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Actualizado de Segunda a Sexta

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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

terça-feira, 17 dezembro 2019 13:09

Samukhela

A primeira coisa que fiz, ao entrar no pequeno autocarro que vai-nos levar a Massinga, foi olhar para o condutor no sentido de tentar avaliar a sua compostura global. Estou sentado no banco da frente, lado a lado com o dito cujo, do qual ainda não tirei nenhuma ilação. Ele tem a cadeira reclinada, com os dois braços a servirem de almofada, mas logo que se apercebeu da minha presença, mudou de posição. Endireitou o encosto, levando de seguida as mãos ao voltante de uma viatura que está inerte, à espera de completar a lotação. 

 

Virou-se para mim e saudou-me cordialmente, transmitindo a imagem de uma pessoa educada. É um velhote que já deve ter passado, de algum modo, a fasquia dos sessenta, porém nota-se ainda nele,  a robustez física de alguém com capacidade para enfrentar o asfalto e seus perigos. Mas essa é apenas a minha impressão, aliás, ainda nem sequer estamos em movimento, para aferir se tudo aquilo que sinto deste personagem, vai entrar em consonância com a realidade, quando estivermos  por sobre as pedras do caminho.

 

Estamos na Terminal da Maxixe, um lugar de bulício como toda esta urbe em alucinante crescimento. Lá fora não faltam os vendedores ambulantes que não páram de bater à nossa janela propondo-nos qualquer coisa para comprar. A canção dos cobradores, vulgo “mangueme” em bitonga, não tem pausa enquanto as pequenas viaturas não estiverem lotadas. É uma linda canção cantada por várias vozes joviais, que estão ali  na luta pela vida: Massingaaaaa! Vilankulooooooo! Inhassoroooooo! Chicuqueeeeee! Morrumbeneeeeee! E a imagem dos veículos perfilados, também é bela. Parece a arrumação dos versos que vão compor uma quadra para Rosa Chicuachula, de Amin Nordin.

 

Já estamos a partir, como uma aeronave que rola lentamente até ao fim da pista, para de lá convocar a força máxima dos motores. Dentro do carro há um silêncio, e se esta manifestação não se chama silêncio, então é um agradável sussurro. Parece o murmúrio do próprio mar que se estende aqui à nossa frente, com a cidade de Inhambane do outro lado. Isto é uma levitação.

 

O condutor apela-me ao aperto do cinto de segurança, e já livre do frenesim, próprio das cidades moçambicanas onde todos vendem e todos querem comprar, eis que liga o aparelho de música, que não vai, mesmo assim, perturbar o silêncio que reina aqui dentro. É Gimo Remane que canta para uma plateia em movimento, levada por um velhote sereno, como tudo o que está a sua volta. A música de Gimo não abalroa, quanto mais não fosse, ela sai de um volume quase imperceptível, como as próprias vozes dos utentes deste pequeno autocarro que desliza suave. Ou seja, há três silêncios audíveis neste interior, o do motor do carro, dos passageiros, e de Samukhela, a música desse makhuwa que nos embala. 

 

Naquele ambiente as palavras serão supérfluas. Para quê as palavras, se elas estão completas nesta música! Para quê as palavras, se o silêncio já nos chega, como o próprio amor, que não se faz com palavras, mas com o silêncio e o doce gemido! O resto foi uma viagem leve, que terminou com a nossa chegada ao lugar mais efervescente da província de Inhambane, ouvindo Sibongile Khumalo, no seu retumbante  Mountain shade. 

quarta-feira, 11 dezembro 2019 12:41

Thsala... flagelada na janela da alma

Pode ser que ela tenha abdicado de viver, caso contrário não estaria a suicidar-se todos os dias com o veneno do seu próprio afastamento. Já não frequenta a sociedade, diferentemente de outros tempos, quando tudo dependia das suas vontades. Não tem coragem de sair de casa, para absorver a atmosfera espiritual proporcionada pelo contacto com as pessoas. Tem medo de rever ao espelho o rosto, por demais degradado pelo fumo e pela bebida de nunca acabar. Os dentes estão queimados pelo rapé que passou a mascar depois de todas derrotas, por isso tornou-se relutante em sorrir para os interlocutores que em algumas – poucas -  ocasiões a abordam no seu casulo, para matar a saudade de uma amiga muito doce. Porém, repugna estar no seu convívio. Está constantemente a cuspir uma saliva espessa que nos vai enojar. Mesmo assim, no meio daquela decomposição toda, Thsala mantém acesa a luz da sinceridade.

 

Há muito que não a via. Sentia tremendamente a falta de uma pessoa com quem podesse conversar sem tabus, e essa pessoa, numa cidade alagada de  preconceitos, é Thsala. Eu queria velejar com palavras espontâneas, esquecendo momentaneamente todas as quedas que tenho tido, e nenhuma outra pessoa podia me acolher para isso, que não fosse Thsala. Thsala é a própria escala diatónica, onde residem todas as notas para se compor uma belíssima canção de amor.

