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Quando a amiga Zena Bacar do Eyuphuro, vitimada pelas armadilhas da vida, seguiu para o infinito das estrelas, para cantar nos palcos da consagração, quis dedicar algumas palavras de afecto que exaltassem o seu carisma. A sensualidade e beleza inigualável das jovens mulheres Emakuwa. Retomar ao colorido da capulana, a vaidade dos corpos franzinos, enfim, queria ter feito jus à profunda, melancólica, e quase sempre, soberba, voz da Zena que roubou do Tufo. Exuberante e, poucas vezes, lacónica, Zena Bacar, era vaidosa e esbanjava sorrisos que espalhavam a magia e o poder do feitiço dos seus gestos sensuais. Ela, na sua majestosa variação de tons musicais, viveu para atrapalhar os espíritos e equivocar corações.

 

Os jovens, agora de cabelo grisalho, da minha geração ficarão, eternamente, associados a sua a Muara ya N´rake (esposa do Senhor N´Rake). O icónico hino que atravessou tempos e espaços, do norte de Moçambique, dessa voluntariosa etnia Emakuwa, espalhada por África e pelo mundo. Nunca me perdoei por não ter feito esse elogio. Chorei no silêncio da dor a sua partida. Zena Bacar, nem deve repousar. Continua activa e cantarola para os anjos. Completaria neste Agosto, 74 anos. Procuro, ainda, explicações para esta manifesta omissão. Apenas, as emoções poderiam ter paralisado meus dedos e silenciado minha consciência. Testemunhar o nosso tempo e revisitar a trajectória de uma voz que viveu para lá do seu tempo, e que permanece, incomparável, como uma das mais conhecidas interpretes vozes femininas do cancioneiro moçambicano.

 

Neste exercício de remissão e indulto reencontro esta janela entreaberta, para cruzar Zena Bacar e os iconoclastas Ghorwane. Eles, os bons rapazes de Samora Machel, agora, igualmente, celebrando os 90 anos do seu nascimento, coincidem com a celebração dos 40 anos. As bodas de esmeralda duma monumental carreira, do inimaginável impacto social, e do da irrepreensível matriz que souberam gerar e preservar. Os Ghorwane são uma decorrência de um tempo revolucionário conturbado, de um período de afirmação e aporias, mas, e sobretudo, dessa inolvidável geração do 8 de Março que assegurou um país sonhado socialista e moldado capitalista.

 

Ghorwane e Zena Bacar ou Eyuphuro do Gimo Abdulremane foram os pioneiros moçambicanos da bem conhecida World Music. Para além deles só o conjunto RM ou Marrabenta Star e a CNCD alcançaram patamares igualmente visíveis no estrangeiro.

 

Teríamos de revisitar o músico britânico Peter Gabriel, afortunado compositor, progressista e activista de diferentes causas sociais, para entender este percurso. Peter Gabriel foi, originalmente, vocalista do Genesis. Em 1975 inicia uma carreia a solo, abandonando os Genesis. Vira activista em diferentes áreas sociais, incluindo políticas. Combate o apartheid sem tréguas. Abre um espaço privilegiado para promover ritmos e sons de outros países em desenvolvimento. Cria vários álbuns que são designados pela crítica como Eponymous. O último ficou conhecido como Jogos sem fronteiras. Pegou na luta de Steve Biko, líder do ANC e deu voz à luta contra o regime racista. Impacta o mundo com uma postura que mostra maturidade e consciência política.

 

Nesse apoio declarado a Steve Biko, conta com a colaboração de Youssour N´Dour. Ambos lançam a última tentação de Cristo. Os artistas convidados são africanos. Peter Gabriel sempre advogou o princípio de aglutinar artistas da Ásia e América Latina. Vence o Grammy e outras distinções em 1992 e 1993 e se afirma, em definitivo, como o maior promotor musical cuja tecnologia já superava a música da época. Terá sido nos CDs XPLORA e OVO que colocou os nossos compatriotas Zena Bacar e Ghorwane. Esta caminhada pela divulgação dos artistas africanos ainda o levou a vencer um prémio especial da Amnistia Internacional e outras distinções honrosas.

 

Convenhamos que a Real Music foi, então, responsável pela gravação de uma incontável e selecta nata de artistas africanos, incluindo o congolês Tabu Ley Rochereau, da famosa Kwassa Kwassa e esposo da Mbilia Bel, que tanto agitou as nossas ancas, e ainda o tanzaniano Remmy Ongala, Salim Keita do Mali, Touré Kunda, Papa Wemba. Um naipe inesgotável.

 

A World Music foi uma forma erudita e genuína de promover as interpretações dos africanos. Convenhamos, uma forma de escapulir das ortodoxas regras do mercado musical mundial. Todavia, não isento da armadilha de penetração num mercado que obrigava a esconder a linha da originalidade e identidade. Apesar de tudo, Peter Gabriel tem o mérito e crédito de ter aberto essa frente de divulgação.

 

Os Ghorwane sucederam a Zena Bacar e Gimo Abdulremane. Majurugenta foi o cartão-de-visita. Voltaremos lá. Estas bodas de esmeralda do Ghorwane acontecem quando eles voltam a incendiar palcos e plateias, aquecem esses Verões europeus, já de si com as temperaturas desconfortavelmente quentes. Não admira, pois, que este libelo contra o meu próprio esquecimento, auxilie a reavivar algumas facetas. Ninguém tem o direito de se alhear destes bons rapazes, parte património musical mundial.

 

Quando em 1978 foi tomada pelo Governo a decisão de colocar jovens, de todo o país, para se formarem e preencherem as vagas deixadas pela debandada colonial, não poderíamos os imaginar que a história musical, deste país, estaria sendo escrita com as letras douradas. O projecto de unidade nacional dinamizou a música. De norte a sul de Moçambique houve uma verdadeira explosão musical. Grupos e cantores como o eterno Alexandre Langa, Fanny Pfumu, Chico da Conceição, João Domingos e Orquestra Dambu, eram expressão exponencial. Pedro Ben e Wazimbo vinham do Chibuto para ferver as plateias musicais. Pelo centro e norte, à esquerda e à direita, a música parecia andar na contramão da revolução. Era progressista e evolucionista.

 

Misturavam-se ritmos e cores. Era preciso cantar como dizia o poeta Kalungano o herói nacional Marcelino dos Santos. A minha geração ainda teve o ensejo de desfrutar de exímias bandas musicais. Com saudades me recordo da banda Primeiro de Maio (1º de Maio de Armindo Salato), de Quelimane, que tanto furor fez com “Verdes campos”. A letra continua tão actual como vital para os dias que correm. Zambézia, aliás, foi terra de Lalarita e tantos outros. Nampula tinha Chico da Conceição e João Júlio Patinho no topo das preferências. Cantaram contra o que era imposto sistema com linguagem camuflada. Aliás, Lázaro Vinho, de Tete, seguiu suas pegadas. 

 

Foram, ainda, destaques as vozes inimitáveis de David Mazembe, Madala e Romualdo na região centro. O Eyuphuro de Gimo Abdulremane e Jaimito Matapa na cidade de Nampula. O sul tinha outros pergaminhos. Desde o Alambique, de Hortêncio, Arão Litsure e João Cabaço, passando pelo Hokolokwe, os Galtons, José Mucavel, Guegue, Mingas, Willy e Aníbal, Fernando Luís, Bill Cuca, Chico António, esse vencedor do prémio radio Franca Internacional, José Guimarães, Elsa Mangue, Filipe Nhassavele e tantos outros que gravaram na Rádio Moçambique. A Rádio Moçambique, diga-se de passagem, foi a catedral da produção e divulgação deste vasto património musical.

 

A RM foi o respaldo de tudo que aconteceu. Mas, a música não desperdiçou outras oportunidades. Os estúdios da EME, de Eduardo Mondlane Júnior, irmão de Chude Mondlane, também ela, com voz dourada, emprestaram à música deste país uma tonalidade cativante. Deveria ser obrigatório que cidadãos como Eduardo Mondlane Júnior regressassem à música. Ajudar a recriar o talento juvenil. Stuwart Sukuma fala do concurso da EME para descoberta de talentos com saudade. A sua fornalha iniciou nesta época. Também foi a base do Ghorwane. Mas, existe, igualmente, mérito que deve ser estendido ao empresário e revolucionário Aurélio Le Bon.

