Antes de eu partir, no dia anterior, vasculhei a minha caixa de livros à procura de Ualalapi. Antes porém de localizar essa obra borbulhante de Ungulani Ba Ka Khosa, deparei-me com “A mãe”, de Máximo Gorki. Queria mais um ou dois, dos poucos que tenho e que já os li, para que me sentisse aviado. Sou leitor de baixa intensidade e viajo pouco pela música, mas escuto boa música, independentemente do género. Sobre os filmes, idem. Os que vi ficaram na memória de tal forma que ainda hoje os sinto. E os absorvo na imaginação.
Levei no regaço Ualalapi, A mãe, e Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski, não propriamente por necessidade de os reler, apenas queria algo que me sustentasse o espírito para que, em momentos imprevisíveis de provável tédio, encontrasse refúgio ou, na melhor das hipóteses, o stick para me levar a outros enredos. Sobre a música não me preocupo em providenciar nada, tenho o youtube, onde não faltará a recorrência a Fela Kuti - não me canso de ouvi-lo.
Já estou pronto a pegar a estrada, sem medo de nada, depois de uma noite mal passada, a ser encostado, violentamente, pela minha mulher, à parede, como uma criança inútil. O que me vale é que agora, com a idade entrando fundo dentro de mim, aprendi a suportar as facadas, mesmo que elas sejam injustas. Aos ataques reajo com o silêncio e com o olhar incisivo dos tigres, sem dizer nada. Sinto-me a enrrigecer como as rochas que formam grutas inteiras nas montanhas de pedra. É por isso que não vocalizo nas minhas respostas.
Mas estou aqui, com a sacola a tiracolo, dentro da qual, além das poucas roupas que vão dar para uma semana, tenho as obras literárias de grandes escritores no meu bornal. Elas são o meu baluarte. Não preciso de armas para guerrear, quero um bastião, e os livros e a música são isso mesmo, meu último reduto. São as palavras grafadas no papel e na história que me protegem ao ser agredido pela minha mulher, com vários feixes de azagaias buscando meu sangue. E na verdade sangro ao ser vergastado. Sangro para dentro onde guardo todas as minhas cicatrizes. Sou como os gatos, você enterra vivo esse pequeno felino, e ele vai refocilar e vem cá fora. De novo. Vivo!
Tu não prestas para nada! És um cão vadio! Se fosses homem de verdade saberias o que é uma mulher! Passaste a vida toda a caminhar, nunca chegaste a lugar algum. És como as mulheres sáfaras, não produzes nada. Nem por fora brilhas, mas esse é o espelho das tuas vísceras corroídas pela opacidade. O pior é que ainda pensas que estás vivo! Se eu fosse a você, suicidava-me sem pensar duas vezes.
É este flashback que soa profundamente dentro de mim, sentado, encostado à janela do 737 que me leva a Pemba. Como das outras vezes. Estou para além das nuvens, onde a atmosfera começa a diluir-se.
Se eu fosse a você, suicidava-me!
Mas eu não quero morrer, nasci para viver. O sinal disso é esta viagem que faço dentro de um clima de catástrofe. Onde caminhamos nas margens do precipício. Esquecendo que nenhum de nós tem escafandro para sobreviver ao fogo.
Do seio da sarça, Deus rugiu como o verdadeiro Rei dos Céus, abafando todos os sons da planície onde Moisés apascentava o rebanho do seu sogro, Jetro. Era manhã fria e não havia outros pastores por perto, pois toda aquela vastidão de terras pertencia a uma única pessoa, escolhida entre os demais para desfrutar de um manancial sem fim. Foi nesse lugar que a Voz esvaziou-se e troou como o último vulcão e chamou por aquele que seria, afinal, um servo apetrechado de aço filtrado em fogo, para romper as grades do mal.
Deus trovejou como os trovões que, nas montanhas de pedra, na função de megafones Divinos, entram em harmonia com a existência, e chamou pelo pastor solitário imbuído em pensamentos que só o Próprio Jehová podia sondá-los.
- Moisés!!!!!!!!!
O pastor entrou em pânico ao perceber que a Voz que lhe chamava vinha da sarça ardente, suspensa no espaço onde o rebanho tinha alimento em porções sem limites.
- Quem é você que me chama com essa Voz do fim do mundo?
