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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

quarta-feira, 09 outubro 2019 05:59

Sou amado... e não percebo nada

- Não levas o guarda-chuva?

 

- Para quê!

 

Lá fora já se começam a ouvir as primeiras notas daquilo que daqui a pouco pode vir a ser o descer da  música da chuva. Há um prenúncio. De longe os trovões ribombam, lembrando enormes tambores metálicos vazios rolando por sobre o asfalto, empurrados pelos operários exaltados por Samora Machel.

 

- Viva a classe operário-camponesa!

 

- Vivaaaaaaaa!

 

Os relâmpagos são o sinal do maestro, e logo a seguir entra em acção a orquestra. Sustentada nos trovões. É bela esta canção. Indepedentemente da tragédia que pode vir depois de todas as claves. Mas enquanto não vem o dilúvio, deixem-me dançar por dentro este rugido de Deus.

 

O céu está negro. Enclausurado em si mesmo. De quando em quando rasgado em longas fendas pelos raios que depois caem por entre os coqueiros que também dançam como eu, no palco do vento, sem perceberem que toda aquela exuberância pode vir cá abaixo,  em derrocada. Eu também, posso sucumbir aqui mesmo. Como todos aqueles que não obedeceram ao Noa. Mas eu quero sair.

 

- Amor, leva o guarda-chuva!

 

Sou relutante. Já aconteceram muitas vezes estes sinais, em dias sem memória, e nenhuma gota de chuva caíu. Hoje também pode-se repetir isso. E seria uma grande maçada andar com esse acessório num dia sem chuva. Posso parecer um maluco. Não, eu não levo o guarda-chuva. Não vai chover!

 

Por causa da baixa temperatura (22 graus de máxima e 15 de mínima em Inhambane), visto uma gabardina de ganga, forrada por dentro. Na cabeça trago um chapéu, não propriamente à Tomaz Salomão, mas provavelmente à Pablo Neruda, ou à um italiano qualquer da máfia siciliana. Meus pés estão enfiados confortavelmente em duas sapatilhas de marca,  que ainda matêm o ritmo. Tudo isso adquirido nas xicalamidade, e a sensação que tenho, vestido assim, é de leveza.

 

Dou um beijo à minha companheira, que traz um guarda-chuva na mão, insistIndo, e eu volto a recusar amavelmente.

 

- Não se preocupe, amor, não vai chover.

 

Voltei a beijá-la, e desta vez não resisti ao impulso de abraçá-la profundamente. Ela também abraçou-me profundamente, no mesmo instante em que trovejava fortemente, agora muito perto de nós, por cima da nossa casa. Senti o amor verdadeiro que vem da parte dela. Dado a um sabujo que sou, que não aceita o protector que vem do carinho de uma mulher mansa.

 

Largo suavemente o corpo quente de uma criatura cândida, e sinto que ela deseja ainda manter-me no seus braços. Mas eu tenho que ir.  Saio sem olhar uma única vez para trás. Meto as mãos nos bolsos do casaco e recebo em retorno uma imensa paz de espírito. Caminho despreocupado. Nem os relâmpagos, nem os trovões me impedem de andar. Livre. Nem o céu negro, que não me assusta, mesmo sabendo que posso ser executado pelo mínimo sopro.

 

Passo pela licheira da Mafurreira e vejo um homem na gandaia, também desinteressado como eu. Quer lá saber dos relâmpagos e dos trovões! Mesmo que chova, qual é o problema? Deixa chover. A chuva não vem de Deus? E eu, não venho de Deus? Então, eu e a chuva somos irmãos do mesmo sangue. Vamos nos abraçar.

 

Não passam cinco minutos desde que saí de casa e lá está a descarga. Forte. O céu negro liberta em catadupa todo aquele vapor cumulado. Sou apanhado em cheio. Nem para trás, nem para frente. E em menos de trinta segundos já estou ensopado. Danado. E não me resta mais nada senão voltar para casa, onde a minha mulher, vendo-me entrar no quintal como um pintainho por demais molhado, vem a correr ao meu encontro, sem o guarda-chuva. Abraçou-me, ali mesmo, debaixo das fortes bátegas, e disse-me assim, és maluco, meu amor!

