Eu, apóstolo da desgraça
O processo das dívidas ocultas passou a uma nova fase. Após um sem número de negociações políticas e uma batalha jurídica empoeirada propositadamente, eis que o camarada Chang parece regressar ao solo da pátria amada. Chang no meio desta tempestade de poeira parece ter desempenhado o papel de sargento executor, negociador e de angariação do ´tako´. Isto porque, o comandante parece nada ter assinado. Mandava assinar como dever patriótico.
Entretanto, o “chefe” sabia de tudo através dos responsáveis de briefings, realizaram-se reuniões na presidência. Houve vozes que desaconselharam o avanço do projecto. Mesmo assim, a orientação foi: avance-se.
Não se pode sumarizar um processo tão longo, tenebroso, “gangsterizado” de saque da pátria e do povo (recordam-se desse conceito?), composto por um grupo de artífices, de assinantes patrióticos ou patrioticamente obrigados, aldrabões de camuflagem e da mentira e pombinhas brancas que até nada sabiam do que acontecia e de “facilitadores” dos fluxos de branqueamento de capitais.
A organização do projecto alegava, como fundamento principal, a capacitação do país contra os riscos da pátria: terrorismo, guerras, tráficos de droga, pirataria marítima, etc. Que bonito! Bonito porque, afinal, altas instâncias do poder e/ou seus dependentes estão involucradas nesses crimes da droga, tráficos de madeira, pescado e minerais e produtos faunísticos e até em negócios da guerra. Sabendo-se dos preparativos para uma guerra desde 2012, eis que nada se fez ou, como se diz, estavam mais preocupados em matar Dhlakama.
Quando soaram as primeiras notícias no exterior, eis que estas, para os aldrabões da camuflagem de serviço, diziam ser acção do inimigo, sem fundamento, boatos. Internamente organizações e membros da sociedade civil que procuravam a verdade foram, de imediato, ou foi intensificada, a designação de “apóstolos da desgraça”, aconteceram ameaças e espancamentos. As acções dos esquadrões da morte intensificaram-se.
E o processo de denúncia continuou. A sociedade civil foi exemplar contra ameaças e perseguições, muitos dos seus membros colocaram-se na linha de tiro e grande parte não recuou. As redes sociais de defesa do regime aumentaram a produção, tanto com linguagem primária e boçal, como de ameaças e de propaganda refinada; também nestes espaços, pessoas da sociedade civil resistiram e continuaram o dever de qualquer cidadão. Internacionalmente desenvolveram-se acções de acusação e defesa com implicações na alta finança, também parte desta comprometida com a corrupção e o não-cumprimento de procedimentos para créditos deste tipo, na política envolvendo presidentes de repúblicas.
A PGR e outras instâncias judiciais actuaram politicamente, lentamente e sem opções face aos avanços dos processos fora do país. Muito democracia nesta “pátria amada”.
Iniciado o julgamento, assiste-se a exposições dos acusados absolutamente ridículas. Não se sabe onde foram aplicados 650 mil dólares: ah sim, afinal foi na machamba com produtos para comer! mas por que não comeu logo o dinheiro? E, perante o juiz, há afinal respostas que os chefes proibiram de responder. E o juiz acata.
E os advogados, alguns com nome na praça, não obstante o princípio da presunção de inocência e o direito de defesa dos supostos criminosos ou infractores da lei, e a função do advogado em defender casos perante o tribunal, assumem posições provocatórias (contra as regras de comportamento pessoal em sala de julgamento). Parte das estratégias dos advogados de defesa é geralmente em desviar atenções, concentrar-se em questões secundárias e processuais (muitas vezes não regulamentadas), orientar os seus clientes para alegar segredo de Estado. Será que, sendo advogado, é ético (não digo ilegal nem inconstitucional) defender casos de quase evidente corrupção, assassinatos e outros crimes? Ou ser advogado reduz-se à prestação de um serviço mercantil?
São reveladas transferências e valores dos projectos acima dos contratados, parte destinadas à corrupção directa, com abertura de contas em Moçambique ou no estrangeiro, utilizando, em muitos casos, intermediários de camuflagem. Nada de novo, só a poeira pensando que os moçambicanos são burros. Também são comuns processos de sobrefacturação ou da prática de preços exorbitantes. Neste caso, como é normal, todos os advogados estão coordenados. Como disse o juiz, na audição do dia 25 de Agosto, até vão juntos fazer as necessidades vitais (WC) e saem todos na mesma altura. Até as necessidades estão sincronizadas!