- Sou eu, Deus dos Exércitos.
- O quê que você quer de mim?
- Quero que vás ao Egipto libertar os filhos de Israel, presos nas masmorras de Faraó.
- Mas porquê que tenho que ser eu a ir ao Egipto, libertar os Teus filhos das masmorras de Faraó.
Deus fez uma pausa, permitindo que se ouvisse na plenitude a música dos rios fartos que serpenteam em todo aquele maná oferecido a Jetro. Era a mesma música que Moisés ouvia todos os dias, mas que agora ressurge retumbante, silenciando todos os outros sons maravilhsos que encontram no cântico dos pássaros, a síntese da maravilha. Depois – ainda do seio da sarça - a Voz voltou e retorquiu: porquê que não tens que ser tu?
II
Lembro-me desta passagem bíblica, sempre que vejo - nas ruas da cidade de Inhambane – um homem que usa um cajado que mais parece um elemento de adorno, do que propriamente de suporte. Então, na minha imaginação, este indivíduo enigmático pode ser o próprio Moisés, encarnado numa outra pessoa, que é esta que vagueia sem direcção, aproveitando ao máximo – provavelmente – a paz que reside em toda a urbe.
Nunca o tinha abordado até ao dia em que perdi a capacidade de conter-me. Aproveitei o facto - numa manhã de céu nublado - de estarmos lado a lado, na varanda da loja do Matocolo, à espera que a chuva parasse. Não sabia como ele reagiria às minhas palavras, e nem podia saber, por muitos motivos, e um desses motivos é que, para além de nunca ter falado com ele, jamais o vi a conversar com quem quer fosse, apesar de ser uma pessoa bastante conhecida.
- O senhor é muito parecido com Moisés!
- Qual Moisés?
- Da bíblia!
Ele riu-se às gargalhadas, olhando-me profundamente. Acariciou - com as duas mãos - o cajado que será, se calhar, um imprecindível talismã da sua vida. Parecia estar a procura das palavras apropriadas para responder à minha ousadia, como no dia em que Deus fez uma pausa, deixando soar levemente a música dos abudantes rios do maná de Jetro, antes de dizer a Moisés: porquê que não tens que ser tu!
Mas quando parou de chover, o homem foi-se embora sem dizer nada, até perder-se na zona dos “Quatro candeeiros”, e não olhou uma única vez para trás!
Até aqui ainda não percebeste que o povo representa as placas tectónicas que estão se movimentando em direcção à liberdade, estás absolutamente cego. Devias ter aprendido, meu irmão, com a sabedoria de Nelson Mandela. Um dia, Madiba pegou no helicóptero e foi a Captown visitar Pieter Botha que estava paraplégico. Os dois eram homens de estatura física elevada, mas Botha estava sentado numa cadeira de rodas, que se movia segundo as necessidades do “boer”.
Mandela desceu do “helio” que aterrara nos vastos jardins da casa de campo daquele que vai dirigir um governo apoiado em leis injustas, que separavam os negros de um lado, e os brancos do outro lado. Caminhou na sua postura, não propriamente de chefe de Estado, mas sim, de uma figura humilde e cheia de dignidade, e dirigiu-se à fachada da casa exuberante de Botha, que o aguardava serenamente. Mandela dobrou a espinha para dar um abraço a Botha, que retribuíu sentado numa cadeira da qual nunca mais iria sair, até que a morte chegasse.
Ao querer largar o antigo dirigente de um governo racista, este apertou mais ao ilustre hóspede e disse, em sussurro, “cuidado com o tigre dos boers”! E Mandela respondeu, na sua sabedoria, “cuidado com o tigre das massas populares”!
É desta sabedoria, meu irmão, que devias ter aprendido, mas deixaste-te levar pela cegueira. Perdeste a oportunidade de estar aqui em baixo, longe do pedestal, como fez Jesus Cristo, que sempre se recusou ser chamado de Rabi (mestre), “eu sou vosso irmão”! Jesus, mesmo sabendo da Sua estatura de Cúpula Divina, caminhou eternamente com humildade, por isso vai triunfar. É a simplicidade que O destaca numa terra onde reina o pecado.
