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[1975/6 (1986) - 1990/3]

 

Patrício Langa[1] e Jorge Ferrão[2]

 

Este é o segundo de uma série artigos que dedicamos à análise crítica e social do percurso sócio-histórico, institucional, ideológico e filosófico do ensino superior em Moçambique e Angola, por ocasião das celebrações das seis décadas desde a instituição formal deste tipo de ensino em Agosto de 1962.

 

Assim, em forma de decenário, analisámos os processos inerentes à génese e estruturação do ensino superior década a década, com maior enfoque para a realidade moçambicana.

 

No texto anterior, encerramos a análise do período 1962-1975/6, sugerindo que o estabelecimento do ensino superior foi paradoxal na medida em que visava manter o status quo ideológico do regime colonial.[3]

 

Por outras palavras, a universidade instalada em Moçambique e Angola, entre 1962 e 1974, não só era reflexo da sociedade colonial Portuguesa como também da ideia de uma universidade europeia exclusivamente dedicada à reprodução da elite intelectual e académica para a perpetuação de uma sociedade desigual de cariz colonial.

 

Em Portugal, a Universidade de Coimbra era o modelo de universidade não só para aquele país, mas também para a Europa. Coimbra era, para a elite Portuguesa, o que Oxford e Cambridge eram para a elite colonial Britânica. Essas universidades não eram, e em alguns casos continuam não sendo, para as massas ou, como se diz em Moçambique, para o povo.

 

Assim, a transposição da universidade da metrópole para a colónia, metaforicamente designada de província ultramarina de Portugal nos anos 1960, seguiu o mesmo princípio ideológico ainda que com característica sui generis. A universidade na colónia também não era para o povo, muito menos para o povo indígena, no vocabulário colonial, mas para a elite colonial branca da eufemística província ultramarina, reproduzindo assim a estratificação social de carácter ideológico, político, económico, cultural e racial de Portugal.

 

Quando os Estudos Gerais Universitários de Moçambique (EGUM) foram estabelecidos pelas autoridades coloniais, em referência ao antigo termo latino-medieval para uma universidade, Studium Generale, a ideia na origem não privilegiava cursos de orientação tecnológica. No entanto, a transposição da universidade para a colónia enfatiza precisamente a necessidade dos cursos de matriz tecnológica com raríssimas excepções para os cursos de cariz pedagógico.

 

A universidade não visava a reprodução duma massa crítica pensante capaz de questionar o status quo. Pelo contrário, visava a reprodução de tecnocratas para a materialização da diferenciação social e da divisão social do trabalho na sociedade colonial.

 

Os cursos da EGUM eram introdutórios e, assim que os alunos começavam a especializar-se em uma determinada disciplina, deviam seguir para a metrópole para completarem os seus estudos. Após cinco anos, em 1968, a EGUM foi elevada ao estatuto de universidade e institucionalizada com a denominação de Universidade de Lourenço Marques (ULM), passando a conferir graus académicos sem depender, necessariamente, da validação da metrópole.

 

A independência e a nova ordem política

 

A chegada da independência, a 25 Junho de 1975, impôs uma nova ordem político-ideológica e, com esta, uma outra concepção de sociedade e da função do ensino superior na sociedade. A universidade passou a integrar o projecto de construção de uma nova nação e sociedade independente, livre da discriminação com base em ideologias racistas e sexistas, tendo agora como principal função a promoção do desenvolvimento.

 

Neste artigo, dedicamos especial atenção à segunda década cobrindo o período de 1975/6 a 1990/3. Este período corresponde ao início do novo Estado independente, marcado ideologicamente pela tentativa de implantação de uma República Popular e de uma sociedade de cariz político-ideológica e económica socialista.

 

Esta nova realidade desenvolvia-se num contexto dominado por uma ordem social global de clivagem política e ideológica devido à Guerra Fria, com dois blocos dominados um dominado pelos Estados Unidos da América (EUA) e o outro pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que se confrontavam pela expansão do seu modelo de desenvolvimento social, político e económico.

 

O bloco liderado pelos EUA, também designado como Ocidente, seguia e expandia o modelo da democracia liberal, multipartidária, bem como o princípio da economia do mercado como modo de produção económico e social. Por seu turno, o modelo Soviético defendia a via da economia de planificação assente num Estado centralizado e com um sistema político predominantemente monopartidário.  

 

A década em análise tem como característica estrutural esta clivagem global e Moçambique, ao ascender à independência, adopta a via Soviética da economia de Estado centralizada e planificada, bem como um sistema político monopartidário.

 

Esta via conduziu o país até à derrocada do experimento socialista sinalizado pela adopção da segunda constituição de 1990. A nova constituição altera o modelo ideológico do socialismo para o liberalismo, assente numa economia de mercado e num regime de democracia multipartidária. As mudanças no país continuam consistentes com a alteração da ordem social e política mundial na sequência do fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a queda do Muro de Berlim, que dividia a Alemanha Oriental e soviética, – para onde foram estudar e trabalhar muitos de nossos compatriotas – e a Alemanha Ocidental, de orientação liberal.  

 

Ao concentrarmos a análise em cada década, pretendemos amplificar alguns dos acontecimentos e factos marcantes que consideramos terem concorrido para definição do carácter do ensino superior em Moçambique, até ao momento, quando se celebra o sexagenário desta instituição social. Um reparo metodológico importante é necessário sempre que se tenta demarcar eventos históricos com recortes cronológicos.

 

O ano de 1975 marca o corte formal com o regime colonial, ainda que a herança cultural e institucional, como a língua oficial, entre outras formas imateriais de património cultural e institucional, transcendam limites cronológicos.

 

O recorte do fim do segundo decénio também é difícil se atendermos ao facto dos acontecimentos de relevo não respeitarem fronteiras temporais. Em princípio, dez anos após 1975 seria o ano de 1985. No entanto, um dos acontecimentos mais relevantes para o ensino superior neste período, e que merece o nosso destaque, seria o da criação do Instituto Superior Pedagógico (ISP), como a segunda instituição de ensino superior no país, e a primeira após a independência. Logo de seguida, em 1986, nasce a terceira instituição de ensino superior, o Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI).

 

No entanto, 1976 constitui igualmente um marco histórico por ser o ano no qual, a 1 de Maio, a única instituição do ensino superior foi atribuída o nome de Eduardo Mondlane, em homenagem feita pelo Presidente da República Samora Machel ao fundador da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Machel veio a falecer tragicamente   em 1986.

 

A morte de Machel também simboliza um marco histórico, o da derrocada do experimento socialista, que vem a ser institucionalizado com a adopção da Constituição da República de 1990, inaugurando uma nova ordem política, económica e social de cariz democrática e liberal.  Portanto, 1990 como marco histórico-cronológico já não representa um decénio, mas uma quinzena.

 

Para o ensino superior, em particular, o ano de 1993 simboliza a adopção, pela primeira vez, de uma Lei de Ensino Superior que acaba com o monopólio do Estado como único provedor e liberaliza a oferta de bens e serviços de educação superior através da introdução de operadores privados na lógica da demanda e oferta num mercado do ensino superior no qual o Estado passa a acumular as funções de provedor e regulador.  

 

A universidade pós-colonial

 

A década em análise aborda o ensino superior numa sociedade em transição para a constituição de um país soberano. Com a soberania surge a possibilidade de criação ou de transformação das instituições consistentes com a nova visão de um país livre, igualitário e cujo substrato ideológico assentaria num entendimento específico de um Marxismo-Leninismo instituído a partir do III Congresso da FRELIMO (então ainda um movimento de libertação).

 

Neste III Congresso, o movimento libertador transforma-se em Partido Político da Vanguarda Socialista e se assume como o único e legítimo representante do Povo. Neste sentido, todas as instituições do Estado deveriam conformar-se com as directivas do Partido como Guia do Povo.

 

A única universidade existente até então não foi excepção e teve de se conformar com as directivas do Partido como guia omnisciente do Estado, do Povo e de suas instituições. A visão de uma sociedade e das suas instituições guiadas por uma Parte do Todo, que se entendia como legítimo representante do Todo, de antemão, chocava com alguns dos princípios fundacionais universais da ideia da universidade: a autonomia institucional e a liberdade académica.

