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“A acção dos terroristas em Cabo-Delgado dói a qualquer moçambicano consciente das responsabilidades sociais e humanas. Os cidadãos que sofrem são nossos irmãos, os cidadãos que sofrem ataques são moçambicanos como nós e, convenhamos, a solução do problema de Cabo-Delgado, que remonta a 2017, é do Estado moçambicano. Não vejo razões para ficarmos indignados com a posição da Embaixada de França.  E Mais, a Total é uma empresa privada, logo, quem irá decidir sobre a permanência, retoma ou desistência são os seus dirigentes e não o Governo e tão-pouco a Embaixada Francesa.

Nós, moçambicanos, devemos assumir as nossas responsabilidades. O assunto de Cabo-Delgado é de soberania de Moçambique e o país deve resolver o problema recorrendo a todos os meios possíveis e imaginários, sem endossarmos responsabilidades a terceiros. Hoje, 21 de Fevereiro de 2024, a Embaixada de Inglaterra alinhou pelo mesmo diapasão e, acredito, muitas outras chancelarias o farrão. Assumamos as nossas responsabilidades, o povo que está a ser chacinado, junto com as residências queimadas e outros bens públicos, são pertença de moçambicanos. Isso não nos indigna? Indigna-nos a posição da Embaixada Francesa, quando defende seus concidadãos? Sejamos sérios!”

 
AB

“A França estabelece com Moçambique uma antiga relação de vizinhança pelo Oceano Índico. A pertença da Ilha Reunião à França e que muito cedo desenvolveu relações económicas com Moçambique (desde 1642). A presença francesa na Ilha Mayotte tornada departamento francês através do referêndum em 2009 data de 1841. Estes dois departamentos franceses agrupam aproximadamente um milhão de habitantes, a maior população francesa do ultramar e são vectores importantes da cooperação (militar, económica e cultural) entre a França, Moçambique e com outros países do Oceano Índico”

In Site da Embaixada Francesa em Moçambique

“Moçambique acolhe investimentos de Empresas francesas de grande dimensão, a exemplo da Total e Technip que, em conjunto, investem no nosso país mais de 20 mil milhões de dólares americanos. Este volume de investimentos mostra claramente que Moçambique é um parceiro vital e estratégico para a França, razão mais do que suficiente para que nos fosse endereçado o convite”.

“Ficou claro que Moçambique e França partilham interesses económicos vitais, cujo sucesso passa por um ambiente de Paz, segurança e estabilidade de Moçambique”, assegurou o Chefe do Estado, em conferência de Imprensa de balanço da visita à França.

In Presidência da República, 19 de Maio de 2021 

A Embaixada Francesa em Moçambique aconselhou os seus concidadãos a não viajarem para as terras de Cabo-Delgado, porque não é seguro, devido à violência que se reporta naquela parcela de Moçambique. As reacções internas sobre esta notícia são variadas. Alguns consideram que a França ainda age como um país colonizador, usando métodos do Seculo XIX, outros, ainda, falam de desinvestimento da França em Moçambique, alegadamente, porque a declaração da Embaixada Francesa é ofensiva!

Leio e oiço tudo isso, estupefato. Não consigo compreender as razões de reacções tão virulentas, quando uma embaixada, em representação do seu país, não aconselha os seus concidadãos a irem para uma zona de guerra, onde os terroristas, quer queiramos, quer não, é que determinam a música para se dançar. Não percebo muito bem por que razão a França teria de aconselhar seus cidadãos a irem para Cabo-Delgado, sabido que a estabilidade e segurança são precárias. Mesmo os nativos estão a transferir-se para lugares seguros fora de Cabo-Delgado, a questão é: porque os franceses teriam de recomendar a ida para esse lugar!

Há muita coisa que se possa dizer sobre a guerra terrorista de Cabo-Delgado, mesmo recuando aos tempos em que a segurança dos investidores era feita por estrangeiros e falava-se de mais de 300 mil dólares americanos dia, o que levou as autoridades moçambicanas a pensarem em uma solução interna, o que culminou com as dívidas ocultas. Até isso podemos chamar à colação da instabilidade em Cabo-Delgado, mas dizer que a Embaixada de França está equivocada, por aconselhar seus cidadãos a não viajarem para Cabo-Delgado, definitivamente, NÃO!

Veja, no texto acima, a intervenção do Presidente da República, depois da visita à França, reconhecendo a necessidade de Moçambique assegurar um ambiente de paz, segurança e estabilidade para que haja sucesso. Ora, pelos relatos vindos da província de Cabo-Delgado, as condições de segurança e estabilidade tendem a deteriorar e dizer que é da responsabilidade dos franceses julgo ser exagerado. Assumamos as nossas responsabilidades internas e deixemos de atirar culpas a terceiros, sobre as nossas políticas erradas!

