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quinta-feira, 21 janeiro 2021 09:04

O dilema de Mariano Nhongo*

Está com medo como nunca. Ele já atingiu a última linha para o abismo onde lhe esperam as verrumas de aço, onde seu corpo será espetado como carne a ser servida aos convivas do inferno. Mariano Nhongo é um pêndulo sem confiança, como sempre foi depois da morte de Afonso Dlakama, nunca teve certeza de nada. Agora caminha completamente no escuro com o tacto a fugir-lhe, está atordoado. Se fosse um ndawu puro seria este o momento para optar pelo suicídio, mas não é ndawu, mesmo assim é a única alternativa que lhe sobra. Entre dar o derradeiro salto rumo ao vazio da noite onde reinam as hienas com as suas sinistras gargalhadas, e levantar os braços da rendição sem a certeza de que será recebido com amor, o general acha melhor entregar sua carne aos abutres.

 

Nos últimos dias anda em estado permanente de embriaguês mas sem perder a lucidez. Quanto mais ébrio, mais esclarecido. Perdeu o apetite e a vontade de continuar uma luta que lhe levou a verter sangue dos seus próprios irmãos. É esse sangue que agora jorra em catadupa sobre a sua cabeça, cobrindo-lhe os olhos que já não vêem nada. Não dorme, nem de dia nem de noite, o álcool e a cannabis que fuma sem parar, não produzem mais o efeito desejado, Nhongo pretendia com esses estimulantes ganhar coragem e manter o seu estatuto de general, mas tudo isso esfumou-se, ficou um esqueleto em fim de carreira.

 

Os subalternos deixaram de cumprir as ordens do ora temido homem tido como cicerone de Dlakama, aliás Nhongo esvaiu-se, não dá mais ordens, mesmo que as desse ninguém as cumpriria porque todos os seus sequazes andam bêbados também, como ele. Outros fugiram e entregaram-se, porém há muitos outros que manifestam no fundo essa vontade, mas têm medo de voltar, como o próprio comandante, que deixou de ir ao rio tomar banho, anda desmazelado.

 

Quando o general ainda acreditava na sua paranóia, ia ao rio livremente e os crodilos fugiam, assim como capitulavam os militares das FADM ao saber da presença desse tigre perigoso num determinado teatro das operações. Mariano Nhongo tinha nos amuletos dos curandeiros mais afoitos de Machanga, a sua fortaleza inabalável, chegou de facto a estremecer os fundamentos da Frelimo. Nhongo era a fúria da cordilheira de Gorongosa, mas hoje todo aquele baluarte está em derrocada, o homem do momento está a despedaçar-se. Em fiapos.

 

Em toda a sua vida da guerra mais cruel do século passado na África, Mariano Nhongo nunca tinha encarado uma hiena, animal abominável, porém muito feroz quando se junta aos outros bichos da mesma estirpe e partem em matilha para o ataque. Hoje são esses bichos desdenháveis que guarnecem a cubata sombria do general que não pára de beber e fumar cannabis em vão. As hienas riem-se de Nhongo e nas noites mordem-lhes as costelas nos pesadelos de não acabar.

 

O troar dos canhões que se ouvia ao longe, agora ribomba perto, anunciando a última hora de um relógio que funciona com sangue. Estes são os últimos dias, na verdade, de um grande lagarto que deixou de se mover ou que se move em direcção ao cadalfalso. Mariano Nhongo vive as últimas alucinações.

 

*Texto imaginário

quarta-feira, 20 janeiro 2021 08:33

“Bang 4 Life”

Não sei como é que criaste esta assinatura, mas talvez Deus sabia que em todas as produções da Bang Entretenimento que acompanhei, desde muito cedo, essa voz desafiadora em cada videoclipe do Marcell, era a tua imagem de marca.

 

Lembro-me de ti desde como parte do meu debute profissional, em Moçambique. Eu era novinha em Maputo. Com o meu sotaque “tuga”, e toda a minha bagagem e as experiências europeias inerentes à minha narrativa. Tu e a tua “Gang” eram um produto engraçado de trabalhar para uma miúda que ainda não tinha chegado aos 30.