 

Fui para lá, sabendo de antenão que a minha amiga estava naquelas condições. Cheguei a pensar em passar por um botle store e pegar uma garrafa de qualquer coisa para ela, mas a minha consciência não me deixou. Quis levar a guitarra.... também nada! Guitarra para quê, se Thsala é o conservatório em si, onde terei à disposição todos os instrumentos! Então não levo nada, senão as garrafas vazias de oxigénio que trago dentro de mim. E voltarei de lá abastecido, com ar suficiente para voltar a voar e reocupar o espaço que me é reservado na órbita das minhas imaginações.

 

Thsala cuspiu para o lado, todo o tabaco molhado pela saliva, quando me viu entrar no seu espaçoso quintal, depois de pedir licença.  Senti náuseas, mas já não podia retroceder. Percebi o embaraço que lhe apossou. Inclinou-se, desajeitada,  para cobrir o cuspo com as mãos, também flageladas pelo tabaco, como os seus dentes. Ela não consegue olhar para mim porque sabe que naquele rosto já não há candura. Esvaiu-se completamente, para dar lugar às ruinas.

 

Fui buscar uma cadeira, e ao voltar vi a mulher compactando com os pés, o “aterro” que tinha feito com as mãos sobre o lago de saliva espessa e massa de tabaco. Ela continua a não olhar para mim, e sem falar para dizer seja o que for. E tudo isto é um sismo que cabe a mim desvanecer.

 

- Thsala, meu amor, vim te ver!

 

- Vens ver um farrapo?

 

Thsala voltou a cuspir. A boca segrega muita saliva, e ela, envergonhada, não tem como evitar aquilo.

 

- Desculpa, meu bem.

 

Levantou-se e disse que ia à casa de banho. A roupa que usa está lavada. Engomada. Os chinelos ainda estão no rítmo. Mas tudo isso vai-se diluir num corpo desmoronado, e se partirmos do princípio de que o rosto é um pouco a janela da alma, então Thsala entrou em última derrocada.

 

Fiquei um tempo interminável à espera que a minha amiga voltasse. Debalde! Quem veio é a empregada, para me dizer que Thsala não está bem. Pede desculpa.

 

- Ela disse para o senhor voltar outro dia.

quarta-feira, 04 dezembro 2019 10:19

Sumbi

Apaixonei-me por ela, logo no primeiro dia que a vi passar em frente a minha casa. Passam dois anos, e de lá para cá  a nossa relação tem sido intensa. Cada vez que nos encontramos, o amor que nos une,  aumenta. Recrudesce a minha responsabilidade, no sentido de que não posso cometer a mínima imprudência, sob o risco de deitar tudo a perder. O azimute que me guia altera de forma espontânea quando a vejo, na rua ou no mercado, onde quer que seja. Ela já me arrebatou por inteiro, e sinto-me cada vez mais empurrado para a condição de ter que assumir a paternidade de uma criança que nem sei de onde vem. Na verdade esta menina tem idade de ser minha neta.

 

O que mete medo nela, é a sua maturidade precoce. Ela é determinada na luta pela sobrevivência,  que desenvolve todos os dias sob ambrela da verdadeira avó. Sabe que é pobre, absolutamente pobre, tem profundas necessidades. Os lábios secos denunciam um pequeno ser que passa horas e horas sem comer. Os olhos também, chamam-nos a atenção para alguém que tem quase nada para se alimentar. Mas  tudo isso não a demove, não a resigna. Parece acreditar que as coisas mais sólidas começam daqui, de baixo, onde muitas vezes temos que consentir sacrifícios.

 

Nunca me pediu nada, apesar de eu perceber que Sumbi não tem claramente nada. Se não a chamo para entrar no meu quintal, ela passa. Olha para as abundantes mangas dependuradas na copa das duas árvores fartas, que se erguem no meu espaço, e continua o seu caminho. Sem olhar para trás. E se não calha eu estar por ali, olhando para o caminho que usa sempre, quase todos os dias, então a minha neta vai engolir saliva para dentro de um estômago que nunca esteve saciado. Porém, se a vejo, por entre as frestas das plantas que servem de vedação, saio a correr e chamo-a.... Sumbi! Ela sustem a marcha, como uma tigreza que apesar de não ter encontrado a presa, mantem a confiança. Rodopia, e volta.

 

Enquanto a miúda entra, eu já estou a arrancar a fruta, sem medir a quantidade. E é ela  que vai dizer assim, chega, Bitonga Blu!

 

Há uma consonância entre as palavras da Sumbi, e aquilo que lhe vai no coração, e na mente. Se assim não fosse, eu já teria entendido. Aliás, ontem mesmo, no mercado da Mafurreira, nos arredores da cidade de Inhambane onde moramos, voltou a revelar-me a sua personalidade. O seu forte carácter. Ou seja, de entre muitas vendedeiras de marisco, a minha netinha estava lá, vendendo também, lutando ombro com ombro com as demais, na disputa pelos potenciais clientes, mas sem perder a postura. Ainda não a tinha visto, até que no meio daquela azáfama, ouvi uma voz que conheço muito bem, chamando-me como um leve trovão no seio das montanhas de pedra: Bitonga Blu! Olhei para ela, e senti toda a minha alma fluindo.