 

FRELIMO: guia da universidade

 

A ideia de autonomia institucional das universidades e a liberdade académica dos seus profissionais estão no âmago da condição de possibilidade de uma universidade moderna enquanto instituição social global.

 

No geral, o conceito de autonomia universitária descreve e examina as relações de governação entre as autoridades do Estado (Governos, mas também eclesiásticas) e a universidade tanto ao nível de todo o sistema de gestão do ensino superior como ao nível das instituições, como também ao nível da liberdade individual dos académicos de ensinar, pesquisar e comunicar com a sociedade de acordo com os preceitos éticos e deontológicos emanados da própria universidade.

 

A ideia de autonomia não só não é inteiramente transposta da universidade da metrópole para a universidade do ultramar como é imediatamente questionada na nova universidade pós-colonial.

 

A visão da nova administração da universidade, liderada pelo Reitor Fernando dos Reis Ganhão, o primeiro após a independência, surge bem expressa numa entrevista concedida à um jornal da altura:

 

“O conceito de universidade autónoma e independente é impossível. Isto está intimamente ligado a um sistema socioeconómico e político que não pode funcionar num país que está a construir uma via revolucionária. E não se pode permitir que uma determinada organização absorva verbas extraordinárias e esteja a dar a sua orientação independente”.[4]

 

O excerto acima sugere que a universidade pós-colonial em Moçambique ressurge confrontada com um desafio existencial na medida em que um dos seus princípios fundacionais consagrados era questionado pelo partido. Por um lado, a autonomia universitária, geralmente entendida como condição sine qua non para que uma instituição reclame à si esse título, era negada à universidade pós-colonial. Por outro lado, a nova universidade renasce sob a égide da gesta libertária, da autodeterminação e para servir as necessidades do ‘Povo’, como articula o Reitor Ganhão:

 

E não se pode permitir que uma determinada organização absorva verbas extraordinárias e esteja a dar a sua orientação independente. Esta orientação tem de ser dirigida pelas necessidades do povo e só ela estando realmente dentro desse processo impulsionado pelas massas populares através do partido pode participar no processo revolucionário’’.

 

Ao lermos estes excertos do pensamento do período revolucionário é importante colocar o texto no contexto e evitar uma análise anacrónica e normativa. Em 2022, aos celebrarmos 60 anos do Ensino Superior e 47 da independência nacional, pode-se ficar tentado a julgar o pensamento de outrora como um erro óbvio. Os termos da análise social não se confundem com os do julgamento.

 

O que nos parece facto histórico relevante é que a euforia da independência, no contexto ideológico global já descrito, não permitiu que se pudesse conceber uma universidade sob égide de princípios universais de independência e autonomia da universidade como um tipo de instituição. Esse é facto histórico e, não necessariamente, um contra-senso.  

 

Na leitura da FRELIMO, traduzida nas palavras do Reitor Ganhão, parece que existia um paradoxo entre os princípios da revolução socialista e aqueles da independência e autonomia universitária, como se pode ler no excerto que se segue:

 

Permitir que uma Universidade de isole, se enclaustre, fique anquilosada, em determinados princípios para defender determinadas tradições de pseudo-independência não creio que isso seja compatível com a via revolucionária’’.

 

Parece paradoxal que os receios de uma universidade autónoma expressos pelo Reitor em 1975, até certo ponto, ainda se mantêm, não obstante as mudanças ocorridas no decurso de quase cinco décadas. Ainda que as universidades, em particular as públicas, tenham formalmente em seus estatutos a autonomia como um princípio fundamental, a materialidade da experiência sugere limites à autonomia que carecem de análises mais profundas do modus operandi, bem como do grau e consequências do seu cerceamento.

 

Do ensino superior da FRELIMO à FRELIMO do ensino superior

 

A FRELIMO celebra este ano o seu 60º aniversário, data que coincide com a da celebração da independência nacional a 25 de Junho. Moçambique tem na FRELIMO o seu ADN. A análise do pensamento da FRELIMO, e de seus membros, enquanto movimento e indivíduos movidos pela gesta libertária, é fundamental para compreender a formação social das instituições do país.

 

O que se tornou ensino superior nos primórdios da independência é, grosso modo, reflexo da (di)visão do mundo da FRELIMO.  É legítimo, por isso, conceber o ensino superior, nesta fase, como sendo o da FRELIMO. O produto desse ensino superior, por seu turno, gerou não apenas uma nova FRELIMO, isto é, aquela que resultou da formação no ensino superior, como também uma nova sociedade moldada pelas políticas públicas e acção governativa dos diferentes governos da FRELIMO.

 

No período em análise, o Governo da FRELIMO foi, maioritariamente, liderado pelo seu segundo Presidente, Samora Machel, desde 1975 até sua morte a 19 de Outubro de 1986, num fatídico acidente de aviação nas colinas de Mbuzini, na vizinha África do Sul. Graça Machel, esposa de Samora Machel, foi quem dirigiu, neste período, o Ministério da Educação no qual as políticas públicas eram formuladas.

 

A Universidade Eduardo Mondlane (UEM), até então única instituição do ensino superior, a qual se vieram juntar o ISP, em 1985, e o ISRI, em 1986, era tutelada pelo Ministério da Educação de onde emanavam as directivas para a governação da instituição.

 

O ensino superior da FRELIMO, podemos concluir, foi produzido nos primeiros anos da independência quando a FRELIMO era o único guia da universidade e do país. Essa FRELIMO produziu os primeiros quadros nacionais através das suas políticas de formação ao nível nacional e internacional, por via dos acordos de cooperação que viram vários compatriotas seguirem para formação no exterior, em particular nos países do leste de orientação socialista.

 

Desde a ‘sacrificada’ geração 8 de Março – cujo perfil académico e profissional foi directamente afectado pelas políticas de afectação nas áreas de estudo e de trabalho consideradas prioritárias pelo governo, subalternizando os sonhos e escolhas individuais – até à adopção da Constituição de 1990, podemos falar de um ensino superior da FRELIMO. A FRELIMO era o Guia do Povo.    

 

A FRELIMO do Ensino Superior surge, a posterior, do impacto das ideias e acções dos quadros que a FRELIMO formou, sobre a própria FRELIMO como organização, mas também sobre o sistema do ensino superior e da sociedade no geral. As duas faces, a do ensino superior da FRELIMO e a Frelimo do ensino superior, são objectos de estudo importantes para compreendermos a relação entre o ensino superior e a sociedade moçambicana passadas seis décadas.  

 

Afro-moçambicanizar a universidade

 

Os novos governos africanos herdaram instituições coloniais que não tinham a confiança do público. Essas instituições eram vistas como instrumentos de opressão. Com a independência, as instituições de ensino superior, nos países africanos, procuraram reformar-se de modo a responder ao que entendiam ser a nova missão no contexto de um país soberano.

 

Após a independência, a universidade além da função da formação de quadros foi concebida como instrumento para a construção de uma nova nação moldando nos jovens de todo o país uma nova identidade nacional e um processo de africanização da universidade até então concebida como instrumento de dominação colonial europeia.

 

No caso de Moçambique, a política do ensino superior da FRELIMO visava a moçambicanização da universidade, começando pela atribuição do nome do fundador da FRELIMO considerado o arquitecto da unidade nacional dos moçambicanos, Eduardo Chivambo Mondlane.

 

Como outras universidades africanas, o principal papel da UEM era o de contribuir para a construção da nação moçambicana através da formação de quadros nas diversas áreas de saber para os diversos sectores de actividade, particularmente no aparelho do Estado.

 

Moçambicanizar a universidade, portanto, significava não somente alterar a sua denominação, visão e missão, mas também a sua função social e, como diria Severino Ngoenha, nosso filósofo-mor, o seu estatuto axiológico. Iniciou um processo de reformas da universidade a todos os níveis, sobretudo a nível organizacional, funcional, curricular e cultural, de modo a continuar com a tarefa de forjar uma nova identidade nacional.

 

Todo este empreendimento iria requer da universidade e do governo um esforço gigantesco em termos de recursos materiais, financeiros e de pessoal qualificado. Tudo isto numa altura em que o ensino superior em África entrava para uma das suas maiores crises existenciais, como iremos abordar a seguir.  