 

Lembro-me perfeitamente como tudo começou e a Bang Entertainment entrou na minha vida. Depois de uma passagem pelo grupo Soico, fui copy da agência GOLO e como tinha muitas ideias o Thiago Fonseca criou um departamento de marketing relacional para criarmos os conceitos do bellow the line para o Verão Amarelo da Mcel a tua maior patrocinadora antes da vermelhinha.

 

Na altura lembro-me de estar na sala dele, com o Tito e a Sandra a apresentar, sozinha, o projeto que tinha para esse início de Verão “sem qualquer responsabilidade” da GOLO. A cena Bateu! E a ideia foi aprovada.

 

É bom! Como dizemos aí. E o meu atrevimento valeu-me o melhor Verão Amarelo de sempre durante o tempo que trabalhei na GOLO. Enquanto isso, entre os concursos da miss Coconuts era preciso show e é aí que me lembro da voz rouca do Denny OG, uns tempos mais tarde do “Teresinha Você”, e de um grupo de miúdos que era constituído pelo molwene mais desejado da cidade – o nosso Ziqo Ziquinho – a estudante de Direito, Dama do Bling, a voz suave da Lizha que muitas vezes te vi ir buscar à Josina Machel no teu carapau branco, os Mozdance  e as Dejá Vu, dançarinos de apoio dos músicos da Bang e toda uma estrutura que passou de “Gang” a produtora de sucesso nos meados dos anos 2000.

 

Se estivesse a partilhar isto contigo agora íamos rachar. Porque ninguém começa de cima, a não ser os que já sabemos, e tu não começaste. Tinhas entre 23 e 25 anos quando decidiste ser o produtor “grande”. Eu, que nem sou do tempo do Alex Barbosa, só consegui aferir duas pessoas até hoje – durante os dez anos que vivi em Maputo -  que conseguiram fazer “shit´s” no entretenimento em Moçambique. Tu e o Tio Julinho, com os shows dele. Que também não nos podemos esquecer. Mas você tinha label.

 

Tinhas aquele ar bruto e arrogante, que muita gente descreve, mas já se colocaram no teu lugar, Bang? Um puto que provavelmente naquela altura vivia na Malhangalene a encher o Coconuts com músicos nacionais, fechar parcerias com operadoras móveis para grandes concertos e conseguir colocar no mercado sem “rochar” cerca de cinco a seis músicos em permanência durante anos? Até o Big Nelo rendeu no dia que tu partiste e também tive orgulho da minha costela angolana ao ouvi-lo falar de ti.

 

Por isso demorei a escrever, porque intenções há muitas, mas é preciso fazer homenagens com base no teu percurso e não em especulações e ausência de empatia que ando a assistir um pouco por todo o lado. Mas não te preocupes. Personalidades como o Luís Moreira, Beto Sarmento – que te abriram a porta do Coconuts – sabem a dimensão do teu esforço.

 

Como dizia ontem o Big Nelo tu conseguiste trazer a soberania da música moçambicana que nunca tinha sido conquistada até à data. Sempre vivemos de cooperação e não de produção. Por trás de um concerto havia sempre uma instituição e não um produtor sozinho e eu, também como produtora cultural, nunca te cobrei “cultura”. Tu eras puro entretenimento. O que o povo precisava para se empoderar. Eu empoderei-me com a primeira música da Dama do Bling. “Quem é que tem mais style?” E vinha da Europa onde já tinha assistido Prince, U2, Jamiroquai e outras bandas icónicas, mas nunca tinha assistido a nascimento de projetos de raíz.

 

Até hoje rendo com “Essa Mulher é Minha”! E o mais recente “Tá Nice”, onde envolveste sangue novo com os Big Five ficou muito bom. Via-se estratégia em tudo. Até naquela camisete “Moluene”.

 

Nós que tínhamos acesso às traseiras do “Mini-Golf”, quando subíamos aquelas escadas, depois dos shows acabarem, assistíamos a um grupo de putos felizes por fazerem o que gostam e fazerem a “bomba rebentar” – esta é para ti Denny OG.