 

Ali, todas aquelas “magweva” (revendedoras) conhecem-me. Conquistam-me para a freguesia, freguês para aqui, freguês para ali. Mas nesta circunstância, quem ganhou foi Sumbi, a minha neta. Cheguei perto dela e perguntei, quanto custa todo este camarão? E ela respondeu-me, 150.

 

A nossa amizade vale mais que todo o dinheiro do planeta, para além de que eu queria que a miúda vendesse tudo, de uma vez, e voltasse para casa como um passarinho vitorioso, entregue ao vento, em liberdade. E foi o que fiz, comprei tudo, que nem é tanto assim, para agraciar os meus sentimentos, e da Sumbi. É um camarão miúdo, apanhado na pequena rede que ela arrasta nas noites, na companhia da avó, sem poder dormir como outras crianças.

 

Dei-lhe uma nota de duzentos meticais, e fiquei sem saber se recebia o troco, ou deixava com ela. De resto, esta é uma criatura delicada, e eu tenho medo de magoá-la.

terça-feira, 26 novembro 2019 13:21

Chico da Conceição no crepúsculo do entardecer *

A voz do Chico é outra melodia. Dentro da música. Embala. Levita no espaço em que temos de um lado o amor, e do outro lado a tristeza. Ombro com ombro. Ressurge das vísceras como o cantar dos últimos pássaros na retirada aos ninhos, no fim da tarde, voando em voo rasante entre as últimas gotas da luz do sol e a descida inevitável da noite que nos vai acolher a todos. É como se a alma toda deste bitonga residisse ali. Na voz. É nela onde também se abrem os poros da poesia que nos leva por exemplo à Praia do Tofo, ou seja,

 

se você quiser passar férias arregaladas

 

 vai à Praia do Tofo

 

Tofo é nome de mulher

 

Não tem igual

 

Nestes versos está o abanar da mão do Chico da Conceição, o pestanejar vão dos olhos escondidos por detrás dos falsos óculos escuros. Ele acena. Chama-nos numa música que será, mais do que o escorrer de um simples poema, uma elegia que orbita sobretudo na voz resignada. É a laringe trémula que vai à frente, reinventando as ondas do Índico que agora marulham por dentro de nós que escutamos a música que deixou de ser dos manhambanas. Extravazou na respiração do próprio mar. E agora é exaltada na convivência cosmopolita da arte.

 

Há dois crepúsculos, obviamente! O do amanhecer, e do entardecer. Os dois são belos. A musicalidade que emanam no seu silêncio, tem a mesma intensidade. Vibra da mesma forma na escala diatónica deste lado da plateia, e na escala diatónica do outro lado da mesma plateia. Onde poisamos amiúde para deixar livres as vibrações do sentimento. Mas Chico é o crepúsculo do entardecer. É por isso que nos comove. Embevece-nos. Olhamos para ele e percebemos rapidamente  que a glaucoma colocou-lhe a última venda. Mas não lhe decapitou o ramal da poesia, nem lhe impediu a paródia,

 

Vanhamayi gaya khu gupwa gu tsamba vadi davatela (As mulheres da minha terra dançaram com a barriga ao sentirem o sabor da  música)

 

A paródia está aqui. Chico mudou os passos de dança, vacilou no corpo desde a noite de 25 de Junho de 1975, em pleno içar da bandeira da liberdade, quando de repente disse assim, para as pessoas que o acompanhavam: epá, apagaram as luzes! Este foi o dia em que desceu para sempre o capuz da glaucoma, e fechou uma etapa da sua vida. Ou começava outra etapa, ou ainda, se calhar, era a continuação do mesmo percurso. Da mesma vida que agora terá que ser tacteada, ou entregue a um cicerone, que nem sempre está disponível para aturar o “chato” de um “cegueta”. Contudo, Chico da Conceição tinha outro cicerone. Ou melhor, dois cicerones fieis. Leais: a voz e o saxofone. Foi nessas tenases asas que se pendurou e perdurou. Planando com alegria. Com a leveza dos astros.  Até que o coração, cansado das longas jardas incessantes, sufocou e parou de bater.

 

Mas ficou o cheiro do homem. Galvanizado pelo saxofone ora suave, ora vertiginoso. Foi essa alfaia que Chico usou como muralha para se defender contra todas as investidas do tempo. Das feridas da cegueira. Ou por outra, ele transformou o instrumento em hidroeléctrica, com várias albufeiras para disfarçar o padecimento e oferecer luz aos convívios.Também para enxotar a solidão. A sua própria solidão.