 

A crise dos anos 1980s

 

Em 1986, o Banco Mundial reuniu-se, em Harare, com Reitores de universidades africanas. A mensagem era clara, aconselhar aos Reitores que fazia sentido económico encerrar as universidades nos países africanos recém-independentes e delegar a formação dos seus recursos humanos às universidades no ocidente.

 

Por razões que se pode descortinar, uma vez que tal medida tinha implicações directas para os próprios Reitores, que deixariam seus cargos pomposos, estes prontamente se recusaram a acatar a recomendação. Incapaz de convencer aos Reitores e governos de seus países a encerrar as universidades, o Banco Mundial mudou de táctica e introduziu uma nova estratégia de passar a condicionar a ‘ajuda’ (na verdade um presente envenenado) às reformas do sector. A receita passou a ser a liberalização, a privatização e até a mercantilização do ensino superior, com consequências estruturais profundas até à actualidade.

 

Pedro Guiliche, um promissor cientista político moçambicano, lançou, no âmbito das celebrações dos 60 anos do ensino superior, uma obra na qual disserta sobre a intervenção do Banco Mundial no ensino superior em Moçambique e as consequências perversas das suas políticas no sector. O valor da obra de Guiliche, mais do que criticar as políticas do Banco Mundial como quase todos o fazem, reside no contributo que faz ao campo de estudos do ensino superior no país, por nós fundado e, por isso, ainda numa fase bastante incipiente. Guiliche analisa as consequências desmobilizadoras da acção endógena da política pública e a subordinação a uma agenda externa com carácter de determinismo tecnocrático que despolitiza a acção dos actores locais e torna o sistema um objecto de intervenção externa para correcção de patologias diagnosticadas pelo próprio jargão conceptual do Banco Mundial.

 

Mergulhados numa crise económica sem precedentes, a seguir à crise petrolífera dos anos 1970s e 1980, os países africanos sucumbiram aos ditames do Banco Mundial e abriram o sistema do ensino superior ao jogo do mercado guiado por princípios de um neoliberalismo de Margaret Thatcher e Ronald Reagan sem precedentes, que vêem na educação um bem-privado, em termos de investimento e benefícios, e uma mercadoria passível de ser regulada pelo princípio da mão invisível e pelas leis da procura e oferta do mercado.

 

O fim do experimento socialista

 

O fim do experimento socialista do ensino superior em Moçambique é, legalmente, marcado pela aprovação da Lei n.º 6/92, de 6 de Maio, que procedeu ao reajustamento do quadro geral do sistema educativo e aprovou os principais objectivos e estrutura do Sistema Nacional de Educação na República de Moçambique. A Lei n.º 1/93, de 24 de Junho, regula a actividade do ensino superior na República de Moçambique. Foi a partir destes dois instrumentos legais que se criou o espaço para o surgimento de entidades privadas provedoras de serviços e bens educacionais ao nível do ensino superior que serão objecto do próximo texto, combinando o período 1993-2003.

 

(Série: Continua)

 

[1] Sociólogo, Professor de Estudos de Ensino Superior

[2] Pesquisador Socioambiental, Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo

[3] Vide: https://cartamz.com/index.php/blogs/item/9719-o-decenario-do-ensino-superior-mocambicano-1962-1972-5-6-da-genese-ideologica-do-status-quo

[4] Entrevista de Areosa Pena com Fernando Ganhão, 17 Janeiro de 1975, Jornal Kapital. Disponível Online: https://www.mozambiquehistory.net/education/higher_education/19750117_frelimo_sera_guia_da_universidade.pdf   

terça-feira, 15 novembro 2022 12:29

Os bolseiros moçambicanos no estrangeiro

Um post no Facebook, há uns três meses, a pedir informação a quem a tivesse sobre o paradeiro de um amigo na infância que, a partir de uma das escolas secundárias do distrito de Chibuto, fora para Cuba, em 1977, prosseguir os seus estudos, o Firmino Salvador Mabasso, valeu-me uma grande aproximação formal à Associação dos Antigos Estudantes em Cuba. Grande mesmo, se bem que com muitos deles já desenvolvera uma grande relação de amizade e de cordialidade. Agradeço o acolhimento, consideração e tratamento. Espero, porém, o deferimento do meu pedido de ser membro honorário da Associação!

 

De tal sorte que acabei sendo um dos convidados ao colóquio havido em Maputo, no dia 12 de Outubro, que serviu para assinalar o 45º aniversário do envio dos primeiros 1200 estudantes para aquele país da América Latina ‘ uma vez mais, o meu profundo agradecimento. Sobre esse evento, há poucas semanas passei aqui o resumo.

 

Desde então, ando sem muito sono. E o que me inquieta é que de lá fiquei a saber, de entre muitas outras coisas importantes, que, ao longo de todo o processo, 17 mil compatriotas foram parar na terra do Grande Fidel Castro, em prossecução de estudos em várias áreas. Estes tantos moçambicanos para lá foram, estudaram e quase todos, senão todos eles mesmo, voltaram ao país e deram o seu contributo. Uns, nas ‘diversas’ áreas em que foram formados… outros, nem tanto. Pelo que se disse, estes quadros estão espalhados por todas as áreas e por todos os distritos do nosso país. Até aqui, tudo muito bem. O que já me atravessa a garganta é a sensação que tenho de que o país não fez (e não está a fazer) o devido aproveitamento dos tantos quadros que mandou para Cuba… e não só!

 

Vezes sem conta, foi-nos dado a conhecer que a quantidades consideráveis de compatriotas foram atribuídas bolsas de estudo para diferentes países do globo. Para todo o Mundo. Cuba foi um deles. Mas lembro-me de ter ouvido também sobre a ida de estudantes para RDA - não aqueles que para lá foram trabalhar, como mão de obra -, mas os que foram prosseguir estudos, formar-se em diversas áreas também! Creio que existem/existiram às centenas! Para a URSS (para os macacos velhos); para a China, a República Popular; para a Bulgária, Jugoslávia, Checoslováquia, Hungria, Polônia e Romênia - alguma desta nomenclatura só os macacos velhos e que vão entender!… para todos estes sítios mandamos estudantes para se irem formar. Às centenas e centenas. Para Índia, Europa, África, Ásia… para todo o lado, mandamos a nossa juventude estudar. Até aqui, maravilha! Tudo muito bem! Para desenvolvermos o nosso país, precisamos de gente bem formada, com conhecimento, com saber, com ciência e este (o saber/a ciência) não conhece país de proveniência!

 

As questões que me avacalham a cabeça são: temos dados estatísticos destes envios todos nalgum lugar? Temos alguma base de dados que nos diga quantos jovens mandamos para que país ou países? Estudar o quê? Todos regressaram? Que aproveitamento o país fez/faz desses compatriotas? Há memória institucional sobre todos estes processos? Se temos, está depositada onde? No caso de existir, pesquisadores e ou o público em geral podem ter acesso?

 

Lembro-me de ter ouvido que em Cuba, na União Soviética e na RDA mandamos formar os melhores agentes dos serviços secretos que um país pode ter. Mas também mandamos formar militares de grandes qualidades e capacidades. Fizemos o devido aproveitamento? Podemos ter feito, no devido momento e a idade não para… mas, continuamos a fazer - há coisas que independentemente da idade as pessoas podem continuar a fazer? Já não têm proveito nenhum? Não têm? Parte daqueles 17 mil estudantes já não tem proveito? É isso mesmo? Como é que não têm se o país foi apanhado de surpresa numa guerra fratricida de terrorismo? Ninguem, mas ninguem mesmo, foi capaz de alertar o pais que vinha ai o terrorismo que hoje nos mata a alma, mas… temos gente formada e desmobilizamos!

 

É certo que os mandamos para casa a comprar a paz com a Renamo, mas nada obsta que esses quadros fossem recolocados nas especialidades que o país muito continua a precisar.

