A tensão pós-eleitoral em Moçambique trouxe pela primeira vez à ribalta um novo fenómeno político: a badernocracia. Trata-se do poder nas ruas e não necessariamente do povo no poder.
Em Moçambique, a democracia representativa vai nua. A tensão eleitoral desembocou numa crise profunda do Estado, mostrando a falência das suas estruturas, incluindo um tremendo vazio do aparato castrense. O Presidente Filipe Nyusi parece não governar. Seu Comandante-Geral da Polícia, Bernardino Rafael, faz e desfaz, diz e desdiz, passeando-se por aí, incólume, mas cada vez mais ausente. E não lhe acontece nada. Dali não sai, dali ninguém lhe tira!
Todos os dias, a polícia sob seu comando exibe sua musculatura atroz contra os indefesos. Atropelam “txopelas” e atiram indescritivelmente contra os jovens rebolos, matando a sangue frio. Não é uma polícia formada para proteger, mas para obedecer às ordens sinistras de um regime autocrata.
O Estado faliu! A sua autoridade está esvaziada. Ninguém impõe ordens. E a economia funciona ao ritmo das convocatórias venancistas, que descambam grosso modo na barricada da via pública, como se vê agora o comércio internacional estar refém do desacato em Ressano Garcia.
O Poder está nas ruas. Venâncio convoca para que os funcionários sigam ao trabalho deixando seus carros em casa, tentando impregnar algum pacifismo nas mentes que dão o seu peito às balas nas ruas. Ninguém acata. E surgem jovens e crianças barricando estradas com pneus, troncos e blocos de cimento, uns jogando a bola, outros cobrando perversas taxas de circulação e “mamanas” confeccionando alimentos.
É o poder nas ruas. “Este país é nosso”, cantam o slogan mais audível do venancismo, que comanda a revolta de fora do país, evitando uma alegada tentativa de assassinato e uma posterior trama persecutória engendrada sumariamente pela Procuradoria Geral da República.
A par dos tentáculos da judicialização de uma tensão política que ainda vai no adro, temos também um Governo completamente ausente, mergulhado num silêncio cúmplice com os desmandos em curso. Parece que o Governo se demitiu. E dentro do executivo não há voz de comando. Consta que poucos são os ministros que se dão ao luxo de ir trabalhar.
Depois do falhanço da saga golpista de 7 de Novembro, esperava-se que o Governo abrisse linhas verdes contra o vandalismo, permitindo a Polícia intervir cirurgicamente para repor a ordem pública e proteger a economia. Mas o Executivo cruzou os braços. E quem governa?
São os que barricam os carros nas ruas, que nem sequer seguem a cartilha de VM7, que nunca soube capitalizar a predisposição das classes mais urbanizadas, que abraçaram o panelaço, pacificamente, e agora saem para as ruas de Maputo entoando o “hossi katekisa Africa”, em pleno meio dia, a plenos pulmões, numa expressão de denúncia do seu cansaço com o "status quo", o que representaria, por si só, o aumento da legitimidade do venancismo e, em proporção inversa, a consumação da perda de legitimidade do regime de Filipe Nyusi.
E VM7 manteve sua predisposição de sabotar a economia, seguindo a cartilha de Gene Sharp (The Politics of Non Violence). Quando podia muito bem implementar as tácticas da não-violência, da resistência inspirada em Gandhi ou Martin Luther King, Venâncio persistiu numa narrativa de paralisação da vida económica e social cujo subproduto é esta badernocracia que se instalou um pouco por todo o país.
Na verdade, a maior parte dos seus apelos não tem surtido os efeitos que ele deseja, nomeadamente: prometeu 45 dias consecutivos de manifestações, uma marcha de 4 milhões de moçambicanos para a capital, o fecho de todas as fronteiras e portos, que os automobilistas parassem suas viaturas nas ruas de Maputo, entre outras coisas.
Nada disto aconteceu...e o que restou é esta predisposição para as barricadas, para a desordem pública, a arruaça e a destruição da propriedade pública e privada. E a sociedade a reboque da badernocracia, com a Frelimo também completamente ausente. Moçambique vive seus piores dias desde a transição democrática. Não é o povo no poder, como clamam as vozes desta luta por mudança de regime. É o poder nas ruas...da desordem.
PS.1: O termo “baderneiro" - donde resulta a noção de badernocracia - é utilizado para descrever uma pessoa que se envolve em actos de desordem, tumulto e violência, geralmente em espaços públicos. Essa palavra deriva do verbo "badernar", que significa provocar tumulto ou confusão. O baderneiro é conhecido por seu comportamento desrespeitoso e irresponsável, que pode causar danos tanto sociais quanto económicos. Em geral, ele busca chamar a atenção para si mesmo, muitas vezes de forma negativa, através de actos de vandalismo, agressões físicas, depredação de propriedades públicas ou privadas, entre outros.
PS.2: No contexto baderneiro em que estamos mergulhados, com a Frelimo ausente e o Governo encolhido dentro da sua carapuça, o Primeiro Ministro Adriano Maleiane manteve um encontro recente, de carácter restrito, com alguns "spin doctors" do regime, comentadores afectos, editores da “mídia” pública, entre outras figuras escolhidas a dedo. Maleiane pretendia ouvir ideias sobre o que é que o Governo devia fazer em face da actual crise pós-eleitoral.
Quem esteve lá, deu-me conta de duas intervenções que marcaram a conversa por razões distintas. Uma cáustica e que deixou o PM boquiaberto. Patrício José, antigo Vice-Ministro da Defesa, perguntou: afinal quem está com o Governo? Os professores, não; os médicos, não, os enfermeiros, não; e por aí além.
Outra intervenção, notável pelo seu carácter sinistro, foi a do comentador Dércio Alfazema, que deixou a organização holandesa IMD onde trabalhou no espectro das ONGs Moçambicanas e se alistou na franja dos fazedores de opinião que defendem o regime de forma canina, criticando sistematicamente a oposição e a sociedade civil. Alfazema disse mais ou menos assim, em jeito de sugestão para se pôr cobro à crise: “Talvez o ideal fosse mesmo 'visitar' a casa do Venâncio Mondlane”.
A sala gelou! Não era para somenos! É que desde que o regime de Nyusi ascendeu ao poder, o termo “visitar” é sinónimo dos actos mais abomináveis usados contra opositores. Por exemplo, Elvino Dias e Paulo Guambe foram “visitados” pelo regime, tendo sido física e politicamente eliminados. (MM)