Esta palhaçada criminosa revela: que estamos perante um Estado e o respectivo partido no poder, capturado por ladrões, aldrabões e assassinos, que distribuem o roubo por serviços à “pátria” (assinando contratos livremente ou sob ameaças, pactos de silêncio, negociações, camuflagem e diversionismo). Pessoas que se dizem de libertadores da terra e dos homens, contra a dominação estrangeira, afinal, roubam, desprezam o povo em quase escravatura, fuzilam, matam, chicoteiam e fazem desaparecer pessoas em valas comuns em nome da defesa da revolução e suportados pela violência revolucionária contra a violência reaccionária. Gatunos que se apoderam de bens do Estado (dos cidadãos, a tal palavra esquecida de povo), de dinheiro de bancos, de casas e moradias, de empresários de sucesso que nada sabem de empresas, de gente com dinheiro sem nunca ter produzido ou em cargos.
As dívidas ocultas enquadram-se em contexto de um país onde as elites político-empresariais, onde o Estado organiza a economia e alberga grupos de interesses assentes em famílias, no regionalismo/etnicidade, suportados e protegidos pelo partido, com alianças internas e externas num emaranhado de pessoas, grupos e do Estado.
Dois mil milhões de dólares americanos, são, certamente, peanuts, quando comparado com as negociatas de Cahora Bassa, a fuga de capitais, os contratos de gás e de outros recursos naturais, da energia para o exterior, do pescado e da fauna bravia dizimada, do açambarcamento de milhares de hectares concedidos/licenciados fora da lei, da lavagem de dinheiro e muito mais. E, mais importante, as escolas, centros de saúde, estradas, incentivos à produção, formação de moçambicanos, modernização do Estado e do tecido económico, não construídos, que não se realizaram por conta da corrupção. E pobreza gerada em consequência dos biliões de dólares sugados ao povo moçambicano.
Muita poeira… mas os poeirentos são, afinal, aqueles que procuram camuflar o roubo evitando ou desviando as atenções para questões de menor importância. Há muita poeira, sim, Sr. Guebuza.
Vocês libertadores, que mereceriam o reconhecimento histórico pela independência (não obstante processos sinuosos durante a luta de libertação nacional), passarão para a história como gangues de malfeitores e, eventualmente, com a categoria de lesa-pátrias. Mas afinal, quem lança a muita poeira? É poeirada para esconder crimes. Neste caso não é poeira ou boato …. É uma “desorganização organizada”.
Como a história já não é só escrita pelos vencedores (ainda com a agravante do enorme défice de confiança gerada), A HISTÓRIA NÃO VOS ABSOLVERÁ.
João Mosca
Quando no dia 5 Abril de 2016 o Wall Street Journal trouxe a público o escândalo que hoje denominamos de “dívidas ocultas”, além da incredulidade geral que teve por parte da sociedade moçambicana, não se acreditava que algum dia este caso iria ser julgado.
À medida que se foram conhecendo os contornos do caso e as ligações políticas dos diversos implicados, a descrença foi aumentando de forma generalizada.
Não era para menos. Afinal de contas, tratava-se do maior escandalo de corrupção da história de Moçambique, onde um grupo de moçambicanos que exercia o poder ou tinha ligações próximas ao círculo do poder vigente na altura da contratação destas dívidas, aliado a empresários baseados no Médio Oriente e com acesso a banqueiros europeus, conspiraram para endividar fraudulentamente uma nação, deixando o país com uma dívida oculta, corrupta e odiosa de 2 biliões de dólares americanos (nos cálculos do Centro de Integridade Pública (CIP) e do Chr. Michelsen Institute (CMI), já custou à economia moçambicana mais de 11 biliões de dólares americanos).
Com todo este cenário negativo, o CIP foi um dos poucos actores da sociedade civil que se recusou a desistir do caso, fazendo pesquisa e advocacia para que este, tal como outros casos de corrupção que o país já experimentou, não morresse.
Ao longo dos últimos 5 anos, o CIP pesquisou, documentou e construiu um acervo único sobre o caso nas diferentes jurisdições onde ele está a decorrer judicialmente. Organizou campanhas de advocacia, tal como a famosa campanha EU NÃO PAGO que se tornou viral nas redes sociais, pressionando o poder público a tomar acções enérgicas que visassem a solução do caso. A campanha resultou em ameaças à integridade física dos seus colaboradores e no cerco policial aos seus escritórios. Ainda assim, o CIP não desistiu.