 

Continuamos com imensos desafios de desenvolvimento, na educação, na agricultura, nas indústrias e… nos hidrocarbonetos! E dizemos que não temos pessoas formadas! Há uns anos, ouvi que estávamos a mandar estudantes para Angola, para irem estudar petróleos… onde estão? Voltaram? Foram colocados onde? Nunca mais ouvimos nada…Não que o Estado deva empregar todos os quadros a quem dá bolsa de estudo, mas que fizesse o devido aproveitamento… para além do necessário registo!

 

Sem base de dados, sem registo estatístico sério, científico,  sem cadastro profissional, não faremos muita coisa neste nosso desiderato de desenvolvimento do nosso Moçambique!

 

ME Mabunda

A empresa Caminhos de Ferro de Moçambique acaba de presentear os citadinos e provincianos de Maputo com automotoras e carruagens de transporte de passageiros. Já não era sem tempo!... Relançou linhas que estavam interrompidas há anos a fio e lançou algumas outras novas e introduziu novas paragens.

 

Lançou ou relançou as linhas Matola Gare-Maputo-Matola Gare; Marracuene-Maputo-Marracuene; Boane-Maputo-Boane. Isto é, do centro da capital para as redondezas! Na linha Matola Gare - Maputo - Matola Gare, faz paragens nos bairros Malanga, Infulene, Machava, Liberdade, Daniel e Matola Gare; na linha de Marracuene-Maputo-Marracuene, para em Cabine “B”, Infulene, Bairro do Jardim, Mavalane, Gare de Mercadorias, Bairro Ferroviário, Dona Alice, Romão, Chicabele, Albasine, Jafar, Papucides e Marracuene!

 

Trata-se, sem dúvidas, de um grande alívio, há muitíssimo tempo esperado e desejado, para todos os maputenses, moradores nesses bairros e trabalhando na cidade de Maputo, ou, o contrário também, morando na cidade e trabalhando nalgum desses bairros. Grande alívio igualmente das muitas enchentes que se verifica(va)m em qualquer que fosse a paragem! É, sem sombra de dúvidas, uma grande alternativa aos “chapas”, my loves e, mesmo, aos autocarros. Uma alternativa segura, prática, firme e rápida: de Maputo para Matola Gare, a viagem dura 31 minutos; de Maputo para Marracuene, 56 minutos; e para Boane uma hora e 9 minutos! Melhor que isso não pode haver!...

 

A empresa CFM retomou igualmente o transporte de passageiros Maputo - Chicualacuala - Maputo, interrompido devido à pandemia do coronavírus e anunciou a retomada da linha de Ressano Garcia e depois Nelspruit. Sem dúvida alguma, um grande passo para o desenvolvimento da nossa economia. A circulação de pessoas e mercadorias é o sangue… de uma economia!, como dizem os estudiosos da área.

 

Não sei como certificar esta suposição…, mas estou muito convencido que as enchentes nas paragens em Maputo vão reduzir ou já reduziram consideravelmente; e certíssimo que os utentes das linhas de Chicualacuala e Ressano Garcia voltam a dispor de uma muito boa opção de transporte no lugar dos desconfortantes “chapas”.

 

Tudo isto é muito bom para Moçambique, para o nosso espírito e alma: dói - a mim dói bastante - ver enchentes e enchentes em cada paragem, nossos compatriotas esperando uma eternidade ou guerreando por um meio para chegar ao serviço ou para  regressar a casa após uma jornada bem dura. Gostava que a empresa CFM, mais cedo do que tarde, nos desse estatísticas destes transportes que acaba de introduzir. Quantos passageiros levou por mês, para onde, qual foi o percurso com mais utente, etc.

 

Os cidadãos já podem evitar os malditos “my loves” e chapas, muitas vezes responsáveis por acidentes de viação, e saírem e voltarem condignamente de e para as suas casas! Outrossim, podemos dar uma saltadinha a Chicualacuala… comprar gado bovino! 

 

Está de parabéns a empresa Caminhos de Ferro de Moçambique. Isto, sim, ajuda o país a crescer, porquanto contribui para o aumento da produção e da produtividade. O trabalhador já pode chegar a tempo e horas, ou mais cedo, ao seu local de produção, bem disposto e bem aprumado! Ao contrário da caótica situação com os my loves! E, inversamente, já dá para chegar a casa mais cedo…

 

No entanto, da empresa CFM pedimos e esperamos muito mais. Os desafios dos transportes no nosso país são gigantescos e precisam de soluções muito esforçadas, de muito sacrifício e ousadia. Bastantes mais moçambicanos precisam dos seus produtos - precisam deslocar-se a destinos com facilidade, ou transportar/enviar mercadorias. Sabemos que em breve vai levar alegria às regiões centro e norte do país, disponibilizando automotoras e mais carruagens de transporte de passageiros e de carga. Gostaríamos de ver, o mais rapidamente possível, (sor)risos em Sofala, Manica, Zambézia e Tete; risos e sorrisos na populosa Nampula. Tal como em Maputo, gostaríamos de ver abrangidos os grandes destinos tradicionais, mas também outros novos e a abertura de mais estações! Moçambique merece.

 

Pedimos, humildemente, duas coisas mais: (i) que retome outras linhas que outrora serviram a economia de Moçambique; e (ii) que construa mais linhas férreas pelo pais.

 

Se reconstruisse e reintroduzisse a linha Quelimane - Mocuba - Quelimane, seria um grande contributo para o impulsionamento da economia da província da Zambézia e da zona centro no geral. Ou uma linhazinha partindo de Chicualacuala para… Inchope! Estaríamos a começar a ligar, ferroviariamemnte, o nosso belo Moze!...

 

Sonhemos, Irmãos.

 

ME Mabunda

Um centenário parece uma eternidade que esta imerecida lógica da vida impõe sobre a humanidade e nos condicionou às ausências infinitas. A mão invisível persuade-nos a abdicar da presença dos líderes que pavimentaram os caminhos de verde para deixar passar a liberdade e o futuro. De forma prematura, teríamos adorado seguir a revolução, ainda devotados pelas memórias e serenidade poética de Agostinho Neto. Foi como se uma estrela se tivesse escurecido no espaço celestial. 

 

Fiz parte do grupo que saiu para as ruas para receber o Presidente Agostinho Neto, na sua última visita a capital moçambicana. Ele era discreto e exagerado nas suas aclamarias. O oposto de um Samora vibrante e extrovertido. Vimo-los abraçados e em franca cavaqueira. Algumas vezes, mais comprometidos e serenos. Uma cumplicidade que escondia uma amizade que se reconfigurava em irmandade.  Meses depois, a força desse inapelável destino roubou, de todos nós, esse lutador intransigente, com visão profética e mobilizadora. O líder que frequentou mais cadeias e celas políticas, que qualquer outro da sua época. Como prisioneiro político, deambulou por Luanda, Lisboa, Cabo Verde, entre Santo Antão e Santiago e, novamente, Lisboa.  Mas não era a ele que se prendia, mas sim aos seus poemas. Como se pudessem colocar algemas nas suas palavras.

 

Nenhuma masmorra, ainda assim, o privara de escrever esses proféticos poemas que denunciam as amarras e amarguras de um povo que vivia subjugado e oprimido. As prisões de Agostinho Neto desencadearam uma incontestável onda de protestos e de petições, de inúmeros intelectuais, de entre os quais o célebre filósofo francês Jean Paul Sartre; quem diria. Outros celebres intelectuais e artistas, apelaram, igualmente, a sua libertação, como se uma onda de grandes proporções e comoções tivesse invadido os corações de André Mauriac, Aragon e Simone de Beauvoir e, ainda, do prestigiado Nicolás Guillén, poeta cubano. A indignação não deixou de fora o pintor mexicano Diogo Rivera. Tamanho reconhecimento ditou que António Agostinho Neto fosse eleito o prisioneiro político do ano pela Amnistia internacional.

 

Já nos trajes de Presidente da República de Angola, Neto Kilamba, pseudónimo que o consagrou esse médico de profissão, poeta por vocação e iconoclasta líder revolucionário por missão, colocou Moçambique no topo das suas prioridades. Com Machel, sofreram juntos as agressões belicistas da África do Sul racista e da Rodésia de Smith.

