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segunda-feira, 16 setembro 2024 07:40

Por uma Epistemologia da Governação

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Tenho estado a pensar nos últimos tempos, e a conversar comigo mesmo e com alguns interlocutores do meu tabuleiro de xadrez, sobre o estágio da nossa governação, no concernente a existência ou não de um programa integrado, integral e compreensivo de governação.

 

Por governação, entendo, e quero dizer, a maneira ou abordagem que diversas instituições e pessoas da esfera estatal, pública e privada se conectam entre si e com outros actores a nível nacional e internacional para promover o bem-estar social, político, económico, religioso, etc., do país. Gostaria aqui de ressaltar a componente ou dimensão social do bem-estar colectivo, pois entendo que tem sido negligenciada por décadas.

 

Noto, (talvez erradamente) com alguma, aliás muita preocupação, a falta de clareza e até falta de um programa de governação responsivo e alinhado às demandas sociais. Um programa dialogante e atrelado em premissas do todo. Chamarei a este emaranhado de parágrafos de Pergaminhos: Por uma Epistemologia da Governação.

 

Pensei em chamar de Tratado Epistemológico para a Governação, mas um tratado, na sua essência e composição exigiria um exercício mais apurado e minucioso para a sua elaboração.

 

Nestes diálogos com as peças do meu tabuleiro, a primeira coisa que me ocorreu, e que não é novidade nem para o cidadão ordinário, nem para os governantes e tampouco para os estudiosos da governação, foi o facto de termos no país, uma síndrome crónica de descontinuidade processual e ausência de um compromisso tácito com a causa e acção governativa.

 

Em outras palavras, experimentamos a formação de diferentes governos nas últimas 4 ou 5 décadas (por sinal governos do mesmo partido), facto este que per si poderia ser sinal de alguma estabilidade e continuidade. O denominador comum nessas décadas foi o de cada governo adoptar uma linha discursiva e tentar deixar a sua marca própria, não se importando com as feridas e cicatrizes deixadas.

 

Ressaltam a priori, o desinvestimento na educação pública - área basilar para o progresso de toda e qualquer sociedade que se pretende próspera; um sistema de saúde moribundo e sem capacidade de acompanhar a situação do país; um sistema judicial com amarras e a reboque do executivo; desigualdades sociais gritantes e um grande fosso entre ricos e pobres - onde produzimos nos últimos tempos, muitos falsos ricos e milhões de pobres verdadeiros - (autênticas elites que se julgam ricas pela simples ideia andarem pelos ares em voos executivos, alguns pagos do erário público, ou por terra com carros de luxo em estradas mal conservadas.

 

Além deste fosso tremendo, fomos incapazes de produzir um discurso coerente, aglutinador e inter-geracional; também, não fomos capazes, enquanto país e enquanto cidadãos, de criar um distintivo, uma identidade e uma razão para lutarmos juntos. Por conseguinte, o que deveria ser um legado de fim de mandato torna-se, quase sempre, um grande erro e um grande fardo para o povo.

 

Nestes quase 50 anos entendidos num quadro contextual específico e respeitando as adversidades de cada época e ciclo de governação, tivemos momentos de exaltação e de união enquanto país e povo, todavia paulatinamente fomos permitindo que o espírito individualista, ambicioso e o ganancioso cavassem o sepulcro e enterrassem os nossos sonhos enquanto nação ainda em formação.

 

A incapacidade de se criar um sonho, matou a capacidade de sonhar um só Moçambique para todos; hoje, nos comportamos como autênticos visitantes e peregrinos no nosso próprio país, sem compromisso e sem interesse no devir; somos hoje, uma sombra da geração independentista que sonhou, lutou e até logrou alguns louros. Somos, tristemente, parte da geração de filhos de Moçambique que se sente traída, frustrada e que deseja emigrar e trabalhar na terra do colono branco que outrora a oprimira, em detrimento do colono preto que outrora a libertara mas que agora a asfixia.

 

De ciclos em ciclos, assistimos progressivamente a sedimentação e institucionalização da corrupção que escangalha, descaracteriza e putrefaz a nossa máquina estatal, as nossas instituições e os nossos quadros “deformados”.

 

Nós, enquanto classe académica, temos a nossa responsabilidade nisso, pois nos afastamos da nossa função de pensar, reflectir, criticar e construir novas narrativas, novas realidades e novos sonhos; uns afastaram-se por medo, outros por fome, outros ainda por cobardia e comodismo. Em boa verdade, nos demitidos e “desistimos” deste Moçambique; nós nos permitimos capturar pelas redes de pesca e anzóis que alguém lançou.

 

O escrito que aqui proponho não tem como objectivo o levantamento de problemas. Esse exercício é recorrente e figura em todos os mapas, planos, directivas, relatórios, reflexões, discursos dos últimos 49 anos.

 

Falar da paz, reconciliação nacional, luta contra pobreza absoluta, melhoria da educação, da saúde, da nutrição, das infraestruturas, da agricultura, da segurança, do sistema judicial, etc., num quadro de aparente demissão das instituições, soará a uma autêntica bazófia.

 

Estudar a genealogia da árvore governativa e tentar discutir a raiz dos nossos problemas faz-se necessário e premente antes de todo e qualquer exercício de ordem político, ideológica, doutrinária e partidária. Essa é a raiz que alimenta a espinha dorsal do país e faz correr seiva nos quatro pontos cardinais do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico. 

 

Quer me parecer, muito particularmente, que não é uma questão simplista de termos de problematizar nomes deste ou daquele candidato para nos liderar. É sim uma questão de se lançar uma reflexão nacional verdadeira, e discutir ideias sobre a governação; caminhos para uma boa governação, construção de um ideal nacional com instituições e pessoas fortes. Acima de tudo, precisamos de discernimento e honestidade para assumir que estamos à beira do abismo com eventos como o conflito que grassa Cabo Delgado, pobreza generalizada, corrupção endêmica, segurança pública em colapso, descrédito e descrença do maior e mais valioso recurso do país - o Povo. Último e não menos importante - falta de coragem para dar mote a nova era de reconstrução do país.

 

A Epistemologia da Governação pressupõe antes de tudo a assunção da crise que insistimos em esconder debaixo do tapete. Não podemos continuar a fingir que estamos bem; ao abono da verdade, até quem governa sabe que não estamos. As narrativas de ontem já não produzem o efeito desejado; é preciso actualizá-las e ajustá-las ao contexto. O povo, a sociedade, os cidadãos em particular são movidos por narrativas, projectos e sonhos e não pela falsa ilusão de riqueza e aparente bem-estar.

 

Abandonemos a ideia e crença instituída em que os pobres se envergonham de serem pobres e humildes e os ricos orgulham-se da sua soberba, arrogância e prepotência.

 

Lancemos um diálogo aberto constante entre nós, onde o povo volte a ser centro da ação governativa e, de forma eficaz e realista vejamos reflectidos seus anseios e suas preocupações nos planos de governação.

 

Planifiquemos de forma inclusiva, com horizontes temporais e espaciais mais realísticos ao invés das falaciosas ilusões de 5-10 anos. Quem vier, ao fim de cada ciclo, de onde vier e como vier, deve assumir uma agenda nacional e um compromisso geracional.

 

Se depois de quase meio século disto, continuamos a brincar com a vontade do povo, a iludir o povo, e a matar seus mais profundos sonhos de um Moçambique melhor e para todos, que tenhamos coragem para aceitar as consequências deste e de outros actos.

 

E porque não encerrar com uma citação que muito inspira e que permanece actual em vários contextos: “O que espanta não é a loucura que vivemos, mas a mediocridade dessa loucura. O que nos dói não é o futuro que não conhecemos, mas o presente que não reconhecemos.” – Mia Couto

 

Por: Hélio Tiago Guiliche (Filósofo)

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