Enquanto reflectia em torno do tema que inspirou o presente texto, não deixava de pensar nos efeitos da sua recepção, não por conter um conteúdo polêmico, e sim, pelo receio de polemizar mais o próprio tema, o papel Vs silêncio dos intelectuais na actual conjuntura social e política moçambicana. Há mais de duas semanas que escrevi, mas não o encaminhei à publicação, pois os receios confundiram-se, de certo, com temores, mas não se traduziram, felizmente, em covardia de quem prefere “ficar no muro” por conta do ambiente social e politicamente polarizado.
Se é verdade que a polarização não constitui um problema em si, a mesma transforma-se num mal social, quando degenera e contamina o espaço público de debate. É como se todos andassem impacientes e com os nervos em franja. Ninguém ouve o que não lhe convier ou não apelar à sua comoção. Simulam-se debates, nos quais assistimos monólogos colectivos (ou polílogonos, como prefere chamar Severino Ngoenha), em que cada grupo se fecha nas suas próprias convicções, e os polos se convertem em inimigos. Lamentavelmente, é nesse estágio em que se encontram muitas democracias ocidentais, numa espiral de progressiva corrosão de seus fundamentos. Ora a crise na qual estamos mergulhados parece conduzir-nos, lentamente, para esse último nível de polarização. Consequentemente, e por conta do “raciocínio motivado”, qualquer colocação directa ou indirectamente ligada aos temas que dividem opiniões, é motivo de aplausos por uns, ódios e apupos por outros. Eu estou ciente de que por mais cuidadoso que seja a minha escrita, a interpretação e os efeitos de sentidos dela decorrentes não dependem de mim; deste texto pode dimanar variadas reações. Ainda assim, prefiro “não adiar mais a palavra”.
Ora, há praticamente dois meses que o país está mergulhado na mais intensa crise pós-eleitoral. Já de tudo um pouco se disse, se escreveu e se falou. Porém, o tema continua a pautar a informação e a agenda nacional. Provavelmente dar-nos-emos conta, findo período, que tenhamos tido mais informação produzida a respeito do fenómeno numa desproporção sideral em relação à própria realidade. É que tal como não se tem precedentes de uma tamanha crise, talvez não se tenha memória de uma profusão de debates na media tradicional e digital, bem como nas colunas de jornais nacionais e internacionais a respeito do fenómeno ora vivido.
Antes de prosseguir, preciso ponderar que como cidadão compreendo e revejo-me nas principais causas que deram origem ao que prefiro designar de revolta popular. E reconhecer isso não significa ser-se da oposição ou da posição, partidário deste ou contra aquele grupo. Sou um simples jovem cidadão moçambicano, cresci numa província historicamente tida como bastião do partido no poder, aquela que personifica(va) todo o tipo de intolerância política, onde os espaços cívicos estão(vam) bastante reduzidos. É o local onde o preço de não ser militante e alinhado se paga(va) caro, às vezes, com a própria vida, como foi do saudoso Anastáncio Matavel. Mas Gaza é, também, bastião da arrogância e prepotência dos seus dirigentes, da impunidade, da miséria, de toda sorte de carências, da falta de oportunidades de trabalho para jovens formados, da exclusão e desigualdades sociais, onde os índices de pobreza e indigência crescem na mesma proporção de certas enfermidades como acontece em quase todo o país.
Então não tem como não me rever em muitos dos dizeres que estão estampados naqueles dísticos. Ao contrário do que certas narrativas pretendem convencer a opinião pública, muitos desses jovens revoltosos agem conscientes e lúcidos e não movidos por estupefacientes como referiu o ministro do interior em rede nacional. É por estarem dotados de lucidez e uma forte consciência política e social – afinal é a existência que determina a consciência e não o contrário – que, saturados, dão peito às balas, reivindicam mudanças.
