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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

quarta-feira, 24 março 2021 08:32

Basta-me este zoo

Sempre que venho cá fora, nos últimos dias, a sensação de que vivo no paraíso avoluma-se. Cada um tem o seu paraíso, ou o seu inferno, e eu moro nesta pequena casa sem muro de vedação, onde as plantas silvestres, por aqui chamadas de espinhosa, sempre bem podadas, é que me proporcionam a privacidade, cercando os meus aposentos. Sinto-me livre aqui, como estes pássaros que chegam  e cantam todos os dias sem excepção, na copa das minhas árvores de fruta, canções indescritíveis e profundas.

 

Já abdiquei da televisão no período entre as cinco da madrugada e às oito. Gosto de ouvir rádio como o Fernando Manuel que agora vive de sons, mas nas manhãs desligo-o e nem escuto o Jornal da Manhã da Rádio Moçambique porque quero desfrutar da música dos pássaros que acordam em simultâneo com o raiar do sol. São eles que me trazem as lembranças do passado, as imagens de um tempo que não volta mais. Mas é este silêncio que me faz feliz, que me permite ouvir cada detalhe do crepitar dos cristais invisíveis da vida.

 

Marcelo Panguana tem participado, sem ele saber, na fortificação dos fundamentos da minha solidão. Quer dizer, o cântico das rolas que chegam a poisar no chão do meu quintal sem receio de mim ao entardecer, lembram-me o livro cujo título é “Como um louco ao fim da tarde”, do Panguana. E eu sempre repito sem me cansar esse verso para dentro de mim quando vejo aquelas aves tímidas no último voo para o repouso dos ninhos, “como é belo o cantar das rolas ao fim da tarde”! São estas imagens que dão sentido à minha vida, incluindo a luz intermitente dos pirilampos que inundam o meu espaço nas noites.

 

Houve tempos em que eu acordava e logo a seguir queria sair, entregar-me às ruas e às pessoas, andar por aí sem destino, sem me importar com o relógio, adorava a pândega. Porém, agora sou a antítese desse homem, quero estar apenas comigo e as minhas lucubrações sem fim. É verdade que cortaram-me as asas como ao belo “mugubani” de Salimo Mohamed, e eles pensavam que assim, sem as asas, desceria ao precipício das dores, metira! Eu tenho as asas por dentro. Tenazes. A solidão tornou-se para mim um importante trapézio, eleva-me ao infinito.

 

Ainda há dias chegou aqui a minha filha e disse, papá sempre sozinho! E eu respondi, não estou sozinha, minha filha! Não vês estes pássaros todos? Não ouves essas músicas maravilhosas que cantam para mim?

 

Estávamos na varanda, o melhor lugar da minha casa, assistindo às aves que saltitam de ramo em ramo, outras descendo para tomarem banho de areia num espectáculo que se renova todos os dias para gaúdio de mim. Outros pássaros beijam-se em celebração ao amor e eu digo para dentro de mim, como é lindo!

 

E eu nem dou pelo tempo a passar, estes momentos são tão envolventes e tão absorventes e tão inexplicáveis que não me oferecem outro caminho que não seja o de agradecer a dádiva de estar aqui, o resto não me interessa, nem a televisão, nem a rádio, nem os jornais, nem os smartfones. Basta-me este zoo!

quinta-feira, 11 março 2021 08:31

Genoveva Nhacassane

Nunca falei com esta mulher, jamais ousei aproximar-me de um vulto tão profundo e tão desconhecido e tão vulcânico. Na verdade já estive variadíssimas vezes perto dela, no mercado, onde quase todos os dias nos cruzamos e quase nos roçagamos, mas é só assim, sem nenhuma palavra. Eu sempre senti-me pequeno demais para um empreendimento que de longe supera todas as minhas capacidades. Não porque a desejasse, no fundo o que eu almejava era ser um simples conhecido de alguém que parece um felino, uma bela gata.

 

Pode ter ultrapassado o limite dos sessenta, e nessa idade o corpo, todo ele por inteiro,  começa a secar e sobram poucos fios capazes de nos atrair e lembrar-nos de que estamos vivos. Porém, apesar dessa tragédia inevitável provocada pelo tempo,  esta obra do Altíssimo ainda reverbera. Tudo nela parece intacto, incluindo o olhar fugidio, frequente em donzelas que transportam nos gestos as tenazes armadilhas da paixão.