 

Foi aí que foste crescendo e a fasquia aumentou. Anselmo Ralph, Nelson Freitas, Pérola, Matias, Alcione e tantas outras internacionalizações fizeram a Bang crescer.

 

Mas antes vou voltar atrás. Lembras-te da rota da Mao Tse Tung? Onde toda a malta se encontrava e se preparavam para os shows? Era no Nephitys que tu entravas para partilhar ideias, dar bronca nos atrasados, falar alto com o DJ Marcell a combinar próximo clip e foste fazendo a tua life.

 

Querido por uns e odiado por outros. Ninguém pode agradar toda a gente e não é porque partiste que te estou a endeusar. Estou apenas a partilhar uma história que existe, não tem outra versao que não esta, e que o André, o Ardilles, o Deejay Júnior, Valdemiro, Cátya, Lizha, Ivânea, Doppaz não me vão deixar mentir.

 

Bang não perdeu tempo, não deixou nada por fazer. E fez bem, com os recursos à medida dos seus sonhos. Vais fazer falta puto, mesmo assim com todos os molhos.

 

Profissionalmente só te posso descrever até ao último Team de Sonho que organizaste com os angolanos, a minha outra costela, em 2012, e aquela viagem que fizeste a Luanda em 2014 onde fizemos uma produção para a Lizha e a entrevistei para a revista Lux Angola. Sei que sempre confiaste em mim e que não te atrapalhavas com as minhas verdades. Mas sempre que regressava a Maputo rachávamos.

 

A última vez foi no ginásio, lembras? Estávamos no Power do Baía Mall a tentar perder as nossas barrigas, em 2018. Mês de Março. Quando mais uma vez fui fazer o meu festival “Jardins em Festa” e como sempre nos tivemos respeito mútuo rimos e perguntaste se estava feliz na Tuga. Disse que sim. Tu continuaste lá a fazer metade do treino, porque o telefone era o teu melhor amigo e o teu Personal Trainer sofria contigo!  Acho que para 1h de tempo levavas 3h (risos)

 

Bang. A última vez que falámos foi em julho. Entraste num direto meu e mandaste um DM (mensagem) para falarmos.

 

Tenho a certeza que tinha a ver com o teu projeto televisivo e o que eu puder fazer para esse sonho continuar conta comigo.

 

Bang 4 Life, Nigga!

quarta-feira, 20 janeiro 2021 08:24

Fecharam o “Takidir”. E a Lixeira do Hulene?

Quando recebi a notícia de que fecharam o “Takidir” lembrei-me do  Bill Gates e de monumentos. De Bill Gates porque este uma vez disse que se não tivesse abraçado o mundo dos computadores teria optado por vender frangos e de que o resultado teria sido o mesmo: a riqueza.  De monumentos  porque considero o “Takidir” um património histórico da cidade e quiçá do país. Infelizmente o Bill Gates não disse se com a alternativa ele  teria  enriquecido fora dos EUA, especificamente em  Moçambique.

 

De toda maneira, existem empresários  em Moçambique, incluindo os do “Takidir”,  que se dedicam ao negócio do frango. Serão ricos? Não sei, pelo menos, salvo melhor informação,  nunca o disseram, nem em privado (para os que conheço) e nem em público (também para os que conheço e não só). Aliás, “O segredo é a alma do negócio” já diz o ditado. Porventura, e avaliando as razões do fecho do “Takidir”,  alguém conhece as condições higiénicas em que são produzidos os computadores do Bill Gates? Por outro lado, e salvaguardando a ideia  de que o “Takidir”  é um  património histórico da cidade,  entendo de que o seu encerramento carecia de um  outro tipo de protocolo. E como? No mínimo que fosse  feita uma consulta pública aos munícipes  consumidores do seu frango. Na verdade, e diante das últimas medidas de combate à Covid-19, o “Takidir” já se encontrava  “fora do jogo” por conta do seu  horário de ponta (das 8 da noite às 6/7 da manhã) que casa com o do fecho da restauração. E isto -   atirar sobre um estatelado -  não é justo  e nem é  ético.