A improcedente cruzada anti-intelectual: os intelectuais nunca estiveram em silêncio
Paralelamente ao que acontece nas ruas, nas TV’s e nas redes sociais o acontecimento é espaçado por meio da “batalha discursiva”. Ora um dos temas que têm ganho força nos últimos dias tem que ver com os intelectuais, ou melhor, o seu papel na actual conjuntura. Há semanas viralizou um post de um conhecido escritor tecendo uma crítica directa às iniciativas de um conjunto de intelectuais que se reuniu e propôs o Manifesto Cidadão. Não foram poucos que, pela reação, concordaram, julgo eu, com o teor do texto. Já antes, num debate televisivo, um dos membros daquela organização, José Jaime Macuane, também teve que defender a iniciativa, diante de uma intempestiva crítica de um dos seus colegas de painel, o também intelectual Régio Conrado, que levantava questões que diziam respeito, sobretudo, ao alcance da iniciativa. Na sequência, seguiram-se, em diferentes contextos, discussões correlatas – algumas que se confundiam com ataques – galvanizados pela crítica pública, feita por Venâncio Mondlane, numa das suas últimas lives.
Ora tal como referi no limiar do texto, uma das facetas da polarização é o acirramento de posições que resvala na falta de abertura às ideias contrárias, produzindo, não raras vezes, uma “cegueira” deliberada perante os factos. E os factos estão expostos, mas não se resolvem por si. Penso que é sob esse prisma que nascem iniciativas internas de busca por uma solução pacífica e sustentável da crise vigente. Eu encaro iniciativas como Manifesto Cidadão e outras que, eventualmente, possam surgir, como respostas oportunas às críticas em torno das métricas excludentes dos políticos no passado, que envolviam apenas partidos políticos na tentativa de dirimir problemas nacionais, mesmo estando certos que não representam boa parte dos interesses dos moçambicanos. Além do mais, as soluções não passavam por negociatas entre grupos de interesse, por isso que as soluções eram superficiais, com um alcance episódico, uma vez que os problemas continuaram e se agravaram.
Como sociedade, não podemos perpetuar as formas de resolução de conflitos que se mostraram fracassadas no passado e, com efeito, parece-me ser contraproducente ridicularizar iniciativas que pretendem uma discussão abrangente e profunda dos caminhos que, doravante, queremos trilhar sem precisar de derramar mais sangue entre irmãos. Não duvido que a campanha contra a classe intelectual resulte do clima de desconfiança, saturação e oportunismo que caracteriza a sociedade moçambicana contemporânea. Sucede que conhecemos a filiação política de alguns dos intelectuais que fazem parte do Manifesto, mas precisamos reconhecer um pensamento equidistante e equilibrado dos mesmos, mesmo quando a atmosfera política era bastante desfavorável.
Haverá dúvidas da genuína preocupação de intelectuais como Brazão Mazula e Severino Ngoenha? Dos quais se reconhece, em grande parte da sua produção intelectual recente, bem como das suas intervenções públicas, contribuições recalcitrantes sobre os problemas que degeneraram na actual situação em que nos encontramos? Não é excessivo lembrar, no caso de Ngoenha, que, para além da regularidade das suas colocações na media, em muitos dos seus livros, o intelectual já alertava para os perigos da quebra do contracto social. Como hoje, já no passado, junto com José Castiano, foi acusado de busca de protagonismo político directo quando lançou o Manifesto por uma Terceira Via, uma hipótese rechaçada pelos próprios autores no livro. Estes, ancorados no conceito de historicidade, realizam uma síntese da primeira (socialismo) e da segunda (liberalismo), procedendo a um escrutínio crítico das contradições e limitações que caracterizaram as duas primeiras, por um lado, e, por outro, relevando os aspectos positivos nas duas, que podem ser aproveitados em vista de uma Terceira Via.