terça-feira, 01 outubro 2019 13:33

Ouvindo a música da natureza no Bistro-Pescador

Estou sentado na esplanada do Bistro-Pescador, nome dado ao restaurante escondido no sossego de um dos cantos da baía da Inhambane. Tenho vindo para aqui, sempre que possível, poucas vezes, não propriamente para beber alguma coisa ou comer, mas para contemplar a ponte que deste lugar se torna peculiar. Não que a infrasestrutura tenha atributos de grande engenharia moderna. Até porque aquilo é obra dos tempos remotos, sem que seja, mesmo assim, uma velharia. Esta obra é o símbolo do passado. Uma fortaleza do espírito bitonga. Provavelmente seja por isso que me arrebata.

 

As águas do mar estão aqui mesmo, perto de nós, beijando os utentes. Por vezes fugindo deles em maré baixa, para depois regressarem em maré alta, num esplendoroso ciclo da natureza que Deus criou. É isso também que me motiva a estar aqui, mesmo que não peça nada para degustar. O café está caro, porém tenho encontrado uma forma de desencantar algumas moedas para pagá-lo, caso contrário vão mandar-me embora. E eu tenho um desejo irreprimível de banhar-me com esta dádiva.

 

Os inabaláveis pilares da ponte, que avultam para suportar a plataforma, vistos daqui, parecem estar dentro de mim, segurando a bandeja das minhas lembranças. Estando aqui, o meu cérebro não se abre às memórias ruins. Aliás, para quem escuta a música da natureza, não tem como dar espaço aos pensamentos nefastos. E eu estou escutando a música da natureza, dançada pelo meu espírito e pelos raros pássaros marinhos que também cantam. É isso que eu procuro a fim de ostracizar a tristeza.

 

- Não vai mais nada, senhor?

 

Quem me pergunta é a garçonete, enquanto retira a chávena de café, já sem conteúdo, e limpa suavemente a mesa. Ela fala leve de tal modo que condiz com o próprio lugar. Com a própria natureza, que estou a observar.

 

- Não, muito obrigado.

 

À esta hora não está ninguém neste espaço. O que não sei é se as pessoas foram-se embra, ou ainda estão por vir. Mas isso não importa. Até porque daqui a pouco vou zarpar. Saciado. E pelo caminho, de regresso à casa, nada me vai abalar porque estou fortificado. O oxigénio enchido nas botijas da minha alma vai dar para os próximos dias. E quando acabar, volto de novo ao Bistro. Assim, sucessivamente.

quinta-feira, 26 setembro 2019 08:31

Sando Lodge: tristeza e desolação

Na verdade este lugar entristeceu-se.  Feneceu. Perdeu todas as molécolas da cumplicidade que se foi enraizando na amizade desinteressada da juventude. E de nós, os sexagenários, já no fim da caminhada, levados para ali pelo contágio da alegria. Sando Lodge era o cântaro em si. Um pote puro. Uma espécie de palco onde todos cantavam e dançavam por dentro, deixando o resto  por conta das emoções. Aqui residia o sinónimo mais profundo da liberdade. Mas o que sobra agora, para o nosso desespero, são os fiapos da última luz deixada pelo entusiasmo de viver.

 

Sando Lodge fica aqui perto da minha casa, ao longo da baía de Inhambane. Já sem as sonoridades do bem estar que nos proporcionava no seu sossego. Sem a brancura das areias, ora pejadas da escória devolvida pelo mar à nossa ignorância. Tudo aquilo que nos dava paz e desejo de estar ali, sucumbiu: o espaço livre  e limpo, agora ocupado por desgraçados casebres, cujos ocupantes sofrem em tempo de marés enquinociais.

 

E se você quiser conhecer o testemunho de toda a poesia tecida ali, no roçagar dos corpos, depois dos copos, esse testemunho somos nós. Que não queriamos mais nada para além da brandura do tempo que nos embalava entre os braços da areia branca  e o peito das águas tranquilas do mar. Era isso que nos movia para o Sando Lodge. E bastava-nos.

 

Agora ninguém procura o lugar. Pior do que isso, ninguém fala dele. Nem o próprio Santana, o jovem tornado eixo pela simplicidade e humildade. Santana era, lado a lado com o Sando Londge, ou por detrás  disso, o mote para todo o júbilo. Agora ficou sozinho, ruminando a nostalgia do tempo que pode não voltar. Jamais. Até os flamingos já não passam perto para  estabailizarem a pressão do coração que se vai esvaindo. E para agravar a tristeza, aí estão as almadias quedadas em maré vaza.