 

Chama-se Genoveva Chacassane, um nome que parece resumir toda a estrutura de uma criatura que em si só já é um vendaval que não pára de criar o caos no seu percurso. Anda invariavelmente vestida de capulana e lenço de cabeça e chinelos e um cesto pendurado no braço, tudo novo, o que me leva a pensar que ela tem um baú interminável. Aliás o outro pormenor que a destingue é o colar de ouro que dança no peito farto,  e as várias pulseiras, também de ouro, adornando os braços. Nos dedos não tem nenhum anel.

 

Há dias em que vou ao mercado só para ver a Genoveva Nhacassane, que brilha para além dos diamantes. Conheço a hora dela, não falha. Por vezes saio decidido a dizer-lhe qualquer coisa, nem que seja um disparate, mas quando chega a hora da verdade, vacilo como os mabecos humilhados pelos grandes predadores. Tremo de alto a baixo e volto para casa envergonhado pela minha incapacidade. Tento de novo outro dia e... nada! Bebo uns copos para ver se o álcool ajuda-me..... também nada!

 

Genoveva Nhacassane se calhar nem sabe que eu existo. Pior do que isso, provavelmente sabe e não me vê como nada. E na verdade pode ser este caso onde sou um personagem secundário, dispensavel, porque sempre que chego perto dela, sinto-me um nenhumano. Fico com medo perante tanta beleza chocante.

 

Genoveva Nhacassane é uma jazida de vários metais preciosos, já me apeteceu dizer isso para ela ouvir, mas as palavras nunca foram para além dos meus sentimentos, até ao dia em que tudo se revelou como o dia clareando a favor da nossa liberdade.

 

Partilhamos pela primeira vez o mesmo autocarro, num trajecto de cerca de dez quilómetros, de Guiúa (onde tinhamos ido fazer compras na feira agrícola das sextas-feiras) à cidade de Inhambane onde moramos. Estamos sentados lado a lado no mesmo banco, e eu pensar que seria aquele o momento para pelo menos dizer qualquer coisa, talvez um bom dia... qual! Encolhi-me na concha da minha derrota.

 

Genoveva significa “mulher branca como a espuma do mar”, e eu preparei-me várias vezes para dizer isso a ver se ao menos vai passar a conhecer-me, e nem isso consegui. Não tenho coragem. Agora não vejo outro caminho senão continuar a ir ao mercado, apenas para contemplá-la. Para contemplar esta linda gata que me mata aos pedaços.

Mais do que sentir-me feliz por estar novamente em liberdade, após superar o flagelo do Corona-Virus sobre o meu corpo, invade-me agora uma indescritível sensação de júbilo, em agradecimento profundo a todos que me amam, com certeza sem o merecer. Tenho passado os últimos anos da minha vida em cativeiro, dentro da minha própria carrapaça, um casulo que  vai  sendo fortificado irreversivelmente pela solidão. Estou em permanente fuga dos meus amigos, mas eles não me largam, percebi isso quando fiquei temporariamente sob as garras desse violento e cruel virus, ou seja, enquanto a dor e o medo assolavam-me por um lado, por outro lado vinha uma surpreendente avalanche de amigos que queriam saber como eu estava.

 

Com muitos deles eu já não falava fazia muito tempo, mas quando receberam a notícia da minha condição de positivo para o Covid-19, pegaram imediatamente no celular e do outro lado a voz comovida perguntava, como vai meu irmão? Outros apenas diziam, força brada, isso vai passar. E eu acrediatava nessas palavras de conforto, mesmo sentindo a dor na carne, o sufoco no peito, os arrepios em todo o esqueleto, as febres que me faziam transpirar suores frios toda a noite embrulhado nas mantas, as dores nas articulações. O desespero.

 

A minha casa transformou-se. O silêncio foi substituído por incessantes pedidos de lincença para entrar, de uma tal forma que a minha diarista jamais vira desde que está comigo ajudando-me em dias específicos. Ela percebeu que afinal há pessoas que me valorizam, como ela, embora eu ficasse com a sensação de que estava sendo visitado numa clausura de um condenado a morte, onde a comunicação é feita sem aproximação. Mas toda essa peregrinação animava meu espírito, e eu pedia-lhes para não voltarem mais enquanto não ultrapassasse esta linha vermelha. E na verdade capitulavam, como se estivesse a escorraça-los da minha casa.