É isso, meu irmão, a tua terra tornou-se sáfara, mesmo tendo terras com fertilidade interminável, e rios abundantes. Por debaixo dessa mesma terra que amanhã se recusará a acolher os nossos corpos, estendem-se jazidas sem fim, que o próprio Deus, Ele Pessoalmente, criou para que tivessemos todos o bem estar. Mas isso não está a acontecer, são poucos os que se beneficiam desse maná que escorre para destinos que o povo desconhece.
Veja bem, meu irmão, estamos nus, no corpo e no sentimento. Se perscrutares atentamente o nosso estomago, vais ouvir a música do vazio, da dor da fome. Nós já nascemos com fome do ventre das nossas mães também famintas. E estamos a passar os poucos dias que teremos por aqui, como simples miseráveis. Não há música que nos console, a não ser os acordes que se ouvem no nosso “bandulho” opaco e encolhido até às costas.
É por isso que estamos aqui, gritando em reivindicação dos nossos ritos. Não temos lanças para lançar no espaço. As lanças somos nós mesmos buscando a música do amor que nos falta. É só isso que nós queremos, e tu não percebes , meu irmão! E saiba mais, essa mulher que vai à frente é a nossa mathxathxulani (maestrina) irreversível. O rítmo da nossa luta reside nela, e ela jamais vai car. E nós também, jamais cairemos, enquanto residir nela todo o cajado.
Viver é melhor que sonhar/o amor é uma coisa boa – Elis Regina
Veio-me à memória, não propriamente a Elis Regina, meu farol também, mas a sua desconcertante música, “Como os nossos pais”, de onde ceifei esses dois versos profundos: viver é melhor que sonhar/o amor é uma coisa boa.
Estava eu sentado sòzinho na varanda, escutando o silêncio debruado pela música dos pássaros, a contrastar com as feridas vivas que se avolumam dentro de nós. E senti a chuva vestida de poesia chovendo dentro de mim: viver é melhor que sonhar/o amor é uma coisa boa.
Mas se de um lado a poesia e a música vencem, evocando o amor, do outro lado esse mesmo amor apelado e cantado, entra e estado de vaporização. Sublima-se aos poucos, como as hienas que nos comem vivos. É isso que eu sinto aqui sentado a escutar a música da natureza, ou melhor, a música do silêncio. Sinto também que o tempo de amar está escasseando, está fugindo. E percebo absolutamente que estou para além das minhas lucubrações, não estou a sonhar.
Até as crianças, que não páram de vir à minha casa arrancar mangas dependuradas na copa das minhas duas mangueiras, já perceberam que o amor está-se diluindo. Vejo isso na expressão dos seus rostos precoces e na maneira como elas falam. Algumas delas, prestando bem a atenção, não procuram a fruta por prazer de saborea-la, mas por fome. Vê-se nos lábios gretados, nas camisas rotas de parte destes passarinhos humanos. Então, deixo-as tirar as mangas como elas querem, sem limites. E não chamo a este gesto uma devastação, mas sim, uma necessidade urgente. Inadiável.
Onde existe o amor tem harpas. E na vida destas crianças não há harpas. Elas não sabem o que é o amor, nunca ninguém lhes deu. Mesmo assim, e isso dói muito, cantam comigo canções de paródia na nossa praia que fica aqui perto, a dois passaos. Cercam-me. Desabrocham a sua aparente alegria no palco de areia, pois dentro delas há um vazio. Físico e espiritual, e sentimental. Sim: o rosto é um pouco a janela da alma, e a alma destas crianças oscila em tonturas. O corpo está desprovido de energia, e onde não há energia não há luz.
Se houvesse o amor! Se houvesse, estas crianças não iriam sofrer. Mas a própria Gal já o diz, e eu não me cando de repetir: eles venceram/e o sinal está fechado para nós/que somos jovens.
É isso: os barcos de cabotagem já não chegam aqui, passam de longe com todos os bombos que eram para as nossas crianças. Nunca tomaram leite estes petizes, vejo isso nos seus rostos. Vejo a fome na forma como devoram as mangas, que serão, com certeza, a primeira refeição do dia, e já passa das 12.00 horas.
Como dói! Então o silêncio que me rodeia não faz sentido. Seria, este sossego, o meu retiro de inspiração e paz, mas quando olho para estas crianças, assim como elas (sobre)vivem, destroça-se todo o meu ser.