 

O que dói é perceber que apesar do amor que alimentamos durante longo tempo, entre nós e as águas que se despejavam serenas nas areias brancas do Sando Lodge, já não há nada que nos liga. Ninguém quer saber do outro. Nem as noites de luar, que eram uma maravilha observadas a partir dali, nos afagam a dor de termos perdido um dos lugares mais prazerosos da baía de Inhambane. Nem as luzes que cintilam do outro lado, do lado da Maxixe, chegam para espantar a desolação.

 

Talvez um dia alguém cante uma música em homenagem ao Sando Lodge. Quem sabe!

terça-feira, 17 setembro 2019 10:05

Carta ao Presidente Ciryl Ramaphosa

Desculpa, senhor Presidente, mas foi você mesmo que acendeu o rastilho desta dinamite estúpida. Lembra-se? Esqueceu? Agora como é que vem, em pleno Estádio Nacional de Rufaro, perante os holofotes do mundo, pronunciar aquelas palavras sem sentido? Opacas. Você tomou uma atitude  retrógrada, senhor Presidente!  Você me fez lembrar Tchaka Zulu, que por tudo e por nada, mandava matar, mu bulaleni (matem-no).

 

A sua posição, meu caro Presidente, é de um primitivo. Porque uma pessoa que incita à violência e à morte de outros seres humanos, e fica insensível perante o sangue que jorra dos corpos desses seres, no mínimo é  irracional. E você, senhor Presidente, prometeu, durante a campanha eleitoral, que ira correr com os estrangeiros da África do Sul.

 

Os seus compatriotas pilharam, destruiram e mataram em nome do Presidente da África do Sul. E o Presidente é você, senhor Ramaphosa, que autorizou implicitamente aquilo tudo. O seu comandante-supremo da Polícia dançou a música que você tocou, ou mandou tocar. Os agentes policiais também, participaram como actores de primeira linha na execução da sinfonia animalesca daquela semana. E depois da tragédia lá vem você, senhor Presidente, pedir-nos desculpas, lembrando-nos um tirano daqui da nossa zona, que mandava matar um companheiro de luta, e depois ia fazer ele próprio o elogio fúnebre exaltando os feitos patrióticos do finado. Veja só!

 

Se a África do Sul tem problemas, senhor Presidente, o culpado do vosso declínio não somos nós. Você sabe muito bem aonde é que está o busilis da questão. E saiba mais, os tempos de ouro nunca voltarão usando gasolina para incendiar nossos corpos, provocando a risada dos crueis polícias sob sua égide como comandante-chefe. Não é esse o caminho. Não são as facadas que nos decapitam, nem as pauladas por sobre as nossas cabeças que vão trazer a prosperidade para os sul-africanos. Não é toda essa selvajaria. Esse primitivismo.

 

Senhor Presidente, se você quer, na verdade, uma África so Sul que caminhe à luz do arco-iris, guie-se pela sensatez. Respeite sobretudo a vida do seu próximo. E  mais, esse grande país nunca vai crescer sozinho. Aliás, uma boa parte da economia sul-africana foi sempre movida por estrangeiros, por moçambicanos como eu, trabalhando nas minas de onde voltaram doentes para morrer aqui no nosso solo-pátrio. Muito outros morreram aí mesmo, erguendo o grande edifício que acolhe a você, senhor Presidente e a todos os seus compatriotas.

 

Eu tenho muito respeito por si, como símbolo da Nação, mas deixei de me simpatizar consigo como pessoa, a partir do dia em que incitou à violência, prometendo expulsar as pessoas que não são daí. Ora essa! Vista outra roupa, meu caro Presidente. Roupa nova, e venha nos mostrar que está, daqui em diante, depois das desculpas que pediu em Harare,  comprometido com uma África do Sul não vingativa contra estrangeiros. Porque até prova em contrário, você, senhor Presidente, está no mesmo saco dos vingativos. A sua atitude mancha a África inteira.

