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Textos de Marcelo Mosse

sábado, 18 janeiro 2025 18:41

E a declaração de bens Senhor Presidente?

PRChapo

 

Uma das ferramentas de ética na esfera pública das democracias modernas é a declaração de bens. Titulares de cargos públicos são obrigados a declarar os bens que possuem na altura em que assumem uma nova função de carácter público. Essa lista é guardada em entidade relevante. No fim do mandato, o titular deverá submeter nova lista, revelando se seu património aumentou. E, se for o caso, uma justificação cabal para esse acréscimo patrimonial deve ser dada. 

 

Há pouco mais de uma década, quando aprovámos a Lei da Probidade Pública, esse princípio foi inscrito, mas sua implementação é inconsequente, demasiado opaca, facultativa e até não fazendo dessa ferramenta um instrumento de transparência. A adopção do princípio foi para inglês ver. E então? Então é preciso cutucar a onça, para que ela ataque seu alvo. Como?

 

No recomeço de um ciclo político em que a anti-corrupção ganhou lugar cimeiro na retórica do novo Presidente Daniel Chapo, ele podia enfatizar a importância das declarações patrimoniais como um mecanismo contra enriquecimento ilícito. Mas ninguém se encarregou de lhe sugerir uma empreitada de conscientização como essa. Imagina o impacto mobilizador de um acto em que ele e os seus ministros fossem todos juntos, em fila indiana e sob cobertura mediática, depositar suas declarações patrimoniais? Seria um cometimento imbatível. Um acto para lá da retórica de embalar. E nem sequer estou a falar da publicação dessas declarações ou acesso público aos registos para efeitos de monitoria. Em Moçambique, esse acesso não é permitido. Chapo poderia lançar o debate de uma reforma legislativa sobre o assunto.

 

Mas seu discurso anti-corrupção tem um carácter minimalista. Para além da centralização do procurement público e da digitalização dos principais serviços da burocracia estatal, nada de novo senão uma retórica conveniente como esta aquando da tomada de posse dos seus ministros: “Tenham sempre em mente que o tempo da letargia, da burocracia exacerbada, do amiguismo, do nepotismo, do clientelismo, do lambebotismo, da corrupção e de outros males deve ser morto, incinerado e enterrado”.

 

Falar assim é bonito. Armando Guebuza e Filipe Nyusi, em seus discursos inaugurais, também exacerbaram uma retórica anti-corrupção, mas o efeito prático foi nulo. Muita parra pouca uva. A “tolerância zero” foi exacerbada, mas era apenas um fingimento. Com Guebuza, o calote atuneiro foi um acto perverso de grande corrupção, que se centrou na própria Presidência da República. Com Nyusi, seu filho Jacinto Nyusi governava na sombra decidindo negócios do Estado e colocação de seus pontas de lança em entidades públicas com o fim de controlar o procurement público. Exemplos recentes foram os casos do afastamento de Boavida Muhande da HCB e de Estêvão Pale da ENH. 

 

O conteúdo anti-corrupção no discurso de Chapo tem aspectos curiosos que levantam atenção sobre as intenções do novo PR. A centralização do procurement público já está a provocar fissuras dentro do “Frelimistão”, com alguns tubarões de “colarinho branco” sugerindo que ele quer controlar pessoalmente as grandes boladas dos negócios do Estado. (Nyusi criou um cargo na Presidência para o ex-ministro Bacela, seu parceiro em negócios, visando esse controlo). Por outro lado, Chapo quer criar uma “Inspecção Geral do Estado” que vai ser supervisionada por ele, mas isso retira à priori a independência dessa instituição.

 

Seja como for, Chapo está cheio de boas intenções. No seu discurso de posse - uma “wishing list” que extravasa o manifesto eleitoral da Frelimo e recupera medidas que a sociedade já queria ver implementadas - ele disse isto:

 

“Falemos da corrupção. Essa doença que tem corroído o tecido do nosso Estado e do nosso Povo. O uso abusivo de bens públicos, os "funcionários fantasmas" que sugam os recursos do povo, os concursos simulados para favorecer amigos, os cartéis que enriquecem à custa do sofrimento do Povo – isto tem de acabar. Não há lugar neste governo”. 