Está caindo uma chuva mal-cheirosa um pouco por todos os cantos do nosso país, mas isso pode ser o prenúncio de que o dilúvio chegou. Relampeja nos Céus, com raios gotejando luz letal sobre a terra libertada com sangue, agora regada com sangue novamente. Há trovões a rugir como os felinos mais portentosos da selva, anunciando a hecatombe, porém, ao que parece, ninguém se importa com a sinaleta.
Aquela mulher também , no tempo do Noa, dizia: nunca vi chuva nenhuma a engolir montes e montanhas, e árvores gigantes! Mesmo que venha o tal dilúvio, eu sei nadar, de mariposa e de bruços e costas e de livre. Por isso, não tenho medo de nada!
Chove em Maputo e Gaza e Inhambane/Chove em Sofala e Zambézia e Tete e Manica/Chove em Cabo Delgado e Nampula e Niassa. Chove uma chuva mal-cheirosa e pegajosa em todo o país, e ainda dizem, isto vai passar! Relampeja e troveja em todo o lado e ainda dizem, isto não é nada!
A tonalidade do canto dos pássaros baixou de nível. As estradas estão nuas de um lado. Do outro lado ganharam feridas vivas e, no lugar do pus, cheiram a petróleo. As balas são aspergidas contra os corpos dos jovens e das crianças. Os militares aprumam-se enchendo os carregadores das armas de guerra. Há uma voz de comando que grita para que o sangue jorre nas cidades. E as nossas casas tornaram-se grutas onde nos esconderemos, em vez de nos acomodarmos.
Continua a chover chuva pegajosa em Moçambique. E mal-cheirosa. O céu está encolhendo para que as nuvens se adensem e escureça. Cheira a pólvora na atmosfera. Os músicos recusam-se a subir aos palcos para cantarem as músicas da esperança. E quando se chega a essa fase, significa que serão os crocodilos e as hienas a triunfarem sobre a luz.
As noites tornaram-se longas, ninguém dorme. Os jovens estão unidos, mais do que nunca, no mesmo cacho da luta. Eles sabem que o caminho pelo qual se guiam, é íngreme, mas vão. Sabem igualmente, que para se chegar ao topo do monte mais alto da cordilheira de Namuli e de Catandica e de Chimanimani e de Binga, é preciso alimentar-se devidamente com xima e carne. E os jovens não têm nem xima nem carne, mas vão com a fome que vêm acumulando. “Nós já nascemos com fome”!
É esta a cascata que desce impetuosa, não para destruir. É esta catarata do tempo que já não pode voltar para trás. São estes os ventos que sopram de todos os pontos cardiais levando a força da restauração do amor e da paz. E aos ventos da paz e do amor, não há barreira que se interponha.
Chove chuva mal-cheirosa e pegajosa. Troveja em todo o lado. Relampeja sem parar nas ruas e nos becos e em todas as veredas de Moçambique. Mas ainda é um sinal que podemos entender com sabedoria, para que não haja mais sangue. Para que voltemos a acender as luzes apagadas.
Deus disse a Moisés, vai ao Egipto libertar os meus filhos presos nas masmorras de Faraó! E Moisés retorquiu: Deus, como é que hei-de ir libertar os Teus filhos, eu sou gago! E Deus retumbou: quem te deu a gaguez sou Eu! E ainda disse mais, Jehová: tu não precisarás de falar, abre apenas a boca, quem vai falar é o teu irmão, o Arone!
Mesmo assim, com as palavras irreversíveis do Leão de Judá, Moisés oscilou no silêncio da planície onde, ao som do doce zumbir das abelhas produzindo mel, apascentava o rebanho do seu sogro, Jetro. Mas Deus o tinha escolhido, era a ele que recaía a missão de rebentar as correntes da escravidão do povo, pisado e torturado e humilhado e cuspido na dignidade. Então Deus retumbou: deixa cair esse cajado que trazes na mão! E Moisés largou o cajado, que se transformou em serpente.
E Deus, do pedestal da Sua plenitude, observava o Seu servo tremendo perante o gigantesco réptil que o atacava. Moisés vacilou em movimentos trôpegos em gritaria, e logo a Voz dos Céus bramiu do meio da sarsa: pega a serpente pela cauda! E Moisés obededeu, e a serpente retornou ao seu estado de cajado. E Deus trovejou pela últim vez: agora vai libertar os meus filhos!