 

As chamadas telefónicas não parávam. As mensagens entravam em catadupa no meu celular como remédio para a alma, e tudo isso ia ajudando-me na superação. A minha família ficou mais unida em redor de mim, e eu sentia-me embaraçado porque nunca fiz nada para retribuir esse amor, ou pelo menos para ser digno dele. Mas esse é o verdadeiro amor porque enquanto não me queixei, eles me amavam no silêncio, e agora que a espada parecia descer, o amor deles vibrou mais em defesa de mim.

 

A minha filha, a Ndola, deixou de trabalhar e veio acampar na minha casa, contra a minha vontade, pois eu não queria que corresse o risco de ser contaminada por mim, mas  ela ignorou todos os avisos. Protegeu-se no máximo, juntou-se à diarista e as duas lutaram a meu favor. Foi a Ndola que me levou ao hospital para o teste, partilhamos o mesmo carro, a mesma cabina, o mesmo medo, a mesma fé de que isto é um vendaval que vai passar. Ndola olhava para mim e no lugar de se comiserar, cantava e contava-me histórias de alegrar o coração. Ficamos juntos, distanciados, e ela sempre mascarada, a lavar as mãos sem parar, conzinhando e preparando a fruta imprescindível, e eu chorava escondido no quarto. De emoção por ver minha filha feita minha médica particular.

 

Graças a Deus tudo passou. Obrigado a todos, aos meus amigos, a minha família. Agora estou bem, pronto para o trabalho e para viver novamente, Na minha solidão.

É maré cheia e daqui deste aconradouro, o arquipélago de Mucucune que se estende do outro lado de lá, lembra-me o filme de Francis Coppola, Apocalipse Now. A diferença ´porém é gritante, entre a película que vi nos princípios da década de oitenta no Cinema Manuel Rodrigues em Inhambane, e a história que estou a viver neste lugar esplendoroso, mesmo assim vituperado pelo matadouro que nos impregna com o fedor da bosta. No filme o actor principal era Marlon Brando e era ficção, aqui o personagem de proa sou eu e tudo isto é real.

 

Estou à espera, com mais gente, do barco que nos vai levar a Guidzivane, uma das ilhotas do mítico Mucucune e que se localiza no extremo norte, escancarada para o oceano Índico. É a efectivação de um sonho antigo, uma oportunidade de viver esses ritos apregoados desde os tempos. Então, sinto uma grande incapacidade de suster a ansiedade que me devora.

 

Fui o primeiro a entrar na linda barcaça acaba de pintar, logo a seguir vinha uma rapariga a tocar música no seu celular e sentou-se ao meu lado. Esta foi a primeira contrariedade, pois, o que eu queria ouvir ao longo da viagem, era a melodia do vento moderado que sopra do sul, em consonância com o mar sendo amorosamente rasgado pela quilha. Queria contemplar aquela paisagem inteira em silêncio.

 

Partimos sem alarido, deixando as ondas que se iam esbatendo na margem e nas paredes do repugnante matadouro, e aqui dentro do barco com cerca de quinze passageiros,  o silêncio parece triunfar, mas é desmentido pelo som do celular que já está demais. Não consigo concentrar-me no detalhe da viagem e a miúda está animada ouvindo aquilo que até podia ser boa música para os ouvidos dela, mas que oiça isso sozinha porque nós outros queremos escutar a composição da natureza.

 

Eu já estava no limite da irritação diante desta violação ao meu sossego, era insuportável, e na falta de palavras suaves para não magoar a inoportuna  “DJ”, eu disse, moça, porque é que não usas os auriculares? Ela olhou para mim e ignorou-me completamente. E repeti, moça, porque é que não usas os auriculares? Desta vez a rapariga exasperou-me questionando-me, afinal qual é o seu problema?

