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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

quarta-feira, 13 maio 2020 08:11

Tributo a um símio solitário

Os velhos mais conhecidos da cidade de Inhambane sucumbiram ao tempo. Já não nos cuzamos com eles nas ruas, ou nos mercados,  onde os cumprimentávamos, e deles recebíamos em troca ou o sorriso, ou a frieza cínica de quem já não espera nada, ou melhor, tem como passo seguinte a inevitável morte, para que a lei da vida se cumpra. São raríssimos, quase inexistentes, os casos de pessoas idosas com a espinha penosamente vergada e descompensada, andando por aí, obrigando a que o suporte do corpo careça de bengala. Eles já não se acham nos bancos da marginal – onde jamais estiveram - de uma cidade que se recusa às transformações.

 

A urbe é dos jovens - alguns definhando à custa da bebida da frustração - e dos poucos idosos que vão perdendo o entusiasmo. Aliás, estamos num lugar onde as probabilidades de voltarmos a ter anciãos que se vão arrastar até a loucura por velhice, são por demais ténues. Os sexagenários que andam por aqui, provavelmente não atingirão a meta. Cairão a meio da pista, e a evidência dessa fraqueza está nas queixas constantes. Há sempre um lugar que lhes dói. Mas a dor que mais os fustiga é a do espírito. Perderam a esperança, e têm medo do escuro.

 

Porém, não obstante este cenário de penumbra, que interfere fortemente nos sexagenários que também podem ser os últimos, sobressai um homem que se recusa a degenerar. Na verdade ele está na corda bamba. Não pode cair nem para um lado, nem para o outro. Então o que ele faz, é cingir o lombo para se manter por de cima da calçada, fazendo um jogo de cintura para continuar vivo. E uma das formas que encontrou para fazer esse exercício, é passear regularmente  nas ruas do seu quarteirão, onde saúda a toda gente.

 

Dizem, os que lhe conhecem, e os que lhe vaticinam o futuro sem saberem muito dele,  que este é o último símio da cidade. Ele pode estar onde há muita gente, mas nota-se facilmente que está sozinho. É um homem solitário. Saúda as pessoas mas não abre alas para a conversa. Tem um sorriso jovial, que nos mostra duas filas de dentes que parecem de um jovem.  É um indivíduo que apesar de estar a caminho do centenário, ainda mantem a espinha dorsal na vertical. Não precisa de cajado como Moisés, na pastorícia do gado do seu sogro, Jetro. E o que mais espanta, é a memória de elefante que se descobre nos poucos contactos verbais que oferece aos privilegiados que chegam perto dele.

 

É um animal elegido, de rara preciosidade, cujos filhos morreram todos por velhice, e enterrados no cemitério familiar que fica à ilharga da casa modesta onde mora o admirável velho. Muitos netos dele também despiram a carne, alguns por entrega inveterada ao álcool, e ele resiste tenazmente aos temporais. Não cai, nem mesmo perante os terramotos mais violentos que fustigaram a terra ao longo dos tempos. Ele restabelece-se sempre.

 

No fundo é uma pessoa que pode ter cartas importantes escondidas na memória, e nas mãos. Ninguém lhe conhece o segredo de tamanha longevidade, no meio de guerras inúmeras onde muitos foram abatidos, sendo o únco da sua geração que ainda respira. E ele vai continuar a viver no subúrbio até ao fim. É lá onde nasceu e que se sente bem, ao ponto de dizer aos netos e bisnetos e tetranetos, não quero lágrimas no meu funeral.

sexta-feira, 08 maio 2020 07:54

Este silêncio é demais

Acabo de escutar “A lirandzu”, interpretada por Mingas, e, mais do que a voz que me embevece, está a magistral guitarra a solo nas mãos de Sox, que me arrepia. Não é a primeira vez que oiço este trabalho, mas hoje faço-o numa circunstância particular, sob o silêncio  imposto pela incerteza do virus, e assim o volume tem que ser o mais baixo possível, de modo a que possa ouvir os pássaros cantando lá fora, fazendo côro.