Nunca tivemos antes, a necessidade urgente de que amanheça, não para escutar a música que brota da orquestra dos pássaros, mas para guerrear com as nossas próprias canções de luta. Nunca antes, tivemos tanta certeza de que a hora já chegou para que a chuva caia nos campos e regue a terra e as sementes brotem retumbantes. Nunca!
Mas a hora já chegou. De rebentarmos a cangarra colectiva de todos nós. Chegou a hora de dançarmos perante os nossos verdugos. E na verdade vamos dançar sem as grilhetas nos pés, as novas danças do novo amanhecer que já desponta na aurora das gaivotas. Aí sim, a nossa marcha não voltará mais para trás. Recusamos a continuar alagados de sofrimento como pássaros engaiolados. Não queremos mais que as nossas canções sejam de melancolia.
É isso! A hora já chegou! De enfunar as velas da nossa liberdade. De convocar todas as nossas energias e abrir o peito em desafio às balas daqueles que nos subjugam. Somos as ondas imparáveis do Índico, que se esbatem na terra e voltam a esbater-se na terra, sem parar. Vão se esbater sempre, até que amanheça.
É essa a nossa luta. Queremos dançar em liberdade e em paz, o nosso Nyau e o mapico. A nossa timbila e a makharra. O nosso xigubo e o n´fena. A nossa Maphandza e o golomondo. O nosso tufu triunfante em Muhipiti!
Nós vamos guerrear com as mãos nuas até que as árvores do medo tombem. Todas elas. Queremos amar em liberdade as nossas mulheres. Fazer filhos com sonhos da sua própria terra. Usufruir de todo o maná que se estende na superfície e no mar e debaixo dos solos. Queremos isso para todos nós. Então deixem-nos passar. Este país é nosso!
Entraram na cidade com pólvora e chumbo e balas, cantando canções jamais ouvidas debaixo das luzes fluorescentes. Traziam consigo a euforia e o entusiasmo, e ainda o sangue quente da morte e da vontade de vencer. Vibravam, por dentro e por fora, como se a guerra tivesse chegado ao fim para que a paz prevalecesse. Mas as armas, embora repousadas à tiracolo, diziam outra coisa. Continuavam com os carregadores cheios e os dedos suados dos guerrilheiros, tremiam muito perto dos gatilhos. Sendo assim, significa que alguma coisa vai acontecer logo a seguir, mas ninguém foi capaz de ler os sinais, e fazer algo para evitar que o sangue voltasse a jorrar nas matas e nas estradas.
Cantávamos todos em harmonia. Em júbilo. Em celebração. Sob batuta de Samora Machel que ia à frente e dizia, “tiyendi pamodzi (vamos juntos)! E na verdade seguimo-lo, enchendo estádios e praças e todos os lugares por onde passasse, sem saber que onze anos depois de anunciar a vitória no vale do Infulene, num diz de chuva branda, ininterrupta, ele, o Samora, apagar-se-ia para sempre.
Depois o tiyendi pamodzi esvaziou-se e, em vez de continuarmos a ir juntos ao encontro da luz, com a vitória agarrada nas mãos de todos, os companheiros de Samora separaram-se de nós. Corremos na mesma pista da maratona mas quem chega são eles. Fumamos a mesma cannabis mas quem apanha o voo são eles. Estão felizes como os animais da selva, quando morreu o leão que rugia nos palanques da realeza. Estão grávidos de dinheiro e fartura. Esqueceram-se dos milhões de braços e, mais do que construírem uma pátria deles à parte, venderam o país inteiro, que é de todos nós.
É verdade! Está a anoitecer outra vez, para que se dê lugar ao piar dos mochos e ao triunfo dos demónios. No fundo nunca amanheceu na nossa terra, para além dos poucos dias que se seguiram ao desfraldar da bandeira que alimentava as nossas utopias. Fomos dados o cheiro da liberdade, mas quase no mesmo dia começaram a ser construídas novas masmorras. Deceparam-nos as asas. E agora estamos a verter novamente o nosso sangue na luta pela regeneração!
Mas é mentira, eles estão com medo de nós os pobres. Sabem que a nossa luta é irreversível. Sabem também que estão entre rios que avançam imparáveis contra os seus falsos baluartes. Não dormem nas noites de insónias onde as vozes do povo ecoam cantando as canções da nossa luta, “povo no poder! Povo no poder!