 

Calei-me profundamente, suportando a faca enterrada no meu peito por uma miúda com problemas sérios de formação. Uma companheira de viagem que podia ter a idade da minha neta, e ela disse mais perante o meu silêncio de derrota, se o senhor não gosta de música a culpa não é minha.

quinta-feira, 28 janeiro 2021 08:08

Ao Armando Matsimbe pela nossa amizade inabalável

A fuga de Adriano Bomba, um dos melhores pilotos moçambicanos formados na então União Soviética na categoria de Mig-17, inspirou-me a escrever uma crónica nos princípios do ano 2000, publicada no jornal Notícias. Foi um texto contestado pelos pilotos que o leram, pois não correspondia à verdade, ou seja, a história que eu contava desmentia absolutamente os princípios da física, a não ser que o “caça”, segundo esses mesmos pilotos diziam, estivesse a ser conduzido por mim.  Adriano Bomba jamais cometeria aquela peripécia, não por incapacidade, mas porque a gravidade da terra não o permitiria.

 

Eu descrevia Bomba dirigindo a máquina de guerra a baixíssima altitude, num voo mais do que rasante, ainda por cima fazendo gincanas entre os imbondeiros que se estendem de Chicualacuala à fronteira com a África do Sul, numa acção que visava despistar os radares, mas o que eu dizia era ficção exagerada, nenhum caça-bombardeiro faz aquilo, mesmo voando nas mãos dos pilotos mais sagazes do planeta como Adriano Bomba, o  que se descrevia na minha prosa era uma paranóia.

 

Eu referia ainda que o homem  desbaratou temporariamente – no Aeroporto Internacional de Maputo - os controladores de tráfego que assistiam às manobras de um avião que acabava de sair dos trabalhos de manutenção, o qual  devia ser testado pelo aludido elegido por ser reconhecido como um “as”, e essa destreza era demonstrada num determinado momento dos exercícios, Bomba elevou em impressionantes acobracias o seu Mig-17, para logo baixar a níveis quase do chão, apontou com a fuzilagem a cabina dos controladores de tráfego que entraram em pânico, tendo caido todos de bruços, com medo, para logo a seguir o av ião passar de “barriga” ao lado da torre de forma espectacular.

 

Os pilotos que leram esta última passagem disseram que eu estava doente de doido, isso é impossível, não faz parte nem da formação de um doente mental. E como se essa loucura não bastasse, disse ainda que de entre os controladores de tráfego, estava Alberno Chipande na qualidade de Ministro da Defesa Nacional, e que ele também caíu como os restantes, e pior do que os profissionais da aviação civil ali presentes, Chipande desmaiou e molhou as calças de urina. Foi aí então que os meus críticos disseram em definitivo que eu estava a delirar.

 

Seja como for, Adriano Bomba fugiu naquele dia, naquela cirucunstância deixando os companheiros em desespero, de entre os quais o meu amigo Armando Matsimbe, de quem tenho muitas saudades, pelas histórias sem fim que contava em convívios sem tabus. Mas como ele próprio – o Armando - dizia, a vida é como um caça-bombardeiro em pleno combate, a qualquer momento pode ser atingido por um missil.

 

Que a tua alma descanse em paz, Mandito, meu irmão de sangue!

quinta-feira, 21 janeiro 2021 09:04

O dilema de Mariano Nhongo*

Está com medo como nunca. Ele já atingiu a última linha para o abismo onde lhe esperam as verrumas de aço, onde seu corpo será espetado como carne a ser servida aos convivas do inferno. Mariano Nhongo é um pêndulo sem confiança, como sempre foi depois da morte de Afonso Dlakama, nunca teve certeza de nada. Agora caminha completamente no escuro com o tacto a fugir-lhe, está atordoado. Se fosse um ndawu puro seria este o momento para optar pelo suicídio, mas não é ndawu, mesmo assim é a única alternativa que lhe sobra. Entre dar o derradeiro salto rumo ao vazio da noite onde reinam as hienas com as suas sinistras gargalhadas, e levantar os braços da rendição sem a certeza de que será recebido com amor, o general acha melhor entregar sua carne aos abutres.

 

Nos últimos dias anda em estado permanente de embriaguês mas sem perder a lucidez. Quanto mais ébrio, mais esclarecido. Perdeu o apetite e a vontade de continuar uma luta que lhe levou a verter sangue dos seus próprios irmãos. É esse sangue que agora jorra em catadupa sobre a sua cabeça, cobrindo-lhe os olhos que já não vêem nada. Não dorme, nem de dia nem de noite, o álcool e a cannabis que fuma sem parar, não produzem mais o efeito desejado, Nhongo pretendia com esses estimulantes ganhar coragem e manter o seu estatuto de general, mas tudo isso esfumou-se, ficou um esqueleto em fim de carreira.