 

Na verdade foi um acaso ouvir “A Lirandzu”. O António Jamal é que me proporcionou essa viagem temporal, onde as coisas fluem sem cobrança, e foi bom, pois esta melodia vem esbater os sentimentos escurecidos, que o tédio muitas vezes cria. É por isso que estou aqui, no meu quarto, ouvindo Rádio de forma desinteressada. Captando com a memória, as palavras também desinteressadas, do Jamal, que comunica em mangas de camisa.

 

António Jamal parece-me um locutor que vai para frente de costas. Ele não consegue trabalhar sem o passado, que é o seu real fundamento. Sem o passado, Jamal não será nada. Se calhar é por isso que vou elegê-lo como um dos poucos radialistas da minha preferência. E hoje estou com ele, outra vez, neste silêncio imposto pelo virus inesperado.

 

No fundo o silêncio é uma terapia, mas assim é demais. Muito demais. O silêncio não pode ser uma obrigatoriedade, porque desta forma ele torna-se uma clausura. Até de lá de fora, já não me chega a vocalização das crianças a voltarem da escola, alegres por retornarem à casa onde lhes espera o convívio. E as crianças, como se sabe, são uma das faixas mais lindas do disco de vinil, que é o próprio silêncio. Elas são a molécola central do amor. E só há amor onde há o silêncio.

 

Mas o silêncio tem que ser livre, rústico, anárquico. Que entra em consonância com a nossa liberdade, e não é este o caso, em que o virus obriga-nos a recolher aos casulos, como lesmas que se escondem nas suas próprias carrapaças, temendo o perigo. Nós também temos medo, como as lesmas. Somos lesmas, com a diferença de que, depois de partirmos, não deixaremos baba. Nem a cinza dos nossos ossos.

quinta-feira, 30 abril 2020 09:10

A última demão

Sempre que o visse passar em frente a minha casa, lembrava-me Noa. Levava nas mãos o martelo, o formão, o escopro, o serrote...... e a determinação de construir um barco e pô-lo a boiar. Descia nas manhãs, à doca, e de lá só regressava ao princípio da noite, pelo mesmo caminho, com os mesmos materiais de trabalho, com a mesma verve, e com a mesma ansiedade de ver a nau das suas mãos navegando entre as cidades de Inhambane e Maxixe, transportando passageiros insondáveis.

 

Eu nunca acreditei naquela saga. Ou seja, jamais um homem sozinho poderá construir uma embarcação das dimensões que ele pretendia, a não ser que este desafio seja assumido por um personagem de ficção, o que não é o caso, a menos que eu estivesse alucinado. Aliás, o único ser que ergueu uma arca inteira sem ajuda de ninguém, é Noa. Porque ele tinha Deus como o Próprio Armador. E este indivíduo que passa sempre por aqui, em frente a minha casa, parece caminhar no escuro. Deve ter armadores invisíveis que se apossaram dele para o atormentar.

 

Foram anos a fio de trabalho, e a medida que o tempo passava, o meu pessimismo parecia que ia sendo desmentido. Aparentemente! Porque o barco compunha-se, gradualmente, para arrepio de todos. Como é que uma pessoa sozinha, sem ajuda de ninguém, é capaz de protagonizar tamanha proeza! E logo lembrei-me de um homem que, olhando para arca de Noa pronta para a navegação, ridicularizou-a e disse assim, isto não vai a lugar nenhum. E Deus esbofeteou-lhe na boca.

 

Eu também estou a ser vergastado, não pela Mão de Deus, mas pelos meus próprios pensamentos. Este armador solitário está a avançar, rindo-se silenciosamente de todos aqueles que lhe diziam, você não vai fazer nada sozinho. E ainda lhe diziam mais, isto não é uma almadia!

 

Mas essas palavras todas, eram o granizo que caía por sobre a plataforma de betão, desfazia-se em pequenos grãos, e a casa continuava firme, ela própria construída  em cima das pedras, onde moram as águias. Mesmo assim, eu continuava com as minhas dúvidas. Oscilava entre a possibilidade de tudo aquilo vir a ser real, e o cepticismo. Era como se eu estivesse numa sala de cinema, vendo Marlon Brando, no filme Apocalipse Now, de Francis Coppola.

 

Todavia, e para que tudo se materializasse, eis que o homem passa num dia desses - em substituição do martelo e do escopro e do formão -  com duas enormes latas de tinta e diz-me assim, hoje vou dar a última demão (última pincelada de tinta). Fiquei estarrecido.