Eu, pessoalmente, sinto-me “Cabo-Delgado”. Carrego o sofrimento dos meus concidadãos de Cabo-Delgado. Agora, exigir que um cidadão francês sinta o mesmo que nós, julgo ser injusto. E mais, a Total é uma empresa privada e não pública, o Embaixador representa os interesses do Estado Francês e não propriamente as Empresas Francesas, por isso associar o pronunciamento do Embaixador e a Total é forçar coisas que não se são iguais, embora se possam complementar. Cabe ao Governo a reacção e não aos cidadãos nacionais e ou estrangeiros. Contudo, e acima de tudo, é responsabilidade do Estado Moçambicano garantir a Paz, segurança e estabilidade em Cabo-Delgado e não de outra entidade qualquer!

Adelino Buque

quarta-feira, 21 fevereiro 2024 10:42

Cabo-Delgado e a deficiência de comunicação!

“Os jornalistas também são alvos dos terroristas. A guerra terrorista, na província nortenha de Cabo-Delgado, tende a criar grandes divisões entre a sociedade, de um modo geral e entre a sociedade e a classe dirigente. Na minha opinião, isso se deve às deficiências na comunicação, na era da internet, em que as pessoas podem comunicar-se em privado e em público, estando em qualquer local. Difícil é omitir factos e, ainda que os órgãos competentes não divulguem determinada informação, esta será divulgada, de qualquer forma, com o potencial de ser divulgada com algum exagero, seguindo a velha máxima de que “quem conta uma história, aumenta um ponto”. Assim sendo, o importante, nestes casos, seria instituir-se alguém que sirva de ligação entre os factos no terreno e a sociedade, através dos órgãos de comunicação social. Acusar os jornalistas não é a melhor solução para o problema de Cabo-Delgado”.

AB

A guerra movida por terroristas, na província de Cabo-Delgado, está com tendências a criar múltiplas divisões internas, entre os moçambicanos e entre os moçambicanos e a classe dos governantes. Na minha opinião, razões não faltam para esse mal-estar entre nós e da sociedade contra os governantes. Aqui, devo referir que um dos grandes problemas, que suscita mal-estar entre a sociedade e os governantes é a comunicação.

São raras as comunicações sobre o estado de guerra em Cabo-Delgado. Das bocas dos governantes, ouve-se um exacerbado optimismo, que contrasta com os factos no terreno. Entre esse vazio, criado por quem deve comunicar, surgem os órgãos de comunicação externos, com maior domínio da situação no terreno, que propriamente os órgãos de comunicação nacionais e a questão que se coloca é: porque os nossos órgãos de comunicação não divulgam as notícias que são divulgadas por outros órgãos de comunicação para o mundo. Não havendo essa comunicação, as vítimas, muitas vezes, recorrem às redes sociais para lançarem o seu grito de pedido de socorro!

Há uma coisa inegável nos acontecimentos, quando existe um facto e os órgãos competentes divulgam esse facto, não há como especular sobre esse mesmo facto. O que pode acontecer, e acontece, é cada órgão de comunicação social produzir notícias de acordo com os seus interesses editoriais e, quando é assim, é fácil o cidadão atento tirar as suas próprias conclusões porque, certamente, terá visto nesta ou naquela televisão, nesta e outra estação de radiodifusão e lido nos jornais e por aí. Dificilmente se pode falar de estar a favor deste ou do outro, podemos falar de deturpação da notícia porque é pública.

Pessoalmente, compreendo o mal-estar do Governador de Cabo-Delgado, contudo, penso que ele próprio não é informado, tempestivamente, das ocorrências militares no território que governa. O domínio da situação está nos militares e todos sabemos que o governador não é militar. Enquanto os militares não receberem ordens claras sobre a divulgação das ocorrências no teatro operacional, continuaremos a nos acusar mutuamente. Imagino como terão ficado os jornalistas baseados em Pemba ou em Cabo-Delgado no geral com a “acusação” do Governador da Província.

Por estas e outras razões, é hora, na minha opinião, de todos os órgãos de comunicação social, baseados ou não em Cabo-Delgado, conhecerem o seu interlocutor válido, os relatos esporádicos dos Administradores, o aparecimento periódico do Governador e as raras aparições dos militares são a causa da especulação. Esse interlocutor deve servir, também, para os órgãos de comunicação estrangeiros, de modo a combater as assimetrias de informação.

