Uma característica comum dos centros urbanos é de densidade populacional elevada. As cidades levam consigo um ambiente multicultural nacional e estrangeira. Simultaneamente, os grandes centros urbanos são geralmente os que grandemente impactam o índice de criminalidade dos Estados. Outra particularidade é que as cidades, principalmente as que se inserem em países com baixo nível de índice de desenvolvimento humano e com um sistema de justiça em desenvolvimento, ou são acompanhadas de sobrelotação das penitenciárias. Portanto, as cidades se apresentam como centros de busca de maiores e melhores condições de vida, mas, simultaneamente, centros com alto nível de população em reclusão. Como é que os Estados em democratização lidam com esta realidade, do ponto de vista democrático? Será que a população nas cadeias tem o tratamento que acompanha o ritmo da sociedade? Ou os centros de busca de oportunidades são centros de limitação de espaço democrático e de cidadania? Estas são questões discutidas neste artigo, tendo em consideração o espírito de democratização, construção e desenvolvimento de modelos.
Uma das tendências das chamadas novas democracias ou “democracias da terceira onda”, como ensina o Professor Huntington, é a busca de modelos e muitas vezes olhando para as democracias do Ocidente. Esta busca de modelos parte da assunção de que entre as velhas democracias existe um modelo perfeito, se assim se pode dizer, que seja ajustável ao caso que buscam melhorar. Mas tal assunção é falaciosa. O mesmo ocorre na legislação, desde a Constituição aos demais instrumentos jurídicos domésticos, passando pelos tratados e convenções internacionais e regionais. Qual seria o modelo de lei, ou leis, que melhor se ajustaria aos países africanos, particularmente Moçambique?
A busca de modelos peca por ter como dado adquirido que o mesmo foi desenhado, experimentado e, como resultado do seu sucesso, merece uma aprovação definitiva. Todavia, como muitos processos sociopolíticos e legais mostram, o contexto do seu desenvolvimento conta e a sua replicação comummente falha por não termos contextos iguais. Um dos exemplos comuns ocorre nos processos de descentralização de políticas. O outro, comum, é da legislação, que os países ora adoptam por influência externa ou pela moda da lei. Como resultado, ou levam tempo sem implementação efectiva ou assumida como modelo com base no sucesso de outras nações. As penas, na aplicação da lei tida como modelo, pode extravasar a intenção e tomar um rumo menos democrático. Ora, se Moçambique rejeita determinadas regras do jogo democrático, assumindo não serem ajustadas à cultura, quem foi que disse que excluir o voto dos reclusos do processo eleitoral era um desacerto?
Quem foi que disse que o encolhimento da cidadania e direito ao voto seria um problema? Por que razão o recluso não pode votar quando a intenção é de punição ou reeducação passa igualmente pelo conhecimento e busca do melhor comportamento democrático. Sugere-se que da mesma forma que as cidades são de densidade populacional elevada, as cadeias possam ser centros de educação e reeducação democrática e, automaticamente, com o direito ao voto. Não deixa, no entanto, de ser verdade que o tipo de crime seja factor a examinar para este direito. Ademais, Moçambique é signatário de instrumentos jurídicos internacionais sobre o tratamento de reclusos (ex. Regras de Mandela e Declaração Universal dos Direitos Humanos), nesse sentido, não pode descartar o direito ao voto, como algumas sociedades tidas como mais democráticas adoptaram. O nível de democraticidade não depende do nível da população sem direito a voto, mas, em parte, da população que tem direito ao voto.
Uma falácia nas democracias em estado embrionário e com separação de poderes geralmente questionada seria de assumir que o Judiciário depende necessariamente do Executivo. Nessa perspectiva, assume-se que um voto vingativo do recluso contra o governo do dia. Mas quem foi que disse que os reclusos optariam pelos partidos da oposição e seus representantes? Aliás, as cadeias não se situam somente em locais onde a oposição a nível central é diferente da oposição em níveis subnacionais. Ou estará a sociedade a assumir que os criminosos têm penas automaticamente agravadas pelo facto de terem cometido qualquer tipo de crime? Curiosamente, é que a mesma população em reclusão é composta por cidadãos que sobrevivem com base nos impostos dos cidadãos livres.