 

Contudo e para concluir: o Bill Gates ficou por explicar  em detalhe o processo  de enriquecimento com a venda de frangos e a um preço concorrencial. E o INAE, a entidade competente e que exarou o fecho do “Takidir”,   terá que explicar se a imundície (e os negócios)  na Lixeira do Hulene - um outro monumento da cidade – não justificaria também uma visita  e ao seu imediato e irreversível  encerramento.

terça-feira, 19 janeiro 2021 09:44

Mário Ferro

Um dia, tinha eu 20 anos, a idade da minha filha Mayisha hoje, desci a pé pela Vladimir Lenine abaixo e fui ter ao mítico jornal Notícias, na vetusta Joaquim Lapa. Pedi para falar com o Chefe de Redacção e este recebeu-me de imediato. Ouviu-me com parcimónia. Creio, a esta distância, que fui bastante ousado: propunha-me a ser colunista do jornal. Levava comigo duas laudas.

 

Mário Ferro assentiu e deu-me uma coluna. Advertiu-me que seria na página 3. Ele cogitava abrir portas para jovens escritores e fê-lo com denodo. Na última página pontificam os nomes estelares, entre eles o Albino Magaia, o Leite de Vasconcelos ou o Mia Couto.

 

Aprendi a batucar prosas literárias com velhos mestres brasileiros. Carlos Drummond de Andrade, antes de todos. O seu livro Fala, Amendoeira serviu-me de viático para a jornada. Lia-o com método. Lia outros tantos cronistas: Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Quase todos mineiros, à excepção do velho Braga. Outro grande mestre no género foi o meu amigo Baptista-Bastos. Provavelmente, o maior cronista português do século passado. O livro Cidade Diária foi um verdadeiro manual.

 

Aqueles dias aturdidos, aqueles meses longos, aqueles anos intermináveis, vívidos e sofridos. O quotidiano, o nosso quotidiano, enchia-nos de vozes que habitavam os nossos textos. Era um quotidiano duro, difícil, dias do fim de um tempo, dias do fim de uma era. Mas havia uma coisa que não vejo hoje: humanismo. Éramos solidários, próximos, humanos.

 

Porfiávamos, naqueles textos breves e urgentes, a nossa esperança. Escrever, naqueles dias, por aqueles dias, era uma espécie de um sobressalto de quem apostava no futuro. Eram dias duros, disse-o. Os de hoje não são menos. As nossas crónicas, as nossas histórias, recortavam-se nessa gente anónima, viviam dessas vozes sussurradas, de gente humilde.

 

Vivíamos, escrevíamos, amávamos sem um manual de sobrevivência. Contudo, éramos lidos. Hoje quem nos lê? Com o advento da televisão e as telenovelas, primeiro, e, depois, com a revolução dos telemóveis e de seus avatares, a leitura tornou-se obsoleta. A esta distância, digo, éramos felizes e não sabíamos. Que belos e pungentes tempos!

 

Devo ao Mário Ferro a realização daquele sonho de Escrevedor de Destinos. Num livro que leva esse título, redigi um texto em sua homenagem. Num país onde praticamos o descaso em relacção aos nossos melhores, quis lembrar-me dele em vida. A omissão, o olvido e a desmemória são práticas comuns na Pátria. Cá por mim, curvo-me ao Mário Ferro. Obrigado, meu velho Mestre, por teres acolhido a minha canhestra “tabuleta da oficina”, que saía justamente às terças-feiras, como hoje, no dia em que te lembro e exulto, comovidamente, a tua memória.

 

Nelson Saúte

A organização do poder na e da sociedade política (constituição dos órgãos de poder), a determinação dos mecanismos de decisão e fiscalização, é temporal e está num presente indefinido. As pessoas singulares mudam, as decisões são diversas, mas as instituições são supostamente imutáveis. Além disso, só se tornam instituições se se afastarem do evento para se constituírem como mecanismos e regras do jogo. Funcionam então num tempo móvel, mas que assegura o regresso ao mesmo. O tempo neutro e cíclico é, por excelência, o da vida política institucional.

