Existem músicas que encaixam na perfeição nas nossas memórias. Alguns artistas se identificam com esses estilos musicais e deixam o seu rastilho de génios nesses estilos. O Jazz, por exemplo, só é produzido por lendas. Quem envereda por estas melodias precisa de ter mais do que arte; deve se revestir de rebeldia e genialidade.
O Jazz nasceu do improviso de solos sobrepostos de arranjos. Em finais do século XIX e bem no começo do século XX, escravos e seus descendentes gritavam pela liberdade. Vociferavam a grandeza de um continente e de povos subjugados. Negavam a humilhação que o mundo lhes quis impor.
Existe uma profunda diferença entre viver a vida com vitórias e com derrotas. Nos confrontamos, existencialmente, com estas facetas.; tudo faz parte da condição humana. Revisitar os eventos tendo por pressuposto o benefício da percepção ou do conhecimento, permite entender o passado. Este postulado pertence a Eduardo Mondlane Júnior, Eddie, que prefaciou um dos livros de sua mãe, Janet Rae Mondlane, as celebríssimas confidências que trocou com seu esposo, entre declarações de amor, paixão e desencanto. Esses ecos que perpassam tempos e memórias.
Janet Mondlane transitou pela então Lourenço Marques, entre Novembro de 1960 e meados de 1961. Ela e seus dois filhos, sem a presença de Mondlane, foram os nobres hospedes da família Clerc. Espaço privilegiado na missão presbiteriana de Moçambique, nem por isso, imune à suspeitas. Janet recorda, com fervor, dos serões musicais da família Clerc. Noites musicadas à piano, flauta e violino. As habilidades musicais do próprio Clerc, acompanhado pelo casal de reverendos Morier-Genoud e sua esposa Juliette. Estas eram as manifestações messiânicas e revolucionárias de uma igreja que também se libertava.
Jennifer Chude, que grafava o seu nome musical, emprestava a sua voz. Cantava muito afinada e entrava para um universo de onde nunca mais se libertou. Sua capacidade musical era notável. Acertava as notas com exactidão e aprendia os versos com mestria. Sua mãe não tinha dúvidas do seu futuro. Ela era uma pequena lenda que nascia para engrandecer o jazz; trazia de volta os ritmos que não sendo da sua idade eram da idade dos seus progenitores. Não admira que a rebeldia desconcertante desses sons a tivesse enfeitiçado.
Desde esta época, até a altura que integrou os treinos de preparação militar em Bagamoyo, na Tanzânia, ela virou uma voz autorizada de uma paixão revolucionária e não deixou dúvidas da sua capacidade de subversão. Ela própria forçou um aprendizado na academia de coreografia de dança moderna de Filadélfia; esbanjou o seu perfume artístico na academia de dança de Moscou, na União Soviética e, anos mais tarde, assentou arraias em Brooklyn em Nova Iorque. Os génios podem ter estado em Nova Orleans, mas, é em Nova Iorque que eles se revelam.
Este percurso a definiu com uma artista sublime. Era o espírito libertário do qual a família não tinha dúvidas, nem do seu talento, muito menos da sua graciosidade e da sua vocação. É comum as famílias não aceitarem que os filhos enveredem por carreira musical ou desportiva, antes de se firmarem na escola. A opção passa por trabalho formal, remunerado e com títulos. Todavia, o impulso musical da Chude a perseguia, criando em si contradições insanáveis e uma disciplina tão ortodoxa quanto inquestionável.
Para o casal Mondlane, revolucionar e libertar um país, com crianças tão pequenas se tornou, igualmente, um problema por resolver e era preciso pensar na sua segurança. Dar es Salaam, apesar de muito segura, requeria outras condições. Por falar no desenvolvimento dos talentos naturais, escreveu Mondlane para a sua esposa, em 1967, que os miúdos, por vezes, faltavam às lições de piano e trompete. A Chude, amiúde, vivia aborrecida por não ver retomadas as suas aulas de ballet.
O tempo fez da Chude uma das mais prolíficas artistas de jazz de Moçambique. A rigor, ela emergiu como figura central e se tornou mentora de tantos outros. Cantou a liberdade, a sua cidade de Maputo, cantou o amor, salsas e coentros; virou uma iconoclasta. A sua forma de ser, quantas vezes incompreendida, revelava o inabalável compromisso com o jazz, com a cultura e, sobretudo, com o seu activismo social que tinha como substrato o seu altruísmo.
No começo dos anos 80, e residindo Estados Unidos da América, Nova Iorque, lançou os álbuns “Tomorrow’s Child” e “Samurai”; internacionalizou Moçambique. Um país socialista e de que o capitalismo teimava em combater. Colaborou com Marcus Miller, um dos expoentes máximos do Jazz and Blues no mundo. Escreveram canções, assombraram palcos e se transformaram em ícones indispensáveis. Marcus Miller pode ter sido quem mais sofreu com a partida precoce da Chude. Enviou uma mensagem que não era apenas dirigida à família Mondlane, mas para África e para o mundo; reconfirmou a rebeldia da sua amiga querida e testemunhou o quanto ela ajudou artistas como Roberta Flack, Jason Miles, Lionel Richie e tantos outros, que gravaram algumas das suas letras, cantaram com ela e fizeram de Moçambique um país que não poderia ser omitido.
Uma voz tão apaixonada e melodias de timbre inigualável, levaram-na a ser agraciada com o Grande Prémio, em diferentes festivais internacionais, nomeadamente Coreia do Sul, em 1980; Japão, em 1981; prémio artista do ano, pela Rádio Moçambique, em 1999 e figura central da Rádio Moçambique, em 2016. O seu álbum “Salsa e Coentros” pode ter sido premiado em outros festivais que bem desconhecemos. Estes prémios revelavam esse compromisso pelo desenvolvimento artístico de Moçambique e, sobretudo, um legado para as novas gerações e para esse jazz moçambicano com milhares de seguidores, nem por isso, ainda tão assumido por todos.
Ninguém se olvida das suas intervenções, palestras e outros eventos nas escolas de música e artes e, nas diferentes associações de músicos, espalhados pelo país. Estes grupos populares não carecem de reconhecimentos públicos e nem se quer, dispõem dos meios para esses efeitos. Este é o maior legado de uma mestra que o tempo soube testemunhar e que muitos de nós, apenas, vimos passar como uma rara galáxia dessa constelação de estrelas.