Há, pois, um diagnóstico dos problemas que conduziram o país ao caos que agora se vive. E o problema não é de hoje: tal como não o é a constatação da progressiva dissolução de valores humanos (Castiano, 2018), em lugar da “roubalheira e malabarismos” nas relações sociais. Não é novidade a denúncia da dólar-cracia (Ngoenha, 2016), que tem (des)configurado os meios de actuação da elite político-empresarial do Estado moçambicano, inclusive de algumas Organizações da Sociedade Civil, ao normalizarem posturas eticamente desviantes e politicamente nocivas ao bem-estar comum. Ainda em 2014, Severino Ngoenha para além de diagnosticar as causas que têm gerado as divisões internas entre os moçambicanos, apontou, como caminho para a superação dos sucessivos conflitos sociais, a necessidade de cultivar-se a tolerância que, no fundo, nunca existiu. É, ao contrário, a intolerância instrumentalizada – um outro corolário da (in)reconciliação, como prefere designar Eduardo Sitoe (2024) –, que mais vingou e estruturou a forma de pensar e agir dos atores políticos nacionais.
Quem deu atenção aos estudos e relatórios de transparência nacional e internacional, alguns produzidos por intelectuais moçambicanos, associados a alguns Centros de Pesquisa e Organizações da Sociedade Civil como CIP e IESE, esta última, por exemplo, que não cessou de partilhar gratuitamente, ao longo dos últimos anos, pesquisas reunidas em 11 volumes intitulados “Desafios para Moçambique”, integrando pesquisadores de diversos campos de conhecimento, que têm empreendido um laborioso trabalho intelectual sobre os problemas, desafios e soluções para Moçambique, nas suas diversas dimensões. Na última coletânea adstrita a 2023 – 2024, só para elucidar, nos primeiros dois capítulos dedicados à política e economia, respectivamente, o leitor é confrontado com abordagens que ressaltam problemas associados ao actual estado de caos, como seja o das consequências sociais e políticas da falta de reconciliação nacional, bem como o das relações e implicações da violência político-eleitoral no enfraquecimento da nossa democracia, da relação das oligarquias nacionais com a guerra de Cabo Delgado, entre outros estudos. Mas quem tem lido. Quem tem levado a sério esses estudos neste país?
Os intelectuais sempre estiveram no silêncio? Como assim?
Quem foram os constituintes do Comité de Conselheiros (CdC) de elaboração da Agenda 2025? Não foram intelectuais de diversos domínios de conhecimento e actuação profissional, protagonistas daquela que pode ser considerada a primeira Agenda Nacional, salvo o equívoco, com a radiografia do estado da nação, visão e estratégias, frutos de um debate amplo, inclusivo e participativo?
Em que medida essas e outras reflexões foram tomadas em conta por aqueles que estão ao leme do Estado, há quase 50 anos? Na verdade, boa parte dessas e outras contribuições soaram como uma vox clamantis in deserto. Hoje esquecemos-nos de que houve vozes que jamais se calaram diante dos sinais de decadência do Estado.
Ainda no passado, se considerarmos que o campo intelectual é composto, entre outros, pelo campo cultural, artístico e literário, devemos, desse modo, recuar para o tempo colonial de modo a dissipar alguns equívocos e reavivar a memória dos moçambicanos – tal como nos lembrou Lourenço Do Rosário, no podcast Gapi – do inesquecível papel das artes e da literatura na “profecia” a determinadas saídas da nossa sociedade. Não foi o barulho das armas que soou primeiro em busca da liberdade, e sim de vozes insubmissas de poetas e escritores que, em sucessivas gerações, denunciaram os males do sistema colonial e vaticinaram uma nação livre, antes de 62 e 64, e continuaram depois da independência, associados a Charrua (1983) e não só. Mas o problema não é e nunca foi o silêncio dos intelectuais, e sim, observa Rosário, “daqueles que detêm o poder”. Pois, conclui: “a maior parte daqueles que detêm o poder assobiam ao lado, não têm o cuidado de respeitar a opinião pública e a opinião dos intelectuais como sendo os melhores conselheiros para corrigir as assimetrias”. Portanto, não há silêncio [dos intelectuais], o que existe é o desencontro entre aqueles que pensam e aconselham e aqueles que devem tomar decisões conducentes à mudança de paradigmas.