 

A questão central que fica para reflexão é perceber como é que este Governo vai levar a cabo sua reforma anti-corrupção. Como coordenar, como implementar com qualidade, como monitorar?

 

Em 2004, quando Mwai Kibaki ascendeu à Presidência do Quénia, ele nomeou um guru anti-corrupção local, o John Gitongo, para seu assessor de Ética e Anti-Corrupção. Isso permitiu estabelecer pontes entre os ministérios e os principais actores da reforma, que envolve reforma legislativa e políticas públicas.

 

Em Moçambique, esse arranjo institucional nunca foi pensado. Talvez chegou o momento!

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Venâncio Mondlane devia pregar para seus seguidores… ou, pelo menos, deixar bem vincado nas suas preces de mobilização das “manifs” que a destruição da propriedade privada e estatal é um tremendo recuo para o Estado que queremos construir e ele quer dirigir. 

 

 Nesta tarde, VM7 fez uma “live” cujo objectivo era justificar a violência em curso contra o Estado e a sociedade no país. Ele justificou a arruaça alegando que os jovens estão a vingar-se da “violência estrutural, formal” de que tem sido vítimas ao longo dos anos… criticou os que rejeitam o vandalismo, alegando que “já houve muitas mortes e ninguém reclama; só reclamam quando um vidro é quebrado”. 

 

 Não creio que ele tenha a noção do que está a acontecer em Moçambique. Ele devia procurar um inventário da destruição em curso. É terrorismo sem paralelo. 

 

VM7 prega para que as sedes da Frelimo estejam fechadas; seus seguidores interpretam que “fechar” é o mesmo que destruir e ateiam logo fogo; e como a maioria são rapazes com escolarização precária assumem, e porque assim sempre foi praticado e cultivado pelo regime, que tudo o que é Frelimo é o Estado. Lost in translation.

 

 E vai daí, desatam a incendiar viaturas do Estado, edifícios da administração municipal, representações locais do Governo Central, Tribunais, postos de polícia, infra-estruturas de fornecimento de água e luz, o muro do aeroporto de Mavalane, e ainda não falei da imensa pilhagem e saque de que estão a ser vítimas estabelecimentos comerciais, estações de serviço.

 

 Esta violência é legítima porque é uma reacção à “violência estrutural” de que franjas marginalizadas da sociedade foram vítimas “ao longo de 50 anos”? Justifica-se? 

 

 Para além de fazer inveja a Maquiavel em termos de imaginação demoníaca, VM7 faz apelos sem consequências. 

 

Já disse uma vez que a violência e a arruaça são subproduto de “manifs” pretensamente pacíficas, mas objectivamente violentas. 

 

O que estamos a assistir é a elevação do grau da violência, fazendo jus ao desígnio do Turbo V8. 

 

Aliás, os apelos à não violência nos seus discursos são para inglês ver. VM7 assumiu que sua luta pelo poder devia ir por esse diapasão. E nos últimos dias, ele recebeu incentivos do Prof. André Thomashausen que, numa “live” no dia 22 (em que VM7 fez vênias intermináveis a essa figura controversa do Partido Chega de Portugal, o Gabriel Mitha Ribeiro, para quem o colonialismo nunca existiu), o Thomashausen, dizia, apoia com veemência a táctica da paralisação da economia, apertando o cerco às elites, através do bloqueio das cadeias de abastecimento dos produtos do seu consumismo torpe. Era urgente desmontar as elites da Frelimo, dizia mais ou menos assim o Prof., de resto conhecido por sua aversão figadal ao regime.

 

De modo que vivemos um conflito latente entre uma elite predadora, rendeira, suportado por um partido que capturou o Estado e a economia para fins de acumulação corruptiva de capital, dum lado, e, doutro, um novo líder opositor, que retroalimenta no populismo, pretende reformar o Estado melhorando a governação mas  incentiva o assalto popular à propriedade privada, incluindo a destruição de infra-estruturas públicas, numa contradição ética sem precedentes.x

 

 Marcelo Mosse é Jornalista, formado em Ciências Sociais e Estudos de Desenvolvimento; fundador da organização Centro de Integridade Pública (CIP) e dos Jornais Cartamz.com e Carta da Semana. Tem estado no activismo da anti-corrupção desde 2003. Subscreve muitas das reformas programáticas propostas por Venâncio Mondlane mas não concorda com o formato da sua luta. Para que conste!