 

A unidade de tempo que analisa e mede a vida política da sociedade é a duração de vida do principal corpo político. Na realidade, as ciências sociais não podem construir uma conceptualização do tempo. A história e todas as abordagens genéticas adoptam a concepção do tempo como linear, orientada e activa. É um tempo absoluto estruturado pelo calendário e pela periodização que o pesquisador constrói sobre o calendário. Este tempo social histórico permite organizar eventos e fenómenos duradouros de acordo com uma cronologia (Borella, 1990). A sociologia e todas as abordagens sincrónicas querem afastar-se deste tempo fluente a fim de basear a sua cientificidade no tempo relativo e neutro da mecânica. É o tempo dos sistemas e estruturas, específicos de cada sistema, uma dimensão simples do mecanismo que pode ser dispensada se o sistema for estável e fechado.

 

Esta dualidade é particularmente marcante em demografia, economia e política. Tanto assim que se duvida se estamos a falar das mesmas coisas. No primeiro caso, estamos a falar de objectos naturais, como teria dito Auguste Comte; no segundo, de objectos artificiais, sistemas abstractos e modelos. Na maior parte das vezes, ambos não têm mais nada a dizer um ao outro. Os historiadores só falam do passado e proíbem-se de qualquer explicação e especialmente de qualquer previsão. Outros, sociólogos, economistas, cientistas políticos, de facto falam do presente, mas como se fosse intemporal, isto é, eterno, e aspiram à previsibilidade dos seus modelos.

 

Mas em política não podemos cingir-nos a esta observação. A política como acção e a política como conhecimento são de facto inseparáveis. Como acção, a política é o controlo de um grupo social, do espaço que ocupa, do tempo que vive, por uns poucos ou pelo próprio grupo. Assim, é em primeiro lugar uma tentativa de controlar o tempo, mas inseparavelmente, é controlado por ele.

 

Tal como a política não pode fazer o tempo, também a política não pode fazer o tempo, mas tenta controlá-lo a fim de neutralizá-lo. Este esforço visa organizar o tempo político como uma realidade autónoma em relação ao tempo do mundo orientado e irreversível, e em relação ao tempo da história, em suma, em relação ao tempo que flui. A política procura estabelecer um tempo mecânico, neutro e reversível em que não há passado nem futuro. O fenómeno político só existe se observarmos esta situação de uma sociedade que se organiza para controlar a temporalidade do mundo e da história, para se instalar num presente permanente.

 

Por política, entendemos toda e qualquer acção que se efectiva pela capacidade de provocar ou retardar mudança e que é exercida pelos actores com poder de decisão sobre destinos colectivos. Com efeito, o tempo tem interessado à política, designadamente, enquanto um meio e um instrumento de calendarização de actividades ou como um plano de orçamentos e de avaliação da concretização de metas. Trata-se do tempo-calendário, o tempo como sistema métrico e cronológico (Araújo, 2018). Neste comentário, propomos argumentar que a política (que tanto se refere à acção dos representantes políticos, como a acção do indivíduo humano, no contexto da sua vida) se “esquece” frequentemente do tempo.

 

Explicadas as metamorfoses sobre o tempo, importa destacar que ao analisar a implementação de uma reforma (do sector público) ou de uma iniciativa governamental, existem dois tempos centrais para a boa realização ou não de tal pretensão política.

 

O primeiro momento podemos designá-lo de tempo técnico, que seria a possibilidade material e efectiva de colocar em prática um serviço – uma acção. Dito de outra forma, é a criação de condições objectivas para que a vontade do político seja materializada. Aqui não basta a promessa ou a mera intenção, é preciso que existam condições para o efeito, sejam elas de ordem material, financeira ou mesmo humana.

 

O segundo tempo é político, que é a vontade do implementador (entenda-se actor político de governação) para colocar em marcha uma determinada acção governativa, tendo como objectivo principal o cumprimento de uma promessa política. Seria a ‘entrega’, em forma de bens e serviços, aos cidadãos de um pacto político feito antes da eleição do governante.