Alertou-se, inúmeras vezes, para os riscos do estágio em que vivemos, quando se buscou abafar as manifestações e o debate nacional franco, por meio da repressão e de intimidações. De modo que não deveria ser, de todo, surpreendente este estado de anomia social, na medida em que constatamos, todos, os recuos significativos em termos de ganhos que se esperava que fossem consolidados com o multipartidarismo. Debalde, pois vimos, muitas vezes impávidos, a progressiva degradação do Estado Democrático de Direito. Testemunhamos a saga, nada sutil, do sucateamento da saúde, da educação, da justiça, etc. À vista de todos nós, assistiu-se, por tabela, à perda do contracto social também, conforme referi, denunciado inúmeras vezes por Severino Ngoenha (Os Tempos da Filosofia), e por muitos desses intelectuais que integram o Manifesto Cidadão). Nada disso ocorreu de forma subliminar.
Mas quem acatou?
Quem, pelo menos, refletiu acerca dos fundamentos avançados na proposta do federalismo do então jovem Severino Ngoenha em “Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica, depois refinada filosoficamente em “Das Independências às Liberdades”, ou mais recentemente, quem escutou e analisou as premissas avançadas por Ngoenha ao alvitrar-nos o regresso às ideias de Mondlane, no livro “Mondlane, regresso ao Futuro”? (2019).
Quem deu ouvidos aos comentários incisivos (Pontos de Vista) de Tomás Vieira Mário, que até bem pouco tempo foi uma das primeiras vozes a criticar a postura da PRG e o impacto da mesma na descredibilização e aumento da desconfiança do público com as nossas instituições de justiça, quando esta se mostrou diligente, ao urdir processos cíveis e criminais contra Venâncio Mondlane, e continua muda e cega diante da actuação desproporcional das Forças de Defesa e Segurança contra os revoltosos nas ruas. Quem?
Esquecemo-nos de que, quando não podiam “algemar as palavras” com armas, empreenderam a campanha de assassinato de carácter, que consistiu em demonizar e marginalizar os poucos intelectuais não-alinhados; aqueles que não viam a realidade da mesma forma e desafiaram a orquestra sinfónica do discurso triunfalista e panegírico, sendo rotulados de apóstolos da desgraça, inimigos do progresso, entre outros epítetos que não convém aqui lembrar. Não bastasse, sofisticaram os mecanismos de intimidação e coartação das liberdades, através da violência física precedida por sequestros e raptos.
No entanto, estamos todos acometidos por uma estranha amnésia coletiva! Perdemos a memória da razão que culminou com as pauladas às pernas de José Jaime Macuane e Erecino de Salema?
Apagou-se da memória o que levou ao assassinato bárbaro de Carlos Cardoso, Siba-Siba Macuácua, e num passado não distante, Jilles Cistac, intelectual, constitucionalista e defensor da descentralização.
Quantos exemplos mais poderia elencar para avivar a nossa memória?
O próprio Venâncio Mondlane, enquanto intelectual e analista político que sempre vocalizou os problemas de governação, em meio a uma “cegueira” deliberada e crescente de alguns, não escapou ao cerco dos famigerados grupos de choque como o G40, bem como da media pública nacional, ao serviço do partido que governa. Então esquecemo-nos de tudo isso?!
Pode-se criticar o exercício intelectual, mas não devemos misturar alhos e bugalhos.
Com efeito, há-de se fazer duas ponderações em torno da confusão que se faz entre os que designo de comentadores de TV ao serviço do governo, e de intelectuais que, independentemente, de todo tipo de condicionantes, não se curvaram, pelo menos explicitamente, às tentadoras benesses da cooptação.