Chude permanecerá sempre actual e inquietando as nossas memórias. Com o dobro da idade de Cristo, ela partiu de forma prematura. Sem muitas coreografias, essa pungente mulher da subversão e de causas, repousa junto de seu pai, Eduardo Mondlane. Revisitam Moçambique, falam sobre a independência; sobre o socialismo tão relevante enquanto durou, sobre a prolongada guerra entre irmãos, sobre o actual capitalismo selvagem, trasvestido de neoliberalismo, da democracia incipiente e titubeante; falam de um país que busca a reconciliação nacional, a paz e progresso social.
A mente criativa precisa de impulsos e de absorver do mundo e lugares as suas experiências. O artista é, apenas, um intermediário, que vive ao serviço da criação. As lendas estão sempre presentes. O sol continuará brilhando para todos, mas, nem todos podem reflectir o seu brilho.
Ferrugem é madureza, ferrugem.
E a pluma murcha do milho;
Pólen é tempo de acasalamento quando as andorinhas
Tecem uma dança
De setas emplumadas
Fiam espigas de milho em feixes
De luz alada. E, nós amamos ouvir
O vento a jungir frases, ouvir
O rascar dos campos, onde folhas de milho
Perfuram qual lascas de bambu.
Agora, nós, catadores
Aguardando a ferrugem em franjas, puxamos
Longas sombras do crepúsculo, trançamos
Palha seca em fumos de madeira. Espigas cheias
Levam a queda do germe – esperamos
A promessa da ferrugem.
(Wole Soyinka)
Wole Soyinka, dramaturgo, poeta, romancista, ensaísta, memorialista, professor, activista, nascido em Abeokuta, na Nigéria, a 13 de Julho de 1934, faz hoje 90 anos, imortalizado, em 1986, aos 52 anos, com o Prémio Nobel da Literatura, é, simultaneamente, ioruba, nigeriano, universal e cosmopolita. Os mitos, a cosmologia e a cosmogonia, a tradição e os seus signos, a modernidade e as suas contradições, atravessam a sua vasta, múltipla, profunda, vultosa, expressiva e impressiva obra. Para além disso, o seu activismo, que lhe valeu a prisão e o exílio, a perseguição e o oblívio, sem nunca ceder à ignomínia dos falsários, dos perjuros do poder e do infortúnio africano. É, seguramente, das últimas grandes figuras do continente, numa África arisca, sufocada, tolhida e incapaz.
A sua biografia regista, com dureza, as suas passagens nas prisões nigerianas e longos períodos de exílio. Há legendários anúncios em que é procurado vivo ou morto pelos regimes ditatoriais da Nigéria. Quando esteve vinte e dois meses preso (entre 1967 e 1969) registou essa experiência em “The Man Died” (1972). É também um exímio ensaísta e um proeminente poeta. Destaco, no domínio da ensaística: “Neo-tarzanism: The poetics of Pseudo-Transtion”, “Art, Dialogue and Outrage”, “From Drama and the African World View” (1976), “Myth, Literature and the African Word” (1976). Também é um memorialista inexpugnável: “You Must Set Forth at Dawn” (2006) é um volumoso livro de suas memórias. Em 1981 publicara “Aké: The Years of Childhood” sobre a sua infância em Aké, numa missão onde fez os estudos primários. Filho de pastor anglicano e mãe activista dos direitos das mulheres, cresceu entre livros e a sua vida seria obstinadamente dedicada à literatura.
No território da poesia: “Idanre and Other Poems” (1967), “Poems from the Prison” (1969), que seria reeditado com o título “A Shuttle in the Crypt” (1972), ou “Mandela´s Earth and Other Poems” (1988). A editora britânica Methuen publicou-lhe uma antologia com estes três prévios títulos: “Selected Poems”. Publicou, entre 1958 e 1960, três livros de contos: “A Tale of Two”, “Egbe´s Sworn Enemy” e “Madame Etienne´s Establishment”.
“Os Intérpretes” (1965) é considerada a sua magnum opus. Publicou apenas três romances. Sendo que o último tem um lapso temporal de meio século em relação ao anterior. É sobretudo dramaturgo. Também encenou as suas peças. Foi um activista pela independência do seu país e participou na efervescência da libertação. Não perdeu, porém, a lucidez, nem a liberdade de criticar. O optimismo da realidade não o impediu de praticar o pessimismo da razão, como queria o aforismo de Gramsci.
Na sua vasta obra sobressaem títulos como “A Dance of the Forests” (peça encenada em 1960 e, posteriormente, publicada em 1963) pensada para as comemorações da independência do seu país. Estreara-se, aos 20 anos, com a peça “Keffi´s Birdhday Treat “ (1954) e ficaria célebre com o seu teatro de intervenção. Sobretudo peças como “The Lion and the Jewel” (1959), “A Dance of the Forests” ou “Death and the King´s Horseman” (1975). Tem uma vastíssima obra teatral e é provavelmente o mais importante dramaturgo africano de sempre.
Quando lhe concederam a maior láurea literária tinha já uma vastíssima e importante obra e era uma voz intrépida na história política do seu país e de África. Em “Os Intérpretes”, uma verdadeira obra-prima, romance complexo, polifónico e sagaz há um grupo de jovens universitários, pretensamente intelectuais, que procuram “interpretar-se” e assim, com o seu passado, as suas crises, os seus fantasmas, os seus amores, as suas luzes e sombras, fazem o caleidoscópio de uma sociedade em mudança. Uma poderosa metáfora da Nigéria, de África, das suas promessas e frustrações, das suas esperanças e desenganos.
A ironia é um registo que atravessa toda a obra de Soyinka. A sátira como forma de crítica contundente. Na sua obra teatral, como se sabe, ele vitupera os opressores e os ditadores, abomina os corruptos, os falsificadores, os colonialistas e os que sobrevieram depois, os assassinos. Os sátrapas., os déspotas, os tiranos. Na peça “A Dance of the Forests”, a comemoração da independência da Nigéria se confunde da enxúndia da corrupção e atinge inclusive algumas personagens ligadas à organização das celebrações da Nação recém nascida. Há seres sobrenaturais que são convocados para denunciar a verdadeira face dos humanos. Em “Kongi´s Harvest” (1964) está em conflito um ditador e um rei tradicional e, de permeio, denuncia as atrocidades que o ditador pratica para relevar a sua superioridade.
