto à sociedade, que acarinhe a posição dos médicos, a sua greve é para melhor servir-nos. Haja consciência.”
AB
“A situação do Serviço Nacional de Saúde está um caos. Não gostaríamos de ter chegado a esta situação, mas, infelizmente, quando não há diálogo com o Governo, este é o meio que encontramos. Apelo aos médicos a prestarem serviços mínimos aos Bancos de Socorros e outros departamentos”.
In Carta de Moçambique, (Napoleão Viola) Edição nº 1.047 de 23 de Julho de 2024.
Nós, moçambicanos, estamos cientes que as unidades sanitárias do País estão um caos total. Sabemos que alguns profissionais de saúde exigem dos pacientes favores para trata-los, desde o servente a outros níveis de profissionais. A saúde é um dos sectores em que se manifesta a corrupção e espero que aqueles que não participam desse tipo de situações se distanciem e denunciem. Só desta forma é que a sociedade poderá voltar a confiar nos serviços de saúde.
Nesta greve anunciada dos médicos, a sociedade deve estar em defesa destes. Os médicos dão ênfase às más condições de trabalho, não estão a revindicar salários, regalias resultantes da função que desempenham. Eles querem que o Governo da República de Moçambique lhes proporcione condições de trabalho condignas, para o atendimento ao público. Os médicos falam de falta de material básico para atender às pessoas.
Faz pouco tempo que uma estação Televisiva Nacional reportou a falta de GESSO para o tratamento de pessoas com problemas de ortopedia. Nessa reportagem, mostram o pessoal de saúde a adoptar uma cartolina para substituir o GESSO. Ao mesmo tempo, mostram na Televisão uma criança com a deformação do braço, resultante da falta do GESSO. Por isso, não está aqui em causa o bem-estar dos médicos, mas, sim, a criação de condições para que possam dar o melhor de si, em prol da saúde da população.
Há uma coisa que acontece na nossa sociedade. Alguns médicos irão aparecer a dizer que não houve adesão à greve, que todos os serviços funcionam com normalidade. Infelizmente, são esses concidadãos que adiam a resolução de alguns problemas. A saúde é uma área fulcral para qualquer sociedade, o pessoal de saúde deve estar consciente que, ao fazer essas aparições, acompanhados pela Televisão Pública, infelizmente, estão a prestar um mau serviço público, não estão a defender a própria classe e tão pouco as pessoas cujas enfermidades juraram tratar.
A greve terá início a 29 de Julho e irá durar 21 dias. Não faz muito sentido que, durante este lapso de tempo, não haja aproximação do Governo a estes profissionais. Aliás, na comunicação do Porta-Voz da Associação dos Médicos de Moçambique, ficou claro que desde Fevereiro que não há diálogo entre as partes. Isto, em parte, pode revelar a falta de interesse do Governo na solução dos problemas apresentados.
A Associação dos Médicos vai mais longe ainda revelando que, apenas 25% das promessas do governo, tiveram seguimento. Destes, somente seis tiveram conclusão, vide “Carta de Moçambique” de 23 de Julho de 2024. Ora, se assim é, o Governo de Moçambique, que dialoga com os médicos, espera qualquer credibilidade? Mas, mais do que esperar a credibilidade, eles não reconhecem o CAOS que é a situação das Unidades de Sanitárias existentes no País? Onde é que eles vivem?
São 21 dias em que as Unidades Sanitárias não terão a totalidade dos seus serviços a funcionarem, ainda que com as dificuldades reportadas, mas também tempo suficiente para que haja aproximação entre as partes de modo a encontrarem a solução definitiva para essas diferenças. Não basta “comprar” um ou dois médicos para dizerem que está tudo bem, não senhor. Não basta que a Televisão de Moçambique espalhe repórteres para contrariar os médicos grevistas, a questão não são os médicos, são as condições hospitalares que continuarão sem solução e a penalização vai para os utentes dos serviços de saúde nacional. O que vale dizer que vai para o Povo, que os governantes dizem servi-lo e o Presidente da República disse ser o “seu Patrão”: mas que forma estranha de servir o seu Patrão Presidente!