Os primeiros constituem uma franja de académicos cooptados, muitos deles, docentes de Universidades – eles precisam de estar associados a alguma Universidade para conferir o ar de intelectualidade nos seus comentários” (cyber-intelectuais, chama-os Ngoenha em “A Terceira Questão”), mas todos sabemos como muitos chegam lá, e que a docência é apenas um meio para se consolidarem nos “mercados de postos”, tal como observou Antônio Cândido (2001), qual efeito de uma matriz de jogo de interesses que desvela, em parte, o ethos das relações entre os tais e as classes dirigentes do país, bem como o fosso da desvinculação social entre os mesmos e a sociedade. Não admira que os analistas de ontem sejam assessores, integrantes de fundos nacionais e deputados de hoje, e os de hoje (os Aníbais da vida e companhia…) serão amanhã (diga-se, nos próximos mandatos).
Entretanto, isso não surpreende, se considerarmos que tão pouco se trata de um fenómeno novo e estrito à realidade moçambicana. Na verdade, as relações entre os intelectuais e as classes dirigentes em Moçambique foram quase sempre definidas nos termos de uma relação entre “posição social” e “estruturas de poder”. Sintomático é a proporção e a indisfarçabilidade com que é feito hoje.
Sabemos que eles agem em estreita comunhão com boa parte da media nacional, que é co-produtora e disseminadora dos discursos da manutenção da legitimidade do Estado em todas as acções dos seus agentes, por mais absurdas que sejam. Avram Noam Chomsky, linguista, filósofo, cientista cognitivo e activista político estadunidense, denunciou veementemente esta subserviência política da media numa obra com um título já por si eloquente: “Media: Propaganda Política e Manipulação” (2024), do resto, com o foco na realidade política dos EUA, mas cujo padrão de actuação parece encontrar similaridades em contextos como o nosso.
Na realidade, nestes últimos dias, temos estado diante do contrabando insidioso de mentiras empilhadas, descaradamente, a quem acompanha seus noticiários e debates promovidos, sobretudo, pelos órgãos públicos de comunicação social. Seu foco é deslegitimar as causas da revolta popular em favor do pânico económico. Por isso que neste conflito, vocalizam apenas interesses da oligarquia que controla a economia e o mercado financeiro. Ainda assim, e mesmo que estejam à margem da realidade por conveniência, sou daqueles que defendem o seu direito de fala até ao limite da tolerância, ou seja, até ao instante em que o debate for pautado por uma racionalidade que exclua a imposição da razão por outros meios que coloquem em causa a coexistência humana, sob pena de a intolerância acabar com a própria tolerância, dirá Karl Popper, no Paradoxo da (in)Tolerância.
O segundo grupo é aquele que, para mim, se enquadra no estatuto de intelectual orgânico de Gramsci (1997), que mesmo sendo parte de uma Formação Discursiva e Ideológica próxima da classe dirigente (parte deles), não se exime da sua vocação idiossincrática de reflectir em torno de questões candentes da nossa sociedade e actua numa práxis que esteja necessariamente atrelada aos problemas sociais vigentes. Ciente dos riscos que correm, esses intelectuais agem sob uma estratégia de transformação histórica em que dê reconhecimento aos dilemas e desafios colectivos. Não se arvoram à velha concepção de arautos da salvação, pois não estão e nem se colocam acima dos outros. É assim que vejo o grupo de intelectuais que se tem esmerado na busca de soluções para a actual crise, através de uma plataforma de diálogo que se quer permanente e consequente como a de Manifesto Cidadão.
Por isso, mesmo que ponderemos os primeiros como intelectuais, não devemos ter a ilusão de esperar uma reação unívoca de toda classe intelectual moçambicana perante os mesmos fenómenos sociais e políticos, por um lado; ilusório seria esperar um campo intelectual livre de interferências políticas, quanto mais numa sociedade como a nossa, profundamente marcada por um processo de formação social atocrático, por outro.
À guisa do fim: não os desencorajemos
É temerária a cruzada anti-intelectual em curso, pois sabemos que os discursos e significados não operam apenas no sentido cognitivo, mas também no normativo, e são passíveis de tradução em ações pelos indivíduos e grupos na luta política, independente mesmo da sua consistência lógica interna, das intenções manifestas ou latentes.