 

Os subalternos deixaram de cumprir as ordens do ora temido homem tido como cicerone de Dlakama, aliás Nhongo esvaiu-se, não dá mais ordens, mesmo que as desse ninguém as cumpriria porque todos os seus sequazes andam bêbados também, como ele. Outros fugiram e entregaram-se, porém há muitos outros que manifestam no fundo essa vontade, mas têm medo de voltar, como o próprio comandante, que deixou de ir ao rio tomar banho, anda desmazelado.

 

Quando o general ainda acreditava na sua paranóia, ia ao rio livremente e os crodilos fugiam, assim como capitulavam os militares das FADM ao saber da presença desse tigre perigoso num determinado teatro das operações. Mariano Nhongo tinha nos amuletos dos curandeiros mais afoitos de Machanga, a sua fortaleza inabalável, chegou de facto a estremecer os fundamentos da Frelimo. Nhongo era a fúria da cordilheira de Gorongosa, mas hoje todo aquele baluarte está em derrocada, o homem do momento está a despedaçar-se. Em fiapos.

 

Em toda a sua vida da guerra mais cruel do século passado na África, Mariano Nhongo nunca tinha encarado uma hiena, animal abominável, porém muito feroz quando se junta aos outros bichos da mesma estirpe e partem em matilha para o ataque. Hoje são esses bichos desdenháveis que guarnecem a cubata sombria do general que não pára de beber e fumar cannabis em vão. As hienas riem-se de Nhongo e nas noites mordem-lhes as costelas nos pesadelos de não acabar.

 

O troar dos canhões que se ouvia ao longe, agora ribomba perto, anunciando a última hora de um relógio que funciona com sangue. Estes são os últimos dias, na verdade, de um grande lagarto que deixou de se mover ou que se move em direcção ao cadalfalso. Mariano Nhongo vive as últimas alucinações.

 

*Texto imaginário

quarta-feira, 13 janeiro 2021 08:27

A minha pequena península em derrocada

Recebi uma chamada telefónica de alguém que me acompanhava no facebook, pelos vistos de forma muito particular, ele dizia que já não me via naquela plataforma, o quê que se passa, ilustre? O interlocutor que me abordava nem sequer teve tempo de se identificar e eu não me importei, não lhe perguntei quem era, achei isso supérfluo. É uma figura que fala de forma afável, com o nível mais alto de educação, sentia-se até certo ponto alguma angústia na forma como articulava as palavras. Era voz de um homem a quem eu fazia falta, e isso comoveu-me. Parecia que ele tinha falta de oxigénio, e o oxigénio sou eu. Então é preciso encontrar a melhor resposta para não decepcionar o meu seguidor.

 

Mais do que tudo, esta ligação renova-me, significa que estou sendo valorizado por um desconhecido, e é embaraçoso quando somos colocados numa situação destas. Vacilei várias vezes até encontrar aquilo que achei ser a resposta mais adequada, embora ambígua. Disse-lhe mais ou menos assim, a vida é inesperada, meu caro!

 

Depois houve um silêncio tanto do lado de lá, como do lado de cá, parecia que tudo estava sintentizado nesta expressão, “a vida é inesperada, meu caro”! Sim, a vida é inesperada! Ele percebeu esta verdade de modo que não restou outra coisa que não fosse agradecer os momentos agradáveis que lhe proporcionei durante uma temporada, e eu nem sabia que estava alimentando com as minhas intervenções, o coração de um ser humano que agora enconsta-me à parede, não segurando uma espada, mas um pequeno vaso cheio de flores. Aliás, antes de desligar o celular, eu ainda disse mais, talvez um dia volte, quem sabe!

 

Agora preencho uma grande parte do meu tempo descendo à pequena península que fica aqui perto da minha casa, onde outrora era o paraíso da juventude. Fico neste lugar desordenadamente ocupado por ávidas construções, quase todas elas frágeis, durante horas e horas assistindo ao mar que vai devorando aos poucos a terra incapaz de resistir.  Sinto pena dos moradores que já perceberam tudo, ou seja, a destruição das suas casas é inevitável, isso vai acontecer mais dia, menos dia.