 

“A arca do Noa” está pronta! A notícia corre devastadora em toda a cidade, e ninguém queria acreditar no que ouvia. E segundo se dizia por aqui, ele construíu o barco sozinho, e é bonito. Meu Deus!

 

Prapara-se o champanhe para a vistoria e consequente aprovação das autoridades marítimas. O dito cujo está confiante como o Noa, que se avulta na proa, desdenhando o dilúvio que vai engolir casas e árvores e montes e montanhas. E o dilúvio é a boca das pessoas. Da minha, também. Pois, o que mata, não é aquilo que entra pela boca, mas o que sai através dela.

 

Agora só nos resta esperar por aquilo que vai acontecer com o testemunho das gaivotas e dos flamingos e de outros pássaros marinhos, e do próprio mar que estará calmo, dando-nos a sensação de paz. Há uma expectativa envergonhada por tudo o que falamos sem medida, diante do silêncio do homem que construía aquilo que ele pensava ser a própria vida. Um sonho que entretanto foi destruído pelos vistoriadores que não tiveram meias palavras, “este barco tem que ser desconstruído e recomeçado, tem erros graves”.

 

Raios! O que aconteceu é que a embarcação voltou para a doca, de onde nunca mais saíu. Aliás, foi sendo retirada aos pedaços, para produção de lenha.

quarta-feira, 22 abril 2020 08:30

Um nonagenário inesperado

Conheço-o há pouco mais de 40 anos. Nessa altura, eu ainda fedelho, ele já corria nos campos com a bola aos pés, driblando os maiores defesas da época, sedento de golo. Era o carrasco dos guarda-redes, que titubeavam ao vê-lo subir como um bisonte, que no lugar de contornar os obstáculos, derruba-os. Mbata Nhalégwè era mais que um jogador normal de futebol, era um actor, um dançarino que em diversas ocasiões do decorrer da partida, confundia-se com um executante de mapiko. Ele era o eixo, sobre o qual gravitava todo o espectáculo.

 

Mbata Nhalégwè era um remoinho, uma dinamite com o rastilho sempre aceso, e ninguém sabia e nem podia prever quando, como, e em que lugar do campo é que aquele explosivo ia rebentar. Podia ser antes da linha divisória, e essa imprevisibilidade punha o último reduto atarantado. Ninguém tinha a certeza de que estava no lugar apropriado para impedir a caminhada fatal da orca. Pior do que isso, era de consenso que ninguém tinha capacidade para ser o torpedo de um jogador franzino, mas letal em todas as dimensões.

 

O campo, nos dias em que Mbata Nhalègwè jogava, parecia um espaço de tourada. O toureiro era toda a equipa adversária, e o touro era Mbata Nhalègwè. Era preciso, antes de abatê-lo, fechar-lhe os flancos reais e prováveis, antes que fosse ele a derrubar tudo. Mas todas essas armas, e toda essa empreitada para erguer a muralha, eram por demais fragilizada pelo talento, pela inteligência, e sobretudo pela determinação de um homem que ia ao campo para vencer.

 

Foram anos sem fim, e Mbata Nhalégwè recusava-se a descer ao sopé, onde nunca viveu. Ele nasceu no cume, aliás foi nesse patamar onde fez tudo, até hoje que já treme nas bases. Mora recolhido na sua modesta casa, cheia da luz do passado no interior, onde brilham as lembranças estampadas nas fotografias e nas medalhas e nos troféus individuais conquistados nas várias lutas em que ele ia à frente, como um pastor de almas. Mbata Nhalégwè era a gazua do seu tempo.

 

Mesmo assim, com noventa anos comemorados em solidão no último sábado, sem direito a champanhe,  ele ainda sonha. Vê-se isso no brilho dos olhos quando fala, como se houvesse um jogo marcado para o próximo domingo, onde receberá os aplausos das massas. Mbata Nhalégwè mantém a esperança de voltar a levantar estádios inteiros com os seus inesperados tiros de canhão. Mas claro, todo este sentimento é um delírio, de alguém que já não sabe muito bem em que tempo está.

quinta-feira, 16 abril 2020 09:19

Hotel Inhambane

A minha exaltação a este lugar é movida pela esplanda. Todo o sentido da cidade parece desaguar alí, a partir de onde, com o termómetro instalado por sobre o tampo da minha mente,  meço a temperatura dos transeutes. Poucos. Houve tempos que na verdade este espaço era isso mesmo, o centro de uma vida urbana única, caracterizada pelo silêncio. De dentro do bar vinha o cheiro agradável do café, e impregnava-nos  os sentimentos. Embebedava-nos o espírito, espevitava-nos a poesia latente em cada um de nós, de tal forma que, depois de saciarmos a alma, saíamos com a saudade de voltarmos lá outra vez.