Adelino Buque
Os discursos oficiais e dos amigos enalteceram as qualidades ímpares de Rui Baltazar pelo seu papel na construção do estado de direito democrático, como veterano da luta de libertação nacional, como eminente Advogado, Ministro, Embaixador, Conselheiro do Presidente da República, Reitor da UEM, e Presidente do Tribunal Constitucional. A imprensa considerou-o inigualável. Foi pessoa única, conhecida pela sua serenidade, verticalidade, integridade e alta competência.
O nome de Rui Baltazar dos Santos Alves, que fisicamente já não se encontra entre nós, está gravado na minha memória como um homem culto, que olhava longe, criativo, corajoso e de fala simples. Com lucidez de pensamento, rigor ético e coerência nas acções, expressava o seu pensamento profundo, em poucas palavras, sem levantar o tom de voz. Pessoa simples, modesta, afável e solidário. Estas são memórias sedimentadas na longa vivência e trabalho conjunto.
Conheci o Dr. Rui Baltazar em Fevereiro de 1975 quando, na sequência dos Acordos de Lusaka há quase 50 anos (*), foi constituída a Delegação Moçambicana para as negociações com o Governo de Portugal, sobre alguns 'dossiers' fundamentais, que era necessário concluir, ainda na fase de transição.
Tinha eu 25 anos, recém-formado em economia, quando fui integrado na delegação que, em Março de 1975, viajou para Lisboa, chefiada por Joaquim de Carvalho e que integrava Alberto Cassimo, Eneas Comiche, António de Almeida Matos, Victor Barros Santos, entre outros, todos com idade inferior a 35 anos. Em terra, no 'back office' de apoio a esta delegação, estavam Mário Machungo, Rui Baltazar e Salomão Munguambe, todos membros do Governo de Transição, liderado pelo Primeiro-Ministro Joaquim Chissano.
Os acordos então assinados permitiram: (i) a transferência dos activos e passivos do Banco Nacional Ultramarino (BNU) para o Banco de Moçambique, constituído em Maio de 1975, um mês antes da independência; e (ii) a conclusão das obras e a gestão operacional da Barragem de Cahora-Bassa, num quadro em que o Estado de Moçambique ia gradualmente aumentando a sua posição accionista no capital da Hidroeléctrica de Cahora-Bassa, à medida que a sua dívida ia diminuindo, o que conduziu à sua total reversão, anos depois. As negociações com a antiga potência colonial continuaram muito difíceis por mais dois anos, com temas como as chamadas de “dívidas de Moçambique a Portugal” por conta das ´infra-estruturas´ construídas no tempo colonial, obviamente rejeitadas pelo novo Governo de Moçambique.
No essencial, fomos bem-sucedidos. Foi trabalho intenso no seio deste grupo, no decurso do qual cresceu a amizade entre todos os integrantes.
De meados de 1978 até Abril de 1986, Rui Baltazar então com 45 anos, como Ministro das Finanças, eu, como Vice-Governador e depois Governador do BM, então com 31 anos, e os quadros superiores que nos assessoravam, recebemos a tarefa de governar o sector financeiro, num dos períodos financeiramente mais difíceis que Moçambique viveu desde sempre. Numa fase inicial, contavamos também com o Dr. Sérgio Vieira, que havia assumido o cargo de Governador do BM e que teve um papel fundamental em ´moçambicanizar´ a administração e os técnicos bancários e impor disciplina no funcionamento da instituição BM, recém-constituído do BNU. Ele teve ainda um papel importante no processo de troca de moeda: a substituição do escudo colonial e lançamento da nova moeda nacional, o Metical.