 

Chico da Conceição sabia perfeitamente que tinha nascido para reverberar, e proporcionar aurora às pessoas. Foi isso que ele fez. Cumpriu com os preceitos sem olhar para trás. Rindo-se das trevas que lhe traziam em catadupa, lembranças da sua terra,

 

Nyagu dundruga Nhambane, monho wangu gu bisa (Quando me lembro da cidade de Inhambane,  meu coração dói)

 

O autor de “Queremos paz” recorda-se de tudo isso. Das vanunwana (donzelas muçulumanas do bairro  Chalambe). Da tranquila baía. Da dádiva que Deus inoculou na Sua misericórdia sobre Inhambane, e que ele, o Chico, já não poderia ver,

Nhagu dundruga vanunwana (quando me lembro das donzelas muçulumanas)

 

momho wangu kha wu gumani gurula (meu coração nãoencontra paz)

 

REGRESSAR NA HORIZONTAL PARA UMA CIDADE ESCURA

 

Em Wussiwana, um dos seus  temas mais sentimentais, ele não resiste e entrega-se profundamente ao sofrimento. Por inteiro. Diz-nos, por exemplo, que “assim como estou (cego), já não vou reconhecer os caminhos que me acolheram na  juventude. Mas um dia hei-de voltar para passear com os meus amigos por aí”.

 

Porém a vida real ultrapassou os sonhos do Chico da Conceição. Desmentiu-lhe. Ou seja, o homem nunca mais voltou, desde que daqui saíu, em 1959, para Lumbo, como funcionário dos Correios  de Moçambique.

 

Aliás regressa agora (Outubro de 2019), sessenta anos depois, embutido num caixão. De vez para sua terra, uma cidade  tranquila, entretanto escurecida na glaucoma do autor de Marumana Gaya. E foi neste entardecer que umas senhoras, no mercado da Mafureira, aqui mesmo, perguntavam-me assim, afinal quem é que morreu?  E eu respondi-lhes, é Chico da Conceição.

 

- Chico da Conceição!?

 

- Sim

 

- Qual Chico da Conceição?

 

- Aquele que canta Marrumana Gaya.

 

- Iiiiiiiiiiiiiii! Vocêgiiiiiii! Morreu aquele senhor?

 

Em Inhambane são poucos os que podem se gabar de o terem conhecido. Zarpou em 1959. Eu também não tenho memória dele por estas bandas onde nasceu, a não ser do dia em que fui entrevista-lo, na sua casa, na Av. Ahmed Sekou Touré, em 1999, em Maputo. Ele também não vai-se lembrar de muitos. Morreu com medo de que não fosse reconhecido. Se um dia voltasse. Por isso dizia,

 

Nhi veleguidwe Nhambane (Sou natural de Inhambane)

 

Nhi veleguidwe Nhambane sewi (Sou natural de Inhambane Sewi)

 

Nhi tonga biho, kha nhi langui (sou bitonga, não me escondo)

 

O tigre não precisa proclamar sua tigritude. E Chico parecia ter medo depois dessas longas décadas de ausência. Então era preciso que nos lembrasse: Nhi veleguidwe Nhambane (Sou natural de Inhambane), Nhi tonga, biho kha nhi langui (sou bitonga, não me escondo).

 

Seja como for não nos resta mais nada, senão a rendição  perante a partida deste pássaro sagrado. Que vai cantar as últimas canções ao fim da tarde, de recolha definitiva ao ninho.

 

Adeus Chico!

 

  • Texto de homenagem ao Chico da Conceição, falecido em Outubro, vítima de doença
terça-feira, 19 novembro 2019 12:08

Dandara

Quando conheci esta miúda, ainda estava na barriga da mãe, passam vinte anos. Estou sentado numa das mesas da Associação dos Escritores Moçambicanos, com os meus amigos, onde a palavra é o expoente máximo de tudo, e a terapia de grupo é o pilar fundamental para que a utopia subsista. É uma noite adulta, e aqui todos vão falar, rebuscando sem cessar, a enxurrada das páginas corroidas,  consumidas na dor das pestanas. Na verdade, toda esta tertúlia, é um empreendimento rumo ao fortalecimento das narrativas escritas na parede da memória.

 

Chovem as metáforas, e de repente vejo uma mulher com barriga avantajada, entrando calmamente, olhando de soslaio para o ambiente capitaneado por um punhado de homens da pena, em redor de um tampo,  falando em liberdade, sem se importarem com o nível dos decibeis. Está sozinha, e eu pergunto-me, depois de olhar para o relógio, o que é que esta mulher grávida, ainda por cima sem companhia, quer aqui à esta hora! Porém, antes de obter a resposta, esbatida nas lucubrações, fiquei assustado quando vi o garçon servindo-lhe dois cálices de John Walker de rótulo preto, num copo sem gelo.

 

Está sentada, recatada num dos cantos do espaço que nos acolhe, numa noite que daqui a pouco vai dar lugar à madrugada. Parece uma fêmea determinada. Pronta para todas as intempéries no meio dos machos, incluindo a predisposição de se defender das calúnias. Pega no copo, sem gelo, e despeja goela abaixo, de uma vez, todo o conteúdo, e logo a seguir  faz sinal com o dedo indicador para que o servente repita a dose. É incrível!

 

Levanto-me e vou a casa de banho, passando por entre algumas mesas cujos ocupantes não falam, ou seja, eles limitam-se a escutar a conversa animada que vem do grupo onde as palavras saem em catadupa, anunciando a qualidade dos seus oradores. Aquilo é uma tecelagem, que se pode confundir com a esquizofrenia em si, com a diferença de que os esquizofrénicos não são as pessoas, mas os personagens que essas pessoas encarnam.