 

Senhor Presidente, não se esqueça que você é uma pessoa vulgar. O que está a acontecer é que está investido de poderes invulgares. Mas esse escafandro não é eterno. O seu madato vai terminar depois de alguns anos. E eu não acredito que gostaria de sair e deixar uma África do Sul mais manchada de sangue do que já está. Você é uma pessoa capaz de se mudar a si mesmo, senhor Presidente, e se fizer isso, toda a África do Sul vai lhe seguir e toda a África vai-lhe agradecer.

 

Por enquanto estarei aqui, deste lado, agora mais do que nunca, aconchegando a lenha na fervura da esperança.

terça-feira, 10 setembro 2019 13:42

Lindela: saudade e ansiedade

Aqui a Estrada Nacional Número Um (EN1), bifurca. Estende um ramal que nos leva ao sossego inultrapassável da cidade de Inhambane. Continuando, porém, na sua longitude, a escoar o  caudaloso e ininterrupto tráfego comadado pelos camiões de grande tonelagem, que vão, aos poucos e poucos, danificando a base que suporta o asfalto.

 

Estou sentado na varanda da antinga estalagem de Lindela, respirando o ar que sai de dentro do edifícício cheirando a bafio. Sinal claro de que aquilo que já foi o local de acohimento para os passantes exaustos, hoje é um mamarracho. Não há sinal a indicar-nos vida pelo menos nos próximos tempos, já que o azimute mudou para o Santo António, um restaurante-pensão que tomou conta da história local.

 

Percorri trinta e dois quilómetros da cidade onde moro para ver um amigo que vai a Malema. Ele vai passar por aqui daqui a pouco, vindo de Maputo, e nesse momento a ansiedade de revê-lo vai esmorrecer no profundo abraço que vai-se materializar entre nós. Há muito que não nos vemos. E enquanto ele não chega, estou neste lugar sentado tendo como cadeira um bidon de plástico, de vinte e cinco litros, usado antes para acondicionar óleo alimentar.

 

São dez horas. O meu amigo volta a ligar e diz com entusiasmo, estou a passar Inharrime, brada! Inharrime é aqui perto. São vinte minutos de carro, mas como o homem que vai ao volante inspira-se no brasileiro Emerson Fittiplad, que venceu o Campeonato Mundial da Formula 1 e o Indianapolis, quinhentas e duas vezes cada, pode chegar antes de cinco minutos. Com ele tudo é possível.

 

Tenho medo de auriculares. Usei abusivamente os auscultadores, em som alto, quando era locutor da Rádio Moçambique, e o resultado é que rebentaram-me o ouvido do lado esquerdo. Agora priorizo o som da natureza. A música dos pássaros. Do vento. A sinfonia das chuvas e trovoadas. É por isso que estou aqui a mercê de todos os sons. Dos camiões  que passam e descarregam o estrangulador...... brrrrrrrrrrrrrrrrrrooooooooooooooooooo!

 

Nem parece que estou aqui sozinho. Há uma companhia intensa. Calorosa. Todos que vão passando perto, saúdam-me vocalizando um bondia, ou acenando com a mão, ou ainda meneando a cabeça, e eu retribuo com rigozijo. Esqueço-me que estou sentado por sobre um bidon de plástico, de 25 litros, oco por dentro. Sem nada. A sensação que me habita o interior é leve. Quanto mais não fosse, estou a espera do meu brada.

 

Dez minutos depois da chamada feita em Inharrime, vejo um espampanante Crysler 300 deslizando suavemente na estrada, e logo a seguir saíndo para estacionar, um pouco afastado do local onde estou. É ele!

 

Nunca imaginei que viesse numa viatura tão fora do comum, mas com o meu brada, como já o disse, tudo é possível. Levantei-me e fui ao seu encontro a correr, como uma criança. Ele também, quando me viu, saíu do carro e veio na minha direcção, como uma criança solta, que vai saltar para o peito da mãe ou para os braços do pai.

 

Apertamo-nos. Unimo-nos. Juntamo-nos. E ficamos sem palavras.

 

Perguntei-lhei o que ia fazer em Malema.