Estão abalados. Sabem muito bem que chegou a hora de repetir a metáfora de Samora Machel, “se o fruto não cai por si, é preciso abanar a árvore”. É por isso que nos matam. Mas todas as armas que têm e usam, serão em vão. O dia deles chegará como as ondas que não voltam para trás!
O sinal da derrota deles é esse, são as mentiras. São as sementes do terror que semeam em todo o lado. Mas, como rezam as páginas da história universal, desde antes do nascimento de Jesus Cristo, quem semeia ventos colhe tempestades. É infalível. Eles colherão, na safra da sua saga, as pedras que continuam a semear. Então, nesse dia, será proclamada a derrota vergonhosa dos heróis. E içada a nossa nova bandeira.
Em Moçambique não se tem falado, ultimamente, de beleza, fala-se pouco. Até nos próprios quadros de arte, o belo é retratado pelas feridas. Não há alegria, nem esperança na juventude. E assim, com este anoitecer violento, avulta um verso da Elis Regina, que se ouve nas ruas e que diz assim: eles venceram e o sinal está fechado para nós, que somos jovens!
Há um medo que paira nas avenidas, ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. As ameaças são aspergidas todos os dias pelo rosnar dos cães. A terra treme. Mas estes tempos jamais foram vistos antes, vivemos no fio da navalha. As cascatas deixaram de despejar água cá para baixo. As albufeiras estão baixando de nível, então pode ser que haja o risco de pararem as turbinas da luz que vai enfraquecendo dentro de nós. Pois, se os rios secam, seca o país também. E os rios somos todos nós.
Pedro Langa já dizia: esta bela árvore já não tem folhas, caíram/o que significa que aqui em casa reina o pranto.
Há latidos profundos em todo o lado, então somos iguais aos cães, talvez piores que os cães, é assim como somos tratados! Mas o que é isto? É preciso repetir que a morte agora é fabricada. É servida em garrafinhas com rótulos dos demónios, como por exemplo “dinamite”. Na verdade há um rastilho aceso no nosso chão inteiro, e não poderemos nos esconder nas grutas. Que serão estilhaçadas.
Já não se fala de beleza nos whatsap e no facebook e noutras plataformas digitais. Passamos a vida total a escarnecermo-nos uns aos outros. A despejar todo o nosso fel por cima de nós mesmos. Tudo que se escreve agora nesses sítios tem tendência de nos conduzir à caminhos íngremes, ao pricipício. As coisas lindas que se lêem e se vem nos whatsap e nos facebook, são as mulheres, que também estão vituperadas. Não têm receio de nos mostrarem a parte mais macia do seu corpo. E isso é sinónimo de desespero na juventude. Frustração.
O belo atrai o belo, mas em Moçambique o belo feneceu. Nos subúrbios das cidades é que se nota com maior ênfase o privilégio de ser cão, e nem é necessário o uso da lupa para que toda a nossa nudez se torne clara. Aliás, o músico moçambicano já cantava: vada voxe (comem sozinhos). E se comem sozinhos, então não nos resta mais nada senão ser cão, e andarmos por aí, na gandaia, revirando as latas dos ricos, até que todo o castigo e sofrimento termine. Não sabemos como, se de forma trágica, ou de outra forma.
A noite já vai longa demais, e não se vislumbra a aurora. Diz-se que não é por muito madrugares que o sol vai nascer mais depressa. Mas é preciso mudar esse paradigma, pelo paradigma da juventude. “Vamos madrugar muito, para que o sol nasça mais depressa”. Não precisamos de armas de fogo. A nossa pólvora são as mãos nuas que se abrem e se apertam a outras mãos. As nossas balas são as canções que vamos cantar de dia e de noite até que amanheça. Vamos dançar também, no palco dos becos e das ruas e da avenidas, com as matchatchulani (bailarinas chopes) à frente, esvoaçando as saiotas. São estas as nossas armas. Entregaremos, sem medo, o peito às verdadeiras balas que já começaram a chover como granizo de morte.