Para terminar esta minha reflexão, peço a sociedade moçambicana, que nos unamos em torno de Cabo-Delgado. O terrorismo que a população vive naquela província atinge-nos de qualquer forma e todos temos um familiar a residir ou em missão de serviço naquela província, para além de que são cidadãos moçambicanos, nossos concidadãos, que sofrem com a guerra. Por isso, todos nós, devemos dizer basta a guerra naquela parcela de Moçambique!

Adelino Buque

quinta-feira, 15 fevereiro 2024 07:18

RICARDO RANGEL, 100 ANOS

Ricardo Rangel é, indubitavelmente, o mais sagaz, intrépido e profícuo fotógrafo moçambicano do “instante decisivo”. O grande fotojornalista moçambicano do século XX: arguto, vivo, veloz, ágil, astuto. É também um dos fundadores do fotojornalismo entre nós. Nasceu na então cidade Lourenço Marques (Maputo) a 15 de Fevereiro de 1924 – há 100 anos! –, e seria conhecido, celebrado e festejado em muitos lugares do Mundo, onde expôs a sua arte e o seu génio. Tinha nas veias sangue africano, grego e chinês. Andou a vida toda com uma máquina em riste e devemos-lhe um país em imagens ao longo de décadas. Um país que se demarcava do conformismo colonial e nos remetia para a dissensão, para a defesa dos proscritos, para a justiça e para a liberdade e dignidade da maioria excluída. Era, sobretudo, um fotojornalista. A sua lente tinha arte, mas dava-nos sempre notícias. Notícias do seu tempo, o nosso tempo. Era, no fundo, um jornalista arrojado e audaz, intrémulo e resoluto. Um dos nossos maiores intérpretes. Um dos maiores intérpretes da moçambicanidade.

 

O fotojornalismo, sabe-se, informa. O fotojornalismo é quando a fotografia tem o carácter e a urgência da notícia. O fotojornalista mostra, revela, expõe, denuncia, opina. Interpela, interpela-nos. Indaga, indaga-nos. Esta “disciplina”, por assim dizer, afirmou-se no período ulterior à Primeira Guerra Mundial, entre as décadas 20-30 do século passado. Isto no Ocidente. A Moçambique chegará atrasada, nos anos 30-40. Deve-se, sobretudo, ao “Lourenço Marques Guardian”, de Arthur William  Bayly, um famoso comerciante e publicista, oriundo de Durban, que se instalou na antiga Delagoa Bay e prosperou. Uma casa homónima haveria de marcar a cidade durante décadas. Mais tarde, seria o vetusto “Notícias” que haveria de desenvolver a fotografia como informação. Primeiro como pura ilustração do texto. Sempre como apanágio dos ideários da época: do Império, dos colonos e da metrópole e das suas glórias, amesquinhando um povo que Rangel haveria de ajudar a sublevar.

 

Ricardo Rangel e Sebastião Langa seriam os primeiros não-brancos a fazer fotografia no país. Iniciaram a aprendizagem em estúdios profissionais que existiam na época. Os estúdios fotográficos começaram a ser instalados nos finais do século XIX em Moçambique com a chegada do daguerreótipo. O retrato populariza-se então. Nos anos 30-40 surgem, no país, publicações ao estilo das que então proliferavam na Europa e nos Estados Unidos. O “Ilustrado” no “Notícias”, entre 1933-34, seguindo-se-lhe o “África Ilustrada”, no mesmo grupo editorial, nos anos 40. Mais tarde, em 1951, o “Império”. A cidade de Lourenço Marques e/ou a sua pujança, que lhe advinha sobretudo do seu porto, assume um ineludível protagonismo.

 

Nos anos 50, primeiro no “Notícias da Tarde” e, posteriormente, no “Notícias”, Ricardo Rangel, já conhecedor dos segredos técnicos da sua profissão – expendera anos na câmara escura –, desfaz o estereótipo: é o primeiro fotojornalista não-branco na imprensa em Moçambique. É também ele que irá romper com os arquétipos vigentes. Rangel empresta à época e ao fotojornalismo um olhar inédito, sempre inconformado e, sobretudo, insubmisso. Recusa os ditames e subverte a linguagem. Uma outra realidade, aquela que só aparecia para justificar o proselitismo do regime, ganha estatuto e dignidade na sua lente. Diverge dos interesses e da ordem estabelecida. Denega o exótico que era prática e traz para as páginas da imprensa uma outra realidade social.

