O que mais queria neste instante era doar uma lágrima à senhora da televisão internacional que anuncia os mortos em Cabo Delgado. As suas pestanas dispersam-se quando pisca os olhos e voltam a unir, de imediato, como se quisessem varrer o peso da mágoa que sente. A mágoa nos olhos é pesada, basta reparar nos óculos dos idosos que gotejam e eles sempre recuperando-lhes com a isca do indicador. É uma senhora bonita que antes de sair de casa, passou o rímel, manchou-se as bochechas com pó de arroz e esqueceu-se de levar uma lágrima porque o editor do jornal não a avisou que ia anunciar os mortos em Cabo Delgado.
Vê-se nas suas íris uma pequena nódoa líquida, um pequeno coágulo salgado que se forma, mas aborta-se logo porque não pode chorar em frente à câmera, por não pode inundar o rodapé que empurre o alfabeto no seu peito.
Vejo os mortos em Cabo Delgado pela televisão internacional, porque as nossas televisões bailam sobre a derrota dos mambas; claro que o futebol é importante, mas não é tão importante como as vidas que são goleadas por balas em Cabo Delgado. Vá que não vá, os mambas foram derrotados e tiveram o pé fora da classificação e podem ainda revirar o jogo; e as populações que correm para as matas, em Palma, para pelo menos manter a cabeça na classificação do corpo? E os mambas ainda tiveram tempo de chorar quando o apito soou no campo, era bom que os de Cabo Delgado também chorassem, tirassem as camisas e abraçarem-se antes de serem despedaçados pelos terroristas. Era bom.
Vejam a senhora da nossa televisão que pisca o olhar para esconder a lágrima que transborda pela derrota dos mambas e vejam a senhora branca, da televisão internacional, que come a lágrima pelos mortos em Cabo Delgado.
Vejam pela televisão internacional o hotel distribuindo senhas de desespero aos estrangeiros, vejam o rodapé que corre e anuncia as populações que correm nas matas; vejam tudo isso, e vejam os mambas que mesmo assassinados pela derrota regressam ao hotel, arrumam-se nos quartos e lamentam por estar no rodapé da classificação. Em Cabo Delgado não há prolongamentos, não há cartão amarelo, não há cartão vermelho, não há fora de jogo, não há substituições. E se os terroristas, ao menos, entendessem o fora do jogo. Talvez, de tempos a tempos, podiam dizer: “não vale a pena tirar a cabeça daquela, está em fora de jogo” ou “não matem esse senhor, merece apenas um cartão amarelo”.
Claro que importam os pontos dos mambas, mas não há nenhum ponto capaz de recolocar o pingo de esperança que uma criança derrama nas matas de Palma, não há nenhuma esperança de qualificação para a fase de grupos de uma mãe que corre com o peito possuído de leite de um filho que esqueceu na mata. O que mais queria neste instante era doar uma lágrima à senhora da televisão internacional que anuncia os mortos em Cabo Delgado.
Vejam a câmera da televisão internacional que amplia as ruas de Palma, vejam as câmeras das nossas televisões que metem num ângulo o adepto que chora a bola perdida dos mambas; claro que tudo é importante. Que me dera parar a senhora da televisão, dizê-la que sou de Moçambique, pedir uma vassourinha para abrir-lhe um pequeno dreno no pó de arroz e colocá-la uma lágrima. Dizem-me as nossas televisões que John Magufuli morreu de insuficiência cardíaca e não entendo como as pessoas morrem em Cabo Delgado mesmo com botijas de gás.
Onde está a professora Reginalda, da quarta classe, que me mentiu; disse-me que o primeiro tiro contra o colonialismo foi dado em Cabo Delgado. É mentira, professora, o primeiro tiro vai ser dado pela senhora da televisão internacional quando a colocar uma lágrima, quando sobre a câmera a lágrima cair como se se curvasse aos mortos de Cabo Delgado. Não sei o nome da senhora da televisão internacional, mas gostava de colocá-la uma lágrima no olho; talvez no fim do jornal o meu nome subia com outras letras na ficha técnica como quem colocou a lágrima à senhora.