 

Privei com o Pedro Langa. Uma relação me empurrou para a simpatia pelos Ghorwane. Pedro chegava do Chibuto, esse espaço musical incontornável. Filho de enfermeiros e de uma família musicada pelos irmãos mais velhos. Hortêncio Langa e Milagre Langa. Conceituados. Em cima dos seus sapatos de tacão alto, calaças boca-de-sino, cabelo a Jimmy Hendrix, chegava, por equívoco para fazer professorado. Eu chegava pela mesma imposição. Também, de uma família de enfermeiros, mas, sem músicos para embalar as noites de luar. Pedro tentou incutir a ideia de sermos todos músicos. Queria que todos os seus amigos tocassem violão.

 

A vida nos empurrou, depois, para desconfortantes situações. Rebuscávamos o sentido de missão. As tarefas revolucionárias eram irrecusáveis. Pedro não se ajustou e não escondeu ser avesso. Uma boa parte do nosso grupo aceitou, com reservas, e mesmo sem vocação ou motivação, seguiu a única carreira disponível. 

 

Pedro não se alheou dos seus sonhos. Não questionou, nunca, abandonar seu violão. Qualquer sintoma de música incendiava seu espírito musical. Cantava melodias conceituadas. Criava músicas em tudo que tocava. Cantámos algumas músicas que nunca foram gravadas. Essa foi a força dos sonhos que nenhum tempo conseguiu afastar. Queria viver de uma forma diferente. O sonho da vocação que se opunha ao da revolução. O que o tipificou e fez dele melhor que todos nós foi mesmo a coragem. Enfrentou tudo e todos. Um sistema. Muitos dos colegas desertaram das fileiras e abandonaram o país. Os prosélitos não perdoaram. Outros sofreram sevícias.

 

As revoluções se fazem de diferentes formas. O nosso grupo aprendeu a fazer amizade com os compositores revolucionários. Calisto Mijico e Lindolondolo. Escreveram os hinos da revolução Moçambicana. Aprenderam a compor na Coreia do Norte. Era a bandeira musical de tantos temas cantados na época. Aprendemos deles os ritmos ensaiados nos campos de Tunduru e Bagamoyo. Nachingwea. As canções que Eduardo Mondlane escutou, deixaram se encantar, e cantou, tantas vezes, no clamor da sua revolução.

 

Toda a disciplina criou alguma saturação. Cansava a exigente disciplina e rigorosidade dos tempos iniciais. Isto fez com que se criassem focos de revolta. Próximo do corredor dos nossos quartos foram escritas nas paredes frases inimagináveis. Os serviços castrenses não toleraram. Condicionaram a expulsão de todos. Sem apelo e nem agravo. Perdíamos colegas e amigos cuja empatia não esmoreceu. Para muitos de nós, pela primeiríssima vez, depois da independência, dialogávamos com um caminho da contra-revolução. Outros valores e exigências. Aprendemos que o pensar diferente era proibido. Não seguir a linha da ordem era proibido. Perigoso. Não se atentava contra a revolução. Não tardou, o centro do país, voltou a escutar o ruído das balas e a ausência de paz. Não deu, sequer, para nos reconciliarmos como irmãos. Nem como irmãs. As notícias eram de ataques e destruição. A intransigência do não encontrou antídoto que tivesse evitado a catástrofe.

 

Antes da sua expulsão Pedro Langa, José Chambe e outros, ainda subiram por alguns palcos. Levava sons originais experimentados entre os colegas de curso. Sentíamo-nos representados. Eram, igualmente, os nossos sons. Apoiámos e preenchemos muitos dos lugares da plateia. Queríamos, também, saber como se comportaria o grande público. Muitos aplausos, mas, também, desconfianças e alguma desaprovação.

 

Nelson Saúte escreve no seu Planisfério moçambicano que a primeira apresentação pública de Pedro Langa, em 1979, no teatro Scala, na companhia de Hokolokwe foi sofrida. Nas duas canções originais que apresentou, nem por isso foi bem-sucedido. A plateia não queria, apenas, ritmos originais. Preferiam as músicas do estrangeiro. Sons mais quentes e que faziam as noites de festa. A despeito da adversidade, como refere Saúte, os verdadeiros criadores não são entendidos pelos seus contemporâneos. Mas, eles estão muito a frente do seu próprio tempo. Parece que vivem em galáxias diferentes e funcionam como satélites fora do comum.

 

Anos mais tarde, soube que o Pedro Langa se juntara ao conjunto Mbila. Um grupo que tocava no edifício do clube da juventude, alegrava as mentes que procuravam entender a revolução sem desperdiçar a sua juventude. Nós deambulávamos um pouco por todo o país. As escolas caiam em nossas mãos. Pedro Langa não chegou a entrar para nenhuma escola, porém, com agrado sabia do paradeiro de todos. Vibrava com o empenho de todos. Nós retribuímos com cartas que ele nunca respondeu em detalhe.

 

Igualmente, soubemos que ele se aliara ao compositor e cantor Simão Mazuze. Simão, um músico de outras referências e valências, havia feito o serviço militar em Portugal, na força aérea, e já por lá, além-fronteiras, provara aos cidadãos portugueses a magia do seu talento. Simão Mazuze era irredutível, com toques de rebeldia no que fazia, cantava e dizia. Era igual a si próprio. Até de nome mudou e virou Salimo Mohammed.

 

O regime nunca o compreendeu. Foi enviado para Bilibiza, Cabo de Delgado. Longe de o silenciarem, ele regressou mais forte e mais convicto. Já não era apenas Mamana Maria, sua canção mais conhecida e forte, mas, a sua famosa Bilibiza. Pedro e Simão Mazuze formam o Xigutsa Vuma. Um grupo e músicas de contestação, rebeldes e avessas ao que de pior o projecto de revolução oferecia ao país.

 

O Xigutsa Vuma, com Pedro Langa e Salimo Mohammed, ainda, foi a tempo de conquistar o prémio de melhor composição nesses dificílimos anos 80. Eram os tempos da tenebrosa Operação Produção, que todos tentamos esquecer e perdoar, como moçambicanos, e os reflexos de uma política que correu com pouca feição e originou outros problemas transversais. Associado à fome que começava a grassar um pouco pelo país, as arbitrariedades das guias de marcha e a guerra de desestabilização, existiam razões de sobra para escrever e cantar temas que marcariam os seguidores. Já conhecidos como controverso na abordagem das suas letras, o grupo tinha de tudo para singrar. Porém, terminou cedo e dois galos no mesmo poleiro não poderiam conviver por muito tempo.

 

Por volta de 1984, e fazendo eco nas memórias de Stuwart Sukuma e do Roberto Chitsondzo, esse Professor músico, melhor, músico professor de Educação Física, os concursos musicais de novos talentos lançados pela EME de Eduardo Mondlane Júnior, auxiliaram que os novos talentos surgissem pela praça. Roberto Chitsondzo aproveitou a estadia em Inhambane para escrever alguns versos. Voltou a Maputo com o intuito de os gravar. Não voltou à prática desportiva. Perdíamos um professor com pouca habilidade desportiva, para alguém que virou um exímio tocador. Usava a destreza dos seus dedos para recriar sonhos e verdades escondidas. Da sua voz seriam extraídos ritmos assombrados. Palmilhou a cidade e se experimentou com vários Músicos. A melhor paragem foram os ouvidos de Pedro Langa. O passado da educação serviu de base para os unir. Os Ghorwhane que estavam em banho-maria ganharam força. 1983 marcava, então, as pernas e o arcabouço para seguir pelo mundo dos sons que encantam e exaltam os céus. A música moçambicana agradeceu. O mundo também.

 

Um selectivo conjunto de músicos esteve associado ao Gorowhane, com realce para o saxofonista, vocalista Zeca Alage. Se o Pedro Langa era a alma, Zeca Alage era o espírito e a força que comandava o barco. Se juntavam, também o baixista Lot, o baterista Hilário, e ainda a o guitarrista Tchika. Para os sopros Júlio Baza assumia as responsabilidades e garantia que os ritmos tinham um factor diferenciador. Ao grupo inicial juntaram-se David Macuácua, e o percussionista Dingo.

 

As letras e os conteúdos iniciais, que estiveram a cargo de Pedro Langa e Zeca Alage, eram de arromba. Para aqueles tempos eram mesmo de muita virulência. Cantavam o que o povo e seus seguidores mais queriam escutar, a crítica social, o desacerto político, a guerra que dilacerava o país e o mercado negro que crescia a olhos vistos. Pedro Langa e de alguma forma Zeca Alage conheciam muitos dos dissabores dessa oposição às políticas económicas e sociais do regime. Cantavam o que a alma lhes recomendava e faziam o delírio das plateias. O público apoiou e virou um aliado natural. 