 

O jornal  “A Tribuna”, quando surge nos 60, vai para além da “fronteira do asfalto” (Luandino dixit) e Ricardo Rangel é um dos responsáveis por cartografar, ali, a chamada “cidade de caniço”. Vale, a propósito, ler o que Luís Bernardo Honwana ou Calane da Silva testemunharam sobre o tema. Aliás, muitos anos depois, o próprio fotógrafo haveria de exultar, ao lembrar-se daquelas páginas que se rasgavam diante de outros olhares e através das quais ele moçambicaniza a fotografia. Estamos num tempo – ulterior à Segunda Guerra Mundial – em que uma geração de jovens intelectuais se afirma e há uma importante agitação cultural nos jornais e nas agremiações culturais e cívicas: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Nogar, Luís Bernardo Honwana, Rui Knopfli, Ruy Guerra, entre outros. Há, no entanto, os ecos de “O Brado Africano” e a acção da Associação Africana ou das figuras de Rui de Noronha ou José Albasini.

 

Rangel calcorreava a cidade com a máquina em riste e há no seu vasto repositório a memória dolorosa do tempo colonial que o mito intenta obnubilar. A periferia e as suas contradições estão também, por assim dizer, inscritas no seu mítico “Pão Nosso de Cada Noite”. Rangel conheceu e amou a noite de Lourenço Marques. Para trás ficaria a memória da Delagoa Bay ancorada ali no tempo, entre os arrabaldes da antiga Baixa, do antigo presídio e toda aquela zona onde se situava a Praça 7 de Março (hoje 25 de Junho).

 

O porto e a navegação internacional fizeram de Delagoa Bay, primeiro, Lourenço Marques, depois, um lugar de referência para os marítimos de passagem. Fizeram, no fundo, a própria Lourenço Marques. Na baixa, que era o centro da cidade, as ruas tinham um bulício que impregna alguma da nossa boa literatura. Lourenço Marques fora a cidade dos trens, dos “rickshaws” e das galeras puxadas a parelhas. Fora a cidade dos quiosques da praça, dos “bars” e das cervejarias.

 

Foi naqueles anos fervilhantes e excitantes para os que viviam ou passavam temporadas em Lourenço Marques – anos 50 e 60, sobretudo – que Ricardo Rangel fotografou a vida nocturna de uma das mais emblemáticas ruas da baixa – a Rua Araújo. Desde meados do século XIX que a Rua Araújo se revestira de um carácter dúbio: durante o dia mantinha todo o aspecto normal duma rua comercial e de escritórios, ao fim do dia ganhava os contornos de clandestinidade que a tornariam mais tarde célebre.

 

Foi com a descoberta das minas do ouro do Rand e a construção da linha férrea para o Transvaal que Lourenço Marques deixar-se-á invadir por gente exótica e estranha. Será esta gente que transformará depressa a Rua Araújo, à noite, numa pequena rua do “Far West”, cheia de “saloons” com bebidas e jogos animados pelas “barmaids”. Na década de 30 do século XX apareceram os casinos com as “taxi-girls”, então em moda em Joanesburgo, e donde veio depois da última guerra outra vaga de “night-clubs”, “cabarets” e “dancings”. Tudo isto em Lourenço Marques, a conhecida Xilunguine, ou a antiga Delagoa Bay. De Reinaldo Ferreira a José Craveirinha, passando por autores diversos, há textos notáveis sobre a Rua Araújo. Há personagens míticas, como Daíco, musas ou deusas.

 

O jazz, que lhe chegava da longínqua telefonia primeiro, depois dos discos que os marinheiros que faziam a rota do Cabo e aqui aportavam lhe ofereciam, fará de Ricardo Rangel o indutor desta sua paixão entre nós. A Rangel, Moçambique deve a devoção pelo jazz. Não tocava, mas é dos seus maiores divulgadores e promotores. Conhece e fotografa os seus maiores intérpretes. Em 1971, o contra-baixista Charlie Haden, num concerto em Portugal, interpreta “Song for Che” e dedica-a a revolucionários de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ricardo está na plateia e exulta. Esteve com os seus mitos: Dizzy Gillespie, Miles Davis, Thelonious Monk, Ornette Coleman. Fotografou-os. Apostrofou-os. Os lugares de culto do jazz na cidade guardam a sua presença: Topázio, Zambi, Sanzala, Costa do Sol, Princesa, ou Chez Rangel na Estação dos CFM. Abdullah Ibrahim, aliás Dollar Brand, descobriu na casa de Rangel um disco seu que ele próprio não tinha.