Esta é a essência da obra dramática de Wole Soyinka. Está no cerne da sua escrita uma necessidade imperativa de intervenção. Uma assombrosa lucidez. Na sua obra vemos os conflitos entre os ditadores e líderes tradicionais numa realidade diversa e imprevisível e quase sempre satírica. Escreveu e encenou peças, criou poemas e declamou-os, redigiu ensaios e ensinou. Percorreu o mundo. Interveio. Sempre. Tem verve, é um grande tribuno. É de uma grande elegância quando fala ou dá entrevista. Um sábio, avisado, precatado. Erudito, pensador, humanista.
Li, em 1985, “Os Intérpretes”. Voltei a ler este tremendo livro há meses. Naqueles belos e ominosos anos 80 (parece um paradoxo dizer isto) nós líamos profusamente e os autores africanos eram traduzidos e publicados numa mítica colecção “Vozes de África”. Hoje quando vejo estas organizações inúteis, frívolas, imprescindíveis, como a SADC, que não servem mais do que alimentar o ego dos nossos intendentes, não sei se choro ou rio. Não são capazes de fazer a verdadeira comunidade cultural que somos. São a inequívoca expressão da nossa miséria, da nossa ignorância e da nossa inadimplência. Somos visceralmente ineptos. No entanto, há escritores espantosos no nosso continente.
Naqueles anos, de que sou nostálgico, lia sobretudo o senegalês Sembène Ousmane (“O Harmatão”), o nigeriano Chinua Achebe (“Um Homem Popular”), o queniano Ngugi Wa Thiong`o (“Um Grão de Trigo” e “Pétalas de Sangue”), ou Camara Laye da Guiné Conacry e o seu fabuloso “O Menino Negro”. Lia também escritores sul-africanos como Alex La Guma (“País de Pedra” ou “Tempo da Morte Cruel”), Peter Abrahams (“O Rapaz da Mina”) ou Alan Paton (“Chora Terra Bem Amada”). Lia o moçambicano Luís Bernardo Honwana (“Nós Matámos o Cão Tinhoso”), que pertence a esta geração e a esta estirpe única de escritores africanos (aceno aqui, subliminarmente, à “African Writers Series” da Heinemamm). Mais tarde haveria de ler o egípcio Naguib Mahafuz, ou os sul-africanos Nadine Gordimer e J.M. Coetzee (sobretudo o brutal romance “Desgraça”), laureados com o Nobel. Ou ainda Njabulo Ndebele (“Death of a son”, dilacerante história do tempo do apartheid).
Hoje leio sobretudo as mulheres. África tem escritoras espantosas. Cito três nomes, poderia citar muito mais, mas não tenho espaço para tanto. Fico-me pela nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (“Americanah”, um romance portentoso e fecundo), pela etíope Maaza Mengiste (“O Rei Sombra”, romance soberbo, espantoso e iconoclasta) ou pela zimbabweana Tsitsi Dangarembga (“Condições Nervosas” – um livro prodigioso, escrito magistralmente). Tsitis é para mim a mais ingente escritora africana da actualidade. Poderia citar o queniano Binyavanga Mainaina (escritor brutal – “How to Writhe about Africa (2022) –, cujo destino lembra o infortúnio do zimbabweano Dambuzo Marechera, autor de “House of Hunger”, de 1978) que criou uma revista “Kwani?”, decisiva na promoção das novas estrelas africanos no domínio da literatura. Fê-lo com o dinheiro que ganhara do Cain Prize em 2002. Numa antologia “Africa 39 – New Wiriting From Africa South Of Sahara” (2014), com prefácio de Wole Soyinka, celebra-se esse sumptuoso esplendor da nova literatura africana.
Soyinka acaba de publicar novo e porfiado romance: “Chronicles from the Happiest People on Earth” (“Crónicas do Lugar do Povo mais Feliz da Terra”), em 2021, no qual vergasta uma sociedade doente, com o vírus endémico da corrupção e do tráfico, num registo que deslisa entre a descrição pura e dura de uma realidade abjecta e a sátira e o pícaro de um humor absolutamente hilariante. Considerou-o, aliás, uma homenagem à Nigéria. Estes tempos e estes problemas (corrupção) que assolam o continente são as suas personagens de sempre. Desde 1973, quando deu a conhecer “Season of Anomy”, que não publicava um romance. O seu vinagre milenar está lá.
Num dia de Março, do longínquo ano de 1995, fui ao seu encontro, na companhia do Pedro Rosa Mendes, para o entrevistar para o jornal “Público”, onde ambos éramos jornalistas. Ele estava de visita a Lisboa para compromissos literários. Recordo-me sobretudo da sua figura hierática, da sua legendária cabeleira afro, da sua barba aparadíssima, do seu colete mítico e da sua voz poderosíssima. Lembro-me de ouvi-lo dizer o poema “´No´ He Said” (for Nelson Mandela): “In and out of time warp, I am that rock / I the black hole of the sky”. Lembro da sua voz e da sua majestade. Da sua voz que ainda reverbera em mim. E de duas coisas que ele nos disse, entre várias, naquele encontro irrepetível.
A primeira: que os africanos deveriam ter tido coragem de desfazer as fronteiras que eram a herança da Conferência de Berlim e que estavam na origem de intermináveis guerras étnicas e fratricidas: “Os políticos traíram África”, disse-nos desassombradamente. Escolhemos, aliás, esta frase indomável para título da entrevista. A segunda: “Eu não sou neo-tarzanista”. Era, por conseguinte, contra a ideia de que o homem africano deveria retornar ao tempo místico da tanga e da floresta (palavras minhas) – ao tempo do mito selvagem. Afirmava-se como um homem moderno e não tinha pejo nem se coibia quando reclamava dos avatares da modernidade. Para além disto, não esqueço as suas intrépidas posições sobre as ditaduras africanas, de que era um opositor visceral e que estão impressas em toda a sua obra.
Vi-o, muitos anos depois, num comum voo entre a Cidade do Cabo e Joanesburgo, mas não tive o arrojo suficientemente juvenil de me dirigir a ele. Admirei-o de longe: a sua elegante figura, o seu olhar fixo no que lia, a sua silhueta e o cabelo todo branco como um belo ancião. Estava longe do homem de 52 anos que dera o primeiro Nobel da Literatura à África. O seu indubitável nome esplendia há muito sem equívoco nos lustros literários africanos ou ocidentais, onde actua como professor em diversas universidades. Fiquei empolgado quando o vi e tive o sobressalto de todos os que se entrevistam com os seus ídolos. Mesmo quando a sua devoção é púdica ou acanhada.