 

As visitas de Estado entre Angola e Moçambique se regavam sob o manto da fraternidade. Por isso, Agostinho Neto tem o seu nome associado a toponímia nacional moçambicana, numa auspiciosa avenida no coração da cidade de Maputo. Igualmente, centenas de aldeias mais recônditas ostentam seu nome. Pelo menos, 36 escolas primárias e secundárias de Moçambique tem Agostinho Neto como seu patrono. A empatia e simpatia que granjeou no seio dos moçambicanos alimentaram esse caudal, tão devoto, de memórias que continuaram sendo invocadas entre distinções e designações. Agostinho Neto vive e se imortaliza como líder estrangeiro, patrono do maior número de escolas em Moçambique. Não deve ser obra do acaso.

 

O poeta e presidente que trouxe a independência à Angola foi dos mais proeminentes e carismáticos líderes africanos. Ombreia nesse estatuto com tantos outros intelectuais e líderes como Eduardo Mondlane, Samora Machel, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos ou, ainda, com Léopold Senghor, Patrice Lumumba e Kwame Nkrumah. Também eles, rendidos e impregnados de veia e pensamentos utópicos, com uma dose de pragmatismo e humanismo. Agostinho Neto, sonhou Angola e todas as antigas colónias portuguesas como territórios e espaços livres e independentes, como Estados de justiça social, nações prósperas e unidas pela irmandade e solidariedade, educadas e, sobretudo, democráticas.

 

A meio da azáfama das eleições no seu próprio país, das cerimónias fúnebres de seu sucessor José Eduardo dos Santos, da fatídica guerra da Ucrânia e de outras intermináveis reuniões partidárias, ficamos, todos, devendo uma homenagem ao saudoso António Agostinho Neto, no seu centenário. Uma espécie de missa reconciliatória e purificadora. Um reencontro com os fundamentos dos nossos Estados e com os sonhos que seguiram outros rumos e horizontes. Ele próprio escreveu, em tantos poemas, que nunca se esta só e nem se deve ignorar a presença do outro; todavia, parece abandonado e sem convicções, no mausoléu que o alberga para que jamais desapareça do nosso imaginário.   

 

Parece, pois, imperdoável que esta amnésia colectiva e ausência de pronunciamentos públicos e de outra índole, não sejam, por conseguinte, merecedores da indignação. Como nos alheamos a esse espírito revolucionário que serviu de menu para a nossa caminhada inicial? Não creio que seja, simplesmente, pela cultura de esquecimento que esta celebração ficou invisível, pois, não pode existir tanto descaso, sem razão, que omita a celebração deste centenário. Fomos presunçosos e, marcadamente desatentos, por quaisquer que sejam as razões.

 

Mesmo que não queiramos fazer-lhe aqui a biografia, seria incontornável reviver seu percurso, desde esse longínquo 17 de Setembro de 1922. Foi no Município do Icolo, Bengo, arredores de Luanda que tudo começou. Ali foi enterrado o cordão umbilical e o jovem António viu a luz do sol pela primeira vez. Oriundo de uma família já assimilada e com créditos evidentemente reconhecidos, seu pai, Agostinho Neto, era pastor metodista e catequista da mesma missão metodista americana, em Luanda. Sua mãe, Maria da Silva Neto, por outro lado, era professora primária. Se aglutinavam os condimentos para que o jovem António enveredasse e revelasse sua apetência pela literatura e rigor escolar.

 

Ele foi educado para saber usar o verbo na sua plenitude.  Esse mesmo poder da palavra o transformou e marcou profundamente a sua personalidade e irreverência. Do poema à utopia revolucionária foi um passo subtil e mágico. Essa utopia o personificou e fez dele jovem inconformado, atento as dinâmicas do seu povo, alguém que não se evadia da realidade e do sofrimento, e que referenciava, nas suas quadras e estrofes, a realidade que o circundava. Emancipou-se e jurou usar essa mesma palavra para combater, sem tréguas, a descriminação e o colonialismo. A deambulação de seus escritos e a tonalidade de suas palavras, converteram-lhe naquele sujeito poético que a humanidade testemunhou e que lutou contra a ordem existente até a independência de Angola.

 

Amadurecido pelas circunstâncias e com o apoio da igreja metodista, foi uma lança que desferiu golpes contra o regime colonial português. Importante salientar a igreja Metodista como a mesma igreja que ajudou tantos outros nacionalistas a prosseguirem seus estudos para melhor combaterem a presença colonial em seus países. Nem mesmo a Congregação dos Padres Burgos ou mesmo Jesuítas teve tanto impacto na preparação e financiamento de estudantes nacionalistas. Eduardo Mondlane teve e recebeu o mesmo apoio.  Não se pode, portanto, dissociar o papel e a responsabilidade da igreja metodista no apoio aos processos revolucionários nas ex-colónias portuguesas.

 

Neto Concluiu o Liceu “Salvador Correia”, em Luanda, onde terminou o 7º ano em 1944, e partiu para Coimbra, Portugal, onde frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e depois Lisboa. A capital portuguesa fervilhava e transbordava a lava de vulcão da revolução. As dinâmicas propiciaram o momentum e os espaços para que a militância política ganhasse suas letras de ouro e glória. Por ironia do destino, o controlo da polícia política portuguesa fraquejou e permitiu que Lisboa se convertesse na sede embrionária da subsequente revolta anticolonial.

 

Em 1947, António Agostinho Neto integrou o movimento dos jovens intelectuais de Angola, cujo lema era vamos descobrir Angola. Associou-se aos não menos carismáticos Lúcio Lara e Orlando Albuquerque, publicando seus textos iniciais nas revistas Momento e Mensagem, que pertenciam aos órgãos da associação dos naturais de Angola. Casou-se, mais tarde, com Maria Eugenia Neto, seu maior amor e mulher, com quem partilhou todas as cumplicidades que, igualmente, visitou Moçambique, passeando todo o ar da sua descrição, generosidade e sabedoria. Eles tiveram três filhos, sendo Mário Jorge Neto, o primogénito, depois, Irene Alexandra Neto e, finalmente, a Leda Neto.

 

Os seus exímios poemas e a colectânea de textos publicados, insuflaram as mentes e o sentimento libertador. Pelos seus dedos e caneta, transfigurava a vontade de libertação. Neto foi esse esclarecido homem de cultura para quem as manifestações culturais tinham de ser, antes de mais, a expressão viva das aspirações dos oprimidos e a arma para a denuncia da injustiça e crueldade colonial. Um exemplo a seguir pelo simbolismo que representa e pela multiplicidade de acções que desenvolveu.

 

Em 1956, fundaram-se, nos arredores de Luanda, em Angola, vários movimentos patrióticos para formar o MPLA. A 4 de Fevereiro de 1961, as prisões de Luanda foram assaltadas por homens munidos de catanas e armas de fogo. Algumas das quais capturadas em acções anteriores. Mesmo sem lograrem os intentos, estava lançada a primeira salva da luta armada que se alastraria pelo solo angolano. A resposta dos portugueses foi cruel. Bombardearam aldeias e milhares irmãos angolanos sucumbiram aos métodos mais horrendos do colonialismo.

 

Em 1962, sai, de forma clandestina, de Portugal e se estabelece em Léopoldville, Kinshasa, onde o MPLA tinha já a sua sede. O primeiro congresso do MPLA elegeu Ilídio Tomé Alves Machado como seu primeiro presidente, permanecendo em funções até ser preso, em 1959. Foi substituído pelo secretário-geral, Mário Pinto de Andrade, que exerceu o cargo entre 1959 e 1960. Em 1963 foi declarado Presidente do MPLA, substituindo Mário Pinto de Andrade. No interior de Angola, outros movimentos libertadores faziam já a sua luta, a UNITA, de Jonas Savimbi e o FNLA, de Holden Roberto.

 

Ao poeta António Agostinho Neto foi-lhe atribuído, em 1970, o prémio Lótus, pela Conferência dos Escritores Afro-asiáticos. Publicou vários livros cujo substrato e pendor exaltavam o sonhar e lutar pela independência. Ainda hoje, guardo um dos seus poemas, a bom rigor, dos meus substratos favoritos. Este poema foi musicado por Rui Mingas. Minha Mãe/tu me ensinaste a esperar/como esperaste paciente nas horas difíceis/mas a vida matou em mim essa mística esperança/eu não espero/sou aquele por quem se espera. Agostinho Neto revelava e recorria a metáfora da Mãe, como representação da pátria e como o centro de toda a sua narrativa. 