 

O título imaginoso de José Craveirinha – “Pão Nosso de Cada Noite” – está na origem do livro-álbum, de Ricardo Rangel, publicado nos seus 80 anos, em 2004. O fotógrafo deambulara pelo “Notícias”, “A Tribuna”, “Diário de Moçambique” e “Notícias da Beira”. Estivera na fundação da revista “Tempo”, outro marco. Tudo isto no tempo anterior à independência. Regressaria ao “Notícias” em 1977. Em 1981 torna-se o primeiro director do semanário “Domingo”. Mais tarde irá criar o Centro de Formação Fotográfica, onde se manteve activo – na companhia cúmplice e firme de Beatrice – até ao fim e empreendeu como formador e como uma reserva de sabedoria.  Os mais jovens profissionais encontravam nele disponibilidade para partilhar os seus vastos conhecimentos e os seus avisados ensinamentos. Mas também o homem assertivo, incisivo, crítico, indignado. O Mestre.

 

Não tinha um génio fácil, antes pelo contrário. Era difícil, irascível. Por vezes impulsivo ou truculento. Vituperava a mediocridade, desgostava-lhe o paupérrimo jornalismo, ou a ausência dele. O seu “Notícias” passara a ser um jornal de anúncios e não de notícias. Vociferava, zangado, contra o estado das coisas. Era um conversador brilhante, maravilhoso, contador de histórias, tinha um sorriso rasgado e os olhos e os zigomas que o aproximavam das suas origens orientais. Tinha um olhar brutal, indagador, frontal, poderoso. Por vezes, intimidatório. Mas era fraternal, de uma ternura no sorriso e no olhar, amigo dos seus amigos. No fundo, as suas fotografias transmitiam essa ternura, que ele disfarçava.

 

Fotojornalista de longo curso, homem profundamente enraizado na história do seu país e do seu povo, Ricardo Rangel testemunhou, não indiferente, uma longa era da vida de Moçambique, tendo-a documentado, como jornalista e como artista. No Centro que criou registou o nosso país em imagens. Um trabalho ciclópico e primordial. É um dos seus legados. Como as suas belíssimas e pungentes fotografias que são o primeiro rascunho da História. O jornalismo – o fotojornalismo – é também isso: o primeiro esboço da História.

 

Ricardo Rangel era um prodigioso homem do “instante decisivo”, com uma intuição, uma sensibilidade, uma prática e poética que estão na origem de fotografias que fixavam, na “linguagem do instante”, o momento, a essência e o significado da nossa História no século XX. É o fotógrafo de Moçambique. Mas é também um grande fotógrafo de África. Num texto remoto disse de Ricardo Rangel: “Que belo o teu ofício e dos que te antecederam e daqueles que se seguem, este de nos devolverem algo que é nosso antes de nos ter pertencido”.

 

Foi sobretudo um fotógrafo do olhar. Um dia ofereceu-me uma fotografia da mulher da gabardine com um olhar dilacerantemente melancólico. Ela está na célebre rua, tem uma cabeleira emprestada e nota-se-lhe uma profunda tristeza. Tem a mão esquerda sobre a cintura. Há silhuetas de uma parelha ocasional por trás. Esta, como tantas outras fotografias de Ricardo Rangel, faz parte de uma poética partilhada por uma geração única. De um mito geracional. De uma estética e poética. De uma ética. Guardo-a ciosamente, como guardo a lembrança feliz do amigo.

 

Ricardo Rangel, que morreu aos 85 anos, a 11 de Junho de  2009, nascera a 15 de Fevereiro de 1924, há precisamente 100 anos! É uma efeméride que nos diz muito. A despeito de sermos um país do descaso, da desmemória ou do esquecimento. O seu nome está entre os nossos maiores intérpretes: José Craveirinha, Noémia de Sousa, Luís Bernardo Honwana, Malangatana, Alberto Chissano ou Fany Mpfumo. Os nossos instauradores. Os grandes intérpretes da moçambicanidade.

 

Cidade do Cabo, 15 de Fevereiro de 2024

domingo, 04 fevereiro 2024 13:13

Os Mesmos Ecos da Tua Voz

Eduardo Mondlane completaria 104 anos se continuasse no nosso seio. A sua amada de sempre, Janet Rae Johnson Mondlane, caminha de forma robusta para os 89 anos. A meio da atmosfera da festa de todas as festas, recebi e li, com agrado, uma das cartas que Mondlane escreveu para o seu maior amor, Janet. O simbolismo destas cartas se encaixa num plano que se situava muito para além do simples amor, e fazia jus, contextualmente, à grandiosa epopeia que foi a luta de libertação e independência de Moçambique. Estas são as cartas que fizeram a nossa liberdade e o sonho de vivermos como moçambicanos e sem distinções.