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Uma notícia hoje do semanário dominical de Joanesburgo “City Press” reza assim: 

 

“Oficiais americanos de inteligência estiveram na África do Sul na semana passada para discutir a situação em Moçambique com seus colegas daquele país (…)

 

Uma enorme aeronave C-17 Globemaster da Força Aérea dos EUA causou comoção em Lowveld quando aterrou na semana passada no Aeroporto Internacional Kruger Mpumalanga.

 

De acordo com fontes da publicação

 

‘Rapport’, oficiais dos EUA realizaram várias reuniões com o Comité Nacional sul-africano de Coordenação de Inteligência (Nicoc) (…)

 

Ao mesmo tempo, um Airbus A400M da Força Aérea Real do Reino Unido aterrou em Gaborone, Botswana, na última sexta-feira (13). O indicativo de chamada desta aeronave mostra um voo operacional de emergência.

 

De acordo com fontes da aviação, várias reuniões foram realizadas no aeroporto de Lanseria nos últimos dias para discutir a possível evacuação de emergência de várias embaixadas e estrangeiros em Moçambique”.

 

Ainda hoje, domingo, foi notíciado que o Reino Unido avisou os seus cidadãos para evitarem viajar para Moçambique. 

 

Registe-se, pois, este alerta. Por outro lado, a colocação de meios de evacuação nas próximidades de um país com uma escalada de violência pós-eleitoral é um indicador de que a situação tende a agravar-se.

 

De fontes seguras, “Carta” sabe que o exército moçambicano está sob alerta máximo. 

 

Fontes da inteligência militar suspeitam que, nos últimos dias, poderá ter havido entrada de armas e munições através da fronteira de Ressano Garcia. 

 

De facto, na quarta-feira, dezenas de carrinhas com carga pesada entraram em Moçambique sem passarem por qualquer procedimento de fiscalização, aproveitando-se da “moratória fiscal” “decretada” por VM7 a partir do seu desconhecido lugar de asilo. 

 

Houve quem assumisse que eram transportadores de “frescos”, mas nem todos.

 

Na quinta-feira, por suspeitas de entrada de armas e contrabando em Ressano Garcia, as Forças de Defesa e Segurança reforçaram sua presença em Ressano, reprimindo os manifestantes com tiros e gás lacrimogéneo, demovendo a entrada ilegal de viaturas e permitindo o fluxo dos camiões com ferro e crômio para o Porto de Maputo.

 

No dia seguinte, sexta-feira, foram dezenas de viaturas militares a Maputo, também por via da mesma fronteira, por caminho de ferro. “Carta” soube que essas viaturas militares chegaram do Burundi e a encomenda não é recente. 

 

Estamos perante alertas que apontam para o dia (?) do anúncio do Acórdão do Conselho Constitucional sobre resultados das eleições de Outubro como um dia de eventual violência exacerbada. Parece claro que o campo de Venâncio Mondlane, em caso de o CC confirmar que ele não ganhou, está predisposto a elevar a voz do seu protesto. Para VM7, “derrota” é uma palavra desusada.

domingo, 08 dezembro 2024 09:14

A Frelimo está moribunda?

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As incidências do PREC (Processo Revolucionário em Curso)  venancista no país mostraram uma vez mais que Moçambique é uma nação multiétnica com um Estado falido. Falhado! O apelo venancista para paralisar a vida social e económica ao longo desta semana parece ter surtido efeito, assim como seu subproduto de vandalização contra a propriedade pública e privada. 

 

O factor marcante das "manifs" não foi o respaldo pacifista que VM7 apregoa nas suas preces - nunca concretizado - mas a violência sem paralelo dos jovens arregimentados na revolta diante de uma predisposição policial a tiracolo, pronta para matar de forma desenfreada, suscitando mais violência.

 

No dia anterior ao início da etapa “todo o terreno” das "manifs", uma figura de relevo da elite castrense do Estado garantiu que a segurança pública estaria controlada. Foi um logro!