 

Tive o ensejo e prazer de ler um texto escrito por Beto Van-Danem, enquanto encerrava minhas memórias sobre António Agostinho Neto. O autor recorda episódios pitorescos que mostravam a grandeza e personalidade de Agostinho Neto. Era existente e transparente. Só isso permitiu que se mantivesse leal a uma gestão digna, criteriosa, rigorosa e exemplar. Ele entendeu a liderança partidária como uma forma de servir ao povo e não de se servir do Estado. “O Neto era um homem honesto, não vivia deste país e é por isso que morreu pobre”, comenta Van Dunem. Saudades desse tempo e da justeza do movimento pós-colonial.

 

Ninguém ousou jamais questionar, ao longo dos anos, sobre a possibilidade de Agostinho Neto ter deixado contas no estrangeiro. Elas simplesmente nunca existiram. Neto morreu com a roupa que tinha no corpo. Não tinha dinheiro, concluiu Van Dunem. Era, convenhamos, um Machel numa versão Atlântica.

 

Neto partiu quatro anos depois de ter sido proclamado Presidente. Para trás, uma única mancha que pode ter marcado seu brilho: 27 de Maio de 1977. A forma como os revolucionários responderam a um movimento interno e uma alegada tentativa de golpe de Estado. Angola já se retractou, mas as mágoas ficaram muito para além do por do sol. Aqui estão os 100 anos de uma vida plena e tumultuada, uma poesia profética, porém, verdadeiramente, instigante.

 

António Agostinho Neto e seus camaradas e amigos de sempre, Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Eduardo Mondlane, Samora Machel, Marcelino dos Santos, Orlando Albuquerque, Ilídio Tomé Alves Machado e tantos outros, incluindo Jonas Savimbi, já tiveram tempo de prestar as contas a divindade e recebem as últimas notícias de José Eduardo dos Santos. Os tempos são adversos onde a revolução e os revolucionários perderam a centralidade e os novos ventos aniquilam os anseios de outrora. Os líderes revolucionários, parafraseando Machel, nunca morrem, porque ganham o tamanho e estatuto de um povo. Povo nunca morre. (X)

segunda-feira, 19 setembro 2022 06:45

Da aceitação à Negação - Uma mão cheia de nada

Muitos dos que nasceram no período da independência e nos anos a seguir, viveram uma atmosfera político-social de elevada êxtase e expectativas sobre como seriam os anos sem o jugo colonial. Foram anos de muito nacionalismo e de forte exaltação aos ideias pan-africanos em grande escala e, da negritude em menor escala.

 

Essa geração foi ensinada a pensar dentro de um quadro político-social de muita desconfiança e de algum medo: primeiro devido aos focos emergentes do neo-colonialismo e neo-imperialismo e, depois pelos movimentos armados que reivindicavam a suposta parcela do manjar pós-independência.

 

Durante muitos anos, um pouco por todo continente africano, com enfoque à Africa Austral, os partidos libertadores cimentaram sua hegemonia com recurso a narrativas, discursos e alusão a momentos históricos de difícil digestão. Essas narrativas alimentaram vários processos e várias etapas de construção de um pensamento unitário. Todavia, alguns desses partidos “esqueceram-se” de se actualizar e se de adaptar ao contexto quer em forma acções governativas ajustadas, quer em respostas mais cabais às crescentes demandas do povo. O descontentamento e o repudio à forma como os destinos de alguns países estava a ser conduzido, abriu espaço para uma nova franja crítica, seja vinda da sociedade civil, quer de partidos políticos da oposição.

 

Com o andar do tempo e com a natural evolução social e política, a narrativa dos partidos chamados libertadores, que era facilmente aceite de ânimo leve pelas chamadas massas foi se corroendo (por causas naturais e também por falta de actualidade). Essa gradual corrosão enfraqueceu internamente o tecido político-partidário e foi gerando pequenas alas e fissuras internas. 

 

A história, com seu sentido didáctico, foi testemunhou para além da conquista, exercício e sedimentação do poder por um lado, a fragilização e queda dos ditos históricos por outro lado – Novos actores políticos emergiram, e com eles, novas narrativas e novas formas de ver a governação dos países.

 

A rotatividade política em muitos países da região foi se fazendo real, numa clara amostra de cansaço e apelo a algo diferente e novo. Alguns dos países que a experimentaram perceberam que a mudança que tanto se temia, tem suas nuances e, pois, abrem espaço para formas de ser e estar na política – o rendez-vous politique.

 

As narrativas depreciativas contra os partidos da oposição, e contra as organizações da sociedade civil que a história os colocou no lado erróneo e baptizou como partidos e movimentos sanguinários, inimigos do progresso e da independência, começaram a diluir-se paulatinamente em alguns quadrantes. Tal dissolução deveu-se muito pouco a forca da oposição que foi se instruindo melhor, e muito a forma como muitos governos foram tratando o seu povo. Dito de outra forma, e com outras palavras, a oposição não precisou de muita engenhoca tampouco de estaleca para o despertar social. Os actos e acções dos partidos no poder foram paulatinamente levando muitos deles ao abismo.

 

Novas formas de reflectir a história, de pensar criticamente a sociedade, a politica e a governação ganharam notoriedade e relevo. E com essas formas, veio a dúvida sobre o presente e a incerteza sobre o futuro.

 

O advento das redes sociais foi um marco importantíssimo nesta viragem de paradigma, no processo de informação e desinformação. Foi também um momento em que o uso da tecnologia possibilitou o registo, a partilha e o consumo em tempo real. A monitoria de processos eleitorais, das acções político-governativas e de toda forma de manifestação socio-política e até cultural, fez ganhar outra dinâmica na forma de participação e influencia. Quase todos com acesso a informação, podiam a partir deste instante ser agentes de mudança.

 

Neste momento de maior questionamento, a sociedade vira um avaliador factual da acção governativa, e não se prostra de tecer opiniões escritas ou orais que fazem toda diferença na construção do estado pluralista em que as ideias contrárias valem e tem lugar. Há um salto qualitativo nas relações de intervenção social – do simples instrumento político-eleitoral, o povo passa a um agente activo, impulsionador e motriz da mudança social. O seu papel é cada vez mais apreciado por uns e combatido por outros, porque o despertar de consciência pode também significar mau pressagio para quem não esteja disposto a permitir a rotatividade.

 

A aceitação foi dando lugar a negação. As diferentes forças políticas, e das organizações da sociedade civil com melhor estrutura e liderança, com ideias mais claras e mais ou menos elaboradas e uma agenda muitas vezes alvo de questionamentos, ganham relevo e convidam o povo a uma introspeção e reflexão mais assaz sobre a independência e o pós-independência (seus ganhos e perdas). A luta da oposição não é mais para conquistar mais assentos no parlamento e na assembleia nacional, mas sim pelo assalto ao poder.

 

Muitos dos países desta parcela do continente negro, caminham para a celebração do jubileu dos 50 anos da conquista das tão almejadas independências. Nesses quase 50 anos experimentaram transições, reajustes e reformas impostas pelo Ocidente - Tais reformas ditaram a realidade de muitos países. Experimentaram igualmente o aparecimento e ocorrência recursos naturais. Alguns países, incluindo Moçambique foram bafejados por recursos naturais que se adivinhavam bênçãos, mas que aos poucos, em alguns quadrantes tem se revelado autêntica maldição (o Resource Curse).

 

A falta de transparência, responsabilização, o enfraquecimento institucional, a captura do estado pelas elites economicamente fortes, a fraca vontade e capacidade politica, a crescente desconstrução das ideias basilares e fundacionais do estado, dos ideais Pan-africanos de Nkrumah e Senghor, bem como a constante ingerência nos processos nacionais, entre outras causas abriram um buraco que se foi transformando numa cratera social, económica e politica – A corrupção instalou-se, e a cultura de pedinte se afirmou como uma cultura dos estados africanos.