 

Estou na casa de banho, e enquanto me disponho diante do mictório, libertando com prazer o ácido úrico por demais contaminado pelo álcool, penso na mulher grávida que está ali, bebendo John Walker com rótulo preto, em dozes galopantes. Mas isto não é subreal porque eu estou lúcido. Aliás, se estiver alucinado, então essa alucinação começou com a entrada em cena desta barriguda.

 

No meu retorno, reparo que ela já não depende do “garçon”. Tem a garrafa inteira de John Walker por sobre a mesa, servindo-se pessoalmente, e um dado novo é que está a fumar. Bolas! Cheguei perto dela, levado pelo vaipe do vinho que venho bebendo desde as primeiras horas da noite. E em pouco tempo já conversavamos como se fossemos velhos conhecidos.

 

- Dessa barriga vai sair uma menina

 

Ela sorriu. Pegou no copo e entornou o whisky na boca de lindos lábios, e disse assim, quem me dera!

 

- Vai se chamar Dandara

 

Revolveu a carteira e de lá tirou uma pequena agenda e disse assim, escreve aqui esse nome tão lindo.

 

O tempo deixou de contar. O que conta é que estamos aqui, por conta das emoções.

 

- O que é que significa dandara?

 

- Dandara é harpa, em xitswa, língua do meu pai.

 

- Que lindo!

 

No último sábado, vinte anos depois, recebo no meu celula uma chamada proveniente da Bélgica, e do outro lado oiço uma voz com sotaque francês a dizer assim, daqui fala Dandara, lembra-se de mim?

 

- Desculpa, a minha memória está a vacilar.

 

- Tem razão, quando o senhor me conheceu, eu ainda estava na barriga da minha mãe, na Associação dos Escritores Moçambicanos.

quinta-feira, 14 novembro 2019 06:53

Vim te dar um abraço

Marcelo Rebelo de Sousa, o ti Celito,  foi ter com João Lourenço, em Roma, onde os dois se encontram (vam), cada um com a sua agenda, e disse assim para o presidente angolano, vim te dar um abraço! Ohei para a imagem dos dois estadistas, cada um entregue aos braços do outro, e senti que aquele gesto era profundo. Inolvidável. Arrepiei-me com o reflexo dos dois homens que uniam seus corpos, deixando que toda a alma fluísse, para o calafrio do sentimento. Antes já tinha visto outro abraço, entre o Presidente Nyusi e o líder da Renamo, Ossufo Momade, e o que senti nessa altura,  foi o sabor de uma comida temperada com sal insípido. Ou seja, enquanto do lado de Momad ressaltava a euforia, o  Presidente conteve as emoções. E isso fez-me recear que podia haver uma pisca-pisca para a esquerda, de um carro que na verdade iria virar para a direita.

 

Roberto Carlos já cantava, e dizia assim,

 

quem me dera que as pessoas que se encontram,

 

se abraçassem como velhos conhecidos

 

descobrissem que se amam

 

e se unissem na verdade dos amigos

 

Roberto Carlos canta a poesia. Pura. Exalta a paixão. O desejo pemanente de paz. E quem me dera, que daquele abraço entre Nyusi e Momad, ressurgisse Louis Armstrong, cantando what a wonderful world?

 

Eu oiço bebés chorando, eu os vejo crescer

 

Eles vão aprender nuito mais que eu jamais vou saber

 

E eu penso comigo, que mundo maravilhoso!

 

Sim, eu penso comigo, que mundo maravilhoso!

 

Mas essa dádiva é-nos recusada pelos graúdos do meu país, onde as mulheres não sabem o que será dos meninos que gestam nas barrigas insufladas de violação,

 

Mulher barriguda que vai ter menino

 

Qual o destino que ele vai ter?

 

Haverá guerra ainda?

 

Tomara que não!

Secos e Molhados (conjunto musical brasileiro)

 

São essas mulheres vagueando nos atalhos e nas ruas empoeiradas, sem destino, arrastando para o mato as crianças que perguntam, mamã, vamos para onde? E elas respondem, cala, meu filho, não faz barulho, amanhã voltaremos para casa.

 

Estás a ver a lua que disponta dos céus?

 

Hoje há luar

 

Vamos brincar à thumbelelwana (brincadeira de crianças)

 

Mingas

 

Qual brincadeira, qual quê! Qual lua que disponta dos céus! Aqui são as balas que sibilam, e as facas, e as catanas. Essa é a música do diabo que se ouve nestes lugares, onde o coro sai das nossas jugulares decapitadas. É esta a verdade que prevalece, e triunfa, enquanto do outro lado explodem garrafas de champanhe e cheiros de fígados estufados para regar os banquetes.

 

Xantima e bodlela (salve-se quem puder)

Salimo Mohamed

 

Voltou a sinfonia de Lúcifer, com todas as claves da desgraça. E lá estamos nós, correndo de um lado para outro, desconhecendo o que nos espera. Somos as cobaias aprovadas nos exames de sangue. E da ganância. Por isso a morte dança na estrada e nas cubatas onde já não podemos amar as nossas mulheres, onde as nossas mulheres já não podem afagar-nos os corpos cansados das jornadas incessantes. Somos essas reses estúpidas, encurraladas para abate.