No dia-a-dia, enfrentávamos os efeitos das sanções determinadas pelas Nações Unidas e aplicadas em 1976 por Moçambique à colónia rebelde da Rodésia do Sul (hoje Zimbabwe), o recrudescer das hostilidades do regime do apartheid no seu estertor final, que ostensivamente praticava a política de terra queimada, no meio de profundas alterações na economia mundial, designadamente (i) o fim da era do padrão-ouro e dos câmbios fixos, (ii) alta volatilidade dos preços de petróleo e (iii) no meio da intensa guerra fria entre as grandes potências. Tudo isto ocorreu num país recentemente independente, caracterizado pelo atraso económico e social e de 93% de analfabetismo, sem reservas financeiras suficientes.
Foram tempos difíceis, tempos de penúria. Ao longo de oito anos de trabalho quotidiano, de grande carência de cambiais, encontrava-me, por vezes, duas vezes ao dia, com o Ministro das Finanças. Tal era a necessidade de concertação entre o Ministro das Finanças e Governador do Banco de Moçambique e a nível dos seus quadros. Esse foi certamente um dos elementos que contribuiu para evitar o colapso financeiro total. Valeu o espírito de trabalho árduo, a dedicação, o empenho e a elevada confiança e amizade que se gerou entre nós.
Tive o privilégio de ser seu par no Conselho de Ministros do Governo do Presidente Samora Machel. Em conjunto com os demais ministros, vivemos momentos conturbados, sofremos as agruras e as angústias dos dias difíceis de manter a economia a funcionar, no mínimo, enquanto o apartheid, na sua agonia, fazia de Moçambique, a terra queimada! Com coração apertado, registávamos os massacres, as mortes indiscriminadas de civis, a frequente sabotagem do sistema de distribuição de energia, a paralisação dos sistemas ferro-portuário, a destruição de infra-estruturas, de viaturas e equipamentos, a destruição de unidades de produção, em particular das açucareiras de Luabo e Marromeu, e as constantes paralisações das açucareiras de Xinavane, de Búzi e Mafambisse, das chazeiras de Gurué, entre outras.
Conhecíamos diariamente os baixos níveis de reservas financeiras e de reservas petrolíferas, com sistemáticas rupturas, que reduziam as opções no gasto das divisas. Para assegurar a estabilidade social, com mágoa, tivemos de deliberar sobre o racionamento na distribuição alimentar nas cidades. Poucos conheciam as contas nacionais, a reduzida liquidez disponível em moeda nacional, as poucas reservas cambiais disponíveis, que impunham sérias restrições nas importações para acorrer às necessidades para o funcionamento da economia.
Rui Baltazar era rigoroso na gestão financeira. Ele próprio vivia modestamente. Foram tomadas medidas de grande austeridade nos gastos públicos. O número de pessoas das delegações que viajavam para o exterior era estritamente escrutinado e cada membro só recebia 3 dólares dos EUA (menos de 200 Meticais (**), por dia, para as suas despesas pessoais no estrangeiro, que não precisavam de justificar – o chefe da delegação recebia 5 dólares dos EUA, por dia, (cerca de 320 Meticais). Não havia excepções. Não era permitido esbanjamento, nem fausto. Nosso tempo de trabalho diário ultrapassava as 12 horas por dia, por vezes, aos fins-de-semana. O mesmo sucedia a todos os quadros que connosco trabalhavam. Vivemos juntos este drama humano e de sobrevivência da Nação. Nunca ouvi um lamento ou um desabafo por parte de Rui Baltazar. Muitas outras coisas, não é útil contar, permanecerão nas nossas memórias.
Sob a direcção do Presidente Samora Machel, com o apoio próximo do Dr. Rui Baltazar e a participação do Dr. Eneas Comiche, negociamos o 1º reescalonamento da dívida externa de Moçambique, ao abrigo do ´Clube de Paris´. De forma similar, negociamos a adesão de Moçambique às instituições de Bretton Woods em 1984, cujos acordos foram assinados em Washington (EUA) por Rui Baltazar, na qualidade de Ministro das Finanças.
Não obstante ser muito rico culturalmente, Rui Baltazar não acumulou riqueza material. Apesar do imenso poder que ambos detínhamos no sector financeiro, a governação foi impoluta, sem desvios. A lisura e o exemplo de rigor e de trabalho árduo permitiram-nos exercer as funções com determinação e sempre com a convicção de que a guerra iria terminar e a paz seria restabelecida, o que permitiria retomar a normalidade da vida. Tudo isto foi vivido com intensidade e sem possibilidade de contar às famílias ou aos amigos.