 

Roberto Chitsondzo toma uma decisão e junta-se ao grupo a 23 de Junho de 1984. Fazem o primeiro espectáculo no cinema África, hoje tão descuidado e tão votado ao esquecimento. Hoje, os Ghorwhane persistem e o cinema definha. Uma pena ter uma catedral musical tão voltada ao abandono.

 

Retorno ao Nelson Saúte que tão bem os soube tipificar e glorificar num texto de homenagem escrito há cinco anos. Ghorwane, segundo ele, soube transformar o sofrimento e a dor em alegria. E vai mais longe, não se limitavam a lamentar, como acontece com tantos nos tempos actuais, e como muito se ouve do cancioneiro moçambicano, mas pautavam pela inovação e pela busca de ritmos tradicionais para os incorporar nas suas músicas e dar essa roupagem que fazia da sua música prístina, delicada e uma agradável suavidade para os ouvidos dos seguidores. Mas, o mais importante, no meio de tanta agitação e ausência de consensos, era aproveitar o quadro da realidade social e fazer disso a moldura da tela para eternizar a natureza e a beleza infindável das suas canções.

 

Era a profissão e a profecia de fé e de amor, a um país e um povo, que eles tinham a missão de apoiar, entreter, educar e informar. Os países com tantos problemas sociais precisam de um escape. Eram essas temáticas que invadiam a cabeça de qualquer compositor. Temática insubstituível. E se desde o período da independência a promessa da revolução era liberdade, paz e progresso, isso era, precisamente, aquilo que todos queriam cantar e escutar.

 

A crítica, nunca é bem recebida por quem tem responsabilidades de governação. Na época, ainda, com os campos de reeducação vigentes, os serviçais do regime se assustaram com o desalento da classe. A crítica vinha de todos os lados. A guerra chegava às bermas das grandes cidades. Não tardou que para todos os espectáculos públicos, fossem enviados grupos à paisana de sequazes e seguranças, com o intuito, único, de captar os conteúdos, a apreciação do público e as mensagens. Uma espécie de avaliação do sucesso e uma medição do que tentava ser atirado para baixo do tapete que permanecia tão evidente como destapado. Foram tempos desafiadores.

 

Cantar parecia ser a única forma de espantar os males. Moçambique, tão jovem, se submetia aos pés da sua própria juventude e se assustava com uma faixa etária que sonhava, aspirava e queria outros rumos. Na realidade, queriam paz, desenvolvimento e liberdade. As promessas de um processo que não dependeria, apenas de si e da sua conjuntura, para prover estes meios todos as pessoas. Até o Presidente Samora Machel se assustou com a profundidade das músicas e versos do Ghorwhane. Presumimos, todos, que foram as informações deturparas que foi recebendo e consumindo. O tempo ajudou. Escutou com a atenção do seu coração e sensibilidade. Depois, gerou a empatia, como a graciosidade que brincava com a sua própria alma. Virou adepto incondicional. Não tardou para que fossem convidados para os banquetes de Estado. Recebia as suas visitas no Palácio e fazia do empenhando e rejuvenescido Ghorwhane um aliado musical e um símbolo da própria moçambicanidade.

 

O Presidente Samora Machel tatuou o grupo com a mecânica que a própria música criou. Ofereceu instrumentos de percussão à banda. Fê-lo com um sentido de Estado e de amizade pessoal. Queria continuar como um líder que se assumia como Mestre. Nessa condição, entendeu que as obras sagradas dos seus jovens músicos, representavam os valores de um povo que ele deveria liderar e saber escutar. Queria que os Ghorwhane fossem a banda de referência e a realização da perfeição musical. Aliás, soube, nos últimos tempos, que o Presidente Machel ofereceu, igualmente, equipamento musical à Banda dos Massucos, lá do longínquo Niassa. Os Massucos nunca desapontaram. Transportam toda a mestria e a simbiose dos sons Yao, o ritmo cadenciado dos Nyanja, ambos adornados pela glória do Chioda e Nganda, as mais célebres danças do norte. O Mestre Santos líder dos Massucos ainda mantem esse violão presenteado e não se desfaz dele, em nenhum momento. Virou talismã.

 

A nossa alma é composta por harmonia, e a harmonia só pode ser gerada nos momentos em que as proporções do bem e do mal são desequilibradas pela própria vida e seus sons. Os Ghorwane livraram-se da cerrada perseguição, sem que para o efeito tivessem de mudar a sua forma de cantar e vibrar. A música não deve ter outro nome que não seja a irmã da pintura. Assim, pelos ritmos e conteúdos dessa injustificada perseguição, passaram a ser apelidados de Bons Rapazes. Um nome improvável, mas apropriado que quase assenta no original. Lagoa que nunca seca. A criatividade deu corpo à liberdade e algo bem mais supremo. Liberdade de criar. Com esta liberdade se criam as oportunidades para que as próprias liberdades individuais se corporizem e a sociedade se liberte de amarras. Os direitos humanos entravam pela porta mais democrática da vida. O sentido que a humanidade sempre prezou. A dignidade quer satisfaz o sentido mais digno.

 

Dois anos depois da criação da banda Pedro Langa abandona os Ghorwane. Recordei aqui o temperamento do Pedro, mente brilhante, todavia, muito preso às suas convicções. Uma teimosia que quase era casmurrice. Não admira, por conseguinte, que se tenham desentendido por alguma abordagem, ou pelo rumo, menos consentido, que a banda deveria seguir. Roberto Chitsondzo e Zeca Alage se firmam como líderes substitutos. Ao grupo se junta David Macuacua. As canções continuaram impressivamente pungentes. Jamais deixaram de interpretar essa dor dos moçambicanos. Massotcha de Zeca Alage, o tema que dizia que a guerra não era solução e tinha custos demasiado elevados. Os investimentos, se ainda existissem, deveriam ser encaminhados para aquisição de comida para a população. As armas que eram caras, bem mais caras que sacos de arroz, não serviam. Ghorwhane colocava mantinha a força do paradigma do quotidiano. Os recados eram para todos os envolvidos no conflito que fez milhares de mortes e milhões de deslocados.

 

O primeiro disco dos Ghorwhane foi quase que uma encomenda da Real Music. 1991. Majurugenta foi o nome do álbum de estreia. Com tantas outras canções, de inegável beleza e sempre com um substrato de mutimba, gravam este álbum na perspectiva de incluírem as músicas na World Music. Peter Gabriel está por detrás e tem a garantia que seria um sucesso. Pela segunda vez, Moçambique chegava ao topo da música internacional. Agora, eram dois os nomes mais sonantes. Eyuphuro e Ghorwane. O disco foi lançado em 1993.

 

Nem Pedro Langa e muito menos Zeca Alage estiveram presentes, em 1993, e levou algum tempo até que o disco tivesse sido finalizado, para testemunhar o sabor do seu sucesso, daquele que foi um muito celebrado e apetecido lançamento. Zeca Alage foi barbaramente assassinado. Inexplicavelmente retirada a vida de quem só tinha vida para dar e revelar. Com a sua partida desaparecia, na mesma proporção, toda a cor, beleza e magia dos sopros do seu indomável saxofone. Esse genial sopro metálico e que tanto ritmou dezenas de canções, surpreendeu os ouvidos mais exigentes e penetrou fundo no coração dos seguidores. Um sentimento de comoção tomou conta do país. A estação de televisão pública iniciou o serviço noticioso, com o anúncio da sua partida. O triângulo que fez as fundações destes clássicos sofria um revés. Um furacão que parecia destinado a assombrar o que está escrito nas nuvens como parte dos sons deste Moçambique.

 

Ao longo dos anos Ghorwane continuou vindo a público local e internacional com regularidade. Como qualquer banda no mundo, passam por períodos mais ou menos complexos e difíceis. A corajosa crítica social manteve-se presente. As vicissitudes sugeriram mudanças. Entradas e saídas. Ainda assim, se reinventam. Pedro Langa partiu em 2001, igualmente, de forma misteriosa, ainda no calor de uma juventude que teria tudo para oferecer à música ligeira Moçambicana. Mesmo não estando com o grupo, esta partida impacta. As honras lhe foram prestadas em diferentes momentos. Depois, saiu do grupo David Macuacua, numa viagem para as Europas.