 

Estas relíquias de um passado que se quer manter presente, revisitam o tempo de todos os tempos. Relembrar as intimidades do casal equivale a abrir uma janela para o passado, para vislumbrar o arco-íris da emancipação e apreciar como cada linha e cada página traçada são o elo que reconecta o presente que um dia foi passado para que todos tivéssemos um melhor futuro. Segue abaixo um trecho:

 

"... O mundo está à espera do momento em que o homem conhecerá os outros em termos do seu valor humano, e não, em termos de cor e de língua. As culturas estão a fundir-se lenta, mas, seguramente. Há uma comunicação cada vez mais rápida, tanto física como espiritual. ... Tudo isto significa que tu e eu podemos ser cidadãos do mundo se, assim, o desejarmos... O mundo tem fome de pessoas que se atrevam a sair e a conhecer outros seres humanos. Não me interpretem mal, não quero dizer que uma cultura seja má ou inadequada. Mas, quero dizer que qualquer cultura pode ser inadequada se fizermos dela um ídolo. Embora, amemos a nossa própria cultura, não devemos esquecer que ela é uma parte e apenas uma parte de um mundo maior - a humanidade. Esta ideia é aceite por milhões de pessoas hoje em dia, mas é difícil encontrar alguém que se aventure a ir mais longe, excepto muito poucos. Sejamos, tu e eu, esses poucos. As gerações futuras vão agradecer-nos por termos começado, mesmo que os nossos nomes desapareçam na confusão do progresso." Eduardo Mondlane para Janet Books.

 

Cartas Editadas. Ecos da Tua Voz 1920-1950.

 

Quem sabe poderemos ter, em 2024, a próxima edição do “Ecos da Tua Voz”.

domingo, 21 janeiro 2024 12:30

CARNEIRO GONÇALVES

Caminhai célere, ó jovem povo do Quiteve, e vinde ouvir a história de Malidza, que morreu de amor. Uma grande ternura agasalhava-lhe o corpo de ébano (que ela protegia para Kilomko, o guerreiro) e punha nos seus olhos cintilações habitadas pelos génios antigos das florestas. O colo guardava a macia tepidez das sombras e era tão silenciosamente como a luz que Malidza percorria as veredas, as savanas. Requestavam-na os mais expeditos; transformou em temeridade a audácia dos mais valentes. Caíram alguns no calor das refregas, peito trespassado pela lança dos guerreiros de Maruça. Havia nas suas gargalhadas duas coisas: a alegria da brisa das alvoradas que despenteia as árvores e, também das árvores, a frescura da seiva.

 

Um dia apareceu na aldeia o nhamessoro para invocar Zúzu, o espírito das águas. Todas as moças acabadas de donzelar na última lua, espantadas ainda pelo prodígio grandioso de um pouco de sangue entre as coxas, dançavam então o seu espanto. Dois embondeiros soberanos, tão cheios de rumores eucarísticos como dois altares, cruzavam as ramagens por cima do terreiro lançando sobre as moças uma bênção de sombra. Malidza, como as outras, dançava. Dançava e ria. Kilomko, de longe, espreitava-lhe o corpo a requebrar-se nos espasmos da dança. Os seus feitos de guerra enchiam de espanto as aringas. Pela noite adiante, quando as famílias se acocoravam em torno das fogueiras, os mais velhos evocavam Kilomko e os mais novos tremiam de uma admiração sagrada.”

 

Carneiro Gonçalves (Contos e Lendas)

 

Este belíssimo texto tem oito brevíssimos parágrafos e é uma pungente e trágica história de amor. Kilomko encontrou Malidza, em certa madrugada, regressava ele dos seus combates. Diante do seu olhar, caiu-lhe a lança da sua mão invencível, pela primeira vez. Esperava desde então o fim das guerras para a desposar. Mas, um dia, o “nhamessoro” apareceu na aldeia para invocar o espírito das águas. No momento da dádiva, o mago poderia escolher a jovem que o impressionasse mais. Essa escolha recaiu sobre Malidza.

 

Mais não conto. A lenda está no livro “Contos e Lendas” ou em antologias de contos moçambicanos. O seu autor: Carneiro Gonçalves.

 

António Carneiro Gonçalves, nascido a 21 de Junho de 1941, morreu a 20 Janeiro de 1974, faz hoje 50 anos, num inexplicável acidente de viação, aos 32 anos, deixando não apenas este texto, que iria integrar o livro póstumo “Contos e Lendas”, editado pela mão do poeta Sebastião Alba (pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves), seu irmão, mas também contos que dariam para um outro livro e um romance escrito e reescrito. Era jornalista, deveria integrar, naquele ano, a redacção do “Expresso”, em Lisboa, viajava para a então Lourenço Marques, hoje Maputo, onde iria apanhar o avião para Lisboa, ia também no carro o poeta Julius Kazembe.