 

Na quarta-feira, um autocarro da firma Lalgy foi incendiado (ver texto nesta edição). Instalações do partido Frelimo em vários locais e um Tribunal foram destruídos por fogo posto. Um pouco por todo o lado, bens privados foram visados. A circulação foi interrompida em muitas estradas deste imenso país. O país ardia a olhos vistos e não havia bombeiro disponível. Era a imagem de um país descontrolado, sintomas de um Estado rebentado. 

 

As elites da Frelimo acumularam tanta riqueza ao longo destes anos todos, corroendo o Estado por dentro, mas esqueceram-se de investir na sua própria protecção, na reprodução do regime. Eneas Comiche quase que ia sendo recebido com paus e pedras algures em Sofala; Shafee Sidat foi expulso da sua edilidade, Marracuene; edifícios da Frelimo foram vandalizados.

 

Houve violência por todo o lado e uma ausência cruel da violência legítima do Estado. E depois deste terror, é razoável concluir que o poder do Estado e da Frelimo esvaiu-se. O partido, esse, está moribundo. Sua ausência e a impotência do Governo são os indicadores críticos desse estado fúnebre. Filipe Nyusi está pregando o prego final no caixão do seu próprio partido.

 

Agora, qualquer que seja o desfecho deste quadro de violência pós-eleitoral, uma coisa é certa: a Frelimo “morreu”… 

 

Vejam o subconsciente de aversão da adesão à narrativa da revolta contra o regime na população estudantil de Gaza! No bastião de Gaza, a Frelimo foi vexada, humilhada. Em Chibuto e no Chókwè, a juventude chamou por “Venâncio”. Aliás, foi assim em quase todo o país. A demolição da estátua de Alberto Chipande em Pemba foi outro indicador pujante de que, para as novas camadas juvenis, as elites da libertação anticolonial já não servem para nada. São bonecos descartáveis!

 

Isto significa que a revolta em curso está sedimentando na consciência de uma camada jovem de eleitores um profundo sentimento de rejeição anti-Frelimo, cujos líderes são agora conotados com as coisas feias como a ladroagem e a corrupção. Esta era uma realidade impensável há poucos anos. Quem augurava o tamanho vilipêndio anti-Frelimo algures numa praça de Chibuto?

 

De modo que o factor X do venancismo é talvez o seu efeito positivo de fazer cair a máscara do medo, libertando as mentes da sociedade de cinco décadas de clausura na narrativa revolucionária frelimista, nas suas promessas nunca cumpridas de futuro melhor.

 

Por outro lado, quer se queira quer não, outro efeito positivo da luta de VM7 foi o de despoletar nas comunidades excluídas da grande mineração um élan de reivindicação mais audível e aguerrido dos seus direitos espezinhados por empresas estrangeiras que esburacam nossa terra, levam toda a riqueza e deixam nada, como se viu agora em Topuito nas minas de areias pesadas da irlandesa Kennmare - uma derradeira chamada de atenção à Mozambique Rubi Mining e a Vulcan, para não falar da Jindal, entre outras mineradoras.

 

A sociedade estava cooptada numa cantiga de fadas que proclamava a redistribuição da riqueza para todos, mas ela só chegava a uns poucos e, muitas vezes, por meios ínvios.

 

Esta “libertação” vai trazer consigo a punição da Frelimo nas urnas, certamente, a breve ou a médio trecho. O partido não tem como tapar o sol com a peneira. Sua única solução é nascer de novo. Como? Através da ruptura! 

 

Ou seja, nem tudo na Frelimo é lixo. O Partido está cheio de boas pessoas com boas intenções, e muitas delas não tiveram qualquer espaço de afirmação desde a emergência da auto-estima estomacal do guebuzismo à autocracia corrupta do nyussismo.

 

O que fazer? 

 

Os elementos dessa Frelimo-boa devem desde já abandonar esta máquina, corroída até ao tutano durante as últimas duas décadas e abraçar um novo projecto político. A actual máquina está cheia de vícios terríveis, que são difíceis ou mesmo impossíveis de extirpar. Ela é o epítome de todos os males. Desde a corrupção ao enriquecimento ilícito, com a captura do Estado por pano de fundo.