Boa tarde a todos
Sinto-me bastante honrado em estar aqui neste lugar que hoje nos acolhe, e dar-vos as boas vindas. Na verdade estamos todos em igualdade de circunstância, não exactamente para um almoço de confraternização, mas para uma viagem no tempo, em busca de algo que nos faça ressurgir como geração, ou como testemunhas da geração constituída por uma panóplia de homens e mulheres nascidos para brilhar, cada um com a sua luz, porém do mesmo maná. E eles luziram enquanto vagueavam por aqui, como manhambanas típicos de uma cidade que se recusa a mudar, para além dos seus limites demarcados pela pacatez.
Estamos aqui para uma conversa espontânea, sem alinhamento. Sem compromisso. Se calhar com o propósito de homenagear pessoas que se tornaram personagens vivas, e sentir os cheiros guardados na memória e recordarmo-nos de lugares como por exemplo, Bángwè, onde jogávamos a bola em liberdade, com muita amizade, sem almejar absolutamente nada para além da alegria de viver.
Bángwè tornou-se um centro de festas futebolísticas inolvidáveis, com jogadores que mostravam, ainda imberbes, ser talhados para grandes estádios, mas como a vida não é linear, pode ser que não tenham tido a sorte de receber os aplausos do reconheciomento. E da admiração. Noutras terras. Mas foram ovacionados aqui.
Não vou mencioná-los a todos, seria impossível, mas há dois que terão desfraldado de forma particular, a sua evolução no Bángwè: Nando Guihoto e Chumbo Lipato, para quem peço uma salva de palmas. Aliás há quem dizia que os mortos não morrem, então esta ovação é para estas duas vedetas que vão viver dentro de nós de forma indelével.
Pode ser que estejamos a fazer isso, a exaltar aqueles que fazem parte da tecelagem da nossa cidade, e não precisamos de ir às tumbas onde não há vida para render a nossa homenagem a eles. Então, Fernando Guipatwane não morreu. Repito o que alguém dizia: os mortos não morrem! Fernando Guipatwane era um actor alegre, predisposto a uma gargalhada estranha, porém doce. Vinda de de dentro de um homem que não tinha espaço para feridas dentro de si. Ele, certamente, vai nos ouvir a recordá-lo neste espaço que ficará assinalado na nossa caminhada colectiva: então, uma salva de palmas para Fernando Guipatwane!
A jornalista e escritora portuguesa, Agustina Bessa Luís já dizia: a história é uma ficção controlada! E nós aqui, ao evocarmos essas figuras, se calhar estamos entre a história e a ficção. Digo isso porque Matangalane Boby era ao mesmo tempo ficção e realidade.
Uma pessoa que se senta no encosto dos bancos de bentão que existiam na ponte cais de Inhambane, sem se importar com o perigo que isso representa, só pode ser actor de um filme de ficção. E Matangalane fez isso numa das suas façanhas. Deixou-se embalar pela briza, o sono tomou com conta dele, e caíu na água em maré cheia. A sorte dele, é que estava por perto o Adério França, nadador puro, que não pestanejou duas vezes. Mergulhou e salvou Matangalane Boby, já com água por demais engolida.
Mas, por ironia, Matangalane ainda dizia: Nhi digue, nhi digue... FidA PUTA (Deixe-me, deixe-me, filho da p..
Não importa de onde ele vem, se daqui ou de outras terras e outros mares. O que nós sabemos é que Matangalane Boby é património da nossa cidade. Um homem com olhar de felino, pronto a apedrejar-te se o provocasses. E a dor que deviamos sentir todos neste momento, é que depois morreu sem amparo, como quem não tem a quem chorar. E ninguém chorou no dia do seu funeral. E hoje estamos aqui para homenagea-lo. Por isso, vai uma salva de palmas para Matangalane Boby!
Pois é, a cidade de Inhambane tem um estendal sagrado de figuras relevantes em todas as áreas. E as consagrações não existem somente para os políticos e as elites. Os viventes da periferia também merecem que nos lembremos deles, como nos lembramos agora de Bernabé e de Bernardo Wonane e de Helena Maluca, Laura Maluca, Chura Boy, Abdul Nha Mbafa, Micaela, Hamad Guikolomane, Guibochane! Viventes das bermas da vida em todos os momentos de sol e de chuva e de frio e de calor. Mas são esses que fazem a sétima nota da escala diátónica da nossa urbe, então merecem uma salva de palmas! Assim como vai uma ovação para estrondosa para Otto Glória (o nosso Otto Glória e Guegué.