 

O prefácio do livro é um dilacerado elogio de irmão para irmão. Escreve Sebastião Alba: “Na noite de 20 de Janeiro de 1974, meu irmão ia ao volante, ao largo das estrelas. Seu companheiro de viagem ter-lhe-ia dito: “Carneiro Gonçalves, olha que noite!”; e o carro em que seguia despistava-se a vinte quilómetros de Vilanculos; ele morreria hora e meia depois, no posto sanitário dum areal nocturno. Tinha trinta e dois anos e – rigorosamente – o que sonhou. A mim, apenas quinze meses mais velho do que ele, fora destinado o definitivo infortúnio de escrever estas linhas.”

 

O texto de Alba é escrito vinte dias depois da tragédia e é o prólogo do livro que ele organizou. Traz duas lendas, entre as quais “Malidza”, contos e o fragmento de uma novela. Um ano antes, na revista “Tempo”, no suplemento literário dirigido por Rui Knopfli, que o entrevistara, o autor de “Contos e Lendas” deixaria a sua biografia sintética e magistralmente grafada: “Tenho trinta e um anos, vi a luz do dia em Braga, mas nasci em Tete. Faço questão de conhecer o Zambeze. Com os contos que tenho poderia pelo menos publicar dois livros. Lá virá o dia. Ensaiei um romance que reescrevi já algumas vezes. Ontem mesmo ia na primeira página...”

 

“Malidza” é um dos textos da minha mitologia literária. Acompanha-me desde o secundário. Nele fui sufragar o seu riquíssimo vocabulário, as expressões linguísticas, as metáforas. Um único parágrafo daria para discussão de uma aula inteira. O dicionário para encontrar o significado das palavras. O exercício da sinonímia. A riqueza vocabular, a riqueza semântica, a expressiva capacidade de contar, em pouco mais de três páginas, uma belíssima história seriam, para mim, uma grande lição de escrita.

 

Aprendi ainda, com este texto, que a narrativa ou a prosa não eram expressões despidas de poesia. Antes pelo contrário. A bela prosa era também a expressão cabal de boa poesia. O ritmo das frases. As suas metáforas. As suas imagens. O seu encadeamento. As suas invocações. A escolha das palavras. As palavras certas na frase. As palavras escolhidas com desvelo. As palavras ditas com enlevo. As palavras escritas com inequívoca beleza. A musicalidade das palavras.

 

Em 2005, foi publicado em Portugal o volume “A Escrita de Anton”, de Carneiro Gonçalves (organização e estudo introdutório de Calane da Silva e notas biobliográficas de António Sopa), que recolhe os textos que haviam sido dados à estampa na recolha “Contos e Lendas”. Acrescenta-se-lhe uma lenda pelo menos, alguns contos, crónicas e um punhado de textos puramente jornalísticos. Li o longo texto do Calane da Silva, polvilhado de muita informação, que ajudam a compor o perfil deste escritor desaparecido precocemente. Chamavam-no os mais próximos de Anton, o nome do seu primeiro contista predileto, Anton Tchekov.

 

Rui Knopfli num texto remoto dizia-nos: “Carneiro Gonçalves comete às letras moçambicanas o ânimo e a frescura do seu discurso lesto e elegante, de um rigor que não pactua com fáceis efeitos de embelezamento, antes se cinge aos calculados riscos de uma disciplina que é, simultaneamente, a da cultura e a de uma ática simplicidade. (...) Razão, talvez, por que a sua prosa desencadeia em nós a fragrância de um vinho novo e generoso, acidulado e nobre.”

 

Sebastião Alba aduziria na sua lancinante evocação: “Meu irmão caminhava em sombra; caminharia sem se voltar até ao fim das nossas vidas. E, afinal, era o que a todos nos restava dele. Não estou certo de que tenha feito uma boa escolha, pois de quase nada estou seguro. Como sucede com muitos de nós, ele acreditava que aquilo a que se chama a visão de um artista é a sua primeira imagem poética do mundo, essa que ao longo da vida se busca fixar num fundo de luz permanente. Vinte dias após a morte dele, não posso ainda impedir-me de esbarrar no que se me afigura uma evidência pavorosa: a obra desde já irrealizável e a que, algum dia, lograsse acabar, tiveram para ele um mesmo e último sentido.”