Wole Soyinka nasceu há 90 anos. Tem sido celebrado em África e no Mundo. Vejo-o como um africano digno, um intelectual probo, de um modelo exemplar, sempre inspirador, não só pela sua lucidez e coragem, mas sobretudo pelo quilate das suas ideias e obras, cujo jaez é indubitavelmente singular e esplendorosamente distinto. Admiro a sua fleuma em certas intervenções e o facto de ser compassivo. A sua imensa sabedoria e a sua bonomia. Como nos versos em epígrafe, em tradução brasileira, do poema “Estação”, onde ele surge sensível, mavioso, terno. Aqui deixo o meu preito e, humildemente, também o celebro.
KaMpfumo, 13 de Julho de 2024
Bertina Lopes, nascida a 11 de Julho de 1924, na vetusta Lourenço Marques, foi uma artista de um talento assombroso, atravessou longas e diversas épocas, inventou-se e reinventou-se em vários estilos, técnicas e cores, desde o figurativo ao abstracto, numa colossal jornada, iniciada em Moçambique, prosseguida em Itália e profusamente disseminada pelo Mundo. A sua pintura, a sua escultura e o seu ativismo eram, quando morreu, a 10 de Fevereiro de 2012, aos 88 anos, em Roma, aclamados e ela tinha então o beneplácito dos deuses.
Malangatana, na sua verve, na sua exuberância, na sua generosidade, na sua mítica prodigalidade, disse que Bertina Lopes era a mãe e o pai da pintura moçambicana. Esta cordialidade de um génio para outro génio, de um prodígio para outro prodígio, de um fundador para outra fundadora, parece-me mais fecunda, benfazeja, do que aquele ditame que, ao descrever a artista, assaca-nos as suas origens biológicas. O incomensurável génio da pintora deve muito mais ao seu talento portentoso e à sua obstinada ou árdua procura e afirmação do que propriamente ao facto de ter nascido do pai ou mãe com as origens que tinham.
A esta distância, poder-se-á dizer que Bertina foi, de facto, uma mulher extraordinária. O seu percurso é notável, o seu dom gigantesco, a sua ética e as suas lutas justas e urgentes. No centro de Roma, no ocaso da vida, tinha a seus pés, presidentes e cardeais, embaixadores e ministros, artistas e admiradores, amigos. Vivia entre quadros, com declarações que lhe deixavam nas paredes e uma indómita vontade de sonhar. Era a sua casa-atelier, a sua “casa-bohème”, como a chamou uma outra soberba figura, a crítica literária Luciana Stegagno Picchio.
Bertina iniciara com uma colectiva em 1956 onde expusera pela primeira vez. Morreria exactamente 56 anos depois dessa estreia. A sua pintura tinha uma força alegórica brutal. Quer fosse a que lhe adviesse das figuras espantosas que lhe nasceram das mãos nas suas primícias, fossem os totens que lhe sobrevieram depois ou as cores explosivas que se lhe definem. Foi livre e libertadora, revolucionária e disruptiva, crítica e empenhada, devota do amor e dos seus prodígios. Ainda hoje espantam-me os meninos da Mafalala, ou os retratos, quer das irmãs ou dos seus alunos, ou aqueles olhos municiados de revolta.
Nos seus primórdios pertenceu à ala dos fundadores. A sua pintura dialoga com a poesia de José Craveirinha, Noémia de Sousa ou Rui Nogar, com os contos de Luís Bernardo Honwana, com a fotografia de Ricardo Rangel, com a pintura de Malangatana. É a força dos nossos instauradores. Dos que intuem a moçambicanidade, dos que se afirmam na dissensão em relação ao “status quo”, dos que combatem pela justiça, dos que fazem da luta e da afirmação identitária uma desinência. Um projecto de vida. E nisto existe um halo geracional, indubitavelmente.
Bertina Lopes é também uma pintora intrinsecamente literária. São míticas as suas criações à volta dos poemas de José Craveirinha ou Noémia de Sousa. Aliás, ela afirmava encontrar na poesia de Craveirinha motivos, causas ou razões para a sua pintura. A sua obra é impetuosa, opulenta, transbordante, rica, viva, enérgica, vibrante, faustosa.
Um dos seus deuses tutelares foi Picasso e o seu cubismo. Claudio Crescentini, autor de “Bertina Lopes: tutto (o quasi)” (2013) disse sobre a artista moçambicana: “Após uma primeira esboçada, ainda que delicada, aproximação à arte, a pintura de Bertina Lopes impôs-se, desde logo, pela sua forte figuração expressionista e pelo compromisso político dos conteúdos, arrastados depois por uma subjectiva nova leitura do signo de Picasso”. Mas ela não se tornou epígono dos mestres. Soube criar a sua própria identidade, a sua personalidade, os seus referenciais. Começou por ser visceralmente moçambicana e seria com o tempo profusamente universal. Picasso, Braque, Matisse não impediram a sua originalidade, a sua fulgurante personalidade.
Num concurso para um painel do Banco Nacional Ultramarino (hoje Banco de Moçambique), ganho por Garizo do Carmo, Bertina Lopes escolhe como proposta a história do ritual do lobolo. Escusado será dizer que ela jamais ganharia tal concurso. Craveirinha fez a defesa da sua escolha e da sua ética como artista: “Foste o único artista de Moçambique inteiramente moçambicano na obra que apresentaste”. Aliás, o poeta irá motivá-la a prosseguir nessa senda identitária, “do lugar onde temos os pés”. Estávamos nos efervescentes anos 60.
Bertina estudara em Portugal na António Arroio e na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Regressada ao seu país de origem ensina desenho em escolas da então Lourenço Marques ao longo de 9 anos. Em 1953 participa no concurso anual de artes plásticas. Na sede da Associação Africana dá aulas de desenho e pintura decorativa e dirige a escola de arte infantil da agremiação. Em 1958 faz a sua primeira individual: desenho, guache e óleo. O “Paralelo 20” faz-lhe importantes encómios. Em 1960, na Poliarte, outra individual. Eugénio Lisboa redige o texto do catálogo. Divisa-lhe o “espírito de procura permanente, irrequieto, insaciável”. Afinal, o que irá ser a sua divisa e a sua divícia, a sua herança e a sua facúndia. A figura está no centro dessa busca. O seu grito visceral. Para além do domínio da técnica, da cor ou da expressão, a natureza social da sua expressão.