 

Roberto tem uma memória de elefante. Marcou a saída de Costa Neto do grupo. Uma digressão por Portugal e, simplesmente, não regressou ao país. Nada que estivesse nos planos, mas a conjuntura forcou e extremou estas posições. Carlitos Gove, Paíto e Jojó Moisés, também, em momentos separados. Marcou a saída de Jorge César. Mas as saídas, por vezes, acompanham-se de reentradas. Também chegou sangue novo importante. Como o próprio Roberto coloca, do que ele mais gosta é chegar sem planos e fazer parte de um plano que estava traçado. Esses são os dois lados da mesma viagem. Tiveram músicos que chegaram para ficar e outros que partiram para nunca mais voltar. 

 

As recordações não são cronológicas, muito menos por ordem de categorias e importância. Fez parte da banda a Tsala Tina Cândido. Eventualmente, a primeira mulher que emprestou a voz e trouxe uma forma diferente de estar. Nos anos 90, se juntaram ao Ghorwhane a Felicidade Tomas (Fofinha) e a Luciana Chissano (Cindinha). Faziam coros e coreografias. Betinha seguiu para o infinito. Mas, foi importante na performance. O bailado dela encantou Londres. Soberbas e memoráveis actuações. Também o pujante e agora na carreira a solo Moreira Chonguiça entrou para a banda. Um etnomusicólogo que vestiu as músicas de uma nova roupagem e um sentido de modernidade. Teve de sair, mais tarde, para continuar os seus estudos na cidade sul-africana de Cape Town.

 

Esse movimento de equilíbrios e reequilíbrios continua perene e perpétuo. Por vezes, mais oportuno, e por noutros momentos, com menos sabor e profundidade apresentados no conteúdo, todavia, marcadamente, na coloração dos efeitos especiais que as composições foram ganhando. Ao grupo se juntou Karen Boswell, uma artista que havia estudado música na infância e juventude e com o seu saxofone recriou uma sonoridade pouco habitual. A banda guarda memórias inesquecíveis desta passagem. 

 

Agradável surpresa foi a Sheila que integrou a banda e tocou flauta. Essa tonalidade que desperta todas as almas. Emigrou mais tarde para Europa e por lá continuou os seus estudos. Joni Schwalbach chega em 1993. Eram os primeiros 10 anos da banda. Trazia um som refinado pela tecnologia. Continua como coração da banda, com uma forma mais pausada de ser, a serenidade que sabe respeitar o caminho, mas que não se coíbe de impor um pouco da sua marca e do seu estilo. Assim o grupo se reergue. Faz da dor das partidas a forca da sua resiliência e do querer perpetuar um som que agrada diferentes gerações e prazeres.

 

40 anos de esmeralda e muito ouro à mistura. Gorowhane e os seus versáteis músicos e compositores podem não ser os mesmos, não manter a originalidade dos ritmos. Porém, continuam a não aceitar a resignação e a criticar de forma obstinada no exercício da cidadania. 40 anos, de uma música que revela a forma de viver e de estar dos moçambicanos. Uma prova contra a intolerância e a estupefacção. A manifestação mais viva de um povo que se libertou e que escolheu os seus caminhos. 40 anos e três álbuns que ficarão em nossos corações. Majurugenta, Kudumba e Vana Va Ndota. São álbuns inesquecíveis e sublimes. Decénios para recriar o DNA, manter a fidelidade à poesia, ao ritmo e ao balanço. Essa caminhada aborda as assimetrias sociais, as contradições do quotidiano, e a manutenção a fidelidade aos sons do nosso tempo. Dignidade e honra, num som espantosamente agradável e delirante.

quarta-feira, 02 agosto 2023 10:56

Os Números e Letras de um Inconformado

Incaracterístico ostentar o nome Anjo. Serve, temporariamente, para tratar os bebés, depois desaparece. Quem, em adulto, continua sendo anjo tem outros pergaminhos. As famílias auguram por mensageiros para a ligação com os seres celestiais. Essa é a função dos anjos. O notável Professor António Batel Anjo era dos poucos Anjosregistados em cartório. Fez questão de não usar nunca o sobrenome. Gostava mesmo era de Batel. Fazia jus a sua postura e carácter. Afinal, ele sempre foi obstinado e predestinado a uma versão oposta a santidade. Jamais aceitou a submissão eviveu com vontades próprias, com uma voz que corporizava o oposto a normalidade. Era essa pessoa de multifacetados talentos, aptidões e a própria equação de um matemático, ensaísta, poeta e, curiosamente, personagem singularmente altruísta e pedagogo.

 

Um inconformado pesquisador, que não completou nenhum ciclo de vida. Nas suas tangentes, seu fôlego para empreender e encetar novas ideias e projectos era demasiado grande. Vivia um pouco para a frente do seu tempo. Uma corrida sprint, com rasgos de fundo e meio-fundo. Viveu como partiu, apressado. Ansioso por descobrir um novo arco-íris para colorir e resolver as múltiplas questões associadas à fraca qualidade do ensino em Moçambique e na terra que o viu nascer, essa antiga e tão nossa metrópole domesticada. Peregrinou em busca de alternativas à disfunção dos infixáveis dados estatísticos, à falta de critério e rigor nos números, na simbologia entre as datas e os eventos científicos, e nos temores que a matemática gerou nas crianças e adolescentes.

 

Batel nasceu gigante na sua fisionomia. Se tornou descomunal na forma de pensar. Um anjo metodicamente desproporcional e distanciado de todos os Deuses. Excepção era feita à Pitágoras, seu Deus e alguém que simplificou os códigos e padrões matemáticos. Os gregos acreditavam que a matemática era divina e vinha para salvar a humanidade e que as equações serviriam para cuidar da alma dos fiéis. Batel era, igualmente,apóstolo do teorema que defendia que as forças da natureza, a terra, o sol, a lua, os mares, os rios e o vento só existiam porque tinham a matemática na sua essência.

 

Na correria, e no método, quis fazer da sua peregrinação essa vida de adições, subtracções, multiplicações e divisões. Usou a versatilidade das letras para fazer uma coreografia de letras e sonhos. Na sua irreverência, questionou métodos, conceitos e verdades apresentados em relatórios de instituições de todas as geografias. Era avesso aos dados adquiridos de que a verdade absoluta provinha do hemisfério Norte. Rabiscou e reviutodos os relatórios e, de forma fugaz, questionou suas validades. Testou as incongruências, recorreu à dúvida metódica cartesiana para se assumir como filósofo da vida. 

 

Batel quis deambular pela triangulação sobre as principais datas que o transportavam para outras galáxias. Uma espécie de triângulo que não eraacutângulo nem isósceles, muitos menos escaleno ou obtuso. Agora, sou eu quem revisita essas datas que o marcaram e que fizeram todo o sentido na criação da trilogia mais importante de sua carreia. Naturalmente, salvaguardo as datas de aniversários e outras mais pessoais. Estas,convenhamos seriam as institucionais e comemorativas.

 

Começo pelo 10 de Novembro, dia mundial da ciência para a paz e para o desenvolvimento. Data, tantas vezes, ignorada ou despercebida pelo cidadão mais comum e, igualmente, invulgar para tantos que aspiram aos diplomas universitários. O 10 de Novembro o motivava a trabalhar com grupos pequenos de estudantes, para que eles aprofundassem o seu conhecimento sobre os segredos da ciência e, principalmente, sobre as novidades da tecnologia.

 

Nos vários momentos de celebração e exaltação da ciência, tivemos o privilégio de beneficiar das feiras de robótica nas escolas. Centenas de alunos aprenderam a montar e usar robots e, de sobra, ficaram com os equipamentos para as suas escolas. Não teria dúvidas em afirmar que estes foram os mais profícuos, proficientes e extraordinários eventos que, alguma vez, foram organizados nas escolas. Os jovens competiram, aprenderam, ensaiaram e descobriram o segredo do branco, como diria a mãe de Eduardo Mondlane.  

 

O 8 de Novembro é o dia de celebração de STEM(Science, Technology, Engineering and Math ou Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática, em português). Apesar de ter começado como uma data restrita aos Estados Unidos, rapidamente, esta efeméride ganhou contornos globais. Batel inovou e chamou a si a responsabilidade de corporizar esta celebração para o nosso calendário nacional. Assim, entendendo o terror que a matemática significava para os alunos e estudantes das nossas escolas, e da terra que o viu nascer, decidiu que o STEM deveria ser divulgado, entendido e interpretado. Desta forma lançou, antes de partir, a revista STEM+L, um ponto de confluência de dois grandes temas da Ciência – o STEM e a Língua Portuguesa, nas suas vertentes literárias e artísticas.