Patriotas esquecidos.
No passado, jovens exemplares;
vivem atormentados
do sangue sugado.
Os madjermanes!
Filhos rejeitados,
por um pai insensível
viciado pelo cabritismo,
nojento!
As quartas,
inundam a avenida 24 de Julho, em Maputo;
com apitos e gritos de revolta;
implorando pelo dinheiro que não volta,
coitados!
Quem lhes salva?
Dos projectos da vida frustrados
das almas que tombaram
na fila da esperança;
das promessas molestadas,
após as vitórias eleitorais retumbantes e qualquerizantes.
Madjermanes!
Abnegados lutadores
pela justiça económica e social;
filhos de Samora Machel
que seus sucessores ignoraram.
Madjermanes,
os enteados de uma pátria
incolor e de heróis.
Omardine Omar – Maputo, Fevereiro de 2021
- Agora vives na Alemanha, o que é que te levou para essas terras?
- Eu estou sempre a ser levado, nunca questionei isso. Cheguei a conclusão de que viemos à terra para algum tempo depois sermos levados outra vez, ou sermos abalroados em rios profundos. Então, acho que o importante é você ser feliz, no mesmo sítio ou em outros lugares, não importa a causa dessa movimentação ou dessa estaticidade. Estaticidade poética no sentido de que passas a vida a plantar flores lindas e diversificadas no mesmo canteiro e nos mesmos vazos. E vives!
- E como é que é a tua vida aí?
- A minha vida não mudou, ainda sou o mesmo. Passo recorrentemente, como sempre passei, o tempo com a caneta na mão ou em frente ao silêncio do computador, esgravatando palavras na gandaia. É verdade que já não sinto por aqui o cheiro do capim seco ao redor da minha casa em Malembwana (bairro suburbano da cidade de Inhambane), mas reconforta-me o facto de que um dia voltarei ao meu chão.
- Com um livro no regaço?
- Com um livro no peito, escondido pelas mãos nervosas de abraçar os meus amigos. O livro está pronto, agora deixemos que o tempo se encarregue do resto. Há coisas que não dependem de mim.
- Qual é a diferença de viver na Alemanha e viver em Inhambane?
- Epá, as diferenças são muitas. Em todo o lado há diferenças, aliás, antes de aportar neste que é o país mais poderoso da Europa, eu já estava mais do que preparado para encontrar diferenças em tudo. Mas o que mantem a minha alma inabalável é o cheiro do zorre que impregna o meu espaço imaginário, ainda sou o mesmo, mesmo com alguns problemas que me ferem a carne. E como sabemos, a carne vai apodrecer, a alma não.
- Alguém dizia em tempos que a poesia está em desuso. O quê que pensas sobre esta afirmação.
- O mundo é poesia. Então, se alguém vem dizer que a poesia está em desuso, está a afirmar que o mundo não presta! Deus é poeta, só pode ser poeta a Pessoa que fez esta maravilha chamada terra, e o nome dessa Pessoa é Jehová.
- Não achas que o mundo está em derrocada? E consequentemente também a poesia?
- Pode ser que o mundo esteja em derrocada, mas eu acredito no refocilamento. Tu podes enterrar um gato vivo a uma profundidade de cem metros, ele vai refocilar (ressurgir). A poesia vai prevalecer sobre todos os abalos. A poesia é o último baluarte, ou seja, toda a vida resume-se na poesia.
- Foste professor de português, com muitos alunos sob tua batuta. Mais do que ensinar, o que é que aprendeste desta profissão?
- Aprendi a viver, a valorizar cada sinal que a vida nos transmite. Há alunos dos quais jamais me esquecerei por aquilo que me ensinaram, como o Madabule, que foi meu aluno durante dois anos consecutivos. Ele tinha uma inteligência rara, mas nunca vinha cá fora dizer isso. Não discutia abertamente com o professor nem com os colegas. Mostrou-me em muitos momentos, de forma sábia, que a humildade é mais do que tudo.