Senhoras e senhoras, eu sei que a lista das nossas estrelas é interminável, e não pretendemos ser exaustivos, e nesse aspecto estamos todos de acordo, não é verdade? O importante é que estamos aqui, de forma desinteressada para celebrar a vida, e a vida, em memória, daqueles que orbitam no cosmos da luz definitiva. Então, ocorre-me formar uma selecção de ouro composta por, Lóngwè, Babarriba, Berehemo Guifototo, Manwelito do Inhambane 70, Daniel Mosse, Tsungu Maciel, Tsungu Abílio, Guihoto, Tsungu Max, Manuel da Luz, Nuno Gobo, Siya Libendzi, Bata, Tsungu Thsoni, Guimesseryane, Madobolo, Naniá, Dogologo, Vangyane, Tsotsi, TAP, Tsungu Arouca, e demais estrelas.
Não evocaremos os nomes de todos os nossos ídolos, obviamente! Há informações que a memória vai protelando, fechando a hipófeses, então ficamos limitados. Mas o própósito do nosso encontro aqui está claro: confraternizarmos e içarmos as bandeiras daqueles que viverão para sempre na nossa história colectiva. Os mortos não morrem!
* Texto de apresentação no almoço de confraternizaão dos manhambanas, havido no dia 5 de Outubro corrente na cidade de Inhambane
Nunca tivemos dúvidas de que a Estrada Nacional Número Um (EN1) será para sempre a coluna vertebral do nosso País. E se você tem esta comporta decisiva com danos profundos na sua estrutura, então todo o resto do corpo entrará em derrocada e não lhe restará outra saída, passarás a ser um cadeirante. Na verdade é o que está a acontecer, Moçambique é um país cadeirante.
A EN1 é o último testemunho de uma governação de dez anos, que passou quase todo esse tempo destruindo a poesia que existia dentro de nós. Agora só temos como alternativa, soletrar repetidamente os versos da sinfonia dos demónios, que nos atormentam de noite e de dia. É este o legado que fica para comprovar a incapacidade de juntar as pedras existentes em fartura na nossa terra, e reinventar as madrugadas e os amanheceres e as utopias.
A própria paisagem exuberante que se metamorfosea em espectáculo de harpas, de norte a sul de Moçambique, perdeu o esplendor aos nossos olhos, pois o miradouro que é a EN1 , construída para mover a economia e através dessa mesma estrada contemplarmos a dádiva em si, para gáudio do espírito, está absolutamente despedaçada. O pior é que o ilustre Carlos Mesquita, investido na pasta de ministro das Obras Públicas e Recursos Hídricos, jamais teve a humildade de vir cá fora dizer que o governo inteiro, por ele representado nesta área, degenerou em todos os sentidos.
Mas isso é falta de humildade, e a humildade é a parte mais luminosa da sabedoria. Então, não haverá nada que possa justificar o estado em que chegou a EN1, nem as ladaínhas de Mesquita que vai sair daqui a pouco sem nada no regaço, para além dos remendos que fez ou vai fazendo em determinados troços, mesmo assim sem muita garantia. Governar não é remediar.
A EN1 é o último testemunho mais importante que este governo vai deixar para os que vierem, e se houvesse humildade por parte dos actuais dirigentes, diriam, em uníssono, assim: “na verdade não fizemos nada! E o testemunho de que não fizemos nada, está retratado na EN1! Tentamos fazer qualquer mas não conseguimos, reconhecemos a nossa incompetência”!
São estas as palavras que os actuais “boices” deviam dizer ao povo, e não a costura desesperada de teorias que em nada lhes abonam. Não haverá estrofe alguma capaz de esconder a maior ferida cavada e aprofundada nos últimos dez anos, que é a EN1, envergonhando-nos a todos. Por inteiro.
A EN1 é o espelho claro de um país tornado miserável. E se Moçambique foi despromovido à (des)categoria de miserável, significa que nós também, como pessoas, somos miseráveis. É assim como somos tratados pelos outros. É essa a nossa actual condição, não temos outra.
É isso, ilustre Carlos Mesquita, você pode ter tentado fazer algo em prol do desenvolvimento de Moçambique, mas foi incapaz. Então venha a terreiro dizer isso, com humildade, a sua pena será atenuada!