Num certo momento, com o fim do apartheid e os Acordos de Roma, as armas calaram-se e, em paz, toda a região da África Austral ficou livre do racismo e da discriminação. O nosso País retomou a sua vida, com novos desafios de crescimento e da luta contra o subdesenvolvimento e o atraso. Tempos mais difíceis foram ultrapassados. Moçambique voltou a reerguer-se, olhando com esperança o futuro, com novos desafios. Nos últimos anos da sua vida, com o avanço da corrupção e os baixos níveis de ética e de moral na gestão pública, nos vários fóruns, Rui Baltazar expressou a sua frustração e se demarcou dos corruptos que se serviam do bem público, que a todos pertence. Sem hesitar, acrescentava que não entendia como é que um País com carência tão aguda de quadros experimentados se dava ao luxo de os desperdiçar, como se fossem descartáveis. Estes são certamente os maiores desafios da fase presente da nossa vida. Para os superar, os jovens devem inspirar-se neste imenso legado de Rui Baltazar.
Esta foi a realidade concreta que enfrentamos. Muitas instituições hoje florescentes assentam nesta dura realidade que exigiu coragem, ousadia e criatividade. Foi certamente difícil, muito difícil, pessoalmente muito doloroso. Não foi pera doce, não!
A intensidade do trabalho foi tal que germinou a amizade, a confiança, o respeito e a admiração, mútuas. Sendo eu muito jovem, o Camarada Rui Baltazar foi meu mentor. Aprendi dele o rigor, a importância da moderação, a necessidade de fundamentar as palavras e os conceitos, a ser contido nas falas e prudente nos actos e contratos. E a necessidade de ler muito, de estudar, sempre estudar, estar actualizado, para melhor enfrentar o futuro.
Devido à enorme amizade, diria cumplicidade, forjadas em anos de trabalho e de convivência, num ambiente familiar e de amigos, Rui Baltazar foi a pessoa escolhida para o discurso da festa do meu 60º aniversário. Foi gratificante ouvir as suas palavras generosas que retrataram o tempo em que juntos contribuímos para a edificação da 1ª República, ao lado de muitos outros heróis vivos e de outros que já não se encontram entre nós, que a Pátria por que lutaram ainda não os reconheceu nem exaltou os seus feitos. Foi gratificante conviver com esta figura tão exemplar, tão humana, tão simples, um jurista de primeira água!
Evocar o nome de Rui Baltazar é falar do seu nacionalismo, do seu patriotismo, da sua fidelidade e lealdade à causa do Povo. Rui Baltazar era altruísta, não se serviu do Estado. Pelo contrário, serviu o Estado com honestidade, respeitou a coisa pública, acima de interesses pessoais, o que faz dele uma referência, que os jovens nele se podem inspirar. Há mortes que pesam menos que uma pena. Há mortes que provocam um estrondo - a morte de Rui Baltazar provocou um abalo, gerou um vazio, difícil de preencher.
De forma incontornável, Rui Baltazar ocupa um lugar no Panteão dos Heróis de Moçambique, ao lado de muitos outros notáveis que deram tudo e arriscaram as suas vidas para erguer bem alto a Bandeira de Moçambique independente, que aglutina no seu seio moçambicanos de todas as raças, etnias, religiões ou origem social. Por enquanto, o Rui Baltazar de todos nós está, certamente, no Panteão Celestial.
A sua grandeza humana, o seu enorme legado, servirá de inspiração principalmente para os jovens, para continuar a obra iniciada e a alicerçar os fundamentos da nossa vida, da nossa história.
Descanse em Paz, Amigo Rui!
Até sempre Dr. Rui Baltazar dos Santos Alves, Grande Homem!
(*) Acordos de Lusaka, em 7 de Setembro de 1974
(**) ao câmbio actual