 

O próprio bar, a moda antiga, é o outro lado de um tempo que jamais voltará. As cadeiras giratórias perfiladas no balcão, elas,  por si só, convidam-nos ao gozo de sentarmos, e por via desse contacto não resistiremos ao apetite provocado pela garrafeira, ou pelo profundo aroma do café. Mas o que estou aqui a descrever pode ser um devaneio, pois a realidade é uma ferida viva.

 

Passei desinteressadamente pela esplanada do Hotel Inhambane na última sexta-feira, ao final da tarde, como forma de dar azo a minha liberdade. Vinha a pé, descendo pela “25 de Setembro”, depois de desfrutar do pôr-do-sol, sentado num dos bancos da marginal. Era um espectáculo esplêndido a que acabava de assistir, com o astro-rei a esconder-se lentamente por detrás das plameiras que estão para lá da Maxixe. E eu a ver aquilo tudo como dádiva de Deus. Um privilégio de poucos. É como se estivesse no paraíso em si, onde as canções embevecem-nos a todo o momento. E aqui as canções são interpretadas pelo silêncio.

 

Na esplanada não está ninguém. O bar está fechado, mesmo para aqueles que querem beber café. Há um êxodo na cidade, e se calhar sou o único andante por aqui, como um louco ao fim da tarde, parafraseando Marcelo Panguana. Seja como for, independentemente do Covid-19, o bar e a esplanada do Hotel Inhambane, já haviam degenerado. O actual gestor colocou colunas de som cá fora, como se estivéssemos no “senta baixo”,  quando o que pretendemos ao demandar este acolhimento, é o sossego, o silêncio. A música somos nós. São as nossas palavras. Ou o tilintar das pedras de gelo nos copos de whisky. É isso que buscamos na esplanada do Hotel Inhambane.

 

É o único lugar que ainda nos pode receber na proporção das etapas antigas da nossa existência.  Da nossa história que vai sendo vituperada. Também, paradoxalmente, é o espaço menos frequentado. É como a Praça da Liberdade em Singapura, as pessoas não vão lá, com medo da “secreta”. A esplanada do Hotel Inhambane idem em aspas,  é assim, ou quase assim, como a Praça da Liberdade em Singapura. A juventude daqui prefere as barracas, onde a postura urbana é pontapeada. Desta forma eles sentem-se livres.

quinta-feira, 09 abril 2020 06:07

A longa espera do madjerman

Aqui ao lado da minha casa mora um homem despromovido a categoria de alcoólatra. Um indivíduo que passa a vida no “Senta-baixo”, onde não pára de contar as mesmas histórias de uma Alemanha Democrática que agora só existe na memória. Repete-as de tal forma que já ninguém as presta atenção. Mas ao que parece, a vida do meu vizinho só fez sentido uma vez, quando ele esteve na Europa nunca antes sonhada, amealhando a provisão para os tempos de estiagem que provavelmente viria enfrentar em Moçambique, sua mátria.

 

Lembro-me dele quando acabava de chegar, nos princípios da década de noventa, cheio de vigor,  inesperadamente repatriado sem nada no regaço, a não ser a moto da marca MZ, uma mulher loira rendida aos encantos do negro, e uns poucos marcos (antiga moeda alemã) que passou a esbanjar em esbórnias sem fim, se calhar sem saber que toda aquela exuberância era falsa, e que a loirinha não iria suportar viver em condições de miséria. Aliás, ele próprio  não percebeu de imediato que tinha regressado  a miserabilidade, por isso ainda andou por aí, espalhando um charme de nada.

