Desde as primeiras eleições multipartidárias de 1994 em Moçambique, os resultados nunca foram consensuais, incluindo diversos casos de eleições municipais. Como consequência, vários processos foram seguidos de conflitos pós-eleitorais violentos, geralmente localizáveis no centro do País. Um dos maiores marcos dos sucessivos conflitos pós-eleitorais violentos, foi a revisão constitucional de 2018 que passou a incluir a eleição da figura do governador provincial e nomeação de secretários de Estado para as províncias. Pela trajetória e história da transição para o multipartidarismo, os conflitos atribuíram primazia ao uso da violência armada como reacção, assumindo-se a raiz rebelde da Renamo como o único trunfo para pressionar a Frelimo aceitar cedências.
A via armada não implica em si uma forma de pressão para aceitação de derrotas, embora tenham sido alterados alguns resultados a favor da Renamo através do Conselho Constitucional (CC). Mesmo assim, os acórdãos desta entidade foram problemáticos, sem justificação pública da razão da alteração dos resultados, exemplos disso, foram as eleições de Quelimane, Vilankulo, Matola que resultaram respectivamente na vitória da Renamo nos primeiros dois municípios e alteração significativa de assentos para a Assembleia Municipal em 2023. Os processos eleitorais pós-2018 revelaram um aparente desvanecer da via armada, uma vez que a contestada vitória da Renamo na Cidade de Maputo, reduziu-se a protestos pacíficos, com reacção armada como uma incógnita. Mas a experiência recente mostra que a força militar mantém-se instrumento-chave para o período pós-eleitoral.
A primazia do uso da força como meio de busca ou manutenção do poder político em Moçambique prevalece. Enquanto no período anterior a 2019 a primazia da força militar era confundida com a violência pós-eleitoral tradicionalmente liderada pela Renamo, as eleições de 2024 revelam duas dimensões. A primeira, foi sempre tida como reação legítima do estado na preservação do monopólio do uso da força para o interesse nacional, a segunda dimensão enfraquece a primeira. Enquanto o estado é tido como republicano e de reacção armada legítima contra o uso da ilegítimo da força, as manifestações e protestos pacíficos, embora com focos localizados de violência, a Frelimo usa dos meios de coerção do Estado como meio de manutenção do poder. A Polícia da República de Moçambique (PRM) bem como a Unidade de Intervenção Rápida (UIR) têm optado pelo uso desproporcional da força, deixando patente o cunho de entidades partidarizadas.
Nas recentes eleições gerais de 2024, revelou-se a falência da via armada bipolar como meio de contestação eleitoral, em resultado do processo de desmobilização, desmilitarização e reintegração (DDR) previsto no Acordo de Maputo de 2018. Embora a Renamo tenha registado um forte declínio tanto nos municípios, como ao nível central, o processo do DDR revelou que a força militar não desvaneceu. O novo ciclo revela o demérito da Comissão Nacional de Eleições (CNE) como instrumento de manipulação eleitoral e falência do lema de ‘eleições livres, justas e transparentes.’ Com a via de injustiça eleitoral, um novo movimento de protesto emerge e com a particularidade de ser urbano, retirando assim a histórica base rural-militar.
Afinal a primazia da via militar não foi apenas maléfica para a Renamo, mas também contra a fundação da democracia em Moçambique. A Frelimo, partido que domina os órgãos eleitorais revelou seu uso ilegítimo da força que, até 2018, se confundia com a reacção do Estado para impor a lei e ordem. Na verdade, como estudos prévios revelam pelo mundo, os partidos incumbentes têm maiores chances de cometer fraude eleitoral pelo nível de controlo que exercem na função pública. No caso moçambicano, o domínio é de nível sufocante, dada a história do sistema monopartidário e subsequente Estado partidarizado por conta das regalias aliadas à manutenção do poder. Entretanto, as eleições mantêm a primazia da violência militar pós-eleitoral, não pela conquista do poder, mas pela apetência à manutenção do poder.
A Renamo está desmilitarizada, desmobilizada, mas pouco reintegrada, entretanto, sua liderança revelou-se incapaz de usar meios pacíficos na busca do poder. Seu uso da violência desvaneceu e as regalias Estado emergiram contra afogamento do partido. O Movimento Democrático de Moçambique (MDM) é de natureza civil e urbana desde a sua criação e apenas uma terceira força política. Mediante forte poder de liderança adquirido ao longo do tempo, mas bloqueado no congresso da Renamo em Alto Molócue eis a figura de Venâncio Mondlane que redesenha o esquema político em Moçambique.
Após afastamento do Congresso da Renamo e posteriormente afastado quando o CC desclassificou a candidatura da Coligação Aliança Democrática (CAD), Venâncio Mondlane buscou como última opção o apoio do Partido Optimista para o Desenvolvimento de Moçambique (PODEMOS). Mediante este cenário, o xadrez político sofre uma reviravolta, o desconhecido PODEMOS torna-se segundo partido mais votado com cerca de 20% nos resultados oficiais. Mesma tendência oficialmente apresentada pela CNE para Venâncio Mondlane.
Todavia, os actores políticos não estão confinados nos partidos concorrentes, mas sobretudo na CNE, oficialmente partidarizada e dominada pela Frelimo. Os resultados são contestados e o CC não se mostra apartidário, prefere levar o anúncio dos resultados para o último momento dos prazos legalmente estabelecidos. Ademais, perante o cenário político turbulento do qual faz parte, busca a todo o custo leccionar direito constitucional a todos os actores político-partidários, apartidários e a imprensa. Dos resultados oficiais que a CNE reconheceu serem problemáticos, O CC exigiu explicação que chegou de obscura, sem transparência, mas a vitória eleitoral prevalece fortemente inclinada à Frelimo. Com todas as manobras abertas e as desconhecidas, o que se pode esperar da possível validação dos resultados do escrutínio?
A primazia do uso da violência tende a favorecer a manutenção do poder, mas à beira do colapso. A PRM e UIR revelaram ser entidades partidarizadas, entretanto, a população frustrada com o actual estágio da economia, o contrato social está na incerteza. Ademais, as relações entre o povo e as multinacionais não é saudável. Kenmare foi ludibriada pelo governo e sancionada pelo povo; a SASOL está de costas voltadas com população de Inhassoro e Govuro; motivos de força maior prevalecem com a TotalEnegies em Cabo Delgado; a mineradora australiana Syrah invocou força maior em Balama. Quo vadis Moçambique?
A UIR e a PRM já revelaram seu cunho partidário pró-Frelimo. O Exército mostrou-se amistoso em relação ao povo durante as manifestações, mas tal não é tido como dado adquirido, pois o Ministro da Defesa Nacional não pareceu conciliador no início das manifestações contra os resultados apresentados pela CNE. Em Cabo Delgado, o terrorismo recuperou algum terreno durante o conflito pós-eleitoral e a parceria entre o governo do Presidente Nyusi e as forças ruandesas é uma incógnita. Que tipo de relação podemos esperar com ascensão do novo governo após a potencial validação dos resultados eleitorais? Quem irá proteger o novo Presidente? Estará Moçambique à beira de um regime militarizado?