Nestes 5 anos, o CIP tornou-se numa das principais fontes de informação sobre o que estava a acontecer com os outros actores deste enredo que não se encontravam em Moçambique. Em tempo real, e de forma simples, inovativa e criativa, o CIP informou sobre o desenrolar das audiências do antigo ministro das Finanças Manuel Chang, no tribunal de Kempton Park em Johanesburg. Com dois telemóveis, um laptop (Borges Nhamire, em Johannesburg, Edson Cortez, na edição nos escritórios do CIP com o apoio de Liliana Mangove no layout e outreach) e uma rede social, no caso concreto o FACEBOOK, mostraram aos moçambicanos que a informação não se recebe somente nos circuitos tradicionais e no horário nobre, mas sim acede-se a qualquer hora e momento e no seu telemóvel. Este caso exigia isso.
O CIP foi a Nova Iorque e cobriu o julgamento de Jean Boustani usando a mesma simplicidade de informar e trazer em tempo real as incidências do que acontecia. No julgamento de Boustani, inovamos adquirindo os documentos produzidos em sede do tribunal, de modo a apresentarmos sólidas evidências do que ali era dito. Mais uma vez, essa ousadia teve custos para organizacão e para todos aqueles que estavam directamente envolvidos nesta empreitada.
As ameaças, calúnias e campanhas de difamação durante esse processo não foram motivo suficientes para que o CIP se desviasse do seu principal objectivo: pressionar os poderes públicos, e sobretudo o judiciário, para que este caso não fosse esquecido. E, de modo a colaborar com as entidades públicas, mais concretamente com a Procuradoria Geral da República (PGR), o CIP adquiriu todos os documentos apresentados em sede de julgamento de Jean Boustani, partilhando-os com a PGR, como forma de auxiliar nas investigações.
As dívidas ocultas tiveram efeitos devastadores sobre a economia nacional. Isso ficou provado num documento que o CIP publicou no dia 27 de Maio do corrente ano, o qual apresenta os custos das “dívidas ocultas”, escândalo que de 2016 a 2019 custou à economia moçambicana mais de 11 biliões de dólares americanos. Parte da defesa dos advogados da República de Moçambique nos processos que correm na Suiça e no Reino Unido, citou este relatório como uma prova clara e inequívoca de que Moçambique e os moçambicanos foram lesados e devem ser compensados.
Hoje, 23 de Agosto de 2021, o CIP lembra o seu papel e contribuição para que este caso chegasse a julgamento, tendo a plena noção que não foi o único actor a influenciar para que isso acontecesse, mas evidenciando que teve um papel chave e determinante para que os implicados neste caso respondessem em julgamento.
O Conselho Constitucional da República de Moçambique proferiu o Acórdão n° 5/CC/2019 de 3 de Junho referente ao Processo nº 6/CC/2017, incorporado no Processo nº 8/CC/2017 sobre fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade, através do qual declarou a nulidade dos actos inerentes ao empréstimo contraído pela EMATUM,SA, e a respectiva garantia soberana conferida pelo Governo, em 2013, com todas as consequências legais. Outrossim, o Conselho Constitucional, através do Acórdão n.º 7/CC/2020, de 8 de Maio de 2020, referente ao Processo n.º 05/CC/2019 declarou a nulidade dos actos relativos aos empréstimos contraídos pelas empresas Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, respectivamente, com todas as consequências legais.
Nos termos conjugados do artigo 247 da Constituição da República de Moçambique (CRM) e do artigo 4 da Lei n.º 6/2006, de 2 de Agosto, com alterações introduzidas pela Lei n.º 5/2008, de 09 de Julho, Lei Orgânica do Conselho Constitucional (LOCC) resulta inequívoco que: “Os acórdãos do Conselho Constitucional são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos, instituições e demais pessoas jurídicas, não são passíveis de recurso e prevalecem sobre outras decisões.” Do n.º 2 dos ambos artigos supra referidos, está consagrado que: “Em caso de incumprimento dos acórdãos (…), o infractor incorre no cometimento de crime de desobediência, se crime mais grave não couber.” Adicionalmente, o artigo 214 da CRM estabelece que: “As decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de outras autoridades.” O que significa que a lei é clara sobre o valor, natureza e eficácia jurídica dos acórdãos do Conselho Constitucional.
O PROBLEMA
Nos dois Acórdãos em referência, os quais foram esperados com muita expectativa pela sociedade civil, o Conselho Constitucional fundamentou a sua decisão esgrimindo que praticados para contrair as dívidas ocultas são actos inválidos, actos administrativos nulos, por força das disposições combinadas do n.º 2, do artigo 35 da lei n.º 7/2014, de 28 de Fevereiro, e da alínea a) do n.º 2, do artigo 129 da Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto, com consequência jurídica nas Resoluções da Assembleia da República que pretenderam “legalizar” as dívidas ocultas em questão.