 

Recentemente, viveu-se em Angola um cenário que ilustra como a aceitação foi se transformando em negação, e como a atmosfera eleitoral e pós-eleitoral foi um medidor do cansaço do povo que anseia mudanças estruturais. O cenário ali vivido, faz-nos ler com outras lentes a relação entre os ciclos governativos, a coesão dos partidos políticos, a militância de ocasião e de estomago e, acima de tudo, sobre o poder outrora oculto das massas – um poder que foi negado, mas que a realidade mostra que não há tamanha peneira para tão forte sol.

 

Hoje, uma sociedade angolana ociosa pela mudança clama pela justiça eleitoral, pela validação do seu direito exercido nas urnas. Uma sociedade dividida entre o amor pelo MPLA e pela esperança pela UNITA. Sociedade que deu uma aula de associativismo, sobre como valorizar o sufrágio e como mostrar ao poder do dia que não há nada mais forte que o povo – pode tardar, mas sempre acorda da sua longa noite escura.

 

Esta em causa muito mais que uma eleição. Esta em causa a provável queda de um partido histórico em África e no mundo, e a ascensão de um partido tido como o vilão da história recente de Angola.

 

Esta em causa uma jogatana que não se revelou ainda aos olhos dos menos sagazes analistas – a jogatana do petróleo, dos diamantes. Esta em causa a soberania do povo Angolano. Por isso, escrevo – Uma mão cheia de nada.

 

Por: Helio Guiliche (Filosofo)

quarta-feira, 10 agosto 2022 09:55

RUI KNOPFLI, 90 ANOS

NelsonSaute

Rui Knopfli, nascido em Inhambane, a 10 de Agosto de 1932, faria hoje 90 anos.  Um acaso está na origem da minha descoberta juvenil de o “Reino Submarino, publicado em 1962. Esse encontro desencadeou um tumulto, difícil de descrever, em mim. Aquele tom estava fora do tom. Aquela poesia parecia estranha. Aquelas imagens, aquela sonoridade, aquelas metáforas. Aquele poder discursivo, barroco, torrencial por vezes, alegórico. Sempre cativante, sedutor e encantatório. Quase sempre pungente, língua dilacerada e dilacerante. Voz dos eleitos. Oriundo de uma educação literária onde avultava a poesia engajada e revolucionária, no lídimo contexto de afirmação de um novo país, desconhecia este poeta tão impressivo. Aliás, havia um ensurdecedor silêncio à sua volta.

 

Não se falava à época, meados dos anos 80, de Rui Knopfli.  Nascera em Inhambane. Filho de um funcionário da Administração, a sua família vivia, nos anos 30, em Vilanculos. A mãe foi tê-lo à Inhambane onde estavam asseguradas condições de assistência médica mínimas. O poeta só aos 20 anos irá conhecer a cidade que lhe dá naturalidade. Viverá na Moamba, na Namaacha, em Magude. Curiosamente, Magude tem uma importância capital sob o ponto de vista literário. Foi lá, aos 15 anos, que começou a ler livros emprestados. Estava-se nos finais dos anos 40.

 

No final da juventude e já na capital teve encontros decisivos: Fonseca Amaral e João Mendes - os mentores da sua geração -, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar ou Ricardo Rangel. Em casa da Noémia, a pretexto de ouvir o mítico Daíco, empreendem conversas subversivas. Não estavam isentos da perseguição política. Aquando das eleições de 1949 e da candidatura desafiante de Norton de Matos (que concitou tantos jovens africanos em Moçambique e em outros países) colam cartazes, promovem reuniões, conspiram. Alguns são presos, interrogados e mesmo espancados. Aníbal Aleluia é violentamente sovado. Rangel e Noémia não são isentos da bordoada pidesca. Knopfli, por conta da raça, é humilhado verbalmente.  Era branco e a PIDE tinha critérios epidérmicos no seu acto incriminatório. Mais tarde, em 1952, foi parar aos calaboiços por um dia. Tinham importado livros inobedientes.

 

Em 1959 publica, aos 27 anos, o seu primeiro livro. Alguns companheiros de juventude tinham emigrado ou se exilado noutras latitudes. Rui terá, no entanto, uma passagem por Joanesburgo onde estuda e escreve alguma poesia em inglês. Aliás, no seu livro de estreia essa influência anglo-saxónica já é visível: “Velho poema da cidade do ouro”. Mais tarde ver-se-á ampliada. Sobretudo no seu encontro com T.S. Eliot, que traduz e glosa. Mas é a evocação da sua cidade, do seu tempo de infância, “da sociologia de esquinas”, dos jogos “pueris de sexo”, mas também a consciência de um lugar e de um tempo em tumulto, em transição, em transformação. O título do livro é uma provocação ou, se quisermos, o assumir dessa consciência de um tempo que mudaria, inexoravelmente: “O País dos Outros”.

 

Como disse intentei o seu conhecimento através de “Reino Submarino” (1962). Os poemas elegíacos foram aqueles que mais me impressionaram: “A Menina do Retrato”, “Encontro”, “Monólogo”, sobretudo “A Uma Criança Longe”: “Escrevo-te estas palavras/ sabendo que as não lerás” ou ainda: “A morte é isso, é acabar/ simplesmente, não acontecer mais.” Este é um dos poemas que mais remotamente recordo, um poema dolorosamente biográfico.

 

Rui Knopfli: “Nada me auxiliam as lágrimas/ que me salgam a face/ e o muito que tenho blasfemado/ de borco, rente ao teu silêncio gelado. / Esta a lógica prosaica dos factos: / Continuamos a viver, dolorida/ a consciência/ da tua cada vez maior ausência. / E teu pequeno corpo moreno, / que nem todo o meu amor aquece, / é um palmo de ternura/ que apodrece.”

 

Este livro dedicado à memória da filha é atravessado por esse tom pungente de versos elegíacos. O poema “Pequena Elegia” termina com estes versos que nunca me esqueci: “Inteira, a tua morte/ viaja dentro de mim.” O livro tem outras elegias, como aquela dedicada ao poeta Reinaldo Ferreira, que morreu em 1959: “O que na vida repartiu seu poema/ por alados guardanapos de papel, / o criador de sonhos logo perdidos/ na berma dos caminhos, / o mago que pressentia o segredo/ da beleza perene”. Este ano, pleno de efemérides literárias, foi também o ano do centenário de Reinaldo.

 

Deste livro destaco ainda o poema “Adeus Xico”, uma dolorida memória da juventude, poema que eu declamei inúmeras vezes. O poema é uma longa homenagem a um companheiro da juventude morto aos trinta anos. Ainda hoje quando recordo este texto oiço os acordes da “Patética” que o poeta cita profusamente neste texto. Seria, porém, “Winds of change” e “Velho Colono”, dois dos mais reveladores poemas deste impressivo “Reino Submarino”, que me acompanhariam, mais frequentemente, ao longo destas quatro décadas de convívio apertado com a poesia de Rui Knopfli.

 

Rui Knopfli: “Sentado no banco cinzento/ entre as alamedas sombreadas do parque. / Ali sentado só, àquela hora da tardinha, / ele e o tempo. O passado certamente, / que o futuro causa arrepios de inquietação. / Pois se tem o ar de ser e o passado, / os dois ali sentados no banco de cimento. // Há pássaros chilreando no arvoredo, / certamente. E, nas sombras mais densas/ e frescas, namorados que se beijam/ e se acariciam febrilmente. E crianças/ rolando na relva e rindo tontamente. // Em redor há todo o mundo e a vida. / Ali, está ele, ele e o passado, / sentados os dois no banco de frio cimento. / Ele, a sombra e a névoa do olhar. / Ele, a bronquite e o latejar cansado/ das artérias. Em volta os beijos húmidos, / as frescas gargalhadas, tintas de outono/ próximo na folhagem e o tempo. // O tempo que cada qual, a seu modo, / vai aproveitando.”