É dessa época a exposição de 23 óleos quase todos baseados nos poemas de José Craveirinha e Noémia de Sousa numa iniciativa patrocinada pelo Núcleo de Arte. Os dois poetas são a eloquência da revolta, a veemência da luta, a expressão da moçambicanidade. A invenção dessa moçambicanidade. O libelo e a indignação. Bertina dá primazia ao figurativo. Afinal, a poesia de Craveirinha e de Noémia não são o abstracto, antes pelo contrário. Começa a sua afirmação.
Participa em colectivas, faz individuais. Quando o ar se torna irrespirável, nesses ominosos anos 60, decidi partir. Tinha 9 anos de ensino e já era uma artista de gabarito. O seu casamento com o poeta Virgílio de Lemos dissolvera-se, tinham dois filhos. O cerco apertava-se. Primeiro em Lisboa, com uma bolsa da Gulbenkian, depois Roma com uma subvenção da mesma fundação. Conhece artistas, mergulha no meio, estabelece-se longe da repressão. Casa-se com Franco Confaloni. Em 1965 torna-se italiana. Perde a nacionalidade portuguesa.
A sua obra ganha mundo: Lisboa (1961), Porto (1963), Roma (1970), Veneza (1975), Madrid (1976), Badgade (1981), Maputo (1982), Luanda (1983), Praia (1985), por aí fora. Prémios, como Rachel Carson, ou Gabriel Dinunzio. Segue-se-lhe o reconhecimento, a veneração, as homenagens. Se nos anos 50 evocava Luisa Chewene, nos anos 60 Fanisse, nos anos 70 Mussunda, o grito, a súplica, a violência, a noite, o tótem, em 1975 virá o sol, a festa e a esperança. O seu afro país Moçambique sempre de permeio. A morte do Presidente Samora devolve-lhe o grito de revolta em 1986. Ela quer que seja o último. No entanto, sempre as suas raízes, a esperança que sobrevirá nos anos 90, mas também a morte e a pungente evocação do filho Virgílio. Depois o espaço, o seu infinito potencial. A sua identidade aprumada. As suas metáforas. África, essa África adentro. Em Julho de 1994 realiza uma grande exposição em Maputo. Elusiva e ostensivamente colorida, a África da infância refulge nas suas obras. Em 1982 realizara no Museu Nacional de Arte uma importante exposição. Estes serão os dois marcos pós-independência de Bertina em Moçambique. Rui Nogar, num colóquio alusivo à sua obra, aquando da exposição de 82, descreveu: “Nos quadros da Bertina Lopes vemos uma conquista, desespero, ódio ao ódio”. Bertina, acrescentava o poeta, está sempre presente “com violência” na sua obra: a sua tela denota sempre “explosão cromática”, sobretudo “explosão humana”.
Luciana Stegagno Picchio escreveu um dos mais belos textos sobre Bertina: “Antiga como a África dos seus primórdios de fidelidade, moderna e futura como a Europa da sua sabedoria e escolha artística”. Ali estão os signos, as metáforas, as máscaras, os tótemes. Ali está a busca incessante. Ali está a sua identidade. Os rostos e os gritos, a esteira e a serpente, os azuis e os amarelos, os vermelhos, o preto e branco. África sempre, no seu luto perpétuo, na sua noite escura, na sua esperança obstinada. Uma obra ontológica. Bela, onírica, elusiva, ostensiva. Prodigiosa.
Conheci-a nas paredes da AEMO, conheci-a na casa de José Craveirinha e nas conversas com o poeta da Mafalala, conheci-a na cumplicidade com o Rui Nogar. Conheci-a de ouvir Luís Bernardo Honwana falar esplendorosamente dela. Ou nos testemunhos do António Pinto de Abreu que voltava de Roma sempre efusivo, inflamado, ardoroso. Ou do Tomás Viera Mário. Ou da Paola Rolletta, activamente vigilante sobre o destino da sua obra. Conheci-a dos testemunhos longínquos do Virgílio de Lemos. Sabia dos amigos que a visitavam em Roma, que deixavam escrito nas suas paredes as suas profissões de fé, ali onde ela os recebia, no centro da capital italiana, sobre os telhados da cidade, lugar agora órfão dela e da sua obra.
Hoje passam 100 anos sobre o seu nascimento. Sei das declarações de intenções de resgatar a sua obra. Ou dos avisos de que esta, com a sua morte primeiro e depois do Franco, perder-se-ia. Mas nós somos pródigos nos desígnios e incapazes de fazer o que quer que seja. Agora, é tarde. Lá fora publicam-se livros, a sua obra é referenciada, o seu nome celebrado. Aqui, como sempre, ficamo-nos pelas bravatas. Nada fazemos. Nem por Malangatana, nem por Bertina, nem por Craveirinha, nem pela Noémia, nem pelo Fany Mpfumo. Não fazemos por nós. Somos ineptos, acintosamente inábeis. Somos moçambicanamente inadimplentes.
KaMpfumo, 11 de Julho de 2024
Passavam alguns anos e era comum um sketch publicitário que literalmente dizia “saber voar nas asas da história”. Para o delírio dos ouvintes era um slogan que roçava aos píncaros do exagero. Contudo, a nossa companhia de bandeira operava entre as vicissitudes dessa história e as dinâmicas do quotidiano. Os principais protagonistas, contudo, continuavam dignos das menções. Francisco Miranda e outros tantos, se notabilizaram e foram os protagonistas destas peripécias.
Nascido em Goa, no longínquo ano de 1957, na Ilha então colónia Portuguesa. Francisco Miranda era o segundo filho de Francisco Vasco António Miranda e Sousa e de Maria de Jesus da Silveira Lorena Miranda; o ponto de equilíbrio de toda a família. Nenhuma história elucida o não ter sido Júnior. Eventualmente, assumiu, ele próprio, seu destino como Sénior.
Pai trabalhador dos correios e mãe funcionária da Direcção de Exploração dos Transportes Aéreos (DETA), o que explica a paixão pelas asas. Viveu em Nampula, desde os 3 meses e assimilou-se de cultura emakhuwa. Passou a conhecer a história pela língua, gastronomia e aquela natureza esplendorosa. Aprendeu tudo sobre Musa Mohammad Sahib Quanto, Omar bin Nacogo Farallahi e o sultão Ibrahim. Os desígnios e exigências de uma milenar civilização encantaram sua caminhada e fascinaram seus apetites.