 

- Vou ver minha mãe, vamos juntos, brada.

terça-feira, 03 setembro 2019 12:06

Sou uma mulher para sempre

No dia em que tudo isto aconteceu voltávamos de Tete, eu e o meu pai, depois de umas férias agradáveis passadas em Tsangano, alí no limite com o Malawi. A princípio a ideia era esventrarmos a terra de Khamuzu Banda, para depois reentrarmos em Moçambique por via da província da Zambézia, onde nos esperavam arrebantantes paisagens da natureza. Mas o plano mudou quando nos disseram que no Malawi chovia torrencialmente há dois dias. Pegamos no mesmo caminho que nos levara até ao lugar das imensas pradarias e colinas, e fruta fresca e comida de não acabar. Agora de regresso à Maputo, onde eu nasci, contrariamente ao meu pai que é nyandja dali.

 

Para além de viajarmos num carro confortável, um BT-50 dupla cabine em boas condições, a maior sensação de segurança que me vai dentro, vem do facto de o meu pai ser um condutor responsável. Ele respeita a estrada e os seus sinais, mas sobretudo respeita-me a mim, por isso evita criar condições em que eu possa ser assustada por qualquer manobra imprudente. Não que ele ande a quarenta ou sessenta. Não! Mas também nunca passa dos 120, pelo menos quando está comigo.

 

Saímos de Tsangano muito cedo. Podiamos ter saído mais cedo ainda, mas era necessário esperar que o nevoeiro desvanecesse para termos visibilidade plena. E quando chegamos a Tete, meu pai propôs que fizessemos uma curta paragem para um café. Fomos ao Almadia, ali na margem sul do rio Zambeze de onde, enquanto degustavamos do pequeno almoço, aproveitavamos a ocasião para contemplar a ponte que é um especáculo vista daqui.

 

Meu pai bebeu uma grande chávena de café e uma sandes de queijo, e eu imitei-o, embora ele sempre me diga, cuidado com o café!

 

Retomamos a estrada por volta das nove, despedindo-nos de Tete, uma cidade agreste cercada de montanhas de pedra. Vi Kalowera do lado direito, já à saída, com o bairro  Kanongola do lado esquerdo, e entreguei-me, absorta, àquela paisagem que deixava para trás. Foi nesse momento de pensamentos que meu meu pai, sem olhar para mim, disse-me assim, aperta o cinto, meu passarinho. Ele gosta de me tratar assim. Sou o passarinho dele. Uma menina amada.

 

À entrada de Katandiga, minha mãe ligou de Londres onde estava a fazer o doutoramento em Antropologia. Ligou para o celular do meu pai, e o meu pai deu-me sinal com a cabeça para que eu atendesse. Peguei no telefone mas não falei sequer uma palavra. Um monstruoso camião, que vinha em sentido contrário ao nosso, perdeu repentinamente a direcção e veio para a nossa faixa. Meu pai ainda tentou fazer um milagre para fugir do mastondonte enquanto eu gritava chamando pela minha mãe: mãeeeeeeeeeeeee!!!!!!!!! O nosso carro foi a tempo de evitar o choque frontal, mas capotou logo a seguir, e depois disto não me lembro de mais nada.

 

Despertei no Hospital quinze dias depois numa cama ortopédica, e o meu pai estava ali, agora com a minha mãe que teve de abandonar os estudos por conta do que nos aconteceu, a mim e ao meu pai. Que não sofreu no acidente. Os dois estavam ali, olhando-me com comiseração e perguntei, o que é que está acontecer, mãe? Eles debruçaram-se sobre mim, chorando e molhando meu corpo com as lágrimas. E eu percebi rapidamente tudo. Não foram necessárias muitas palavras.  Estava paraplégica. Para sempre. Mas continuo a ser uma mulher. Que ainda vai voar, mesmo sem poder mexer as patas. Escangalhadas. Para sempre.

A nossa amizade é inabalável. Conquistamos – eu e ele – ao longo do percurso de mais de meio século que dura a nossa relação, a liberdade de nos dirigirmos um ao outro sem reservas, com honestidade. Foi nessa condição que, cansado de ver o meu amigo caminhando impotente para o pricipício, já no fim da linha, balançando ao titmo de uma carcaça inútil, falei-lhe aquilo que penso, sem filtar as palavras. Eu disse-lhe assim, meu irmão, estás um trapo de merda.