 

A Frelimo está moribunda, mas ainda pode renascer...fora desta Frelimo, deste legado perverso de Guebuza e Filipe Nyusi.

segunda-feira, 02 dezembro 2024 10:09

Badernocracia em Moçambique: o poder está nas ruas!

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A tensão pós-eleitoral em Moçambique trouxe pela primeira vez à ribalta um novo fenómeno político: a badernocracia. Trata-se do poder nas ruas e não necessariamente do povo no poder. 


Em Moçambique, a democracia representativa vai nua. A tensão eleitoral desembocou numa crise profunda do Estado, mostrando a falência das suas estruturas, incluindo um tremendo vazio do aparato castrense. O Presidente Filipe Nyusi parece não governar. Seu Comandante-Geral da Polícia, Bernardino Rafael, faz e desfaz, diz e desdiz, passeando-se por aí, incólume, mas cada vez mais ausente. E não lhe acontece nada. Dali não sai, dali ninguém lhe tira!

 

Todos os dias, a polícia sob seu comando exibe sua musculatura atroz contra os indefesos. Atropelam “txopelas” e atiram indescritivelmente contra os jovens rebolos, matando a sangue frio. Não é uma polícia formada para proteger, mas para obedecer às ordens sinistras de um regime autocrata.

 

O Estado faliu! A sua autoridade está esvaziada. Ninguém impõe ordens. E a economia funciona ao ritmo das convocatórias venancistas, que descambam grosso modo na barricada da via pública, como se vê agora o comércio internacional estar refém do desacato em Ressano Garcia. 


O Poder está nas ruas. Venâncio convoca para que os funcionários sigam ao trabalho deixando seus carros em casa, tentando impregnar algum pacifismo nas mentes que dão o seu peito às balas nas ruas. Ninguém acata. E surgem jovens e crianças barricando estradas com pneus, troncos e blocos de cimento, uns jogando a bola, outros cobrando perversas taxas de circulação e “mamanas” confeccionando alimentos. 


É o poder nas ruas. “Este país é nosso”, cantam o slogan mais audível do venancismo, que comanda a revolta de fora do país, evitando uma alegada tentativa de assassinato e uma posterior trama persecutória engendrada sumariamente pela Procuradoria Geral da República.

 

A par dos tentáculos da judicialização de uma tensão política que ainda vai no adro, temos também um Governo completamente ausente, mergulhado num silêncio cúmplice com os desmandos em curso. Parece que o Governo se demitiu. E dentro do executivo não há voz de comando. Consta que poucos são os ministros que se dão ao luxo de ir trabalhar. 

 

Depois do falhanço da saga golpista de 7 de Novembro, esperava-se que o Governo abrisse linhas verdes contra o vandalismo, permitindo a Polícia intervir cirurgicamente para repor a ordem pública e proteger a economia. Mas o Executivo cruzou os braços. E quem governa?

 

São os que barricam os carros nas ruas, que nem sequer seguem a cartilha de VM7, que nunca soube capitalizar a predisposição das classes mais urbanizadas, que abraçaram o panelaço, pacificamente, e agora saem para as ruas de Maputo entoando o “hossi katekisa Africa”, em pleno meio dia, a plenos pulmões, numa expressão de denúncia do seu cansaço com o "status quo", o que representaria, por si só, o aumento da legitimidade do venancismo e, em proporção inversa, a consumação da perda de legitimidade do regime de Filipe Nyusi. 


E VM7 manteve sua predisposição de sabotar a economia, seguindo a cartilha de Gene Sharp (The Politics of Non Violence). Quando podia muito bem implementar as tácticas da não-violência, da resistência inspirada em Gandhi ou Martin Luther King, Venâncio persistiu numa narrativa de paralisação da vida económica e social cujo subproduto é esta badernocracia que se instalou um pouco por todo o país. 


Na verdade, a maior parte dos seus apelos não tem surtido os efeitos que ele deseja, nomeadamente: prometeu 45 dias consecutivos de manifestações, uma marcha de 4 milhões de moçambicanos para a capital, o fecho de todas as fronteiras e portos, que os automobilistas parassem suas viaturas nas ruas de Maputo, entre outras coisas. 