Conheci-o jovem, pelos passeios das escolas geminadas Liceu Gago Coutinho e Escola Industrial e Comercial Neutel de Abreu, construídos nos anos 1969-70. Deambulava por entre os jovens da sua idade e mais novos, espalhando uma incaracterística e invulgar rebeldia. O Che Guevara dos nossos tempos. Vezes sem conta, passeava com os inesquecíveis irmãos metralhas. A mangueira sagrada era seu referencial. Ali terminavam todas as disputas e conflitos potenciais. Com ele conheci essa famosa mangueira sagrada. Minha postura apegada a serenidade e a apologia de não-violência, me afastaram, definitivamente, desse local.
Chico tinha uma desenvoltura física de quem vivia carregando pesos. Todavia, não praticava modalidades federadas. Jogava de tudo um pouco e adorava sua bicicleta. Apesar da sua forma mais volumétrica era afável, cavalheiro e impunha respeito aos mais jovens. Criamos uma empatia que perdurou ao longos de décadas. Fez várias confidências, desde o cachorro Camões que perdera um olho em circunstâncias pouco esclarecidas e, desde então, tinha uma pala na vista danificada. Gargalhava com o episódio da cobra verde, completamente inofensiva que estava prostrada num galho de acácia e que, de forma consciente, fora deixada no tampo da mesa da elegante professora de Biologia. Ela desmaiou em plena sala. Estas eram magistrais conversas; episódios que o fizeram cidadão e maturado para posterioridade.
Os estudos sempre lhe foram enfadonhos, apesar de muito inteligente. Questionava métodos e a rigorosa disciplina revolucionária. Vibrou, no entanto, com a liberdade e com o mesmo sol de Junho de que sempre se orgulhou. Chico, assim o designamos como jovem, fez uma opção pela aviação ainda em Nampula. Foi despachante de tráfego e, eventualmente, a empresa TTA foi responsável pela sua formação e contratação. Era uma empresa de fumigação aérea que ajudou e comparticipou na formação aeronáutica de mais de uma dezena de jovens, não só de Nampula, mas de todo o Norte de Moçambique. Outros jovens atingiram o patamar profissional, ingressando nas Linhas Aéreas de Moçambique, LAM, criada em Maio de 1980, e que assumira as obrigações celebradas pela DETA, sua antecessora.
Francisco Miranda se assumiu como homem dos céus, esses que optam por viver mais próximo de Deus do que da vida mundana. Por cima dos extractos, cirros e cúmulos. Vivia sentindo a plenitude da liberdade e dos avanços tecnológicos. Nas alturas, os segredos são disciplina e rigor, postura metódica e responsabilidade. Nosso bom piloto passou a leitor ferrenho de artigos sobre aviação. Estudava seus manuais como poucos. Num ápice, se firmou como parte dos talentos da companhia de bandeira que tem de tudo um pouco.
Os amigos e colegas exaltaram essa mudança. Era como se nós próprios tivéssemos chegado ao cume da terra. Céus eternizados pela amizade e cumplicidade. Depois, seguíamos para o aeroporto para assistir as aterragens e decolagens. Aquela diminuta pista dos antigos dakotas e de aviões de pulverização era, agora, o tapete do Miranda. Aquela mesma pista ruidosa e dos calafrios arrancava aplausos dos passageiros.
Miranda vivia nos céus com um naipe de outros colegas como Carlos Soares, José Cachopas, ambos falecidos, Álvaro Lobo, José Ferreira da Silva, Raul Fernandes, Mamede Habbal, Noormahomed e, com eles, as lindíssimas jovens nampulenses. Ter um amigo de longa data, da cidade capital do norte, não era só um prazer, era a certeza de um voo seguro e agradável. Até aquela caixinha de refeições extra, servia para mostrar a família o que se comia nos ares e que os nossos amigos ofereciam. Voar, a rigor, era o sonho de milhares de moçambicanos.
A guerra de desestabilização agudizava. Viajar por estrada representava a aventura trágica e o próprio calvário terrestre. Região centro era o tira-teimas dos aventureiros. As histórias sobre as atrocidades e os camiões calcinados pelo fogo eram arrasadoras. Convergíamos todos para os céus. Conseguir um lugar nos aviões dependeria de uma “cunha”. Os nossos zelosos aviadores reinventavam a nova fronteira da geografia. Pela primeira vez viajei no cockpit. Adrenalina pura. Ele, ali bem perto, óculos de sol e controlando minhas emoções. Um voo de fazer perder todos os apetites. Todavia, experiência que não ouso repetir, agora que a segurança aérea se intensifica. Nascemos para viver na terra e juntos dos nossos. Aqui as florestas e rios tem outra e rara beleza.
Francisco Miranda subiu pelos degraus da avaliação e se consagrou como destacado piloto Comandante. Se sentou aos manípulos do DC-10. Tempos áureos da companhia. Ouvimos falar da sua habilidade e sangue-frio. Era a fibra nortenha nos céus do mundo. Eram as cartas de correio que o seu pai Miranda tanto selou que viajavam, agora, no porão transportadas pelo Júnior. Antes, eram os sonhos e as vidas de milhares de passageiros que duplicavam a confiança de uma chegada serena e tranquila, mesmo em tempo de turbulência.
Miranda criou cumplicidades com Marcelino dos Santos. Seu tio favorito. Transportou seu ídolo e seus adjuntos centenas de vezes. Falava sobre ele com gáudio, vivacidade e exacerbada emoção. Marcelino lhe enchia as vistas e os egos. Assimilou essa postura de guerreiro intelectual. Combatente aéreo irrepreensível. Copiou os segredos de liderança determinada na tomada de decisões. Reconverteu-se no revolucionário sem bases marxistas, todavia, firme e consequente, como ele próprio dizia com atitude de Amélia Mary Earhart, essa pioneira da aviação no mundo, de quem ele leu com apreço. Amelia Earhart desapareceu no Oceano Pacífico, perto da Ilha Howland, enquanto realizava um voo ao redor do globo, no longínquo 1937. O mundo se rendeu a seus pés.
