Começo pelo fim: o engenheiro Venâncio (que agora nos deseja boas festas) já nos tinha ameaçado que não haveria festas de Natal nem celebrações de fim-do-ano. Decretou que as festas religiosas deviam ser celebradas não nas nossas casas, mas em manifestações nas ruas. Sou católica, venho de uma família católica. Nunca pensei que alguém pudesse ter a veleidade de interferir em algo tão sagrado como as celebrações natalícias. O ditador Maduro, da Venezuela, já tinha mandado alterar as datas do Natal. Todos se riram dessa presunção. Só podia ser uma anedota, só podia sair da boca de um palhaço. Infelizmente, no nosso caso, os mandamentos do Venâncio Mondlane não podem ser motivo de riso. Nunca em Maputo se destruiu tanto num só dia: hospitais, postos de energia, armazéns de medicamentos, lojas, condutas de água, bens públicos, repartições e serviços. Tudo que era nosso, agora ficou de ninguém. Tudo que era construção, ficou ruína.
O banco de sangue do Hospital Central que eu, por razões imperiosas de saúde, preciso de frequentar, deixou de funcionar. Os funcionários e os dadores de sangue ficaram bloqueados na estrada. Agora, já não há reservas de sangue. A minha vida ficou nas mãos dos caprichos de um todo-poderoso. Que fique claro: o senhor pode não ser o único responsável. Mas é o senhor o maior culpado da massiva destruição. O senhor é, como dizia o presidente Bush, uma arma de destruição massiva.
A pergunta é a seguinte: quantos anos de construção do nosso património comum foram destruídos num único dia? Conheço e reconheço os argumentos dos que acusam a FRELIMO como uma causa de toda esta tensão. Eu também partilho dessa acusação. A corrupção de uma elite predadora está na raiz da nossa pobreza. Mas os pobres, senhor engenheiro, os pobres não são estúpidos, os pobres não são desprovidos de moral, os pobres sabem que a saída desta situação não pode ser por via desta violência. Por isso, deixemos de palavreado. Os donos das pequenas lojas que foram vandalizadas no meu bairro não vão vender argumentos políticos aos seus clientes. Não vão dar de comer aos filhos as culpas de uns ou de outros. Todos os que foram vítimas desta violência cega (e fomos todos nós, do Rovuma ao Maputo) não poderão ser consolados com a sua retórica política. Os únicos que talvez estejam contentes com esta destruição do nosso tecido social serão os extremistas que, em Cabo Delgado, cortam a cabeça dos nossos irmãos. Não se esqueça, caro engenheiro Venâncio: o caos serve o terrorismo. São irmãos gémeos, filhos de um mesmo pai e da mesma mãe.
Deixemos, pois, de invocar razões políticas para aquilo que apenas tem a ver com o bom senso, com o amor à nossa pátria. Só existe um sentimento que, agora, nos pode unir: reconhecer que esta destruição cega não pode ser o caminho. O inimigo político tem um nome? Pois atinjam esse inimigo. E deixem-nos em paz. Estes tumultos que o senhor insiste em chamar de “manifestações” só agravam a miséria em que vive a grande maioria. Essa pobreza foi, em grande parte, provocada pela má gestão e pelo desgoverno dos últimos anos. Mas um dirigente da oposição não pode convidar ao suicídio coletivo do seu próprio país. Nenhum médico pode mandar incendiar o hospital onde ele promete tratar os seus pacientes.
Ainda estávamos a pagar uma dívida oculta que serviu criminosamente uma pequena elite. Agora vamos pagar durante muitos anos uma nova dívida que foi provocada pelo vandalismo comandando pelo engenheiro VM7. A nuvem de fumo que cobriu a cidade das acácias vai continuar a pairar durante anos e anos. Dentro dessa nuvem vão crescer os nossos filhos. Não há bombeiro que apague esse fumo.