 

Tinha a consciência do que diziam alguns relatórios e estudos globais. No início dos anos 2000, foi revelado que os alunos americanos não tiveram resultados positivos nas avaliações internacionais nas disciplinas STEM, na mesma proporção que os de outros países. Conclusões óbvias. Consequências imprevisíveis se o país tivesse de competir na economia global com uma força de trabalho mal preparada.

 

Os países com menores níveis de investimento nestas matérias, incluindo os EUA, ocupavam lugares pouco honrosos em avaliações de competência e conhecimento científico. O assunto era de natureza tão séria que persuadiu o Congresso norte-americano a deliberar por uma nova postura em relação a literacia tecnológica e,principalmente, ao ramo das ciências exactas. Esta é postura de países que entendem que a economia baseada no conhecimento, e impulsionada pela constante inovação, não se alheia e nem negligencia os avanços da IX revolução científica industrial. 

 

Então, a insistência no STEM para Moçambique era a única forma de sinalizar que, também, este país que almejávamos próspero e desenvolvido, tenha de perseguir uma base da inovação que favoreça uma força de trabalho dinâmica, motivada, funcionalmente educada e munida de competências. A redução da carga de disciplinas gerais, para que a matemática pudesse ser obrigatória em todos os níveis e subsectores do ensino tem de ser mais que uma pretensão. Acreditava, de forma irredutível, que com os computadores e a robótica, num estágio ainda tímido, se poderia motivar e entusiasmar os jovens para um modelo de matemática mais lúdico, prático e apelativo. Aprender brincando e jogando fazia total sentindo.

 

Por alguma razão o nosso Professor era apologista do 19 de Outubro. Dizia, vezes sem conta, em alto e bom som, que era mais fácil recordar a data em que Samora Machel seguiu para a eternidade do que, propriamente, quando viu à luz do sol pela primeira vez. Ele entendeu, como poucos, o momento revolucionário em que Machel viveu e a sua forma peculiar de liderar os processos educativos. Decisões arrojadas. Educação como prioridade fundamental.

 

Batel escreveu, nesses textos soltos que um dia reuniremos em livro, que das palavras aos actos vão, por vezes, distâncias incalculáveis, mas, a liderança perdurará e se manterá, tão necessária e vital, para que os objectivos da sociedade sejam alcançados. Criticar, pensar de forma diferente, ter ideias novas é tudo o que uma liderança deve produzir. Esse o legado e o pensamento de uma sociedade que se quer dinâmica e forte, nas suas convicções sociais. Não vale a pena falar de desenvolvimento se não estivermos socialmente estruturados. Como, também, não faz sentido abordar sobre a educação, se não existe umasociedade democrática para lhe dar respaldo.

 

Batel era inconformado consigo mesmo. Depois de uma temporada na Universidade de Aveiro, emigrou para Moçambique. Esta foi a sua segunda pátria. Aqui viveu como qualquer cidadão nacional, longe de privilégios, próximos das vicissitudes e aporias, porém sempre comprometido com as diferentes causas educativas e sociais. Serviu como consultor no Ministério da Educação. Mas, foi, sobretudo, o mesmo docente e arrojado motivador científico.

 

Moçambique, assumia, detém um complexo sistema educativo, prenhe de descontinuidades e insolúveis problemas. Este universo de mais de oito milhões de alunos, treze mil escolas, mais de quarenta mil professores, continua um espaço onde a vontade de aprender continua tão férrea e fugaz, que mesmo sem infra-estrutura ou mínimo de conforto, mantém as crianças atentas e consequentes. Falta tudo menos vontade. Mas, são as premissas e as ausências de vontades políticas que condicionam os processos educativos. A mudança ainda será possível.

 

Ele quis aproveitar, com o seu entusiasmo, essa oportunidade única para ajudar a pensar e estruturar as metodologias de ensino, rever os manuais, procurar parcerias e criar projectos. O Projecto Pensas, com apoio do Instituto Camões, era um do projecto com o seu timbre, e foi implementado com muito sucesso, para milhares de alunos e outras centenas de professores e docentes. Trabalhou, analogamente, na revisão e concepção de compêndios de ciências exactas. Partiu ciente de que os alunos que não aprendiam;os professores não ensinavam e os gestores faziam de conta. Motivar estes grupos continua sendo urgente e imprescindível. 

 

Algumas vezes mais desconsolado e outras menos, abordava a formação docente como algo que não poderia ser equivalente a formatação. Qualquer espaço de formação não poderia ser umafábrica de moldes, onde as peças teriam de sertodas iguais, e as que apresentassem algumadiferença, ou defeito, não deveriam ser postas de lado, destruídas ou transferidas para o armazém das inutilidades.

 

Ele era um adepto convicto de Manuel Castells;revisitava as teorias educativas de Pierre Bourdieue de Paulo Freire; delirava com os textos de José Saramago. Terminava seus emails com a seguinte frase: O heróico de um ser humano é não pertencer a um rebanho. Lia Fernando Pessoa, Eduardo White, Sophia de Mello Breyner Andresen, Noémia de Sousa e José Craveirinha, Eduardo White e Rui de Noronha. Para Batel Anjo, inequivocamente, o terreno da formação não deveria ser um processo mecânico, antes, um processo orgânico que permitisse o desabrochar da identidade e das capacidades de cada um. Isto só poderia acontecer se os professores se transformassem nos impulsionadores do talento dos seus alunos, e as escolas num espaço onde os jovens encontrassem inquietações reais, e as perseguissem. As inquietações teriam de se converter em paixões. 

 

Batel fazia tudo com pressa e paixão. Nas cumplicidades que alimentaram nossos serões quase tertúlicos, muito cibernéticos, me enviava um poema para encerrar a troca de ideias. O último poema foi sugestivo. Teve um sentido de despedida quando sentiu que carecia de mais cuidados. Anos antes, ele havia beneficiado de um tratamento mais cuidado na África do Sul. Sabia, então, que a sua saúde exigia cuidados redobrados. Porém, nada me fez acreditar que não voltaríamos a fazer agendas, a projectar bienais e nem sequer organizar as feiras de robótica. Não realizaríamos mais minutos de ciência viva e nem traríamos, juntos, os alunos de tantas escolas secundárias que não devem sequer saber que ele não regressará as feiras de Astrobot.

 

Igualmente, me recusei aceitar que nunca mais teria um outro email com iluminadas propostas e desafios. Gravei, em memória, o último poema da nossa última conversa.

 

Na Primavera já não me encontras

 

Cansado do sol que não me aquece

 

Não, não sei se resisto muito mais

 

A falta de um abraço que me enlouquece. 

 

Este poema de despedida antecipava uma partida anunciada. Sobreviver as pandemias e fazer as despedidas por outras patologias para as quais a vida ainda busca soluções.

 

Nem um beijo, nem sequer me despeço

 

Quero que o longe seja o infinito

 

Não espero em mais nenhuma estação

 

Hoje decidi, não vivo mais para ti no final de cada tertúlia.

 

Quis revisitar estas memórias na época em quem que procurava as palavras certas para dizer um adeus. As palavras que nos acompanham para a eternidade não possuem o mesmo significado. O silêncio substituiu todos os algarismos e equações. As fracções e a álgebra que servem de elevador para dias mais iluminados. 

 

Agora renascemos a Bienal. Trouxemos o Batel Anjo de volta as nossas salas. Ele continua aqui presente, fazendo a sua apresentação, transpirando e exigindo as melhores condições para os seus estudantes, sempre. 

 

A Osuwela e a Universidade Pedagógica do Maputo foram o seu último local de trabalho. Se orgulhava de poder ajudar e fazer da sua faculdade um local distinto e de excelência, aberto e interactivo. A prova deste amor incondicional gerou esta bienal. Oxalá que toda a poesia sirva para alimentar e fertilizar os jovens e capacita-los para um novo mundo de descoberta e de paixão. (X)

Antonino Maggiore*

 

Trabalhamos todos os dias para tornar a parceria União Europeia – União Africana (UE - UA) mais forte e mais próxima dos povos de África e da Europa. O nosso contacto diário é prova de que a relação entre a Europa e África é feita de laços humanos, culturais, geográficos e económicos sem paralelo, e não de encantamentos, promessas e afirmações. Na 6ª Cimeira União Europeia - União Africana, em Fevereiro de 2022, mais de 80 líderes de África e da Europa reuniram-se em Bruxelas para adoptar uma agenda ambiciosa e reforçar uma parceria de paz, segurança, solidariedade e prosperidade baseada na igualdade, no respeito e na compreensão mútua. 