 

Tinham-lhe dito que regressaria ao trabalho e ao frio da Europa, logo que passasse a tempestada provocada pela derrocada do muro de Berlim, e isso dava-lhe alento. Podia gastar tudo, pois, as mãos para trabalhar estarão sempre prontas para repor o que se tirou do celeiro. Sou jovem e forte, dizia ele, e tenho o amor da minha namorada. Com a força que ela me dá, nada vai abalar a minha alma, nem o meu corpo, nem os meus sonhos.

 

Porém o que o meu vizinho não sabia, é que o seu destino estava nas mãos de outras pessoas. Algumas delas sem honestidade. Capazes, por isso mesmo, de apagar em definitivo o sol que começou a descer para o poente, no dia em que os barcos de cabotagem atracaram e de lá foram descarregadas as motos e as geleiras e pouco mais, e algum dinheiro no bolso, que nem era nada. Ele não previu a desgraça que lhe esperava, nem pressentiu que todo o amor florindo a sua volta, corporizado pela mulher loira que trazia nos braços, iria cair no escuro. Ela capitulou e deixou o madjerman no meio do oceano, como uma bóia a deriva.

 

Passam mais de trinta anos, e o meu vizinho continua na longa espera de nada. Aliás, pode ser que esteja a espera de partir profundamente magoado, rumo ao desconhecido, pois já percebeu que da Alemanha, provavelmente não haverá mais sinal. Nem do governo. O Próprio Jehová, segundo diz este homem que vai minguando a cada gole de aguardente, não tem certeza de que algum dia cairão nas nossas mãos, as notas do sangue que vertemos.  E se Deus de Jacob e de David e de Abrahama não tem certeza sobre o nosso futuro, isso significa que o diabo já tomou conta de tudo”.

 

Na verdade o meu vizinho faz-me lembrar um piloto de guerra que, impedido de voar por lhe terem amputado um pé como consequência dos nefastos efeitos da diabetes melittus, ia todos os dias à base para ver os pássaros metálicos em pleno gozo de liberdade. No ar. Sentia como se fosse ele a pilotar, voando como águia, que voa com as suas próprias asas. É como o meu vizinho, fala constantemente de Dresden onde viveu e trabalhou, como se ainda estivesse lá. Está louco!

 

Basta uma “garrafinha” para toda a Alemanha descer-lhe a memória. Conta com entusiasmo as mesmas histórias já deturpadas pelo tempo e pelo álcool, e ninguém lhe escuta. Mesmo assim não pára, é como se estivesse no palanque, discursando para uma multidão só existente na sua imaginação. E ele tem uma necessidade urgente de delirar, de uivar como um cão selvagem abandonado e despojado de todos os seus haveres, na floresta de pedras pontiagudas. Removeram-lhe o coração!

quinta-feira, 02 abril 2020 07:14

Isto é apenas o toque da trompeta

Perguntou-me se eu não tinha medo de morrer, e eu disse-lhe que ninguém está preparado para morrer. Estamos sentados lado a lado na mesma cadeira de dois lugares, e o nosso destino é Maputo, onde se registaram os primeiros sinais  - no nosso País - daquilo que já está a degenerar numa hecatombe mundial. Ninguém sabe como tudo isto vai terminar. E nós os dois, dentro deste enorme autocarro que nos leva, não temos a mínima ideia do que poderá acontecer connosco ao chegarmos a capital de Moçambique, onde a grande maioria do povo daqui,  parece mais preocupada com o que vai comer, do que propriamente com esse vírus flagelador.

 

São seis horas da manhã e já estamos a atravessar a ponte de Inharrime, depois de termos saído de Inhambane às cinco. Olho, pela janela, para o encanto da paisagem que se prolonga até às dunas que exuberam ao longe, e imagino o Índico do outro lado, abrindo-se para os navios e os cruzeiros que podem estar a levar para outras terras, ou trazer para o nosso chão, esse bicho temível. Sou tentado a pensar assim, ao mesmo tempo que liberto a minha inaginação, na busca das canções que já não nos consolam nesta longa espera pelo fim.

 

Ao perguntar-me se eu não tinha medo de morrer, depois do “bom-dia”, pensei que esta mulher minha companheira de viagem, quisesse daquela forma desfiar conversa para encurtar a distância, o que seria salutar para  interior da alma e para o corpo também. Enganei-me.  Logo a seguir ela tirou da carteira um livro, trocou os óculos, e começou a ler. Na verdade  o gesto era um sinal, uma espécie de barreira que me impedia de alcança-la com as palavras. E eu compreendi isso.