Escutei, várias vezes, o comentário e a façanha de uma aterragem de emergência e bem sucedida do DC-10. Valeu a bravura do nosso Chico. Os elogios rasgados, se sucederam. Depois, seu nome passou para o radar das grandes companhias do médio oriente e outros quadrantes. A sua LAM estava de sobreaviso. Muitos abandonaram a companhia. Miranda permaneceu. Os tempos viram essa LAM se reconfigurando num mercado pouco favorável. Vieram as mudanças na frota. Contrariado, mantinha visão desse passado de glória. Depois, viu seu filho trilhar seus passos. Era um jovem Bruno Miranda que qualificava no estrangeiro e dava continuidade ao clã Miranda da aviação.
Igualmente, Francisco Miranda chegou a chefe de segurança de voo e instrutor. Mesmo reformado, por imperativos de idade, a sua LAM era a mais notável e indiscutível referência. Vivia preocupado com os novos tempos e dinâmicas. Achava que uma gestão meticulosa faria da empresa um pequeno El dourado no oceano da carestia e ausência de liquidez.
Aos 67 anos e debilitado por diagnósticos pouco consentâneos viu seu corpo minguar e degradar. Recorreu aos especialistas da terra e ninguém conseguiu prover o milagre dos céus. O seu lado mais informal e militante sucumbia. O checklist não condizia com o rigor e critérios mínimos de um voo com segurança. Em tarde de finais do mês de Junho, mês de todas as liberdades, que ele sempre defendeu, o Macua natural de Goa fez a sua aterragem final. Virou estrela. Está onde sempre gostou de viver, nos céus e rodeado de anjos. (X)
“O Governo de Unidade Nacional da África do Sul, liderado pelo Presidente Cyril Ramaphosa, não será de fácil gestão, pese embora, o Líder do Partido DA tenha reconhecido o fim das acusações e início da conciliação. A questão é que são 11 partidos com ideologia e visão diferentes sobre a mesma África do Sul. Entretanto, o facto de o MK liderado por Jacob Zuma não fazer parte do GUN pode tornar a vida deste mais difícil ainda, contudo, é preciso reconhecer que, tendo Jacob Zuma criado o MK por desinteligências com o ANC, seria difícil uma conciliação pós-eleitoral. Deve prevalecer nos partidos políticos a vontade de ver uma África do Sul mais unida e desenvolvida. Vamos esperar para ver.”
AB
“Não nos devemos enganar, pensando que tudo isso será fácil. E não nos devemos deixar levar pela importância do momento, a verdade é que o caminho a seguir será difícil, sabemos que o tempo de confronto acabou, o tempo da colaboração chegou, mas esta colaboração não é apenas entre líderes políticos, é agora também necessária entre o GUN e os que votaram para criá-lo.”
Discurso do Líder do DA John Steenhulsen.
Definitivamente, acabaram as especulações sobre o Governo de Unidade Nacional da África do Sul, que resulta das eleições de 29 de Maio de 2024, em que o Partido histórico sul-africano, ANC, não conseguiu atingir a maioria parlamentar, tendo conseguido apenas 159 assentos parlamentares dos 400 possíveis.
O novo Governo de Unidade Nacional, apresentado na noite do último domingo, 30 de Junho de 2024, integra 32 Pastas Ministeriais. Destas, 12 são para os Partidos da Oposição e os restantes para o ANC, que há 30 anos liderava sozinho o destino dos sul-africanos, mais precisamente desde as primeiras eleições pós-apartheid em 1994, ganhas sob liderança de Nelson Mandela.
De acordo com o Presidente eleito, Cyril Ramaphosa, uma das prioridades do GUN é a “criação de uma sociedade mais justa”. Esta afirmação cria algum ruido, uma vez que, com a abolição do regime segregacionista do Apartheid, esperava-se que os sucessivos Governos na África do Sul trabalhassem, exactamente, para a criação de uma sociedade mais justa. Assim sendo, existe, na minha opinião, alguma incredulidade em relação a esta afirmação.
Não é perceptível que o Governo do ANC, desde 1994 a esta parte, sozinho, não tenha logrado esse sucesso, esperando que o GUN, hoje, possa lograr isso. Aliás, se for a interpretar com honestidade as palavras de John, Líder da Aliança Democrática (DA), fica claro que o sucesso deste GUN depende muito da atitude dos 11 partidos que o integram, o que significa em outras palavras que, antes de mais, é importante a aproximação de posições entre as lideranças do GUN!
Segundo, na minha opinião, entre os membros dos diferentes partidos integrantes do GUN, o que não se afigura tarefa fácil, mas o tempo poderá ditar o sucesso ou não deste Governo de Unidade Nacional, que resulta da perda da maioria por parte do ANC e não propriamente por se considerar que todos devem trabalhar juntos a bem da sociedade sul-africana, o que torna a tarefa um grande desafio.
A indicação, no novo Governo de Unidade Nacional, do Líder do DA para a pasta de Agricultura pode ser o relançamento desta actividade primordial para a maioria dos sul-africanos, do ponto de vista de produção de alimentos. Lembre que, nos últimos anos, a produção de alimentos no território sul-africano tendia a decrescer com alguns farmeiros renomados a deixarem o País. Mas não é tudo, ainda existe o desafio das reformas da terra e a questão é o que fará este novo Governo em relação a isso. Fica o ponto de interrogação.
As outras pastas confiadas ao Partido liderado por John Steenhulsen são: Ambiente, Educação, Assuntos Internos, Obras Públicas e Comunicação num total de seis pastas Governamentais. Com excepção para assuntos internos, as restantes pastas, na minha opinião, assentam como as “LUVAS” nas mãos. O DA pode ajudar a recuperar a confiança na Educação, um sector importante, para um País que esteve muitos anos dividido. O Ambiente e a Comunicação mostram-se relevantes também.
Quanto ao Partido maioritário, o ANC, ao ficar com as pastas das Finanças, negócios estrangeiros, Energia, Polícia e Justiça, entre outros, não sei se fez bem ou mal. Na minha opinião, as Finanças e a Justiça deveriam merecer outra sorte, poderia ser um outro partido, mas o ANC deveria abdicar destas pastas, de modo a deixar outras sensibilidades liderarem. O tempo é o melhor conselheiro, vamos esperar para ver!