 

Pior do que tumefacto, o rosto daquele que em tempos parecia O.J.Sinpson correndo com a bola ao encontro da luz, está lívido. Arrepia olhar para ele, sobretudo nas manhãs, antes de começar a cavalgada que o vai transformar em esterco. Treme de cima a baixo e não consegue suster o olhar em seja o que for. Os lábios estão gretados, numa boca que esconde o bolor repugnante que se aloja por sobre as gengivas, onde estão embutidas duas filas de dentes completamete queimados pelo tabaco.

 

A mulher, embora continue ao seu lado suportando um cadáver que pode ser enterrado daqui a pouco sem glória, não pode fazer mais nada senão preparar as lautosas refeições que mesmo assim Chico não come, e lavar a roupa para disfarçar o corpo de um homem que é diariamente enxovalhado pelo álcool. Chico não tem peladar. O único sabor que conhece e do álcool e do fumo. Chico é a antítese de pessoa. Aliás eu disse-lhe isso várias vezes para ver se as minhas palavras serviriam para alguma coisa. Nada!

 

Ainda nem o sol ganhou plenitude e o meu amigo já está na segunda dessas “garrafinhas” que têm levado muitos jovens a esquizofrenia. Se calhar o meu amigo também está aí. Ele padece. Vê-se nos olhos esbugalhados, constantemente feridos pelo fumo que espantosamente ainda não lhe provocou a  catarata. Mas o sofrimento do Chico, agora que já está em “órbita”, é disfarçado pelo vozeirão à Barry White, cantando canções dos americanos, tipo Memphis Slim. Canta e conta histórias inacreditáveis. Desconhecidas. Levita como os cosmonautas. E provavelmente  isso é que lhe vai ajudar a descer o desfiladeiro.

 

Cada vez que falo com o meu amigo no sentido de ele vir para este lado, o meu amigo ri-se de mim às gargalhadas, abrindo desmesuradamente a bocarra repugnante. Voltei a dizer-lhe que era um trapo de merda e ele, serenamente, disse-me que eu não sabia o que estava a dizer. Pode ser verdade. Mas gosto dele, isso é que importa, e já percebi que também eu, como a sua delicada e dedicada esposa, não posso fazer nada, senão assistir à marcha de um homem que vai a execução sem capuz. Aliás vai encapuzado pelo álcool que lhe dá prazer nesta caminhada fatídica.

terça-feira, 20 agosto 2019 08:50

Passo as noites nua... sem vestimenta

 

Agora percebo que toda esta imaginação que hoje vivo é uma realidade. Uma tormentosa realidade. Diferentemente do tempo em que eu era a rainha desta terra,  vivendo por cima de todo o chão. Desprezando as minhocas, pisando-as sem misericórdia, dizendo sem reservas que nada de mal me aconteceria. Mas no fundo eu era a Dambóia, irmã do Ngungunhana, semeando espinhos em todo o lado.

 

Estou abraçada, por não ter abrigo,  a uma rocha que me rasga as mãos até ao sangramento. Porém, paradoxalmente, tenho empregados e mordomos que se revezam diariamente neste palácio onde moro cercada de ouro e diamantes, sem falta de nada. Mesmo assim os temporais incessantes não me poupam. Varrem-me em cada passo que tento dar na fuga de mim mesmo. Sou um lagarto desesperado, na luta inglória pela escalada das lindas paredes da minha casa, debroadas de rubis.

 

Mas isto já não é casa. É uma clausura, onde passo as noites sem sentir o cheiro aspergido pelas alfazemas trazidas da Etiópia. Perdi o olfacto. Estou nua por dentro da alma, sem vestimenta, apesar das roupas confortáveis que agora não valem nada depois de tudo isto. Desdenho-me em todo o ser. Repugno-me. E pior do que isso, as cobras enchem-me o quarto em substituição do tapete de veludo que adquiri sem o merecer. O medo ri-se de mim, enquanto de longe, como cavaleiros do Faraó, desembucham sobre mim as gargalhadas dos mochos.

 

Estas noites não podem ser uma alucinação. Na verdade sou eu, sentindo a penetração das esporas nas minhas vísceras, obrigando-me a trotear em rodopio no seio da própria tormenta. Já não sou a raínha. Sou uma mulher estranha perante os empregadose mordomos que sempre me temeram. O meu palácio é sombrio. Assombrado. Meu corpo e minha alma não estão quentes nem frios. Estão mornos. É por isso que se aproxima de mim toda esta bicharada. Fui vomitada pela vida.