 

Enfiei as mãos por entre as minhas pernas, apertando-as, ao mesmo tempo que ia escutando a música quase imperceptível do motor do carro. Não oiço ninguém conversar cá dentro, exceptuando algumas intervenções feitas ao telefone, mesmo assim sem perturbarem o nosso silêncio colectivo. Mantenho os olhos abertos em busca de novos elementos na paisagem que vai escorrendo ao longo do percurso que conheço muito bem, mas tudo o que me chega é como a repetição de uma canção que já me cansa. Excecptuando agora, que damos entrada à Quissico. As Lagoas de Quissico não cansam. Posso contempla-las até à exaustão, mas amanhã quero vê-las outra vez. É como “Baila Maria”, música de Chico António e Mingas, quanto mais a escuto, mais nova parece,  e mais a desejo, como a minha mulher depois do orgasmo, quero mais.

 

Parámos em Chongwene para beber um café e relaxar os músculos, e o homem da tripulação avisou, são quinze minutos, senhores passageiros. Quis levantar-me para sair, mas para isso tinha que acordar a minha companheira que dormia com o livro aberto nas mãos, para ela deixar-me passar. E eu pensei, não se acorda sem necessidade urgente, alguém que está a dormir. Mas eu quero beber café, e isso não é urgente. E agora! Mantive-me sentado e ela nunca mais despertava.

 

Olho para o relógio.  São dez horas. Não tenho fome, não sinto cansaço, mas o café podia melhorar ainda mais a minha perfomance. Absolutamente! Porém esta mulher não me” deixa” sair. E eu não quero despertá-la. Não quero ser o causador de um solavanco, ainda por cima de uma mulher que dorme com um livro aberto nas mãos.

 

Pois é, o autocarro retoma a marcha, e eis-nos, em pouco mais de quarenta minutos, a atravessar a planície de Xai-Xai. Foi aqui onde ela recobrou a razão e voltou a falar.

 

- Já estamos em Xai-Xai!

 

- Sim, mais três horas estaremos em Maputo, onde nos espera o improvável.

 

- Não se preocupe, irmão. O que está a acontecer é apenas o toque da trompeta, a espada ainda vai descer.

quarta-feira, 25 março 2020 05:38

O silêncio dos meus dias

Fernando Manuel, cronista moçambicano vivendo nos cumes da paródia, dizia-me nos seus devaneios, estimulados pela cegueira, que “agora vivo de sons”, e a partir do dia que ouvi isso, ganhei outros pensamentos. Foi uma facada no peito, e jamais me cansarei de repetir esta crueldade sem fim à vista. É como se eu fosse ele, impedido da liberdade, depois de todas as cores contempladas numa vida ritmada ao compasso das palavras, muitas delas buriladas no burburinho dos bares, onde o crâneo dilatava e logo a seguir esvaziava-se na língua.

 

Eu vivo do silêncio, como se a minha respiração fosse o contraponto do Fernando. Desdenho as ruas, as praças, os delírios dos campos de futebol, a saga dos cobradores de “chapa”. Rompi os tratados com as sinagogas, e agora o meu mundo circunscreve-se à mastigação dos livros que aprendi a ler em momentos de pura levitação. Sou a própria fragilidade, pois já nada me inspira neste tédio que me atordoa.

 

Agora estou aqui, boiando sem capacidade de orientação. Sem leme. Perseguindo-me nos caminhos atrofiados que eu próprio inventei, para gáudio do diabo. Levo nas mãos trémulas as alfazemas trazidas da Etiópia. Rumino na solidão do meu quarto, nas manhãs e tardes e noites,  essas canções que o tempo ensinou-me a ouvir em dias intermináveis de pândega, e muitas outras que eu escutava e tocava, recolhido nas cabines de locução de Rádio onde me sentia, na minha ilusão, o arauto da juventude, e tudo isso faz-me bem lembrar. É isso que fazia bater meu coração.