 

Carneiro Gonçalves tinha uma estranha predileção pela lua. A lua ou o luar são títulos de seus contos ou escritos, atravessam as suas histórias. Naquela noite de 20 de Janeiro de 1974, ele ia ao volante e terá dito o seu companheiro de viagem: “Olha que noite! Que luar tão lindo!”. Carneiro Gonçalves, ao que parece, fascinado com o luar, despistou-se entregue a essa visão sublime que o prendeu ali para sempre.

 

No texto de Alba, redigido próximo da morte do irmão, não aparece a referência ao luar: “Que luar tão lindo!” Calane da Silva acrescenta-lhe essa frase e diz que a confirmou de um amigo indefectível de Carneiro Gonçalves, João Schwalbach. Sou amigo, há mais de trinta anos, do Julius Kazembe. Sei que ele ia com o Carneiro Gonçalves naquela noite, falámos eventualmente de Carneiro Gonçalves, mas sempre evitei abordar a história e os pormenores de um dos trágicos acidentes que marcam a história literária de Moçambique. Hoje, para além de “Malidza”, que recitei ao largo desta noite de lua envolta numa perseverante neblina, voltei a pensar no meu amigo Julius Kazembe e no trágico destino do Carneiro Gonçalves. Um dos melhores entre nós. Passam 50 anos sobre a sua morte e uma nuvem espessa de desmemória e deslembrança cobre-lhe o nome e a obra. O que, de todo, não é estranho entre nós, onde avulta o olvido e a omissão, o descaso e o desapreço.

 

Cidade do Cabo, 20 de Janeiro de 2024

É possível que o grande roubo das eleições autárquicas de 11 de outubro nunca tenha sido escondido? Será que o Diretor Eleitoral Celso Correia e os chefes da Frelimo queriam que a fraude fosse amplamente conhecida, e que os tribunais não interviessem, para mostrar aos moçambicanos que o voto nunca iria desalojar a Frelimo?

 

Os moçambicanos vão estar entre os 2 mil milhões de pessoas no mundo com direito de voto este ano, e estão a ser levantadas questões sobre a democracia em muitos países, dos Estados Unidos ao Bangladesh. Escrevendo no The Guardian (Londres, 3 de janeiro), Rafael Behr observa que "os tiranos não manipulam as eleições para enganar os seus súbditos e fazê-los pensar que podem escolher o seu governante. Fazem-no para demonstrar a futilidade de esperar mudanças. É uma afirmação de poder através da desmoralização. Os comícios coreografados, os rivais fantoches e as assembleias de voto da aldeia Potemkin não são falsificações subtis concebidas para serem confundidas com o artigo genuíno. São deliberadamente grosseiros - um mimetismo zombeteiro que esfrega o nariz das pessoas no artifício da política. O objetivo é desacreditar a ideia de que as eleições fazem a diferença." 

 

Isto soa muito a Moçambique e às suas eleições municipais do ano passado - desacreditando intencionalmente a ideia de que as eleições fazem a diferença.

 

A Frelimo reconhece que ainda não tem o poder total. A Comissão Nacional de Eleições deixou o MDM ganhar na Beira, e o Conselho Constitucional deu Quelimane e Chiure à Renamo. Em todos os três locais havia uma ameaça de violência grave e em todos eles a Frelimo tinha-se contentado em permitir o governo da oposição. 

 

A preocupação com Chiure foi suficiente para enviar o comandante geral da polícia, Bernadino Rafael, para a cidade depois de a polícia ter morto um manifestante; Chuire fica em Cabo Delgado e os insurgentes têm algum apoio em Chiure.

 

Mas para demonstrar o seu poder, a Frelimo tinha de ganhar na capital e na província de Nampula, onde Celso Correia era também o chefe eleitoral provincial. A Renamo tinha provas de que tinha ganho em Maputo e na Matola, mas os tribunais ignoraram-nas; as manifestações foram pacíficas, toleradas pela polícia e ignoradas. Mas em Nampula e Nacala Porto, onde a Renamo provavelmente também ganhou, a polícia disparou contra os manifestantes, matando pelo menos cinco.

 

Os "erros" eleitorais maciços não foram desleixo ou má conduta de funcionários de baixo nível. A fraude foi planeada de forma centralizada. O trabalho árduo dos jornalistas moçambicanos para expor a fraude não foi impedido porque agradou aos chefes da Frelimo que queriam que os moçambicanos soubessem que as eleições não podem fazer a diferença. 

 

Como o artigo do The Guardian argumentou, a ideia em muitas autocracias não é enganar as pessoas para que pensem que as urnas podem fazer a mudança, mas exatamente o contrário, mostrar-lhes que não podem. E era esse o objetivo da Frelimo em Moçambique. (Joseph Hanlon)

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