 

Pena que eu não tenha copiado da sabedoria da formiga, e hoje estou aqui sem provento. Vazia. Abandonada. Tenho comida para mim e para os cães, e sobras para o Lázaro, mas a minha fome não passa. No fundo estou morta. Sinto que meu nome descerá para sempre com a minha carcaça. Não restarão lembranças de mim para as crianças. Muitos aspirrarão de alívio ao receberem a notícia da minha morte. Beberão o champanhe que nunca me faltou. E muito mais para festejar aquilo que eles agora desejam ardentemente: que eu sucumba. Isso é que me fulmina o ser todos o dias, nesta vida em que já não olho para o relógio, cujos ponteiros morreram como eu.

 

 

terça-feira, 13 agosto 2019 13:25

O silêncio também é um sismo

Queria escrever-te uma carta de amor, daqui onde me encontro contemplando o mar da minha imaginação, mas estou  vazio por dentro, encharcado pela demora do teu beijo. Estou por de cima da calçada. Desesperado. Ardem-me por dentro as palavras sufocadas neste caminho que já não sei para onde vai. Quero gritar e sinto medo do desiquilíbrio. Faltam os carrimões,  e não tenho nada nas mãos senão o formigueiro criado pelas incertezas. Se eu cair para este lado, serei devorado pelas chamas. Se cair para aquele lado, a almofada do meu corpo serão os corpos frios das serpentes. E agora, meu amor!

 

Este silêncio está-se tornando um sismo. Cada vez que tento a repetição das canções buriladas pela solidão, para ver se espanto  a ansiedade que me caustica, a minha voz vacila mais profundamente. Não oiço nada. Nem o murmúrio do mar. Nem o vacalizar inaudível do meu próprio coração. Nem nada. O que sinto são as espigas de aço. Perfurando-me. Danificando-me a alma ardente do teu amor. Acho que tudo isto é a chegada do fim.

 

Não saio da calçada. Não consigo sair. Cada vez que tento, aumentam as labaredas do silêncio que me lavra. Sem misericórdia. Vejo os corvos rindo-se de mim neste momento em que desejo escrever-te a carta que pode ser a derradeira. Não oiço nada, meu amor. Nem o cantar sinistro do vento que muda o rumo das gaivotas. Mas eu mantenho nas mãos o papel e a caneta, sem a certeza de nada. Aliás a única certeza que tenho é de que vou ruir. Essa é a única certeza que eu tenho.

 

Meu amor! Até o blues, que sempre me fortificou em noites de medo, silenciou-se. Era o blues que me inspirava, e agora não consigo escrever nada. Nem uma carta para ti. Estou aqui de cócoras, como um guarda-redes de hóquei em patins, e o meu stick é a caneta que trago numa mão,  entretanto sem conseguir riscar o papel que seguro noutra mão. Tremo nos fundamentos do meu ser. O vento está quase a derrubar-me. Sibila as estrofes do inferno, com garrafas explodindo sangue no lugar de champanhe.

 

E agora, meu amor! Agora que o silêncio se transformou em sismo! E agora! Resta-me esperar pelo destino que o vento vai-me dar. Se me empurrar para este lado, serei devorado pelo fogo. Se me empurrar para aquele lado, também serei devorado pelo fogo. O pior é que nem posso fugir.

 

Meu amor!

terça-feira, 06 agosto 2019 07:16

Mbata Nhalégwè no lançamento do meu livro

Estou no acto do lançamento do meu primeiro livro, em 2001, na cidade de Inhambane. O título é esse mesmo: Inhambane Sem o Badalo, uma homenagem à figuras que estarão por todo o sempre ligadas aos cheiros desta cidade elevada - pela minha imaginação nas paródias - ao lugar mais sossegado do Mundo. É uma colectânea de crónias recebida com estupefação pelos cépticos, que me achavam incapaz de ressurgir das cinzas depois de longos anos chafurdando na lama. Desnorteado. Será também a obra que me fez sentir um pequeno deus, por isso autorizado a enfiar as mãos nos bolsos e assobiar em liberdade pelas ruas e pelos atalhos e pelas sinagogas, passeando em paz. Com vaidade.