 

A estrada já não é nossa. É da morte. A reverberante Muxúngwè voltou a perder  o entusiasmo. O sossego e a certeza de que amanhã vamos acordar, e cotinuar a libertar os balões dos nossos sonhos. Estamos com medo. Ninguém sabe nada a partir de agora. Aliás, a única certeza que existe, é de que há uma música que ainda não cantamos, todos nós moçambicanos, em únissono: Tiendi pamodzi! (Vamos juntos)

 

Se calhar o bom do nosso

terça-feira, 05 novembro 2019 13:08

Este dique vai ser varrido... juntamente comigo

A sensação que tenho é de que já estou a chegar ao fim. Perdi o entusiasmo. O engajamento às causas da música.  Amiúde tenho colocado o telefone no silêncio, para que ninguém me perturbe, na dor de velejar por dentro de um território imaginário que criei e fortifico todos os dias. Acumulam-se as chamadas e as sms, e só ao fim do dia é que as cedo, para logo a seguir voltar ao mutismo, depois de ver os noticiários na TV. Mas isso contraria o ritmo dos meus tempos de juventude, altura em que passava a vida com o ouvido colado ao celular, e os dedos nas pequenas teclas, escrevendo mensagens de paródia.

 

Geralmente durmo sozinho, e não pode ser verdade se eu disser que sou feliz assim. O que me safa é que o sono não demora, mesmo que eu queira ouvir, durante alguns instantes – depois de desligar o aparelho e deixar a luz ténue do candeeiro dissimulado na mesinha de cabeceira - a música serena da noite, antes de entrar em black out, e deixar que alma se aparte do corpo para as suas viagens de levitação.

 

Sou um homem solitário. Pior do que isso, já não consigo fazer parte das multidões em épocas de folia. Sofro de parafobia. É por isso que estou constantemente a remar numa nau que nunca sai do lugar, ou melhor, que corre o risco de ser levada cascata abaixo, e partir-se toda no rochego, antes de atingir a almofada das águas, que depois irão prosseguir no seu curso com o meu corpo flutuando. Despedaçado. E eu tenho medo disso.

 

Na verdade, esta relutância em sair e andar por aí, na esperança de encontrar alguém  para um dedo de conversa, só pode signicar que estou a ser devastado. Já não sou eu por inteiro. Dentro de mim só ficaram as sobras da euforia. Até a minha laringe, enrouquecida pelo blues desregrado, tecido nos delírios da canabis e da sura, está a definhar. Recusa-se a cantar, mesmo por debaixo do choveiro, onde me entrego todo os dias, nas manhãs,  à liberdade dos solvejos.

 

A minha guitarra jaz num dos cantos do quarto, desafinada. Empoeirada. Tento abraça-la para reforçar a nossa cumplicidade, e ela repele-me. Tento outra vez... nada! E já não me resta outra coisa senão resignar-me. Sem poder cantar, sem poder dedilhar nas cordas que conhecem muito bem as emoções dos meus sentidos mais profundos. Quer dizer,  fui despromovido, de andarilho inundado de claves, para uma bóia apagada. Incapaz de dar direcção aos barcos à vela, que um a um, estão se esbatendo dentro de mim.

 

Mas o que aumenta mesmo as minhas dores, é perceber que afinal o cesto das intermináveis colheitas a minha mercê, esteve sempre furado desde o começo. Não amealhei nada. Ou melhor, as poucas coisas que tenho, juntei-as por coincidência, num ciclo de vida por demais desorientado. E hoje, nem livros – também cheios de poeira como eu própio - consigo ler. Nem nada. Sou o último passageiro na viagem das hienas, que não sabe bem aonde vai descer. E mesmo que eu soubesse, não posso falar porque todas as minhas palavras estão amordaçadas. Os braços – dilacerados pela luta vã na conquista do amor - são incapazes de gesticular. As pálpebras mantêm-se inamovíveis, deixando livres os olhos que entretanto não vêm nada. Daí que só me resta continuar neste dique falso, que daqui a pouco será varrido... juntamente comigo.

quarta-feira, 30 outubro 2019 06:58

Ainda és meu irmão

Nessa altura, Maputo era a minha fortaleza (entre 2000 e 2007). E eu vivia intensamente esse tempo, sem saber que daqui a pouco iria ser levado por outros ventos. Na verdade eu já trazia muitos retalhos,  que até hoje não consegui recozê-los para reestruturar a minha espinha dorsal, que entretanto está a vacilar. Eram as noites que me fascinavam, debaixo do néon, e o iluminar psicadélico dos clubes nocturnos, onde passei muitas fatias da minha vida. Entregando-me por inteiro.

 

Também andei por aí, na gandaia dos livros, misturando-me com os poetas sempre prontos a oferecerm-me palavras que me aquecem até hoje. E eu não me canso de usá-las para me sentir livre. Faço isso amiúde, sobretudo quando a angústia me fustiga. Aliás ainda ontem servi-me de um desses versos para enviar uma sms a uma mulher que nunca mais chega, e eu permaneço nesta longa espera, não me aguarde, basta que penses em mim. É esta poesia que disfarsa as minhas dores.