\São injustos os ataques junto daqueles que têm coragem de enfrentar o sistema e os problemas de governação neste país. Tal como referi, podemos criticar a forma, mas não desmerecer as iniciativas em curso, nem fingir amnésia do histórico papel dos nossos intelectuais em favor de causas mais nobres da sociedade moçambicana. Pois tenho comigo que atacar esforços de estabelecimento de uma plataforma representativa de diálogo nacional como a de Manifesto Cidadão é mais do que atacar intelectuais, é queimar as poucas pontes de que dispomos para aproximar os políticos à mesa do diálogo.
Não precisamos de análises profundas para percebermos que, no fundo, não há disjunção alguma entre as reivindicações dos revoltosos com as posições defendidas, não na estrada com dísticos como seria de esperar, mas nas intervenções públicas e não só, de intelectuais como Brazão Mazula, Severino Ngoenha, Tomás Vieira Mário, Tomás Timbane, José Jaime Macuna, Roberto Tibana, este último parte dos sugeridos por VM7 para integrar a mesa de diálogo junto de outras figuras públicas reconhecidas pela sua coragem e defesa dos Direitos Humanos e dos mais desfavorecidos. Posto que, ridicularizar a classe intelectual é ridicularizar a verticalidade e a coragem que sempre caracterizaram um Roberto Tibana, por exemplo, a quem eu muito admiro. Pelo que não encontro razão que justifique os ataques à classe intelectual.
Que as críticas estimulem e não retraiam todos os esforços com vista à refundação do nosso Estado, a partir da oportunidade que nos é gerada pela crise vigente. O grupo que integra o Manifesto Cidadão já estabeleceu uma ponte importante de diálogo entre os representantes dos partidos políticos, talvez precisem de seguir dialogando e inserindo vozes de diversos cantos deste país e, sobretudo, as lideranças que emergem e são reconhecidas entre os revoltosos, pois a esses intelectuais: não basta discorrer apenas sobre o povo, é preciso partilhar espaços de fala. Assim, reduziriam, talvez, o fosso de desconfianças que pairam, tornando o manifesto mais representativo e até polifónico. Porque não?
Por fim, não vejo problemas no protagonismo de intelectuais em meio a crises, mesmo que isso seja confundido com oportunismo. As críticas ao seu protagonismo só revelam mais uma contradição flagrante. Estranho seria o silêncio complacente diante do caos instalado. A história da humanidade está repleta de exemplos em que os intelectuais que tomaram dianteira ou colaboraram com ideias para a superação de crises, conflitos e consumação de revoluções populares. Afinal, foi em meio a convulsões que se consolida o conceito de intelectual moderno. Apesar da ideia de intelectual moderno irromper no século XVIII - na consignada Época das Luzes, época na qual se busca desarraigar do poder absoluto da monarquia e da omnipresença da Igreja – só nos finais do século XIX, com o célebre caso Dreyfus na França (1894-1906), é que se consolida a figura do intelectual comprometido, por exemplo na Europa, o que teve reflexos em muitos outros cantos do mundo. Desde esse período os intelectuais se tornaram num grupo politizado – possivelmente o mais politizado, na perspetiva de Debray (1979) – intervindo em assuntos políticos, participando ativamente na esfera pública, pronunciando-se e combatendo por causas políticas e sociais.
Ora, se toda acção intelectual em curso se mostrar infrutífera, se o conflito não encontrar um quadro regular, nem estabelecer vasos comunicantes, pelo menos não terá sido por apatia ou silêncio da classe intelectual moçambicana. Pois é melhor fazer algo, e ser alvo de críticas por uma acção engaja pelo bem maior do que por inação.
Atacar e desmerecer as actuais iniciativas de intelectuais em busca da paz e estabilidade, é atacar o alvo errado do problema e acirrar mais as divisões internas.
Tenho dito.