 

No evento, de entre os demais ilustres e pessoas do vulgo, esteve lá um homem que vai ser lembrado eternamente pelos espectáculos de pico que proporcionava na baliza. Pela audácia. Chama-se Mbata Nhalégwè, um guarda-redes notabilizado no Clube Arrera Kwara, e depois celebrado em toda a província onde era alcunhado “guiwonga” (gato). Extravazava classe em todos os movimentos. Exuberância. Plenitude.

 

Mbata Nhalégwè ficava encostado ao poste, de braços cruzados, pernas em tesoura, quando o jogo fosse despejado – ou pelo corredor central, ou pelas “asas” - para a baliza contrária, como se estivesse à espera serenamente de alguém, ou lucubrando na memória. Mas quando o perigo corresse na sua direcção, ele dançava como um dançarino de mapiko, media os ângulos com as mãos, gritava para os defesas seus colegas, por vezes saía da área e  logo a seguir voltava a correr para o seu reduto de costas voltadas para a bola, deixando tudo o resto por conta dos sensores implantados no seu corpo e espírito.

 

Os pontas-de-lança, ou os médios ou médios-avançados, podiam desferir mortíferos remates enquanto Mbata retornava à baliza naquele movimento subreal, e este, assim mesmo, de costas para o jogo, em corrida, como um gato feiticeiro, rodopiava no ar e impedia a trajectória fatal da bola. Tinha manápulas mágicas. Buscava o esférico no ar num gesto de quem colhe, como um maroto inesperado, uma laranja no ramo mais alto da árvore. E é isto, e muito mais, que vai tornar Mbata um guarda-redes idolatrado e festejado em toda província de Inhambane, no seu tempo de glória.

 

Hoje, em 2001, vejo um homem movendo-se no corredor da sala onde decorre o lançamento do meu livro. É extraordinariamente alto, cabeleira farta, completamente esbranquiçada, parecendo de prata. Procura com os olhos uma cadeira livre para se sentar e a primeira vista não há cadeira desocupada. A sala está absolutamente cheia porque o meu nome ribomba por estas bandas. Reboa até aos bairros mais longíquos onde também serei festejado como Mbata Nhalégwè, por todas as trafulhices que andei a fazer por aqui, e pela música de blues que vou cantar, sem saber nada de blues, nem nada sobre a escala diatónica.

 

O homem não encontra lugar para sentar. Orbita sobre o seu próprio eixo lembrando os dias dos jogos das estrelas  e, resignado como nunca esteve no campo de futebol, recua e encosta-se na porta da entrada, na mesma posição habitual de quando brilhava como um astro, desde os meados da década de sessenta, até princípios da década de oitenta: braços cruzados e pernas em tesoura. Olhei para ele e reconheci-o logo, era o Mbata Nhalégwè naquele estilo característico que recusa desvanecer apesar da idade. Nesse momento falava o governador de Inhambane, bajulando-me, e eu estou pouco me lixando para as bajulações. Mas o “boss” teve que interromper o discurso quando viu um homem que se destacava pela sua peculiaridade física, encostado à porta de braços cruzados e pernas em tesoura. Era o Mbata Nhalégwè, agora convidado por “Sua Excia” a ocupar a única cadeira vaga que se dispunha na fila da frente, reservada aos “responsáveis”.

 

Lá vem ele pelo corredor, estiloso, tranquilo, sereno, transcendental. Há silêncio na sala. Todos estamos paralisados. Mbata Nhalégwè faz uma vénia ao governador, enclina-se para pegar pela mão esquerda o encosto da cadeira, antes de se sentar. É um homem longelíneo. Virou-se para a plateia e saudou-a vocalizando palavras simples que ainda hoje me ressoam na alma: “este lugar não é para mim!”. Virou-se  para o governador e disse, “muito obrigado, Excia”.

 

Houve uma forte salva de palmas. E antes de se sentar – como um mamute – Mbata Nhalégwè disse mais, dirigindo-se à plateia: “é uma uma grande honra e privilégio, participar no lançamento do livro do Alexandre, uma pessoa que fala sempre de mim como se eu fosse alguém, quando na verdade ele é que é alguém!

 

Houve outra estrondosa ovação, com as pessoas de pé, incluindo o governador da Província, que já não sabia o que fazer!

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