 

Hoje estou sentado na varanda, pensando na minha empregada que não veio, uma mulher rara, leve de tal forma que mete medo. Ela na verdade é a minha fortaleza,  uma muralha que entretanto pode entrar em derrocada por causa das minhas eventuais palavras desprovidas de sabedoria. E como alguém já me disse que o silêncio é uma das manifestações da sabedoria, melhor é eu continuar assim, como actor de cinema mudo. Em respeito à esta grandiosidade.

 

Quando ela está aqui, a minha casa, toda ela, é uma harpa. Khudzi move-se em todos os cantos dos meus modestos aposentos, como as mãos que dominam esse instrumento Divino. A cozinha ganha odores de poesia. A minha casa brilha na sua pobreza. E a vida ressurge na plenitude. Mas ela hoje não veio. Há um vazio. É como se eu próprio não existisse. O silêncio que venero perde sentido. Nem o chilrear dos pássaros compensa. Nem as boas lembranças de quando eu estava no auge. Nem nada. Khudzi é o alambique do meu espírito. Embebeda-me. E quando estou bêbado de Khudzi, esqueço tudo.

quarta-feira, 18 março 2020 10:02

Carta desesperada ao Presidente Nyusi

Senhor Presidente, quando você tomou posse pela primeira vez,  em 2015, a sensação que pairou era de que estávamos no raiar de um novo amanhecer. Depois das dúvidas que se levantaram sobre a sua pessoa durante a pré-campanha dentro do Partido Frelimo, e após a cruzada eleitoral em si, as circunstâncias subsequentes levaram-nos a acreditar que podiamos ter outro caminho. Quanto mais não fosse, “aquele” discurso caudaloso proferido na Praça da Independência, vibrou-nos de tal maneira que não nos deixou outra escolha, que não fosse a de voltarmos a esperar com renovadas utopias no regaço.

 

É muita pena, senhor Presidente, que até hoje não estejamos a desfrutar desse sol radiante, prometido na enxurrada na sua intervenção discursiva, e isso leva-nos ao cepticismo  quanto ao nosso futuro nos próximos cinco anos. Outros cinco anos que você tem para ainda fazer alguma coisa, e sair da Ponta Vermelha com orgulho. Aliás, eu pessoalmente e muitos que lhe desejam o bem, gostariamos que isso acontecesse. Mas todos os prognósticos indicam que o seu caminho é íngreme.

 

O problema, senhor Presidente, é que você não conseguiu demarcar-se. Não tenho a menor dúvida de que havia da sua parte uma enorme vontade de mudar as coisas, porém eles foram astutos, estenderam uma rede de emalhar que cortou ainda cedo a sua caminhada. Você foi capturado, e quando se apercebeu disso, já era tarde. Agora o espaço que resta para si é muito pouco. E o mais provável é que volte para casa com os braços caídos.

 

Não é isto que eu lhe desejo, senhor Presidente, mas é o que provavelmente vai acontecer. Você era a esperança da juventude. Eles puseram-lhe a correr nas duas campanhas eleitorais, porém quem chegou são eles, e você sabe disso, senhor Presidente, que pena! O pior é acontecer que ninguém tenha saudades de si, depois do mandato que vai terminar daqui a pouco. E a culpa poderá ser sua, não conseguiu dizer-lhes que nesta jogada eu não entro.

 

Agora já pode ser  tarde, senhor Presidente, o que seria muito triste para nós, que acreditamos “naquele” discurso retumbante em 2015. Mas vai ser muito mais triste para si, que vai sair sem concretizar um sonho que era, segundo muitos acreditam, de prover o bem estar para o seu povo. Esse era o sonho de Filipe Jacinto Nyusi, entretanto fracassado por motivos adversos que o chefe de Estado não foi capaz de superar.

 

Eu não acredito, senhor Presidente, que você durma o sono dos justos, porque não é isto que estava na sua agenda preliminar. Não é isto que você queria. Com certeza nunca lhe passou pela cabeça atirar o seu próprio povo à sarjeta. Todavia, infelizmente, não vai ficar ilibado desta desgraça. Você nunca terá a paz de consciência nos próximos tempos, sabido que Sua Excia não é uma pessoa de mal.