Nada disto aconteceu...e o que restou é esta predisposição para as barricadas, para a desordem pública, a arruaça e a destruição da propriedade pública e privada. E a sociedade a reboque da badernocracia, com a Frelimo também completamente ausente. Moçambique vive seus piores dias desde a transição democrática. Não é o povo no poder, como clamam as vozes desta luta por mudança de regime. É o poder nas ruas...da desordem.

PS.1: O termo “baderneiro" - donde resulta a noção de badernocracia - é utilizado para descrever uma pessoa que se envolve em actos de desordem, tumulto e violência, geralmente em espaços públicos. Essa palavra deriva do verbo "badernar", que significa provocar tumulto ou confusão. O baderneiro é conhecido por seu comportamento desrespeitoso e irresponsável, que pode causar danos tanto sociais quanto económicos. Em geral, ele busca chamar a atenção para si mesmo, muitas vezes de forma negativa, através de actos de vandalismo, agressões físicas, depredação de propriedades públicas ou privadas, entre outros. 

 

PS.2: No contexto baderneiro em que estamos mergulhados, com a Frelimo ausente e o Governo encolhido dentro da sua carapuça, o Primeiro Ministro Adriano Maleiane manteve um encontro recente, de carácter restrito, com alguns "spin doctors" do regime, comentadores afectos, editores da “mídia” pública, entre outras figuras escolhidas a dedo. Maleiane pretendia ouvir ideias sobre o que é que o Governo devia fazer em face da actual crise pós-eleitoral.

 

Quem esteve lá, deu-me conta de duas intervenções que marcaram a conversa por razões distintas. Uma cáustica e que deixou o PM  boquiaberto. Patrício José, antigo Vice-Ministro da Defesa, perguntou: afinal quem está com o Governo? Os professores, não; os médicos, não, os enfermeiros, não; e por aí além.

 

Outra intervenção, notável pelo seu carácter sinistro, foi a do comentador Dércio Alfazema, que deixou a organização holandesa IMD onde trabalhou no espectro das ONGs Moçambicanas e se alistou na franja dos fazedores de opinião que defendem o regime de forma canina, criticando sistematicamente a oposição e a sociedade civil. Alfazema disse mais ou menos assim, em jeito de sugestão para se pôr cobro à crise: “Talvez o ideal fosse mesmo 'visitar' a casa do Venâncio Mondlane”.

 

A sala gelou! Não era para somenos! É que desde que o regime de Nyusi ascendeu ao poder, o termo “visitar” é sinónimo dos actos mais abomináveis usados contra opositores. Por exemplo, Elvino Dias e Paulo Guambe foram “visitados” pelo regime, tendo sido física e politicamente eliminados. (MM)

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Depois que foi estabelecido em 2003 sob a batuta do jurista Rui Baltazar, que morreu em Julho passado aos 91 anos, o Conselho Constitucional (CC) tornou-se rapidamente num sólido pilar dentro do nosso precário sistema de integridade. Apesar de ser composto na base de uma proporção guiada pela representatividade parlamentar dos partidos políticos, cabendo à maioria da Frelimo indicar a maioria dos juízes, suas decisões eram unicamente baseadas nos ditames da Lei e do bom senso, em defesa da Constituição contra quaisquer desvios de inclinação partidária.

 

Em 2007, o CC chumbou ostensivamente uma norma estabelecida no consulado inicial de Armando Guebuza, que obrigava ao uso da expressão “decisão tomada, decisão cumprida” no fecho da correspondência oficial no Estado. Na altura, Rui Baltazar tinha como pares juristas de gabarito inquestionável como Teodato Hunguana e Orlando Graça (este oriundo da Renamo). Seus acórdãos e deliberações eram escritos de forma assertiva e pedagógica, com um registo irrepreensível de jurisprudência. O CC era uma escola. E havia se consolidado como um importante contrapeso do poder. Dentro do nosso sistema político, era a única entidade que mantinha ainda uma grande dose de respeitabilidade na sociedade.