 

A Europa e a África precisam uma da outra para dar uma resposta sólida e duradoura aos desafios globais e comuns que nos afectam a todos, desde as alterações climáticas à paz e segurança ou ao desenvolvimento económico. A parceria entre a União Europeia e a União Africana, assente no diálogo e no multilateralismo, é orientada para soluções e olha para o futuro.

 

A Europa e a África são ambas partes interessadas num sistema internacional baseado em regras e multilateral. A UE e os seus Estados-Membros foram dos primeiros a manifestar o seu pleno apoio à integração da UA no G20; a UE apoia África nas suas ambições de se tornar um ator mundial chave. Juntas, a UA e a UE podem ser pilares na defesa de um mundo assente em regras, em que a soberania, a integridade territorial e o direito à autodeterminação sejam salvaguardados.

 

A União Europeia está profundamente empenhada na segurança e prosperidade dos seus vizinhos, uma vez que esta é também uma condição para a nossa própria segurança e prosperidade, e esforçamo-nos por ser um parceiro fiável e previsível. Em tempos de crescente insegurança alimentar a nível mundial, a UE mantém o seu compromisso de facilitar a exportação de cereais e outros produtos agrícolas da Ucrânia. Gostaríamos de repetir que, desde o primeiro dia, a UE isentou os produtos alimentares e os bens de produção agrícola (incluindo os fertilizantes) das sanções impostas à Federação Russa. Em complemento à Iniciativa para os Cereais do Mar Negro, a UE criou os Corredores de solidariedade UE-Ucrânia, através dos quais quase 61 milhões de toneladas de cereais saem da Ucrânia por via terrestre. Embora seja frequentemente referido que apenas uma pequena percentagem dos produtos agrícolas exportados pela Ucrânia chegou directamenteaos consumidores africanos, os efeitos económicos combinados da iniciativa relativa aos cereais do Mar Negro e dos Corredores de solidariedade resultaram numa diminuição de 23% do índice de preços dos cereais no mercado global.

 

Olhando para além da necessidade imediata de atenuar a volatilidade dos preços dos géneros alimentícios no mercado mundial, a União Europeia terá mobilizado, até 2024, quase 7 mil milhões de euros para melhorar a segurança alimentar em África; mais de 3 mil milhões de euros já foram desembolsados. Este montante inclui as contribuições da UE para o Fundo para a Redução da Pobreza e o Crescimento do FMI. Outras iniciativas, como a Aliança para o Cacau Sustentável (UE, Costa do Marfim e Gana), estão a reforçar a resiliência dos sistemas alimentares e a sustentabilidade das cadeias de valor agrícolas.

 

Para reforçar as infra-estruturas de qualidade, e tal como acordado na 6ª Cimeira UE-UA, serão mobilizados até 2027 cerca de 150 mil milhões de euros de investimentos em África no âmbito da estratégia "Global Gateway Investment". Estes investimentos já estão em curso e a União Europeia está a traduzir os compromissos assumidos na Cimeira em realidade. No Quénia, apoio à instalação de fibra ótica e ao desenvolvimento de um sistema de autocarros rápidos em Nairobi. No Burkina Faso, a UE é o principal parceiro dos projectos de electrificação rural e de energias renováveis, nomeadamente, o projecto Yelen, que beneficia 110 000 agregados familiares. Os investimentos no domínio da saúde (a iniciativa MAV+ do Global Gateway sobre o fabrico e o acesso às vacinas, com mais de mil milhões de euros de investimento no Ruanda, na África do Sul, no Senegal e no Gana) e no domínio digital (investimento de até 820 milhões de euros na transformação digital da Nigéria) são apenas dois outros exemplos. 

 

Os resultados concretos e tangíveis estão à vista. Confirmam que a União Europeia é o principal parceiro de África a todos os níveis, no comércio, nos investimentos e no desenvolvimento. A Europa tem sido e continuará a ser um parceiro de longa data de África - a recente renovação do acordo com os países de África, das Caraíbas e do Pacífico, em vigor desde 1975, é apenas mais uma demonstração do nosso empenho.

 

No que respeita à paz e à segurança, apesar das múltiplas crises em todo o mundo, a UE manteve o seu apoio à UA e às operações de apoio à paz lideradas por África. Mais uma vez, isto traduz os compromissos assumidos na 6ª Cimeira UE-UA em acções. Para o período de 2022-24, estão a ser atribuídos 600 milhões de euros a estas missões através do Mecanismo Europeu de Apoio à Paz (EPF), complementando o apoio ao abrigo de outros instrumentos de desenvolvimento. Um exemplo é o apoio da UE à missão africana de transição na Somália (AMISOM/ATMIS), que ascende a 2,7 mil milhões de euros desde 2007. As onze missões de formação e assistência no continente, incluindo para Moçambique através da Missão de Formacao Militar da União Europeia (EUTM), são outro testemunho do apoio da UE aos objectivos de paz e segurança dos parceiros africanos. A África tem sido e continuará a ser uma área fundamental de operações com o apoio do EPF. Prevê-se que o compromisso total da Equipa Europa para as iniciativas de Prevenção de Conflitos, Mediação, Paz e Segurança a nível nacional e regional ascenda a 1,5 mil milhões de euros entre 2021 e 2027.

 

Enquanto outros procuram dividir, a UE, na sua parceria com África, procura concretizar e promover a cooperação. Os compromissos assumidos por alguns países não resistem ao teste do tempo. Em contrapartida, a UE e os seus Estados-Membros têm investido sistematicamente em África e facilitado o acesso com isenção de direitos aduaneiros às exportações africanas para a UE. 

 

Como sinal tangível da nossa vontade de estabelecer uma parceria que beneficie África concretamente, 33 dos países africanos menos desenvolvidos beneficiaram do regime aduaneiro mais favorável, eliminando os direitos aduaneiros e as quotas para todas as importações de mercadorias - excepto armas e munições. Actualmente, a UE é de longe o principal parceiro comercial do continente africano, com um volume total de 268 mil milhões de euros em 2021 e90% das exportações africanas a entrarem na União Europeia com isenção de direitos aduaneiros. A UE sente-se encorajada pelo potencial da ZCLCA e tem vindo a apoiá-la desde o início, contribuindo com conhecimentos especializados, capacidade institucional e intercâmbios sobre os ensinamentos colhidos, numaabordagem Equipa Europa.

 

A UE tem a sua quota-parte de responsabilidade no aquecimento global e está a investir fortemente para reduzir as emissões na Europa, mas também está ao lado dos países que são vítimas ou sofrem as consequências do aquecimento global e precisam de apoio na sua transição climática. Apoiamos a iniciativa da Grande Muralha Verde da União Africana para a adaptação às alterações climáticas com 700 milhões de euros e somos a força motriz por detrás da decisão de atribuir 100 mil milhões de dólares americanos em direitos de saque especiais (ou contribuições equivalentes) aos países mais vulneráveis, particularmente em África. A Cimeira para um novo pacto financeiro global, realizada em Paris no final de Junho, na qual participaram 25 Chefes de Estado africanos, juntamente com os líderes da UA e da UE, contribuiu efectivamente para alcançar esse objectivo e abriu caminho para a próxima Cimeira Africana sobre o Clima, a realizar no Quénia em Setembro. Graças ao Quadro Comum do G20 e do Clube de Paris, foi alcançado um acordo sobre o tratamento da dívida da Zâmbia, um passo histórico para aquele país e para o povo zambiano. 

 

Em todos estes desenvolvimentos, a Europa está a mostrar resultados. O financiamento global para a cooperação para o desenvolvimento da Equipa Europa aumentou quase 30% em 2022 a nível mundial, com a ajuda da UE a África a aumentar 11% para o período 2021-2027, em comparação com 2014-2020.

 

Enquanto trabalhamos na organização da próxima reunião Ministerial entre a União Africana e a União Europeia, na qual faremos o balanço das nossas realizações conjuntas até à data, queremos reafirmar a nossa determinação e empenho permanentes em reforçar a nossa parceria solidária com África, a fim de contribuirmos juntos para a paz, a segurança e a prosperidade mundiais.

 

*Antonino Maggiore é Embaixador da União Europeia em Moçambique

quarta-feira, 26 julho 2023 19:01

Desporto moçambicano em contra-mão com o mundo

Pois é! O retrato do putativo adversário de Shafee Sidat na noite das “facas longas” das eleições internas no partidão, marcadas para 15 de Julho - o camarada Francisco Mabjaia - empurra-o para aquele perfil de pessoas consideradas de “inúteis” na sociedade, “que não acrescentam nenhum valor”, que “estragam tudo quemexem”.