Adelino Buque
“Por ocasião do 25 de Junho de 2024, data em que celebramos 49 anos de independência nacional, através do Decreto Presidencial, o Presidente da República distinguiu 1.093 cidadãos, com Medalha Veterano de Luta Armada de Libertação de Moçambique, Artes e Cultura e Ordem 25 de Junho de 2º grau. Nada contra, no entanto, penso que é imperioso distinguir outras camadas sociais, que não estão cobertas pela Luta de Libertação de Moçambique. São 49 anos que passaram e agradecemos pela libertação, continuarão a nos inspirar, mas devemos olhar para aqueles que hoje, nas escolas, hospitais, na administração pública, nas empresas e mesmo os donos das empresas, que contribuem para o engrandecimento de Moçambique, devem merecer distinção. Essas pessoas devem inspirar os mais novos e a distinção dessas figuras poderá trazer, na minha opinião, o nacionalismo que queremos na Juventude, o patriotismo que parece desfalecer.”
“O Nacionalismo é uma ideologia política, uma corrente de pensamento, que valoriza todas as características de uma Nação. Uma das formas pelas quais o nacionalismo se expressa é por meio do patriotismo, que envolve a utilização símbolos nacionais, a bandeira, o hino nacional, etc. Patriotismo é o sentimento de orgulho, amor e devoção à Pátria, aos seus símbolos e ao seu povo. É a razão do amor dos que querem servir o seu País e ser solidário com os seus compatriotas”.
In Google
“Alguns colegas me olhavam como se eu fosse um animal, ninguém me dava uma palavra, os professores pareciam que não estavam nem aí para mim, nem tiravam minhas dúvidas, mas eu me dediquei tanto que depois eles começaram a me procurar para lhes dar explicações e esclarecer suas perguntas”.
In: George Mclauren, primeiro negro na Universidade de Oklahoma em 1948
Hoje, quando queremos falar da independência de Moçambique e o sacrifício que alguns tiveram que fazer para libertar, não são poucos os jovens que não entendem isso. Alguns estudiosos dizem haver em África países que foram colonizados e que tiveram a sua independência sem precisarem da Luta de Libertação, porque o colonizador decidiu dar a independência. São casos de países colonizados pela Inglaterra, França e Itália, mas sabemos, hoje, o quanto custou a alguns países essa independência. É o caso de Burkina Faso, onde as empresas francesas domiciliadas naquele País pagavam seus impostos na França.
No caso de Portugal, as Nações Unidas tiveram que intervir sem sucesso. Na década sessenta, iniciam as guerras de libertação, em quase todas as suas colónias. Ainda assim, Portugal resistiu e não vergou, mantendo a sua mão de ferro na colonização, até que, em Abril de 1974, os capitães portugueses protagonizam a Revolução, que viria a depor o Governo do dia e, por via do novo Governo, iniciam as conversações para a independência das colónias. Devo frisar que as conversações com o Governo Português, resultante da Revolução de Abril, aconteceram numa altura em que muita gente tinha morrido, quer através de massacres, de confrontos e nas prisões do regime.
Isto aconteceu com o exemplo que trago, ao citar George Mclaurin que, em 1948, foi o primeiro negro a ser admitido na Universidade de Oklahoma, sendo que o tratamento a que foi sujeito pode considerar-se uma pequena amostra em relação aos países colonizados. Infelizmente, as nossas escolas deixaram de dar estas lições que, na minha opinião, não precisam ser curriculares. Trata-se de preparação do homem/mulher para a vida em sociedade. As consequências disso, na minha opinião, são visíveis, muitos jovens não têm noção sobre como os moçambicanos ganharam a bandeira e tiveram direito à nacionalidade e Bilhete de Identidade. Para muitos jovens, a nossa liberdade resulta de boa vontade do colonizador.
Quando os políticos falam e dizem que, em 1974, havia uma única Universidade em Moçambique, muitos pensam que é pura política. Hoje, Moçambique tem 23 instituições do ensino superior, sendo 11 do ensino público e 12 do ensino privado e o número de estudantes ascende a 28.000. Temos a classe docente de 1.389 a tempo inteiro em todas as instituições, segundo o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Mas para a nossa desgraça colectiva, são parte destes 28.000 que difundem a ideia de que o País está parado e nada se faz.
Mas é preciso reconhecer que a não valorização das conquistas da nossa independência nacional começa em nós adultos, que não difundimos a nossa história colectiva, se não as conquistas pessoais que, muitas vezes, resultam de locupletamento indevido. É mais fácil exibir-se bens materiais do que exibir-se valores de honestidade, valores de trabalho árduo de solidariedade e de sacrifício pelo bem comum. Hoje, 49 anos depois da nossa independência nacional, quando queremos fazer referência do bem, fazemos recurso à Luta Armada de Libertação nacional, ou seja, depois da nossa independência nacional, não fizemos nada em que nos orgulharmos que seja aglutinador.
Depois da proclamação da nossa independência nacional, seguiram-se guerras fratricidas, com destaque à guerra dos 16 anos, a que denominamos a guerra pela Democracia e até temos um feriado a consagrar o seu fim, 04 de Outubro. Mas nessa data não se vê nada de especial, em termos de educação cívica, em termos de consciencialização dos jovens para a data. Vimos, isso sim, barracas abarrotadas de gente que pernoita lá, gente que, apesar de alguma escolaridade, se perguntares a razão da data, pura e simplesmente, diz disparates. Essa é a nossa realidade hoje.
Hoje, 2024, 49 anos depois da independência nacional, parece-me que o patriotismo é uma palavra oca e sem sentido para muitos, com excepção para os raros momentos em que a nossa seleção de futebol masculino entra em jogo e ganha. Aí sim, vemos a bandeira nacional a flutuar nos “chapas”, nas motas e bicicletas. Parece o único momento que nos une.
Precisamos de mudar este cenário. É importante que mulheres e homens moçambicanos tenham algo que os una, algo que torne as suas vidas conectadas com as vidas de outros moçambicanos, independentemente de onde quer que esteja. É importante que haja um plano comum de desenvolvimento, onde todos nos sentimos parte. Para além dos jovens nacionalistas do 25 de Setembro, precisamos de outros jovens nacionalistas, jovens que falam de desenvolvimento sem tabus e que não tenham medo de ofender quem quer que seja. Precisamos dos heróis de hoje.
Se repararam, no dia 25 de Junho de 2024, foram condecorados cidadãos pelo Chefe do Estado, mas quem são esses cidadãos? Claro que são os libertadores da pátria. 49 anos depois, não há gente para condecorar, as condecorações giram em torno do mesmo grupo social? Algo deve mudar e urge que mude.
Adelino Buque