Vimos o quanto custou, ao longo da Historia, a ousadia de pensar diferente relativamente aos cânones e padrões oficiais. E então qual será o sentido de pensar diferente no Moçambique contemporâneo? Parece que qualquer resposta a esta pergunta implica uma compreensão do que seja “Moçambique contemporâneo”, isto é, o Moçambique do presente.
Como é que se caracteriza o Moçambique de hoje?
O período particular em que realizamos este evento, assinalando o dia mundial da Filosofia, parece caracterizar, de forma muito eloquente, o perfil social e politico do Moçambique contemporâneo. Este conflito eleitoral, em que estamos mergulhados, resume bem o perfil de um país em grave crise geral; de uma sociedade cujo corpo é atacado por um cancro violento; uma sociedade com as suas bases de sustentação abaladas, correndo, mesmo, o risco de, a qualquer momento, desabar!
E que causas estarão por detrás desta crise, cujo desfecho é ainda imprevisivel? Parece que podemos identificar as raizes, as causas desta crise, num sistema de governação absolutamente bloqueado; um sistma de governo inadequado para garantir, minimamente, o cumprimento das três principais funções clássicas do Estado: a segurança do povo; a aplicação da justiça de forma igual para todos, e a promoção do bem-estar económico, social e cultural de todos os cidadãos.
A seguranca do povo e do seu território está gravemente ameaçada, por um lado. Por outro, o povo sente a justiça formal, a justiça dos tribunais, cada dia mais distante de si, e mais gravemente, a justiça social, a justica distributiva, de acesso e beneficio da riqueza nacional, cada dia mais distante, e reduzido a mera quimera.
A marca das desigualdades sociais aprofunda-se a cada dia, com o contínuo aumento do fosso entre um grupo que acumula riqueza de forma ostensiva e por vezes, até escandalosa, e a vasta maioria, que se afunda na mais abjecta miséria. Num texto que publica na sua conta do Facebook, no dia 17 de Novembro corrente, o sociólogo Elisio Macamo faz uma caracterização deste grupo privilegiado, dando-lhe a designação, muito sugestiva, de ““elite do atraso “... uma classe política que vive do acesso aos recursos do estado para a sua própria reprodução – governo e oposição”.
Dias antes, falando no programa “Grande Entrevista” da STV, outro respeitado académico moçambicano, o pedagogo Brazão Mazula, tinha caracterizado este grupo como “alta burguesia que se serve do partido para se enriquecer. (Este grupo) não produz nada e não cria empresas nem empregos; é um grupo que vive longe do povo; está lá (no Partido) por status; para ganhar imunidade...”
É este o Moçambique contemporâneo em que assenta a presente crise eleitoral. E este contexto é sustentado por um discurso oficial que explora até à exaustão a legitimidade histórica, resultante da luta pela libertação da terra do jugo colonial, feito heróico de todo o povo moçambicano, entretanto privatizado por essa minoria predadora, e transformado em sua “muralha da China” com um fim claro: a manutenção do status quo do monopolio geral do poder, em todas as suas acepções.
E em que pode consistir um pensar diferente daquele instrumental à manutenção deste status quo?
Esse pensar diferente vai consistir em abordar, de forma tão honesta e franca quanto possível, as razões da crise profunda em que a sociedade moçambicana mergulhou. Vai consistir em inquirir sobre a qualidade das políticas públicas aprovadas e a consistência da sua implementação. Pensar diferente vai consistir em negar a existencia de Homens, Mulheres, leis ou regulamentos que sejam sagrados, portanto revestidos de intocabilidade bíblica, mesmo que comprovadamente hostis ao bem-estar geral e à vida harmoniosa na sociedade.
Pensar diferente no contexto contemporâneo de Moçambique pode consistir em advogar por um sistema de governo mais representativo dos cidadãos e dos seus legítimos interesses; por um sistema de governo mais adequado a uma distribuição mais equitativa do poder e dos recursos da Nação. Um sistema de governo com instituições menos vulneráveis à captura pelo crime organizado; instituições públicas protegidas de manipulações a favor de agendas e interesses privados, fora da lei e prejudiciais ao Bem Comum. Um pensar diferente apontando para um Estado de direito democrático, que promova a cidadania e politicas ousadamente concebidas para mitigar as desigualdades de género e as assimetrias regionais.
Mas, no presente contexto, este pensar diferente não pode ser expresso livremente, sem consequências. Para todo o pensar diferente; para todo o pensar susceptivel de provocar tremor aos paradigmas oficiais, de questionar de forma fundada o status quo, para esse tipo de pensamento, há-de sempre haver a correspondente.... “santa inquisição”, com o seu séquito de arautos, a que o povo chama de “lambe-botas”. E esta Santa Inquisição” não precisa de ser legal, ou institucionalizada.
Esta “santa inquisição” cobra o custo da “ousadia” de pensar diferente. E o preço pode tomar mútiplas formas, como: a marginalização; a pura ostracização no local de trabalho; o bloqueio ao acesso a oportunidades públicas, como ascensão a cargos públicos;a promoções na carreira; ao acesso a concursos de obras públicas ou de prestação de serviços, entre outras. Tudo como forma de pressão para a desistência ou “rendição” daquele que ousar pensar diferente. E o lema é claro e simples: “doa a quem doer”!
No limite, o pensar diferente no Moçambique contemporâneo pode incluir a quebra das próprias pernas, fracturadas à paulada na berma de uma estrada. Ou mesmo o risco de ser crivado de balas, no escuro da noite, senão mesmo em plena luz do dia.
Concluindo: pensar diferente no Moçambique contemporâneo, não sendo proibido por lei, ele não é, contudo, totalmente gratuito. Sobretudo considerando uma sociedade em permanentes crises e todas mal resolvidas ou, simplesmente, escondidas como poeira debaixo do tapete: aquele que tiver a ousadia de levantar este tapete... deve contar com o risco de lá estar à sua espera um escorpião, pronto para o atacar com o seu venenoso ferrão. Pela sua ousadia!
(Excerto de uma comunicação feita no ambito do dia mundial da Filosofia, assinalado no dia 21 de Novembro de 2024).