Espírito da legalidade poderia ser um engano, como alguém diria, em primeiro lugar, “há bandidos mais bandidos” na cadeia que os que estão em liberdade. Segundo, há criminosos da elite que, por força do poder económico e ou político, conseguem curvar a lei e usufruírem de direitos legítimos e, na esteira do nosso pensamento, ilegítimos, incluindo o da escolha de dirigentes e representantes. Terceiro, há aparentes criminosos que estão ilegalmente em reclusão por força da falta intervenção do Estado, com legitimidade questionada, por mantê-los com processos estancados. Estado desgraçado?
As estatísticas de 2024 revelam uma população prisional de aproximadamente 22 mil, dos quais cerca de 6.200 em estado de prisão preventiva, cerca de 15.600 condenados.[1] Sem dados detalhados, revela-se que o roubo de telemóveis e botijas de gás são dos crimes mais frequentes. Ora, sendo o estado de reclusão destes uma contribuição para reeducação ou mudança de comportamento, que razão se encontra para impedi-los de votar? Até prova em contrário, o cidadão em estado de prisão preventiva não é criminoso, então que razão se busca para recluí-lo do seu direito de voto?
Para além da falta de recursos humanos, o Estado carece de meios financeiros, o que não constitui obrigação do cidadão aparentemente criminoso cuidar do expediente processual. O direito ao voto é supremo para a evolução do Estado e seu nível de democraticidade. Ademais, a reclusão da liberdade de escolha poder-se-ia equiparar à limitação da liberdade de opinião. Consideremos o momento de repensar na lógica democrática e retirar algemas da escolha de seus dirigentes e representantes. Por escolha de dirigentes que não se confunda com a escolha de actores do poder judicial. Aliás, os partidos políticos têm o direito à campanha eleitoral nas penitenciárias, fora da falácia de quem gere o Estado.
A clausura do direito à livre escolha não é em si pena, como se pode subentender do actual estágio de legalismo e não legalidade. Portanto, a limitação do direito ao voto desfavorece o crescimento da democracia. Entretanto, pela lógica do argumento, determinados tipos de crime são plausivelmente considerados para a reclusão do voto, especificamente o homicídio voluntário. Este crime, por si só, explica que ocorreu um crime patente contra a democracia: a retirada do direito ao voto de potenciais eleitores. Cada vez que um homicídio ocorre, é um efectivo ou potencial jogador da democracia que é definitivamente retirado da esfera do Estado. Como consequência sugestiva, este cidadão retirado da esfera da democracia, é insubstituível. O homicida provado não poderia deter direitos democráticos.
O que fazer perante factores que importam para a cidadania, democracia e legalidade? Moçambique é uma democracia embrionária que não procura replicar, mas promover o espírito educativo e correctivo da cidadania. A mando do tempo e da razoabilidade, todo o cidadão em reclusão tem direito legítimo ao recenseamento eleitoral prévio e exercício do direito de voto no seu ambiente de reclusão física, e não de atrofiamento da cidadania. Ademais, Moçambique subscreveu a Declaração Universal dos Direitos Humanos que prevê que “todos os presos [reclusos] devem reter os direitos humanos e liberdades fundamentais”, implicitamente, princípios da democracia. Secundado pela Constituição da República, “nenhuma pena implica a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos” (Artigo 61). A penitenciária não é local de enfraquecimento e reclusão da vida política, mas de correcção e promoção da cidadania. Os centros urbanos não são somente de busca de maiores e melhores oportunidades, e as penitenciárias também de estágio da cidadania e cultura político-democrática, o contrário de reclusão do voto.
[1] Dados do Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP)