O sistema de votação chamado “Eleições Turbo” criado pelo político moçambicano Venâncio Mondlane pode ser alargado para chefes de prédio e chefes de família. A fórmula de democracia espontânea que o Mondlane inventou e divulgou na semana passada foi inicialmente pensada para chefes de quarteirão, chefes de bairro, administradores de distrito e governadores de província. Contudo, investigadores sociais chegaram à conclusão de que este sistema pode também ser utilizado em escalões inferiores.
A partir de agora, esta fórmula pode ser aplicada a grupos menores e mesmo a pessoas individuais como as que padeçam de megalomania ou que sofram de transtornos bipolares. Nestes casos, o candidato coloca-se perante um espelho ou um ecrã de computador e elege a sua personalidade favorita. Caso não haja unanimidade, o candidato pode reclamar dos resultados e acusar de fraude a outra personalidade que habita a sua pessoa. Em casos extremos de transtorno de bipolaridade é possível a ocorrência de manifestaçõesviolentas com episódios de vandalização psicológica praticadas pelo candidato contra si próprio.
Na sua última comunicação nas redes sociais, o engenheiro Venâncio classificou esse procedimento eleitoral como verdadeiramente “africano” e uma invenção genuinamente “moçambicana” (ainda que baseada na Grécia antiga). Segundo fontes não identificadas, esta descoberta está a suscitar muito interesse entre os psicólogos e chefes de seitas político-religiosas.
Na realidade, esse sistema de votação pode ser organizado apenas numa semana, dispensa qualquer instituição e produz resultados imediatos. Os vencedores tomam posse na internet e prestam juramento virtual perante uma nova bandeira e uma nova constituição que serão anunciadas durante a cerimónia de tomada de posse. O evento da tomada de posse está recheado de outras instigantes surpresas porque, nesse mesmo dia, os novos dirigentes conhecerão os novos nomes das ruas, das praças onde se localizará os seus futuros gabinetes de trabalho.
Nessa última “live”, o engenheiro Venâncio Mondlane explicou como funcionam as chamadas Eleições Turbo: basta que os candidatos se apresentem presencialmente nos bairros e diante deles se formem as filas dos votantes. Não ficou claro como e quem conta os votos e que entidade valida os resultados, mas o método parece ser tão simples que se prevê que as Nações Unidas encorajem a comunidade internacional a adoptar esta proposta.
A grande vantagem desta invenção é que ela prescinde totalmente da necessidade de instituições e de observadores, declarou um activista de uma ONG chamada “Observatório para a transparência que recebe fundos não transparentes”.
UMA MENSAGEM LANÇADA AO MAR
O navio afunda-se, os passageiros perguntam, em pânico: mas quem é o capitão? A quem nos devemos dirigir para não irmos todos ao fundo? Àquele personagem que, algures num canto qualquer do mundo, não se cansa de atiçar o fogo que já nos consome? Ou dirigimo-nos ao suposto comandante do navio que faz de conta que nada acontece?
A quem pedir socorro? A um candidato que existe por excesso? Ou ao comandante que está totalmente ocupado em fazer de conta que existe? Pedimos ajuda ao pregador de serviço que, de meia em meia hora, nos dá ordens e contraordens em direção ao caos? Ou pedimos a um governo que se encerrou na sua concha de silêncio e que nos abandonou à nossa triste sorte?
Merecíamos melhor, compatriotas. Num outro qualquer país, uma força da oposição é uma estrutura colectiva com a sua composição orgânica, com rostos distintos e vozes diversas, com o seu programa e as suas opções ideológicas. Num outro país, a oposição não se resume a um pregador solitário, que improvisa todos os dias instruções avulso, sem nenhum programa coerente e construtivo. Um dia garante que não luta pelo poder e que aceita qualquer cargo num eventual futuro governo. No dia seguinte, teima que só aceita ser Presidente. Num dia, diz que todos devem sacrificar as festas do Natal e do final do ano. Na semana seguinte, deseja festas felizes a todos. Num dia, anuncia que vai ser o caos total. No dia seguinte, pede para que haja ordem e civismo. O que não muda nunca é o apelo constante ao ódio, ao confronto e à destruição. As diretivas mudaram de nomes automobilísticos (4x4 e Turbo) para um apelo final a que ele dá o nome futebolístico de “ponta de lança”. Este clamor é um convite a um banho de sangue. De sangue dos outros, é claro.
Merecíamos melhor, meus amigos. Merecíamos uma melhor oposição. Mas merecíamos igualmente um governo melhor. Ou de forma mais simples: merecíamos um governo que simplesmente existisse. Num outro país, num momento de crise como esta, teríamos um presidente da República a falar aos seus cidadãos e a partilhar planos que nos entregassem uma saída, uma esperança. Teríamos um governo a interagir com as pessoas, a tranquilizá-las de modo que não se sentissem tão desamparadas. Teríamos um Chefe da polícia que procedesse como fizeram os seus congéneres em situações semelhantes noutros países do mundo: distribuiria informação adequada sobre os bandidos à solta, partilharia fotografias dos foragidos e manteria um canal de comunicação permanente para fazer com que os agentes da ordem e a população dessem as mãos na identificação e captura dos criminosos evadidos.
O que temos hoje? O pânico espalhou-se por toda a cidade, com fantasmas à solta armados de catana (felizmente, mais imaginária do que real). Não dormimos antes por causa das panelas, não dormimos por causa das vuvuzelas, agora não dormimos por causa do vandalismo. E não dormiremos durante um tempo com medo de um futuro que se avizinha e que será de desemprego e de fome. Pouco importa quem tem a culpa: cada dia de violência são anos de retrocesso. Não precisamos de mediadores internacionais. Precisamos que os donos deste caos sejam mediados pelo amor ao seu povo, pela generosidade desinteressada para com a sua pátria.
E é assim que nos encontramos: o candidato a capitão está fora, tão longe que mesmo ele só sabe que existe quando se escuta a si próprio e quando se vê no ecrã do facebook. É por isso que tem de estar sempre online. Por outro o lado, o governo está dentro, tão dentro de si mesmo que acaba por estar fora.
O que aconteceu, caros compatriotas, é que nós percebemos que temos de ser nós a apagar o fogo e a colocar o navio fora da zona de perigo. Sim, vamos ser nós a salvar este navio que nos pertence por direito histórico. Sim, meus irmãos, chegaremos, sãos e salvos, à outra margem. E diremos aos que nos abandonaram e aos que nos tentaram atirar para o abismo: estão ambos dispensados, fiquem para sempre longe de nós. Não precisamos de quem não deu provas de que está connosco nos momentos mais difíceis. Outros dirigentes, mais comprometidos com o seu povo, irão surgir. Esses dirigentes podem já estar presentes, mas precisam de se apresentar com a ética, a credibilidade e a generosidade que se espera de um servidor do povo.
Cidadania e governação são como os contratos matrimoniais: uma promessa de amor e de respeito mútuo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza. Nenhum de vocês, governo e oposição, cumpriu essa promessa. A ambição do poder tornou-vos cegos e surdos. Ou mudam radicalmente de atitude ou ficam enterrados no porão do passado. Serão lembrados apenas como os que colocaram os seus interesses pessoais acima de tudo e de todos. Os que diziam servir a Pátria, mas apenas colocaram a Pátria ao serviço das suas ambições.
Começo pelo fim: o engenheiro Venâncio (que agora nos deseja boas festas) já nos tinha ameaçado que não haveria festas de Natal nem celebrações de fim-do-ano. Decretou que as festas religiosas deviam ser celebradas não nas nossas casas, mas em manifestações nas ruas. Sou católica, venho de uma família católica. Nunca pensei que alguém pudesse ter a veleidade de interferir em algo tão sagrado como as celebrações natalícias. O ditador Maduro, da Venezuela, já tinha mandado alterar as datas do Natal. Todos se riram dessa presunção. Só podia ser uma anedota, só podia sair da boca de um palhaço. Infelizmente, no nosso caso, os mandamentos do Venâncio Mondlane não podem ser motivo de riso. Nunca em Maputo se destruiu tanto num só dia: hospitais, postos de energia, armazéns de medicamentos, lojas, condutas de água, bens públicos, repartições e serviços. Tudo que era nosso, agora ficou de ninguém. Tudo que era construção, ficou ruína.
O banco de sangue do Hospital Central que eu, por razões imperiosas de saúde, preciso de frequentar, deixou de funcionar. Os funcionários e os dadores de sangue ficaram bloqueados na estrada. Agora, já não há reservas de sangue. A minha vida ficou nas mãos dos caprichos de um todo-poderoso. Que fique claro: o senhor pode não ser o único responsável. Mas é o senhor o maior culpado da massiva destruição. O senhor é, como dizia o presidente Bush, uma arma de destruição massiva.
A pergunta é a seguinte: quantos anos de construção do nosso património comum foram destruídos num único dia? Conheço e reconheço os argumentos dos que acusam a FRELIMO como uma causa de toda esta tensão. Eu também partilho dessa acusação. A corrupção de uma elite predadora está na raiz da nossa pobreza. Mas os pobres, senhor engenheiro, os pobres não são estúpidos, os pobres não são desprovidos de moral, os pobres sabem que a saída desta situação não pode ser por via desta violência. Por isso, deixemos de palavreado. Os donos das pequenas lojas que foram vandalizadas no meu bairro não vão vender argumentos políticos aos seus clientes. Não vão dar de comer aos filhos as culpas de uns ou de outros. Todos os que foram vítimas desta violência cega (e fomos todos nós, do Rovuma ao Maputo) não poderão ser consolados com a sua retórica política. Os únicos que talvez estejam contentes com esta destruição do nosso tecido social serão os extremistas que, em Cabo Delgado, cortam a cabeça dos nossos irmãos. Não se esqueça, caro engenheiro Venâncio: o caos serve o terrorismo. São irmãos gémeos, filhos de um mesmo pai e da mesma mãe.
Deixemos, pois, de invocar razões políticas para aquilo que apenas tem a ver com o bom senso, com o amor à nossa pátria. Só existe um sentimento que, agora, nos pode unir: reconhecer que esta destruição cega não pode ser o caminho. O inimigo político tem um nome? Pois atinjam esse inimigo. E deixem-nos em paz. Estes tumultos que o senhor insiste em chamar de “manifestações” só agravam a miséria em que vive a grande maioria. Essa pobreza foi, em grande parte, provocada pela má gestão e pelo desgoverno dos últimos anos. Mas um dirigente da oposição não pode convidar ao suicídio coletivo do seu próprio país. Nenhum médico pode mandar incendiar o hospital onde ele promete tratar os seus pacientes.
Ainda estávamos a pagar uma dívida oculta que serviu criminosamente uma pequena elite. Agora vamos pagar durante muitos anos uma nova dívida que foi provocada pelo vandalismo comandando pelo engenheiro VM7. A nuvem de fumo que cobriu a cidade das acácias vai continuar a pairar durante anos e anos. Dentro dessa nuvem vão crescer os nossos filhos. Não há bombeiro que apague esse fumo.
Nunca tive paciência para assistir a uma “live” do pastor. Pela primeira vez, dei-me ao esforço de seguir o anúncio da Turbo8. Era véspera do Natal. E fiquei assustada mesmo antes de VM7 começar a pregação. Enquanto ele dava tempo para juntar uma audiência mais volumosa, fui lendo os comentários dos seus seguidores. Aquilo não era uma plataforma virtual: era um templo e os crentes saudavam não um líder político, mas uma entidade divina.
Como já disse, sou religiosa e já assisti a diversos cultos transmitidos por via televisa. Mas eram assumidamente cerimónias religiosas. Não misturavam propaganda eleitoral com os assuntos de Deus. O que mais me assustou nessa “Live”, porém, foi o tom de ódio com que o pastor invocava constantemente um Deus vingativo, um Deus munido de machados, fogachos e punhais. Um Deus sedento de sangue, de cinzas e de ruínas. Não era esse Deus que eu conhecia. O meu Deus é o do amor, do abraço e da reconciliação. Mas foi esse outro Deus das pragas e dos apocalipses que o pastor Mondlane convocou.
O país, decretou Venâncio, estava entre a “paz e o caos”. Moçambique estava entre a “vida e a morte”. Disse isto antes de ontem. Pois todos nós despertamos hoje no meio do caos, no meio da morte. E fomos todos castigados como se fossemos todos nós os culpados. A nação moçambicana, toda inteira, foi condenada. O mundo vai olhar para nós como um território de desordeiros, onde não vale a pena investir, para onde não vale a pena sequer viajar de férias porque sabe-se lá se, chegando ao aeroporto da capital, apenas se pode circular de ambulância ou de carro funerário de acordo com as ordens “superiores”.
Por isso, senhor Venâncio, faça as suas reivindicações, faça a sua luta de modo a não matar Moçambique. Outros países brigaram, ainda recentemente, pela verdade eleitoral. Na Venezuela, juntaram-se milhares de pessoas nas ruas. Mas os protestantes nunca paralisaram as cidades. Nunca incendiaram, saquearam ou bloquearam as estradas que, como alguém já aqui escreveu, pertencem a todos e não aos caprichos de um candidato. Na Geórgia, milhares de pessoas juntaram-se nas ruas para protestar contra os resultados das eleições. Mas nunca ninguém os encorajou a criar o “caos em todo o país”. Agora, senhor engenheiro, é tarde demais par desdizer o que está gravado. O senhor disse que, caso não validassem a sua vitória, seria desencadeado o “caos”. E cumpriu-se a sua vontade: vandalizaram-se lojas, armazéns, escolas, repartições, tudo foi alvo de destruição. Um ciclone chamado Chido matou gente em Moçambique. Pois um ciclone chamado “caos” devastou toda a nossa economia. Saquearam pequenos negócios mas atacaram também grandes projectos que dão emprego a milhares de pessoas e que trazem divisas para a nossa economia. Vandalizaram prisões e libertaram perigosos criminosos. Tudo isto lembro para lhe dizer, senhor Venâncio, as nações são entidades com raízes na história. Mas há países que se partiram ao meio, que deixaram de ser países, que passaram a ser ingovernáveis por causa da absoluta ganância pelo poder. Este nosso país é grande, mas é frágil como todas as criaturas vivas.
Comecei este texto pelo fim. E, agora, acabo por onde devia começar. Caro Venâncio Mondlane: não volte nunca mais a cantar o hino nacional. Porque esse hino, esse hino chama-se a “Pátria Amada”. E o senhor não ama a sua pátria. Você ama-se a si mesmo. Não, senhor Venâncio, não nos volte a mandar cantar o hino. Porque, da próxima vez, cantaremos quando nós quisermos. E cantaremos contra si que usa as costas dos mais pobres para fazer sozinho a sua carreira. Não se esqueça, senhor Venâncio: o hino nacional fala contra os tiranos. Que não são apenas os corruptos da FRELIMO. Você também é um deles. Um tirano que, mesmo sem chegar ao poder, já nos está a escravizar com mais cem anos de fome e de pobreza.
Margarida Ntsai