Ora, não obstante a obrigatoriedade e a irrecorribilidade das decisões do Conselho Constitucional, o Governo não se mostra cumpridor dos supra mencionados acórdãos, tanto é que avançou com a reestruturação e/ou renegociação das dívidas ocultas em causa para o seu efectivo pagamento aos seus credores, supostamente porque esses acórdãos não são válidos no plano internacional. Mas o Governo, ao contrair as dívidas ocultas, tinha de seguir procedimentos legais essenciais do ordenamento jurídico moçambicano para que as mesmas fossem válidas não só no plano nacional, mas também no plano internacional. Por isso, a seguinte inquietação: Que valor e eficácia jurídica os acórdãos em referência têm relativamente ao pagamento ou não das dívidas ocultas? O Governo está ou não em situação de violação do artigo 247 CRM e do artigo 4 da LOCC? Este artigo não responde cabalmente a estas questões, porém, procura demonstrar a quem cabe responder e por que razão.
Por um lado, o Ministério Público, na qualidade de garante da legalidade e com poderes para o exercício da acção penal devia se pronunciar sobre a problemática da violação dos acórdãos do Conselho Constitucional supra indicados, no sentido de esclarecer a sociedade em que medida esses acórdãos estão ou não a ser violados pelo Governo. A acção pela violação dos acórdãos do Conselho Constitucional cabe, em primeira linha, ao Ministério Público que também não se está a pronunciar devidamente sobre a (i)legalidade da reestruturação da dívida e seu pagamento pelo Governo no contexto dos referidos acórdãos que anulam os actos que deram lugar às dívidas ocultas.
Por outro lado, o Conselho Constitucional, entanto que “órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional,” em conformidade com o nº 1 do artigo 240 da CRM e considerando, sobretudo, a sua função educacional estipulada no artigo 212 da CRM nos seguintes termos: “Os Tribunais educam os cidadãos e a administração pública no cumprimento voluntário e consciente das leis, estabelecendo uma justa e harmoniosa convivência social”; é mister que o Conselho Constitucional venha a público, revestido da sua função pedagógica, não no sentido de dar parecer, mas explicar a sociedade o valor, eficácia jurídica, sentido e alcance das suas decisões, sobretudo quando são muito problemáticas em termos de compreensão da eficácia das mesmas à semelhança dos acórdãos que proferiu sobre as dívidas ocultas, objecto deste artigo.
Em bom rigor, não faz sentido estes acórdãos não serem percebidos do ponto de vista do valor jurídico prático quando versam sobre um problema de interesse público de grande dimensão, tendo em conta ainda que declara nulos os actos que permitiram o endividamento dos moçambicanos. Mas a nulidade de tais actos, na prática, é também “nula e de nenhum efeito”, na medida em que o avançar no pagamento das dívidas ocultas pelo Governo esvazia completamente o conteúdo dos acórdãos em questão de tal modo que se torna indiferente a existência dos mesmos.
Importa aqui referir que é difícil perceber os acórdãos do Conselho Constitucional em análise de forma isolada sem relacionar com os outros processos judiciais existentes sobre a mesma matéria no que respeita à gestão das expectativas da sociedade relativamente ao comportamento, força e integridade do judiciário como é o caso do famigerado julgamento das dívidas ocultas que se avizinha no quadro do Processo n.º 18/2019-C, com termos na 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo.
CONCLUSÃO
Qual a ratio dos acórdãos do Conselho Constitucional sobre as dívidas ocultas senão decisões políticas com pele jurídica ou decisões jurídicas com conteúdo e valor político? Na verdade trata-se, pois, de uma espécie de norma jurídica “morta” e caso para dizer que “a montanha pariu um rato.” O carácter moribundo dos acórdãos em questão cria um certo cepticismo sobre a eficácia do julgamento das dívidas ocultas que inicia no dia 23 de Agosto corrente e sobre a esperança pela emanação de uma decisão justa e conscienciosa de cunho jurídico e não meramente de interesses políticos.
No que à geração vindoura de profissionais da justiça diz respeito, é complicado ensinar o valor e eficácia da jurisprudência do Conselho Constitucional com base nos acórdãos em alusão nas Escolas de Direito, senão numa vertente exclusivamente teórica.
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
A recuperação de Mocímboa da Praia, sem dúvidas, marca uma nova fase na luta contra os insurgentes. No campo militar, a moral das Forças de Defesa e Segurança (FDS) e das tropas ruandesas está em alta e novas conquistas são esperadas. Na azáfama das conquistas, o Chefe de Estado Moçambicano pediu à Força em Estado de Alerta da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) que abra caminho à ajuda humanitária em Cabo Delgado. Do seu discurso pode escortinar-se a preocupação em ver reabertos os corredores logísticos por terra e pelo mar. Vale lembrar que o troço Pemba-Palma foi inicialmente preterido pela Anadarko como corredor logístico de suporte às suas operações em Afungi, passando a usar a via marítima e ponte aérea através de Mocímboa da Praia. A Total que adquiriu a concessão de gás à Anadarko, deu continuidade a mesma política e com o agravamento da insegurança, passou a usar a ponte aérea de Pemba para Mtwara na Tanzânia, e deste ponto para Palma.