 

Em Maputo, como já disse, eu deixava-me conquistar pelas noites. Embrenhava-me nelas a procura de refúgio, e uma das grutas a que sempre recorri, é o Cinema Gil Vicente, ali em frente ao Jardim Tunduro, na Avenida Samora Machel. Lembro de um dia em que o Dua apareceu naquele lugar e cantou a música do Wilson Paulo, o filho do blues man João Paulo, e o título desse tema é, Ainda és meu irmão.

 

Dá-me a mão

 

Dá-me um abraço

 

Dá um passo

 

Faz um laço

 

Ainda és meu irmão

 

Poxa! Senti  o corpo todo cedendo, como se logo a seguir  as nuvens fossem abrir-se para dar espaço ao sol. Até porque foi  isso mesmo que aconteceu. A sala toda ficou em silêncio, ouvindo o Dua. E eu fazia parte desse silêncio, sentado à mesa do João Paulo, o JP, mesmo em frente ao palco, sem me preocupar com o tempo.

 

É confortável estar ao lado do João Paulo, que bebe jack daniels honey, para catalizar a voz. Uma voz por demais rouca. Bela. Única. Inexistente em Maputo. Ele acaricia o meu braço e diz assim, este gajo canta muito bem, pa! Referia-se ao Dua. Eu disse assim para o JP, vocês os dois cantam muito, caramba! Bebeu num trago mais um duplo e disse-me assim, vai-te lixar!

 

Esses pedaços da vida ficaram-me na memória, de um tempo em que  os meus  passos eram uma verdadeira anarquia. A bebida era o meu capuz, para fechar a vergonha de urinar na alma das acácias e fingir que não me importo com nada, quando no fundo doía-me as entranhas. Mas hoje estou aqui, gozando com tudo isso. Inventado um novo futuro que me mata de ansiedade.

 

Sou um sobrivente desse cataclismo, por isso passo a vida a rir-me do meu passado, e faço um esforço tremendo para me lembrar apenas das coisas mais bonitas que eu passei, como esta de estar na mesa do João Paulo, no Cinema Gil Vicente, ouvindo Ainda és meu irmão, na voz do Dua. Que é uma verdadeira catarse.

terça-feira, 22 outubro 2019 07:44

Chifunde... outra vez... agora mais do que nunca

Eu morava no bairro Canongola, nos arredores da cidade de Tete, e tenho o orgulho de ter assistido ao lançamento da primeira pedra para a construção da Ponte “Base Kassuende”, em 2010, na fase crucial da governação de um presidente audaz, que entretanto poderá ter sido traído pela rede de emelhar da ganância. Guebuza era a águia que percebeu na sua inteligência, que o coração da cidade de Tete não podia continuar a ser flagelado por camiões pesados, na sua passagem incessante para Zâmbia e Malawi. Por isso decidiu erguer a “Base Kassuende”, com  o fim de  desviar  os mastodontes que também contribuiam para a destruição  da ponte Samora Machel, que  une as duas margens  do grande Zambeze, abraçando a urbe e o bairro Matundo, para gáudio dos tetentes.

 

Eu estava lá, naquele torrão, praticamente nas mãos do Daniel da Costa, o escritor  exaltado  por Fernando Leite Couto, como sendo um dos maiores cronistas do nosso país, ao lado do Fernando Manuel. Couto disse de forma descomplexada, clara,  obedecendo a honestidade intelectual, que  Da Costa detém o domínio da língua portuguesa, e ferramentas literárias que fazem dele um cronista invejável. Na verdade eu tenho inveja dele. Inveja do tipo “quem me dera ser como este manyúngwe de um raio”! Ou como Fernando Manuel. Aliás, estes dois, são as minhas principais velas na dissipação da escuridão.

 

Foi uma estadia efémera, que me permitiu, mesmo assim, conhecer boas pessoas. Melhores do que eu. De entre elas a Chifunde, mulher  delicada, de cuja amizade sou indigno. Chifunde é uma almofada de sumaúma, capaz de proporcionar repouso aos errantes mais exaustos e inúteis, como eu. Sem exigir nada em troca, senão fazer votos de que depois de recobrar as energias, a etapa a seguir seja livre de escolhos.

 

E porque a vida é inesperada, Chifunde também é inesperada.  Ligou para o meu celular na manhã de ontem, nove anos depois de nos termos despedido com um “vai com Deus, meu amigo”. E ainda me lembro do profundo abraço que me fez acreditar, mais uma vez, de que a vida é bela.

 

- Sabes quem fala?

 

- Desculpa, não estou a ver quem é!

 

- Esta voz não te lembra nada?

 

Na verdade a voz lembra-me alguma coisa. Pelo sotaque pressuponho que a mulher que fala do outro  lado seja de Tete. Mas quem será? O Daniel da Costa já me tinha dito que o mais importante não é tu teres muitos contactos na tua agenda, mas estares registado em agendas de muitas pessoas. E eu consto na agenda desta criatura cuja voz me empolga. Ainda por cima nas primeiras horas horas da manhã, quando estou a preparar-me para  a caminhada de manutenção das longarinas.