 

Quando Rui Baltazar saiu em 2009, pensou-se que ele levara consigo esse perfil de integridade raramente beliscado. Mas não! O CC manteve-se no mesmo registo. Assertivo, evitando cair na esparrela do juridiquês barato como agora está a suceder - apesar da desconfiança gerada com a chegada de Hermenegildo Gamito, em 2011, no início do segundo mandato de Armando Guebuza. Juízes como Orlando Graça e José Norberto Carrilho garantiriam a qualidade e a independência, mas isso começou a desmoronar quando os dois saíram em 2014. 

 

Gamito foi uma escolha pessoal de Armando Guebuza. Foi reconduzido por Filipe Nyusi em 2016. Mas suas credenciais de isenção foram sempre suspeitas. Ele conduziu o CC de uma forma claramente favorável ao regime da Frelimo, como ficou provado nas eleições autárquicas de 2018, quando o CC a se destacar pela negativa, fazendo tábua rasa das irregularidades e ilegalidades praticadas pela CNE em prejuízo do grupo apoiante de Samora Júnior, o então AJUDEM, que viria a transformar-se no actual Podemos.

 

Depois veio Lúcia Ribeiro, cujos trabalhos nas eleições autárquicas de 2023 vieram a confirmar que o CC perdera definitivamente a aura inicial de integridade e isenção. No dia 24 de Novembro do ano passado, o Conselho Constitucional, anunciou a versão final dos resultados das eleições autárquicas realizadas no dia 11 de Outubro, reforçando a percepção de que o órgão era tendencioso a favor do partido no poder, a Frelimo.

 

O CC fez pouca referência a irregularidades durante o processo de votação e contagem de votos, ou nas eleições como um todo, dizendo que estas questões não influenciaram os resultados globais. Os resultados apresentados pelo CC foram entendidos como fruto de compromisso, pelo menos entre a liderança da Renamo – partido que originalmente reivindicou a vitória em 21 municípios – e a Frelimo, levando a percepção generalizada de que a decisão do Conselho Constitucional (cujos vários juízes são nomeados pelo presidente e por membros do parlamento dominado pela Frelimo) foi fortemente influenciada pelos desejos da Frelimo. Por outro lado, o facto de os resultados eleitorais demorarem demasiado tempo a ser anunciados levantou suspeitas sobre todo o processo.

 

Um dos principais afectados pelas decisões do Supremo em 2023 foi Venâncio Mondlane, que concorreu pela Renamo para a presidência do Conselho Autárquico de Maputo. Furiosos com o CC, seus manifestantes haviam iniciado em Maputo uma série de manifestações, reivindicando justiça social. As “manifs” apenas perderam fôlego porque a Renamo retirou seu apoio à então revolta venancista, que tinha fortes condimentos para afectar a “paz social”, pelo menos na cidade de Maputo. 

 

Foi como que a alertar para esse efeito perverso de um CC tendencioso que Rui Baltazar fez sua derradeira chamada de atenção aos juízes do conselho, que aqui transcrevemos, pois, mais do que em 2023, hoje em 2024, nas actuais eleições gerais, é esperado que o veredicto daquele órgão seja isento e respeite a vontade dos eleitores, sob pena de Moçambique viver dias negros de tumultos pós-eleitorais nunca vistos no passado. 

 

 O Conselho Constitucional vai, no futuro próximo, ter de tomar graves decisões, com grande impacto na sociedade moçambicana, e deve estar preparado para tal, contribuindo através da sua independência e da aplicação intransigente, correcta e exemplar da Constituição e das leis, para a paz social, para o melhoramento da democracia e para que se faça justiça a cada cidadão;

 

— Os desafios a que terá de responder o Conselho Constitucional em Moçambique pouco têm a ver com o risco de se instalar um governo de juízes, mas sim com a necessidade de controlar os excessos no exercício dos poderes, o seu equilíbrio, salvaguardar e reforçar a ordem democrática e constitucional, a separação e interdependência dos poderes do Estado e garantir os direitos e liberdades de todos os cidadãos.

 

*BALTAZAR, Rui. “Lastimável estado do Estado de Direito Moçambicano”, O Guardião, Revista do Conselho Constitucional de Moçambique, Volume IV, 2023, Pág. 290.

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