 

Trazemos esses dois tempos para perceber de que forma os mesmos podem ter aplicação, face ao momento de crise que, mais do que sanitária, deve ser entendida como tendo pendor político, sobretudo porque demanda dos governantes a tomada de acções para minimização dos impactos que podem afectar a sua reeleição ou mesmo manutenção em determinados cargos de exercício de poder.

 

O tempo técnico em face desta pandemia seria a criação de vacinas ou soluções médicas que possibilitem a erradicação da doença, mas enquanto essa acção não se concretiza de todo, o actor político precisa acelerar a sua marcha para que possa cumprir as juras que fez ao seu eleitorado, sobretudo antes da pandemia – referimo-nos aqui ao tempo político.

 

Pensamos que vivemos hoje a contradição invisível de dois tempos que procuram coexistir num mesmo espaço que podemos designar de arena social, onde enquanto que os cidadãos (aqui entendidos como eleitores) demandam por protecção em prol da sua saúde, o político (governante) preocupa-se em garantir que, ao mesmo tempo que disponibiliza serviços de saúde, deve colocar em marcha as suas promessas políticas (que vão para além de gerir uma pandemia) tendo em vista os próximos pleitos eleitorais – uma campanha política permanente. Se bem feita tal protecção sanitária, pode valer claramente a reeleição de um político ou do seu partido. Esta equação não deve ser surpreendente, se tivermos em conta a racionalidade incompleta que guia qualquer actor político, cuja preocupação maior passa pela perpetuação do poder (Marrel, 2018).

 

Em outros termos, diríamos que os actores políticos têm consciência da importância do inesperado e do desconhecido no desenvolvimento da tomada de decisão e de políticas. Todavia, a sua visão de tempo na política é fundamentalmente de carácter sequencial, linear e delimitada pela prevalência de datas e de prazos. Uns, à escala anual, como planos de actividade, programas ou orçamentos, e outros a uma escala mais longa. Na base, pode afirmar-se que predomina o conceito de tempo-recurso. As técnicas da acção política utilizam o tempo como recurso e meio de acção, e não apenas como objecto de acção, o que demonstra a transformação do papel da política. Já não se trata de uma questão de poder político que estabelece normas para a actividade humana e social, que de outra forma é deixada livre. É claro que o Estado continua a ser responsável por esta tarefa, estabelece e controla as regras do jogo, mas também se torna um dos jogadores.

 

Esta situação é bem conhecida. O estado neutro, liberal, mínimo ou modesto é a política no presente permanente, enquanto que o estado intervencionista, assistencialista e providencial é a política em acção no tempo histórico. Estratega e táctico, o actor estatal actua num tempo prospectivo e finalizado, que se torna um recurso raro como os outros recursos necessários para qualquer acção (meios humanos e financeiros, espaço e técnicas, materiais e intelectuais).

 

Desde as acções mais simples, como as obras públicas, até às mais complexas, como o planeamento completo de toda a vida económica e social, o tempo histórico-social torna-se um recurso raro. Nas democracias liberais, cuja acção política é canalizada através de eleições populares, o intervalo entre as eleições fornece a matéria-prima temporal para a acção dos órgãos políticos eleitos. Os regimes autoritários ou totalitários, ao recusarem as eleições e/ou mandatos limitados, pretendem fornecer-se com uma oferta inesgotável de tempo.

 

Chegados aqui, sobressaem duas questões que nos parecem fundamentais: como garantir a articulação entre o tempo e a política durante a gestão de uma pandemia? Seria esta uma oportunidade ou perigo político?

 

*Sugestões de leitura

 

  • Emília Rodrigues Araújo. Para uma perspetiva aplicada do tempo na política. Revista de Estudios Sociales. 65. 2018. pp. 63-72.
  • France Culture. Le politique réduit-il le temps de la politique?. Podcast. 2017
  • François Borella. Le temps et la politique. Critique du savoir politique. Presses Universitaires de France. 1990. pp. 163-182.
  • Guillaume Marrel et al. Temporalité(s) politique(s): Le temps dans laction politique collective. De Boeck. Paris. 2018.