Os corredores logísticos de suporte a indústria de gás tem sido o centro de atenções dos principais players, incluindo os grupos terroristas. Estes últimos, com um desdobramento adicional no controlo dos recursos naturais do interior, onde se verifica a ausência do Estado, para financiar suas operações. Vários estudos apontam para uma correlação entre a exploração ilegal dos recursos naturais (madeira, caça furtiva, minerais preciosos etc) e o financiamento a actividade terrorista.
Não é minha intenção divagar no campo das operações militares e seus desdobramentos, até porque os dados para o efeito são escassos. No entanto, há que perceber que os grandes players externos, quer estatais e privados, têm clareza dos seus interesses no conflito de Cabo Delgado, quer sejam eles económicos, geopolíticos e até de prestígio e berganhas. Muitos destes interesses estão alinhados ao que chamaria da Primazia da Indústria de Gás, que não necessariamente se alinham ao Interesse Nacional. Há um risco, sempre presente, de confundir-se tais interesses com os interesses supremos da nação, resultando no embaciamento dos reais problemas que o país deve enfrentar, muitos dos quais na origem do surgimento do extremismo violento.
A história da sociedade moçambicana é marcada por ciclos de conflitos intermitentes, saímos de um conflito para o outro, e as estruturas de organização social, produtiva e política absorvem novas formas de conflito. Mesmo partindo do pressuposto, assumido por várias correntes de pensamento, de que fanatismo islâmico é um elemento exógeno à nossa realidade, a verdade é que o mesmo se ancorou em bases sólidas endógenas (factores internos do conflito) que propiciaram a sua transformação em um fanatismo localizado. Aqui reside a importância estratégica da interpretação crítica e minuciosa da recuperação de Mocímboa da Praia e dos seus desdobramentos.
Se por um lado os players externos colocarão maior primazia para indústria do gás (no sentido negativo – retardar a retoma das operações em Afungi e reduzir a competitividade do país; ou positivo – retoma da exploração do gás e seus dividendos), caberá ao Estado Moçambicano discernir suas prioridades endógenas e contrabalançar tais interesses externos. A curto e médio prazos não é, e não deve ser a prioridade do país a retoma das operações da indústria do gás. Pelo contrário, a prioridade são as pessoas; são os milhares de deslocados internos em extrema necessidade de assistência humanitária; é a compreensão e resposta aos elementos endógenos incubadores do extremismo violento, sem dependência da indústria do gás. A ansiedade de colher dividendos da indústria de gás a curto e médio prazos, para fazer face a uma economia em frangalhos, deve ser substituída pela vontade e prontidão em responder aos elementos atrás mencionados sob pena de plantar as sementes dos novos ciclos e formas de conflito e violência.
A opção diplomática defendida por determinados sectores só será efectiva se de forma crítica e pragmática, transitar-se dos chavões políticos para responder aos problemas estruturais associados ao conflito. Há que responder as seguintes questões: i) A Desmaputização do emprego na indústria do gás em Cabo Delgado – em que jovens circunscritos ao espaço geográfico de Maputo (independentemente da sua origem étnica) devido ao acesso a informação, formação e redes de influência, dominam o marcado de emprego associado a indústria do gás em Cabo Delgado; ii) A ausência de um Estado doptado de políticas semi-providencialista e contextualizadas para comunidades marginalizadas de Cabo Delgado, Nampula e Zambézia; iii) O reconhecimento das desigualdades étnicas históricas e históricas elitistas no acesso aos meios de produção; iv) A identificação de formas inclusivas e progressistas para fazer face a informalidade que caracteriza a exploração dos recursos naturais pelo país; e v) A diversidade no acesso as diversas formas de poderes localizados. Estas e outras, são contradições históricas profundas e de longa duração que carecem de um devido reconhecimento e tratamento como uma agenda nacional.
Num desses dias, fui convidado, como habitualmente, a ir fazer comentários numa estação televisiva da nossa praça. Nesse dia, um dos muitos friorentos que Maputo tem tido este ano, trajava eu uma camisa executiva e um blusão preto de cabedal, egípcio, para me defender do frio. Estava eu semiformal e, digamos, com ar jovial. Lá me apresentei aos estúdios e, durante cerca de quinze minutos, fiz os comentários que fiz fundamentalmente sobre a situação da COVID-19 e as medidas de prevenção da sua disseminação que o Chefe do Estado ia anunciar instantes depois.