 

Esta última imagem recorda aquela célebre premonição de Carlos Cardoso, que escreveu, em 1997 que, se Guebuzachegasse a Presidente, acabaria estragando Moçambique. Cardoso acertou em cheio! Moçambique está estragado!

 

Muitos residentes de Marracuene estão aterrorizados com a eventualidade de Francisco Mabjaia poder ter a chance de, em vez de construir, destruir a nova autarquia local, levando para lá sua incompetência quanto baste. Estragar Marracuene!

 

Ele é capaz de se colocar na contramão dos trabalhos deShafee Sidat, que em tão pouco tempo dinamizou a localidade e mostrou que, com vontade e trabalho árduo, a região pode ser catapultada para uma centralidade urbana decente, com ordenamento correcto, saneamento, electricidade para todos, equipamentos desportivos e de lazer, turismo e investimento. 

 

Francisco Mabjaia é tudo o que Marracuene não quer, apesar de ele vir enfatizando que é um “nativo”. Mas e depois!?

 

Quem o conhece há mais tempo, lembra-se da sua passagem inglória e cinzenta pelo antigo Ministério para a Coordenação da Acção Ambiental (MICOA) e a sua rudeza no trato com jornalistas e com a opinião pública.

 

Lembra-se da sua inutilidade quando dirigiu a Federação Moçambicana de Basquetebol.

 

E dentro dos recantos da militância frelimista, Mabjaia abraçou um carreirismo centrado no escovismo e na bajulação, com traços vistosos de improbidade, como no caso da oferta de um tractor ao Presidente Nyusi. 

 

Mas a melhor caracterização do aspirante a edil de Marracuene foi feita pelo saudoso cronista Juma Aiuba, num artigo publicado na “Carta”, em 7 de Dezembro de 2018. Eis a prosa arrebatadora do finado cronista:

“A queda de Francisco Mabjaia (na verdade, os motivos da queda), como primeiro-secretário da FRELIMO da cidade de Maputo, coloca-nos diante de um mistério muito difícilde decifrar. Um caso capaz de embaraçar qualquer criminalista ou laboratório forense avançado. Um caso de Ci-Esse-Ai.

 

Tudo o que se sabe é que o ‘mista-tractor’ vinha sendo vítima das suas próprias decisões um tanto quanto acrobáticas. Mas aí está. O homem é um coleccionadornato de trafulhices. Qual foi então a trafulhice que precipitou a sua queda?

 

1. A compra de votos para a sua reeleição conseguida com 97 por cento dos votos?

 

2. A tentativa de oferta, numa reunião pública e em directonas tê-vês e rádios nacionais e internacionais, de um tractor agrícola completo, novinho em folha, ao presidente do seu partido, no décimo primeiro congresso?

 

3. A tentativa de concorrer, contra a vontade do Comité Central, a cabeça-de-lista do seu partido à presidência do Município de Maputo?”

 

Juma Aiuba traça de Mabjaia um perfil de ética duvidoso, que não encaixa na cabeça de muitos militantes e simpatizantes da Frelimo, que querem o bem e o melhor para Marracuene. 

 

O melhor que Mabjaia pode fazer é renunciar, como fez Calisto Cossa na Matola.

 

Acrescentar ao seu currículo mais uma nódoa de perdedor nato parece de autofagia sem paralelo. 

 

Marcelo Mosse

13 de Julho de 2023

Cartamz.com

Eu, o Povo

Conheço a força da terra que rebenta a granada do grão

Fiz desta força um amigo fiel.

 

(Mutimati Barnabé João)

 

Quando, naquele remotíssimo sábado, de 2 de Julho de 1994, o Luís Carlos Patraquim me ligou a dar a notícia da morte de António Quadros, já se tinha balcanizado o mito do guerrilheiro morto na frente de combate que deixara “Eu, o Povo”, como legado ou testamento poético da revolução, que fora o breviário de jovens que o estudariam afanosamente anos a fio como uma espécie de cartilha. Reconheço-me nesses moçoilos e nesse livro e naqueles poemas inauditos. Não tenho dúvida de que fizeram de nós mais moçambicanos. “Mutimati é a voz individual que corporiza a voz colectiva.”

 

Tinha visto, entretanto, o filme de John Ford, “O Homem que Matou Liberty Valance”, e continuava a sufragar a lenda mesmo diante da verdade. Aliás, anos mais tarde, ao antologiá-lo, em “Nunca Mais é Sábado”, no texto biográfico redigi: “a lenda por vezes torna-se verosímil com o tempo”. A colectânea, de 2004, também resgatava outro dos seus heterónimos, o mais facundo de todos: João Pedro Grabato Dias. Parece haver, em termos biográficos, um apelo recorrente nas datas: em 1964, António Quadros vai para Moçambique, em 1984 é o epílogo dessa experiência, o ocaso da sua vida dá-se em 1994.

 

À época, eu batucava a minha prosa no jornal “Público” e dei conhecimento ao meu editor, Torcato Sepúlveda, de gratíssima memória, deste infausto acontecimento. Quando me dirigia para a redação, aonde iria fazer o obituário que se impunha, recordei-me de um livro que me  assombrara nos meus tempos de debutante. Encontrara-o numa vetusta livraria do Alto-Maé, que hoje cedeu espaço e memória a uma dessas lojas que vendem quinquilharias. Era um livro de pequeno formato, tê-lo-ei perdido algures, na defluência dos anos. A despeito, o seu humor truculento e profundamente feroz ainda ecoam na memória: “Como o morto nunca nos diz nada / vem daí o extremo penoso da sua presença”. O título da obra – “O Morto – Ode Didáctica” (1971) -, assinado por João Pedro Grabato Dias, o seu heterónimo mais exabundante.

 

Fora o Luís Carlos Patraquim que me dera a ler “40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada” (obra inicial do poeta, editada em 1970). Quando isso sucedeu, eu já associava o nome de Grabato Dias ao de Rui Knopfli, o meu poeta electivo, por causa da revista “Caliban”, que ambos haviam editado nos anos 70. Disse-me o Knopfli em 1989: “Quem teve a ideia de se publicarem os cadernos “Caliban” foi o João Pedro Grabato Dias. O progenitor é ele”. Em 1996, Rui Knopfli assentiria que os publicasse, numa edição fac-símile, com a benesse do meu bom amigo José Soares Martins.

 

Foi através de um prémio, atribuído, em 1968, pela antiga Câmara Municipal de Lourenço Marques, hoje Maputo, que surgiu, para o espanto dos jurados, “40 e tal Sonetos de Amor e uma Canção Desesperada”. Quando foi da publicação da obra remunerada, dois anos depois, Eugénio Lisboa, que estivera no júri, redigiria numa das badanas: “Voz singular, ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada”, tudo isto, segundo o ensaísta, “traduzido por uma extraordinária ´fauna lexical´ que a um tempo nos subjuga e desorienta”. Num dos volumes, da sua monumental obra memorialística, “Acta es Fabula. Memórias III – Lourenço Marques Revisited – 1955-1976” (2013), Lisboa dar-nos-á uma circunstanciada notícia desse acontecimento literário único e fará a cartografia desta personagem singularíssima: António Quadros.

 

Também devo ao Patraquim o conhecimento de “As Quybyrycas – poema étyco em ovtavas”, publicado em 1972, para celebrar os 400 anos de “Os Lusíadas”, ínclita obra de Luís de Camões. Assinada por Frey Ioannes Garabatus, tinha J. P. Grabato D. como seu Editor. Esta obra que mereceu um erudito prefácio de Jorge de Sena. “Cada um faz a homenagem que pode” – era a divisa do frontispício. O Editor, assim grafado, agradecia a M.L. Cortez, E. Lisboa, R. Knopfli e A. Quadros com um “embaraçado obrigado pelo estímulo permanente”. Já era óbvio o chiste literário. O autor era um heterónimo de António Quadros – o pintor.

 

António Quadros foi pintor e professor, artista gráfico e ilustrador, ceramista e escultor, fotógrafo e cenógrafo, pedagogo e apicultor. Interessou-se por arquitectura, comunicação, biologia ou ecologia. Era vário, múltiplo, complexo. Talvez daí, também se explique, a sua heteronímia, os vários poetas que encarnou: ele foi João Pedro Grabato, ele foi Frey Ioannes Garabatus, ele foi Mutimati Barnabé João, ele foi António Quadros. (“Pois que todo o proposto é uno e vário”, deixará escrito algures).