Nunca tive paciência para assistir a uma “live” do pastor. Pela primeira vez, dei-me ao esforço de seguir o anúncio da Turbo8. Era véspera do Natal. E fiquei assustada mesmo antes de VM7 começar a pregação. Enquanto ele dava tempo para juntar uma audiência mais volumosa, fui lendo os comentários dos seus seguidores. Aquilo não era uma plataforma virtual: era um templo e os crentes saudavam não um líder político, mas uma entidade divina.
Como já disse, sou religiosa e já assisti a diversos cultos transmitidos por via televisa. Mas eram assumidamente cerimónias religiosas. Não misturavam propaganda eleitoral com os assuntos de Deus. O que mais me assustou nessa “Live”, porém, foi o tom de ódio com que o pastor invocava constantemente um Deus vingativo, um Deus munido de machados, fogachos e punhais. Um Deus sedento de sangue, de cinzas e de ruínas. Não era esse Deus que eu conhecia. O meu Deus é o do amor, do abraço e da reconciliação. Mas foi esse outro Deus das pragas e dos apocalipses que o pastor Mondlane convocou.
O país, decretou Venâncio, estava entre a “paz e o caos”. Moçambique estava entre a “vida e a morte”. Disse isto antes de ontem. Pois todos nós despertamos hoje no meio do caos, no meio da morte. E fomos todos castigados como se fossemos todos nós os culpados. A nação moçambicana, toda inteira, foi condenada. O mundo vai olhar para nós como um território de desordeiros, onde não vale a pena investir, para onde não vale a pena sequer viajar de férias porque sabe-se lá se, chegando ao aeroporto da capital, apenas se pode circular de ambulância ou de carro funerário de acordo com as ordens “superiores”.
Por isso, senhor Venâncio, faça as suas reivindicações, faça a sua luta de modo a não matar Moçambique. Outros países brigaram, ainda recentemente, pela verdade eleitoral. Na Venezuela, juntaram-se milhares de pessoas nas ruas. Mas os protestantes nunca paralisaram as cidades. Nunca incendiaram, saquearam ou bloquearam as estradas que, como alguém já aqui escreveu, pertencem a todos e não aos caprichos de um candidato. Na Geórgia, milhares de pessoas juntaram-se nas ruas para protestar contra os resultados das eleições. Mas nunca ninguém os encorajou a criar o “caos em todo o país”. Agora, senhor engenheiro, é tarde demais par desdizer o que está gravado. O senhor disse que, caso não validassem a sua vitória, seria desencadeado o “caos”. E cumpriu-se a sua vontade: vandalizaram-se lojas, armazéns, escolas, repartições, tudo foi alvo de destruição. Um ciclone chamado Chido matou gente em Moçambique. Pois um ciclone chamado “caos” devastou toda a nossa economia. Saquearam pequenos negócios mas atacaram também grandes projectos que dão emprego a milhares de pessoas e que trazem divisas para a nossa economia. Vandalizaram prisões e libertaram perigosos criminosos. Tudo isto lembro para lhe dizer, senhor Venâncio, as nações são entidades com raízes na história. Mas há países que se partiram ao meio, que deixaram de ser países, que passaram a ser ingovernáveis por causa da absoluta ganância pelo poder. Este nosso país é grande, mas é frágil como todas as criaturas vivas.
Comecei este texto pelo fim. E, agora, acabo por onde devia começar. Caro Venâncio Mondlane: não volte nunca mais a cantar o hino nacional. Porque esse hino, esse hino chama-se a “Pátria Amada”. E o senhor não ama a sua pátria. Você ama-se a si mesmo. Não, senhor Venâncio, não nos volte a mandar cantar o hino. Porque, da próxima vez, cantaremos quando nós quisermos. E cantaremos contra si que usa as costas dos mais pobres para fazer sozinho a sua carreira. Não se esqueça, senhor Venâncio: o hino nacional fala contra os tiranos. Que não são apenas os corruptos da FRELIMO. Você também é um deles. Um tirano que, mesmo sem chegar ao poder, já nos está a escravizar com mais cem anos de fome e de pobreza.
Margarida Ntsai