Terminada a sessão e a caminho de casa, lá vieram as reacções. Uma, dum amigo, bem estudado, docente universitário. Do que eu disse ou não disse no pequeno ecrã, falamos pouco, en passant. A maior observação dele foi que devia ter ido de casaco e gravata!... fiquei whititiii, sem uma única palavra na boca, e ele a perorar por aí. Com efeito, esta não era a primeira observação que me era feita neste sentido; numa outra ocasião, uma outra pessoa amiga também ela muito bem estudada e docente numa instituição de prestígio. Dessa vez, porque apenas não trazia gravata, estava de blazer, mas não tinha gravata… Djizes Crest!
Esta parece ser, de certa forma, o tipo de sociedade que somos: focados no acessório, no superficial ou supérfluo. Estamos bastante preocupados não com a essência, com o conteúdo, a mecânica das coisas; mas com a superfície, com o contentor, com o que se nos aparece na vista, a parecença! Não que a indumentária não seja importante, até é; mas daí a ter-se como o mais importante do que as ideias numa pessoa…
E isto explica perfeitamente a razão de ser de muitas das nossas atitudes, percepções, decisões, opções, debates e discussões. Valoramos muito a aparência, a superfície, o nome, o que aparece à vista. Melhor: o que se deixa ver. Infelizmente, os factos ou fenómenos, sejam naturais ou sociais, vão muitíssimo além!
Numa outra crônica passada, escrevia que o nosso modus operandi era: “Alguma coisa, instituição, empresa, ministério, selecção de futebol, não funciona, não está bem, não tem os resultados esperados? O remédio santo é mudar de nome! Simplesmente isso. Mudamos de nome!” Quase, quase, os Mambas ficavam Rinocerontes! A nossa atitude vem justamente nesta linha de valoração da aparência. Pensamos que com apenas um nome que nos soe bem a coisa vai funcionar e trazer os resultados que esperamos. Tadinho de nós!...
Ante os colossais problemas da nossa justiça, cobertura territorial nacional incipiente, poucos magistrados, justiça muitíssimo morosa, ineficiente e… mais alguma coisa; a grande discussão, o grande debate entre os nossos prestimosos magistrados é se os advogados devem ou não levantar-se quando o juiz entra na sessão de julgamento!...
Não menos delirante é a discussão entre o comandante geral da nossa PRM e os artistas… até os artistas, sobre se se pode ou não usar o fardamento policial nas representações artísticas… Came on! É esta uma questão essencial em ambas as instituições? Dos tantos e colossais problemas que a nossa Polícia tem, o seu comando ainda encontra espaço para se insurgir contra o facto de o artista usar farda policial no palco… os artistas, por seu turno, distraem-se, apartam-se da criação artística para disputarem fardamento policial… a arte só é arte quando se usa fardamento da Polícia? Desfoque absoluto! Absurdo...
E que dizer da grande discussão que estamos a assistir entre o governo e as universidades, sobre se o professor licenciado deve ou não dar aulas nas universidades. Para muitos, ante a grande questão da fraca qualidade do nosso ensino superior em debate, o remédio santo, a varinha mágica é a proibição de o licenciado exercer a docência nas universidades e daí vamos passar a ter ensino superior de qualidade. Mais uma vez, olvidamos o essencial e ficamos na aparência! Para nós, o licenciado é a causa, ou uma das causas da fraca qualidade do nosso ensino superior. E o doutorado é o remédio santo, a varinha mágica! Que abordagem rústica, tosca!
Da forma como alguns olham para a questão (para o licenciado), não se dão tempo de pensar sobre de que licenciado estamos a falar, não lhes interessa se é um licenciado extraordinário, que fez o curso com altíssima classificação, se investiga e publica, se participa em seminários, colóquios, etc., etc. Não, tudo isso não é relevante. Mais importante é que ele é licenciado e ponto final e, assim sendo, não pode pôr o pé numa sala de aulas de uma universidade.
Nem temos em conta que, inversamente, há doutorados e doutorados; nem todos são qualidade e excelência que pensamos ser. Muitos, o trabalho que se lhes conhece é a sua desconhecida tese de doutoramento, não se lhes conhece nenhum outro escrito, vivem anónimos; não investigam, são maus comunicadores, menos profissionais… e esses é que devem ser, na nossa definição, os docentes nas nossas instituições de ensino superior! Que abordagem ruim, a nossa! Mas é reveladora, por excelência, da sociedade superficial que nós somos.