 

Para além dos livros acima aludidos, publicou: “A Arca – Ode Didáctica na Primeira Pessoa” (1971), “Uma Meditação. 21 Laurentinas e Dois Fabulírios Falhados” (1971), “Pressaga – Ode Didáctica” (1974), “Facto-Fado – Piqueno Tratado de Morfologia Parte VII” (de 1986), “O Povo é Nós” (1991) e “Sagapress” (1992). Todos eles assinados por João Pedro Grabato Dias. A sua poesia é exuberante, os seus versos são avassaladores, o seu tom desmedido, muitas vezes burlesco, faustoso, quase sempre, poesia que denuncia uma afortunada versatilidade imagética e um dos estros mais prósperos da poesia que se produziu em Moçambique.

 

António Quadros era uma personagem: complexa, heterogénea, vasta, abundante, profusa. Expendeu 20 anos da sua prodigiosa vida em Moçambique, entre 1964 e 1984, e aí produziu grande parte, ou a totalidade, da sua obra (“Produzo mas não crio, quando interpreto”.) Isto muito longe de “Mil novecentos e quarenta em lisboa. Lisboa após Expo” quando se entrevista com “o meu amigo da guiné / o ansiado irmão que vivia mais perto do sol” que “estava ali, tinha chegado no anoitecer de inverno / sem ser prevenido da névoa de lisboa, sem camisola de lã / sem calças à golfe, sem luvas de malha”.

 

A cidade, a “baixa laurentina”, o Djambu, o Continental, a “polana das coutadas”, Maxaquene, mais tarde, a Machava, fazem parte da sua geografia poética, numa vida em que, diz o poeta, “em palavras gastei tudo”. Muitos anos depois, do epílogo dessa experiência africana, não deixará de se referir aos seus “áfricos remorsos”, uma indisfarçável melancolia e, provavelmente, imprescindível desencanto. Quem o lê, atentamente, escrutina na sua poesia o estertor de um tempo – isso é comum a Rui Knopfli – e o entusiasmo pelo tempo ulterior que que lhe provocará um inevitável desengano. A revolução teve as suas contradições e, de permeio, acotovelou quem não devia.

 

Não o conhecera pessoalmente, mas sabia-o figura lendária em Moçambique. Tenho uma vaga memória de o ter visto, de relance, algures em Maputo. Mas pode ser uma paródia da minha própria memória. O José Capela (nome de historiador de José Soares Martins) falava-me amiúde dele, com saudade, das vezes que este o visitava e ficava, à varanda, a escrever ou a pintar. Tinha, aliás, obras de Quadros nas paredes. O José Craveirinha (“sinto que fiz um verso à Zé Cravé, alô Mafalala!”) também me falava dele. O Rui Knopfli falou-me dele. O Luís Carlos Patraquim, idem. A Amélia Muge, outrossim. A minha amiga Lisdália, de saudosa memória - (“Feitiços? Vivi deles, vivo, como de factos em bruto”, entre outros, “no rir da Lisdália”) – rememorava, liricamente, João Pedro Grabato Dias. Quem não me falou de António Quadros?

 

António Augusto Lucena Quadros nasceu em Santiago de Besteiros, em Viseu, a 9 de Julho 1933, onde iria falecer a 2 de Julho de 1994, a dias de fazer 61 anos, depois de muitos exílios. (“Nunca me libertei da infância.”)  Estudou Pintura na Escola Superior de Belas Artes do Porto e Gravura e Pintura a fresco em Paris. Parte da sua obra plástica está antologiada em “O Sinaleiro de Pombas” (2001).

 

Numa entrevista à revista “Tempo”, quando deu à estampa a sua glosa camoniana – Camões e Fernando Pessoa eram seus deuses tutelares – afirmaria: “Se eu soubesse o que é ser europeu, saberia talvez o que é ser moçambicano. Tirando o anedotário da coca-cola, falta a soma das criações de mais de duas gerações, para se definir o que é ser moçambicano, para o bem e para o mal. Daí a tremenda responsabilidade de um criador, hoje e aqui, onde o pouco que há feito muito pouco denuncia o muito que há por fazer (...) No fim de contas, haverá dois mundos, não sei. A “tese” que o meu trabalho defende é que existe só um universo e nós com ele. Se à poesia de minha lavra se pode censurar a falta de tambores, luares africanos e queimadas, note que a que produzi de 50 a 64 pelos sucessivos exílios em que andei, e onde o mental não foi o menor, é impublicável por isso mesmo”.

 

Não me parece que haja dúvidas que este homem singular sabia exercer a arte de pitonisa e haveria de se antecipar à discussão da moçambicanidade na sua extensa e complexa obra. Mais do que isso: quis zombar da História e inventara a mítica obra que faz a sagração de Moçambique livre: “Eu, o Povo”. “Mutimati é a voz individual que corporiza a voz colectiva” – assim se escrevia no frontispício: “É agora pertença de Moçambique. O Povo Moçambicano é o seu Autor”.

 

Sabe-se: António Quadros não conseguiria descartar-se da suspeita de ser o autor daquele hino da revolução e da nação emergente. Aliás, rezam os velhos mitos que Samora Machel terá feito, mais tarde, um repto irrecusável que irá resultar em “O Povo É Nós” (1991), uma glosa – ou uma sequela? -, de “Eu, o Povo”, assinada por João Pedro Grabato Dias.   

 

António Quadros foi um permanente exilado (“estaremos sempre votados a este exílio”), nos vários solos que lhe pertenceram. “Com três estações intermédias, djambu, casa e colmeia / ou do rovuma ao maputo como diriam nas rolhas diversas” – escreve Grabato Dias, sempre com o seu humor finíssimo e assertivo. Foi cantado por José Afonso ou Amélia Muge, pouco lido e ainda menos discutido ou estudado, como mereceria.

 

Em 2021, em Portugal, foi editada uma antologia – “Odes Didácticas”, numa coleção de poesia coordenada por Pedro Mexia, na Tinta da China, com um extenso e importante posfácio de António Cabrita, que intenta interpretar a vasta e complexa obra de João Pedro Grabato Dias. O arquitecto José Forjaz fizera um texto imprescindível para a reedição de “Eu, o Povo” da Cotovia (2008). Releio o poeta. Volto aos versos que me perturbaram na juventude: “Devo velar os meus mortos. / Vigiá-los, com doçura, mas vigiá-los. / Estar atento nas franjas do silêncio. / Alguma coisa deve acontecer / na espera.” “Um morto esquecido é tantíssimo perigoso”. A paródia, a sátira, a critica acerba, sempre. “É preciso ter muita coragem para assumir o medo”.  

 

Provavelmente, esquecido hoje em Moçambique. Luís Carlos Patraquim evoca-o num belo poema: “Frei Mutimáti Barnabé João”: “P´la estrada da Machava, à esquina da Meseta / como Rolando sob a última frechada / ou como quem tropeça piqueno / em um Morto muito / lhe devo versos – o cono! - / mai-lo zarolho que lhe deu / claramente visto o Povo, / lá vai Frei João, o Mutimáti, / ao grabato da Alma. // Psiu, D. Antónia; João dos barcos / desencorados da infância: Amélia, / múgica guitarra onde sob os cabelos / a voz e tu, menino, / que arado adunco nos mostrasse em obra, / visto que o autor é o seu próprio processo, / e dele nem Virgílio o nomeia / em verde prado onde os deuses apascentou; / Psiu, que pelo céu de Inhaminga, / p´lo caminho de Santiago com a Rosa na Arca/ e a sapata grossa ecoando, cavernosa, / uas quybyrycas de Barcelos, / lá Mutimáti mai-lo cachimbo / de chicaocao e canho adornando ogres, / floresta obscura, parva savana nívita.” E o poema lá vai e não termina sem evocar, outros deuses tutelares da poesia moçambicana: “o Cravé ainda salga os velhos espíritos/ e o Rui sangra a sombra ardida e verde”.

 

Ironicamente, quando morreu, estava  para sair, naquele mês, o disco da Amélia Muge (“Todos os Dias”), que tinha uma canção com versos de João Pedro Grabato Dias, intitulada “Estar vivo”. Começava e terminava assim: “Estar vivo é estar à morte”. Foi o título óbvio para noticiar a passagem de António Quadros - “percebi logo a morte”, dirá ele num dos seus versos onde, como sempre, zomba da morte (ou tenta exorcizá-la?) -, que nascera a 9 de Julho de 1933, faz hoje, precisamente, 90 anos.

 

Cidade do Cabo, 9 de Julho de 2023

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