- Ainda fumas muito? Inveteradamente!
- Estás a fazer-me uma pergunta estúpida. Como é que posso continuar a fumar com este raio de tubo que me embutiram na garganta?
- O quê que aconteceu?
- Fui submetido a uma intervenção cirúrgica a laringe, enfiaram-me uma faca fria e saí de lá com este tubo, mas eu tinha consciência desse risco, aliás os médicos já me tinham avisado, a laringe é delicadíssima.
- Essa tua nova situação mudou alguma coisa em ti?
- Eis que me fazes outra pergunta estúpida. Claro que mudou! Mas há uma coisa que nunca vai tremer na minha estrutura, é a minha alma que continua intacta e cada vez mais forte. Muito forte demais.
A primeira vez que apareceu escrito em forma de lei, O Direito, foi no Código de Hamurabi – de onde a lei do talião foi a mais famosa do código.
Para muitos, Elias Dhlakama é apenas irmão de Afonso, também Dhlakama, o falecido líder da RENAMO. É uma irmandade despoletada em forma de propaganda política da FRELIMO e de Filipe Nyusi quando, só em 2015, Elias foi promovido a dois cargos de relevo nas Efe-A-Dê-Eme: em Fevereiro, promovido a comandante do comando de reservistas e, em Setembro, promovido da patente de coronel para brigadeiro. De resto, foram duas cerimónias pomposas e mediáticas vistas por alguns analistas como arranjo de cavalheiros. Golpe político.
Fora isso, Elias não passa de um profeta bíblico que significa "Jeová é meu Deus" que tenta a todo custo infiltrar-se e benzer a RENAMO. Elias não passa de uma menina mimada que não ajuda a escolher o feijão, nem a acender e a soprar o fogão, mas que aparece, fazendo aquele sorriso administrativo, na hora de comer.
As pessoas perguntam onde andava o Elias quando o Afonso era perseguido e emboscado? Onde andava o Elias quando o Bissopo era atacado e espancado? Onde andava o Elias quando o Ossufo era seviciado? Onde andava o Elias quando a Ivone (sua legítima sobrinha) era ameaçada de morte (graças à arma que encravou)? De que lado estava o brigadeiro Elias Dhlakama quando o deputado Armindo Milaco dava o peito às balas da ofensiva do regime?
Elias Dhlakama pode até concorrer à presidência da RENAMO em Janeiro, mas para granjear simpatias, dentro e fora do grupo, tem de comer muito feijão, como se diz por aqui. O atual contexto político do país requer da RENAMO um líder que conhece e que seja conhecido nas duas hostes: a militar e a diplomática. Mais do que conhecido que seja reconhecido. Um militante de peito aberto. Um peito sem colete a prova de balas. Ao Elias, eu só olho. É uma missão penosa. Não será fácil convencer e vencer em 45 dias que restam. Não é fácil apagar a ideia de que Elias estava desde 1992 nas Efe-A-Dê-Eme comendo a vida com a colher grande. O difícil mesmo é comparar-se ao seu falecido irmão Afonso que preferiu morrer na selva da Gorongosa a viver refastelado na capital às custas do Estado, tudo em nome da democracia e do povo. Enfim, o que os membros da RENAMO querem hoje é um líder que não morreu ontem por mera sorte. Não querem apelidos, muito menos carreira militar formal. Quando precisamos de sal não adianta trazer açúcar, diz o ditado.
- Co'licença!
Publicado em 03-12-2018
*Desde a primeira edição de Carta, em 22 de Novembro de 2018, o cronista Juma Aiuba impregnava nestas páginas o doce sabor da sua escrita. Sua morte abrupta foi um tremendo golpe. Para tentar manter sua voz viva, Carta decidiu reeditar semanalmente uma das suas crónicas. Seu perfume permanecerá vivo!
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