José Soares Martins, já falecido, Deus o tenha, é um dos maiores historiadores de Moçambique; escreveu que se farte sobre a nossa história; e mesmo assim, na nossa abordagem, não podia dar aulas a um candidato a licenciado!... Fátima Mendonça… uma das grandes estudiosas da literatura moçambicana, tinha, na nossa visão superficial, que não dar aulas na universidade! Na Faculdade de Direito, foram formados grandes juristas (juízes, procuradores, advogados, etc.) no país por docentes… licenciados; não havia ali doutorados aos magotes, como se preconiza e apregoa! Idem aspas na Faculdade de Engenharia! Temos, neste país, muito grandes engenheiros que fazem milagres, formados por docentes… licenciados!, que não deviam dar aulas na universidade!...
Tem razão, pois, o Prof. Lourenço do Rosário, ao defender que as IES são autônomas para convidar quem quiser para dar aulas nas suas salas! A qualidade não está no nome, nem na aparência (casaco e gravata): está na essência!
Concentremo-nos mais na estrutura profunda das coisas e não na de superfície, se queremos uma sociedade de qualidade!
A ciência, assim como o desenvolvimento, são dois campos cuja definição não se mostra tarefa fácil, sendo que ambos estão revestidos de contradição ou falta de consenso teórico. Historicamente, ao abordar sobre o desenvolvimento faz-se referência primária para o campo económico, sobretudo em oposição ao crescimento quantitativo de um determinado país.
Relativamente ao termo “ciência”, Fontaine (2008)[1] sublinha que é emprestado do latim scientia, significando “conhecimento” em sentido amplo, ou ainda “conhecimento científico”, e tendo em conta os tempos clássicos o significado da episteme grega – “conhecimento teórico”. Assim, ciência designaria primeiro um know-how obtido pelo conhecimento agregado à habilidade, para então denotar, posteriormente, o conhecimento adquirido em um objecto de estudo detalhadamente definido. A ciência, tanto do ponto de vista teórico como teológico, designará cada vez mais um conhecimento perfeito, preciso, rigoroso e mais preocupado com o formalismo (este formalismo que lhe será conferido, nos tempos modernos, pelo uso generalizado da ferramenta matemática que permite equacionar métodos de pesquisa e resultados).
Embora sem consenso, podemos afirmar que no sentido mais amplo, a discussão sobre ciência é agregada numa tipologia onde temos (1) ciências naturais (física, química, ciências da vida, do universo e da saúde); (2) ciências tecnológicas (comunicação e electrónica, sobretudo); (3) ciências humanas e sociais (economia, sociologia, ciência política, antropologia, história, geografia, psicologia, entre outras) ou ainda (4) ciências exactas (matemática, por exemplo).
Segundo Chatelin (1986)[2], ciência e desenvolvimento definem uma questão que parece bastante clara. Para o autor, existe uma ideia amplamente aceite de que o próprio desenvolvimento deve ser acompanhado e apoiado pelo progresso científico, embora alguns posicionamentos discordantes às vezes sejam ouvidos. De facto, Chatelin (idem) avança que existe quem afirme que a pesquisa baseada nas humanidades é completamente inútil em países sem desenvolvimento avançado, dado que as necessidades são outras. Embora recorrente, consideramos que tal proposição constitui um exercício teórico equivocado, pois está desprovida de uma convicção real. Para nós, não se pode equiparar a(s) ciência(s) em função do seu peso ou falta dele.
Nos últimos anos, o debate entre ciência e desenvolvimento foi substituído pela necessidade de ‘’saber fazer’’[3] e realização de uma ocupação profissional, sobretudo por parte de uma franja populacional considerada jovem em países como Moçambique[4]. As idades entre 14 e 20 anos podem ser consideradas de auto-descoberta, exploração de habilidades e busca de um lugar na sociedade, sendo que é justamente ao longo dessa idade que se cristaliza uma maior capacidade crítica em relação às regras sociais e familiares estabelecidas e a outras coisas que, mais ou menos, simplesmente eram aceites sem questionamento. Em suma, é uma idade biológica desafiadora para muitos pais e professores, sobretudo quando seus filhos e alunos questionam sua “sabedoria” e começam a encontrar respostas para os problemas que eles acham que seus pais não podem resolver adequadamente[5]. Da mesma forma, a ciência explora o mundo além das limitações actuais do conhecimento, desafia a “sabedoria” e se propõe a encontrar respostas.