 

- Podes falar mais um pouco?

 

- Estou triste, amigo, por não te lembrares desta voz que gostavas de ouvir. Dizias que, quando eu falava,  parecia o kwatchena (amanhecer)!

 

- Chifunde, meu amor!

 

- Quando é que vens me visitar, meu bem?

 

- Tu guardaste o meu número durante este tempo todo?

 

Era uma pergunta estúpida que eu fazia. Impensada. Que até podia ferir o coração da Chifunde. Mas ela, sóbria,  mostrou-me, uma vez mais, que na verdade não percebo determinadas dimensões.

 

- Eu gosto muito de ti, meu saudoso amigo. Cada palavra de tudo o que me dizias, era um grão de ouro, que  juntei e guardo para sempre no meu coração.

 

- Chifunde!

Estacionaram o carro em frente ao botle store ao lado da Associação dos Escritores Moçambicanos, na  Avenida 24 de Julho. É manhã solarenta, e o movimento  pacato surpreende uma cidade buliçosa que parece degenerar a cada dia que passa. Não há viaturas por sobre os passeios, mas a explicação para isso está subjacente no facto de que maior parte desses meios, são trazidos de fora da urbe em dias normais de trabalho. E hoje é sábado. Mesmo assim, em termos de expectativa não muda muita coisa, ou seja, há uma certeza inabalável de que Maputo é um espaço cosmopolita que não sabe muito bem para onde vai. Pode ser que esteja a avançar para o caos, porque os conglomerados habitacionais que surgem imparáveis em todo o perímetro, parecem querer sufocar a história das acácias. Não há alternativa. Todos acordam e vêm para o centro, em bandos como pássaros desesperados, para encher os pulmões de oxigénio contaminado.

 

Da porta da frente, do lado esquerdo, sai um deles. São quatro. E dirige-se directamente à loja de bebidas, de onde pouco tempo depois volta com duas garrafas de Ballatin´s, e mete-se novamente no mirabolante BMW com vidros fumados. Lá dentro estão bem, com ambiente climatizado. Têm gelo no pequeno coleman e copos que vão ser imediatamente abastecidos, porque não há tempo a perder. O tempo ruge. Por isso, antes de saírem da linha de partida, é preciso bater um gole-um gole, cada um. E foi isso que fizeram. Beberam numa espécie de ritual, e sentiram o escorrer do corpo. Entregue à bebida que lhes vai dar uma falsa sensação de bem estar.

 

A viatura sai suavemente das “boxes”, onde, no lugar de os ocupantes trocarem os pneus, compraram duas garrafas de ballatin,s  para festejarem a viagem que os levará a Chongwene. O motor é imperceptível, mas a máquina não deixa de chamar a atenção pelo seu lustro. Viraram à esquerda, pela “Salvador Allende”. Desembocaram na “Keneth Kaunda”. Tornaram à direita e desceram até à Costa do Sol, passando pela Praça 25 de Junho, acabando por entrar na imponente “circular”.

 

Neste troço, até à EN1, já em Marracuene, eles estão em plena ascenção. Têm tudo. Incluindo a ilusão de que são felizes. Aliás, o ballatin,s reforça-lhes essa sensação. É por isso que depois de cada gole, querem logo a seguir outro gole, na procura profusa pela órbita que lhes transmitirá a estabilidade. Mas não há a menor dúvida de que são doidos. Não sabem que tudo aquilo é uma fantasia.

 

Na EN1, o condutor certifica-se de que está tudo em ordem. Pergunta aos companheiros se “podemos bazar”, como se todos os movimentos que fizeram até ali, fossem um simples ensaio. Os outros responderam que sim, “podemos bazar, brada, pisa essa merda”. Na verdade o jovem pisou fundo no acelerador de uma viatura de caixa automática, que em menos de três minutos tinha o ponteiro a oscilar entre os 180 e 220 quilómetros à hora. É uma loucura. Naquela velocidade eles estão pendurados por fio. Porém, têm dois elementos que lhes impede de perceber isso: a estabilidade do carro, o conforto, e o ballatin,s.

 

Quando chegaram à Macia, depois de rasgarem a espectacular paisagem oferecida pelo  canavial de Xinavane, um deles perguntou, já estamos na Macia! O condutor disse assim, “avia lá o meu copo, meu caro, está vazio!”. Bebeu num trago. E daqui para frente perdeu completamente o medo. Os outros também.

 

Aí vão eles, sem saberem que a morte lhes esperava na planície de Xai-Xai. Passsam de  Chicumbane como um meteorito, deixando as pessoas pasmadas. Assustadas. Mas o que é isto! Os jovens minimizam todos os perigos. Já não estão em condições de descernir. E a morte sorria. Sinistra. No cadafalso onde o BMW saíu da sua faixa de rodagem e foi contra um tractor estacionado. O resto ninguém sabe explicar. “Só vimos chamas”!

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