 

Então o que é que deve fazer para se redimir? Faça qualquer coisa, senhor Presidente, nem que tenha de ir às províncias montado num tigre. Nem que tenha de ir novamente à serra da Gorongosa. E se isso vai trazer paz e fartura para o seu povo, why not! Lula da Silva disse uma vez, que se você decide candidatar-se ao segundo mandato, tem que ter a certeza de que vai fazer igual ou melhor do que fez no primeiro. E você, senhor Presidente, ainda vai a tempo de fazer “algum algo”.

terça-feira, 10 março 2020 07:18

Um bitonga chamado Nhalégwè

Há cinquenta anos – tinha vinte – que saíu daqui para nunca mais voltar. Os seus irmãos também, e tantos outros dessa geração, entraram num êxodo para terras longínquas, e lá constituíram famílias cujos filhos chegam a este lugar como estranhos. Não conhecem as raízes dos pais. Pior do que isso, desembarcam, em viagens de  férias, e correm imediatamente para as casas de hopesdagem previamente reservadas. Nos “lodges”. Aliás o que lhes apela não é a história genealógica dos seus progenitores. São as praias. E a necessidade urgente do gozo da liberdade.

 

Todos lhe chamavam carinhosamente por Nhalégwè, nome bitonga dado às gaivotas, mas hoje poucos se vão lembrar deste homem, tirando os que com ele partiram de vez, e os poucos de nós que ficamos. De resto o tempo vai esbatendo as memórias.

 

O Café Lobito está abarrotado, e a única mesa que ainda pode acolher mais um, é a minha, onde estou sentado tomando chá de camomila,  mesmo assim sentindo-me asfixiado numa cidade (Maputo) que já não tem poros. É por isso que escolhi estar perto da montra, de costas para a maioria, o que me permite vizualizar a intensa “Eduardo Mondlane”. Contemplo os carros que descem e outros que sobem, e as pessoas apressadas que se roçagam umas às outras. Pelo menos essa azáfama recorda-me que estou vivo.

 

Atrás de mim há um burburinho de gente que vem tomar o pequeno almoço rápido, ou um simples café, e ainda o tilintar das chávenas poisando constantemente nos piris. É o início de um dia de trabalho, e as tertúlias irão esperar para o final da tarde, onde, para além do café, pode vir uma caneca de cerveja. Mas eu estou livre, amanhã volto para Inhambane, minha eterna cidade, onde nunca vai  faltar oxigénio para as minhas botijas espirituais. Onde não há este ram-ram todo que me enlouquece.

 

Olho para o relógio, são oito horas e trinta e cinco minutos, e logo a seguir, no meu horizonte, vejo um homem alto, magro, cheio de barba da cor de prata, cambando no passeio, numa passada desinteressada. Pelo andar deduzo que usa prótese na perna esquerda, e pode estar, por assim dizer,  incapacitado para encetar uma corrida, a menos que a prótese que o sustenta seja de carbono, como as duas postiças de Oscar Pistorius.

 

Paguei a conta. Saí e segui na direcção do personagem que me fascina pela barba da cor de prata, e pelo estilo que parece de um bailarino. Ele dança na minha imaginação, uma dança desconhecida. Usa boina preta que cobre completamente a cabeça, camisa de ganga negligenciada, calças  Gins, e nos pés calça botas a Beatles, sem conseguir, contudo, disfarçar o defeito de um pé que não dobra, o que reforça a minha suposição de que este indivíduo tem na verdade uma prótese na perna esquerda.

 

De repente o tempo mudou e começou a chover, o que nos obrigou a interromper a marcha para nos abrigarmos na varanda de um daqueles prédios perfilados na “Eduardo Mondlane”, entre a “Salvador Allende” e “Amilcar Cabral”. Estamos muito perto um do outro. Olhei bem para ele, agora com “lupa”, e senti um gelo na espinha dorsal.  Saudei-lhe timidamente e perguntei, o senhor não é o Nhalégwè!?

 

Não podia estar equivocado. É ele! Porém, o que eu não esperava, e esperava também, é que o dito cujo me vergastasse, Nhalégwè é teu avô!

 

Deu-me costas e passou para outro extremo do nosso “esconderijo”, à espera, sem voltar a olhar para mim uma única vez,  que a chuva, que cai em catadupa, cessace. Mas esta atitude é de muitos bitongas, que detestam ser reconhecidos como tal, sobretudo quando estão em Maputo.

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