Atrair os jovens para a pesquisa científica também se tornou um tópico de crescente importância do ponto de vista da ciência. Por exemplo, nota-se que cientistas, economistas e políticos em países como Estados Unidos da América vêm lamentando o número decrescente de estudantes que escolhem uma carreira nas ciências naturais e exactas. A preocupação é com a diminuição de potenciais cientistas e engenheiros, o que poderia dificultar o crescimento de indústrias de alta tecnologia, particularmente biotecnologia e tecnologia da informação. A questão de tornar a ciência e a pesquisa atraentes para os jovens gerou muitos debates sobre o futuro da pesquisa em si, bem como das tecnologias relacionadas (Mervis, 2003[6]; Moore, 2002[7]).
Se tomarmos a nossa introdução sobre a definição de desenvolvimento e aplicar ao contexto moçambicano, provavelmente não seja possível captar a real sensibilidade sobre o contributo que existe para a ciência. Com a noção de liberdade acoplada ao desenvolvimento, fica-nos como questão compreender de que forma o desenvolvimento pode ser relacionado com a(s) ciência(s). Porém, as advertências actuais para a ciência são numerosas. Sabemos, em primeiro lugar, que a ciência não leva necessariamente ao desenvolvimento, que o tempo de resposta pode ser longo, que apenas parte da ciência pode se tornar útil. Sabemos ainda que as aplicações da ciência nem sempre são boas, a manipulação genética, por exemplo, é assustadora.
No caso de Moçambique, verifica-se a tendência de uma aposta baseada na ciência enquanto técnica e prática, dentro de um prisma que pretende, de forma urgente, capacitar uma franja populacional ávida em busca de sustento para alívio de pobreza que, tal como vista por Amartya Sen (2001)[8], é um empecilho para o desenvolvimento como liberdade. O tripé sobre jovens, ciência(s) e desenvolvimento em Moçambique é limitado pelo facto de existir uma preocupação que toma a ciência enquanto um escopo técnico e prático, sem promover áreas que possibilitem abordar a própria ciência por via de outras lentes, ou seja, ciência no plural.
Por um lado, a criação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, e consequentemente do Fundo Nacional de Investigação (FNI), são disso um exemplo eminentemente de aposta técnica, sobretudo quando o FNI se define como tendo a missão de ‘’(...) promover a divulgação do conhecimento científico, a investigação científica, a inovação tecnológica e a formação de investigadores, contribuindo para o desenvolvimento sócio-económico de Moçambique’’[9].
Por outro lado, podemos tomar como exemplo a criação da Secretária de Estado da Juventude e Emprego, que toma a ciência como possibilitadora do desenvolvimento de capacidades de uma franja da população, cuja necessidade laboral é premente – o que é feito através do ‘’empreendedorismo’’, formação e capacitação técnico-profissional. Dessa forma, pensamos que a abordagem sobre jovens, ciência e desenvolvimento deve ser feita tendo em conta a existência de outras janelas em que a própria ciência pode ser aplicada, embora se reconheça a necessidade de prover empregabilidade para esses mesmos jovens que enfrentam problemas de variada ordem.
Entendemos, por fim, que Moçambique padece de um dilema que pode ser resumido na incapacidade em promover a ciência para além do suprimento das necessidades dos jovens, razão pela qual questiona-se sobre como estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de sobrevivência (sobretudo dos jovens), sem excluir a aposta na(s) ciência(s)?
*Este texto foi revisto/adaptado de uma comunicação proferida em 12 de Agosto de 2020, por ocasião do Dia Internacional da Juventude, em resposta ao convite da APDS – Academia de Pesquisa & Desenvolvimento Sustentável.
[1] Fontaine, P. (2008), Qu’est-ce que la science ? De la philosophie à la science : les origines de la rationalité moderne, Recherche en soins infirmiers, 92(1).
[2] Chatelin, Y. (1986), La science et le développement. L’Histoire peut-elle recommencer ?, In: Tiers-Monde, tome 27(105).
[3] Do francês savoir-faire ou do inglês know-how, designa um conjunto de conhecimentos, aptidões e técnicas adquiridos por alguém ou por um grupo, geralmente através da experiência, competência na execução de certas tarefas práticas e em determinadas actividades artísticas ou intelectuais.
[4] Não existe uma única definição sobre quem pode ser considerado jovem. Porém, a média de idade em Moçambique está fixada nos 16 anos, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE, 2019).
[5] Ver mais em Csermely, P. (2003), Recruiting the younger generation to science, EMBO reports, 4.
[6] Mervis, J. (2003), Down for the count?, Science, 300.
[7] Moore, A. (2002), What you don't learn at the bench, EMBO reports, 3.
[8] Sen, A. (2001), Development as Freedom, OUP Oxford, new edition.
[9] Fundo Nacional de Investigação (FNI) – https://fni.gov.mz/sobre-fni/ – é uma instituição que se define como promotora da pesquisa científica, tendo como base a inovação tecnológica em Moçambique.