 

Citei o poema na íntegra. Aqui está já o grande poeta que se iria revelar, na plenitude, no livro “Mangas Verdes com Sal” (1969), depois de “Máquina de Areia” (1964). Apetecia-me citar na íntegra também o “Winds of change”. Li-o até à exaustão. Há outros poemas extraordinários neste livro. Como “Fim de tarde no café”. Como tantos outros. Não há aqui espaço para os acolher. A segunda obra de Rui Knopfli que eu li foi esse inigualável “Mangas Verdes com Sal”, o livro da sua completude. Tinha um sulfuroso prefácio do Eugénio Lisboa. Recordo-me de poemas e versos que me ficariam para sempre na memória. Do poema “Não obstante”: “nunca escrevi versos que não fossem de amor”. Ou “o meu Paris é Joanesburgo”, do poema “À Paris”. O poema aforístico “Progresso”: “Estamos nus como os gregos na Acrópole/ e o sol que nos mira também os fitou. / Mas fazemos amor de relógio no pulso”. Livro sardónico, como sempre, pungente, dolorido, profundo. Ali se amplia o estro que fala do seu quotidiano, do seu profundo humanismo. Ali está o poeta erudito e, sobretudo, a mestria do seu labor limae. O seu depurado labor oficinal.

 

Durante anos impressionou-me o poema “Aparição”, li e reli “Hackensack”, que cito no frontispício do “Maputo Blues” e como o título revela é uma referência a Thelonious Monk. Citei abundantemente o poema “Velasquez”: “Só de perto te apercebemos: é de baixo/ que os gigantes te miram”, li e reli “A Descoberta da Rosa”, declamei “Mangas Verdes com Sal”, glosei “Lembranças do futuro”: “só os poetas têm lembranças do futuro”, comovi-me com “Praça Sete de Março”, exultei com “Disparates seus no Índico”, pilhei versos como em “Contrição” ou consignei ao futuro a minha escolha da melhor poesia moçambicana do século XX o título “Nunca Mais é Sábado”.

 

A mitologia da Ilha como tema central da poesia moçambicana devemo-lo a Rui Knopfli e ao seu roteiro belíssimo sobre a “A Ilha de Próspero” (1972): “Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente, / que doloridas lembranças do tempo/ em que, do alto do minarete, / Alá – o grande saca! – sorria/ aos tímidos versos bem comportados/ que eu te fazia”. Este livro é notável, uma alquimia perfeita entre texto e imagem, com fotografias belíssimas do poeta e fotógrafo. O livro tem uma origem remota - o poema “Ilha Dourada” -, que vem no seu livro de estreia O País dos Outros.

 

Rui Knopfli: “A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha com impossíveis/ naves moiras. /Tudo mais são ruas prisioneiras/ e casas velhas a mirar o tédio. / As gentes calam na / voz/ uma vontade antiga de lágrimas/ e um riquexó de sono/ desce a Travessa da Amizade. / Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância, / Ilha de Moçambique, / e faço-te estes versos/ de sal e esquecimento”.

 

Se “Mangas Verdes com Sal” era, indubitavelmente, o seu alto canto, a plenitude, a maturidade, “O Escriba Acocorado” (1978), publicado depois de o poeta abandonar “a capital da memória”, coagido pelos ventos da História, seria aquele que haveria de me parecer o seu livro mais conseguido. Aliás, tanto este titulo, como “Máquina de Areia”, “A Ilha de Próspero”, ou, mais tarde, O Corpo de Atena (1984) são poemas únicos em vários cantos.

 

Rui Knopfli: “Servidor incorruptível da verdade e da memória, / escrevo sentado e obscuro palavras terríveis/ de ignomínia e acusação” – começa assim o poema “Proposição”, que termina: “A História que há-de ler-se é por mim escrita. / Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.”. O poema seguinte chama-se “Pátria” e foi glosado por outros tantos poetas, entre os quais Heliodoro Baptista ou Luís Carlos Patraquim. “As árvores chamavam-se casuarina, / eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também/ tinham nomes por que era costume designá-los”.

 

O poema que mais me impressionou deste livro – “As Imagens Quebradas” – um diálogo intertextual com Eliot: “Uma última vez percorro a cidade no dia / em que começa a minha morte. Reconheço/ estes lugares apesar da mudança e a sua / esquiva familiaridade roça-me as tolhidas/ asas da memória. Aqui escrevi. Naquela // sombra imaginei. Entre uma e outra coisa, / vivi. (...) // Caminho// pelos lugares queridos, sem tristeza, nem mágoa, / altas, condoídas árvores, lagos serenos escorrendo/ de meus olhos, hálito azul da tarde que, por cair, / de sombras vai tranquilizando o horizonte. Só, / meu coração, bate contra a pedra e o silêncio.”

 

Publicaria antes, como aludi o livro “O Corpo de Atena”, em 1984, no qual recupera um belíssimo poema – “Notas para a regulamentação do discurso próprio”, inicialmente dado a conhecer nos cadernos Caliban, que promoveu com o poeta João Pedro Grabato Dias. Há depois um longo interregno, um ínterim poético que dura treze anos. “O Monhé das Cobras” (1997), a sua derradeira obra, é publicada meses antes do seu falecimento, que ocorre no dia de Natal desse ano.

 

Rui Knopfli dizia-me, numa remota entrevista, quando lhe perguntei como via a questão da nacionalidade literária, o seguinte: “A nacionalidade literária é aquela que é proclamada pelos livros que nós escrevemos, pela conjuntura cultural, pela inteligência social que os produziram. Os meus livros – mesmo aqueles que eu escrevi desde que saí daqui – o seu referente é sempre, obrigatoriamente, moçambicano”. Nessa mesma conversa, nobilitava Craveirinha: “Ele é o maior de todos nós, com a Noémia ao lado e eu. Honra minha.”

 

O poeta, que retornaria a Moçambique, numa comovida visita em 1989, não ficou apenas na “exclusividade da memória privada”. Encontrou-se, num jubiloso convívio, com uma nova geração, que o reivindicava. Vivia então em Londres, o seu “exílio doirado”. Haveria só de ir a Portugal para, no final da vida, se entrevistar com os deuses. No poema “As Origens”: “Paro diante do jazigo de família, / Vila Viçosa, Alentejo profundo. Afinal tudo/ principiou aqui. O apelido seria, / puramente como outros, alentejano, / não fora a incursão oportunista// do estrangeiro, que perturbaria o resto, / confundido o futuro e as interpretações.”

 

Seria despiciendo, nesta homenagem, referir-me, com exaustão, à extensa polêmica sobre a nacionalidade literária e a dificuldade que sempre houve em enquadrar a obra de Rui Knopfli, sobretudo em Portugal. Isso caberia numa outra circunstância, não sendo o escopo desta breve evocação neste dia em que celebramos os seus 90 anos. Regozijo-me, a esta distância, por verificar que há uma geração, muito mais nova que a minha, que o reivindica, cultua e mitifica. (Rui Knopfli: “Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. / Mas dentro de mim há savanas de aridez/ e planuras sem fim/ com longos rios langues e sinuosos, / uma fita de fumo vertical, / um negro e uma viola estalando.”)

 

Quando o descobri, há quarenta anos, estava de certo modo proscrito. O tempo, esse grande escultor, devolveu-o ao nosso convívio. O tempo, que é a matéria primordial da sua fecunda poesia, uma das mais altas expressões líricas deste país. Felizmente, remido: lemo-lo, cultivamo-lo, amamo-lo. Citamo-lo e glosamos a sua obra. Há teses universitárias, há livros evocativos, os poemas circulam, na medida do possível.  Esta recidiva acontece apenas dentro da tribo literária? Não importa. Ele está tão esquecido e deslembrado como estão tantos outros poetas. Coisas desta pátria, que é nossa, esta pátria que também é sua. Mesmo quando ele quer, como Fernando Pessoa”: “pátria é só a língua em que me digo”, Rui Knopfli é também, ou sobretudo, poeta moçambicano. Um grande poeta moçambicano.

 

Rui Knopfli: “Porque eu teimo, / recuso e não alinho. Sou só. / (…) / Não entro na forma, não acerto o passo, / não submeto a dureza agreste do que escrevo / ao sabor da maioria. / Prefiro as minorias. / De alguns. De poucos. De um só se necessário/ for. Tenho esperança porém: um dia / compreendereis o profundo significado da minha / originalidade: I am really the Underground.”

 

KaMpfumo, 10 de Agosto de 2022

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