 

Chama-se Mabananeni este espaço que já foi um esplendor, presentemente cercado do lixo rejeitado pelo mar que canta a música do aplocalipse. Nas noites, em dias de marés enquinociais, as ondas, cansadas de se esbaterem nas margens, entram pelas habitações adentro molhando tudo e as próprias pessoas que serão fustigadas até ao interior do ser. Depois a maré vai vazar para esperar outros enquinócios que já se tornaram ferozmente cíclicas.

 

Já não tenho dúvida de que a minha pequena península um dia desaparerá, engolida pelo mar determinado, e eu acompanho esta dura realidade sem poder fazer nada. Resigno-me como estes poucos moradores trazidos pela desgraça. Assisto impotente, as ondas avançando de triunfo em triunfo, ao encontro da nossa derrota colectiva.

quinta-feira, 07 janeiro 2021 08:19

Sumbi Mahenhane

Tudo o que ela diz parece uma renovação, pela maneira como dá sentido às palavras. Vibra em todo o ser quando diz, por exemplo, que a linha férrea passava por aqui. Aqui perto da minha casa. É como se ela própria fosse o comboio à vapor puxando em tempos de história e cumplicidades e amizades desinteressadas, longas carruagens repletas de gente em feliz algazarra. Rebusca passados esquecidos e transforma-os em fonte de água nos dias de canícula. Desdenha as muletas e o andarilho, mesmo sabendo que aquelas pernas precisam de ajuda.

 

Sumbi Mahenhane é a lembrança das frenéticas execuções de zorre, em noites vertiginosas nos subúrbios da cidade de Inhambane. Era a raínha sobre quem tudo gravitava, incluindo o batuque tocado por Mafanele, o “King”. Sumbi puxava os instrumentistas para o ritmo do seu corpo, desenhado pela Mão do próprio Deus para enlouquecer. E quando ela não estivesse nesse dia, as estrelas do Céu recusavam-se a brilhar. A lua também.

 

Hoje ficaram as palavras que lhe ressurgem da boca e do espírito. São elas – as palavras – que dançam debaixo do rufar imaginário dos tambores que outrora eram os fundamentos da vida desta mulher. Só a dança lhe dá o sentido da existência. O sonho só pode prevalecer com o som do ritmo. Nada é mais importante, senão a dança. E o amor. É por isso que continua a dançar, agora com as palavras. Retumbantes.

 

O que mais impressiona em Sumbi Mahenhane é a inabalável vontade de viver. Ela fala com esperança, como se o corpo esperasse  nova oportunidade de pisar os palcos e balançar em  liberdade. Espanta a memória deste pássaro. Ela lembra-se de todas as noites em que a luz era o seu corpo. E na verdade, Sumbi era o encanto da própria vida. Ou seja, o óleo derramado em Arone, desde a ponta dos cabelos até à ponta dos pés, foi inoculado também sobre esta mulher que brilhava em todo a esfinge. E agora reluz  em toda a alma que ainda mora neste corpo em derrocada.

 

O que move Sumbi Mahenhane  não é o presente, mas o passado de glória. Passado do qual nunca recebeu medalhas. Nada! Ela nem sabe o que é isso. Bastam-lhe os ecos da alegria que dava ao povo. As galardões são as pessoas do vulgo, algumas das quais ainda demandam a sua casa para falar desse passado. Com a mesma verve com que o corpo se entregava à dança. É essa presença humana que a faz  acreditar no futuro.

 

Completou noventa anos no dia 15 de Junho passado. Festejou com a família e amigos, num ambiente em que não faltaram batucadas leves,  para celebrar o passado de alguém que continua a falar com alegria. Com esperança.

 

Parabéns, Sumbi Mahenhane!

segunda-feira, 28 dezembro 2020 09:46

Estou no zénite

O demonstrativo desse sentimento é a minha obsessão por lugares abertos com pouca gente, como aqui onde me encontro, na Praia da Barra, testemunhando a derrocada do próprio fascínio. Vejo o Índico avançando devagar, porém resoluto,  ao encontro das dunas ocupadas pelos homens, e parece já não haver nada a fazer perante a fúria do mar. Que vai destruir tudo isto.

 

Tenho o celular no dispositivo do silêncio, pois não quero ser interrompido nesta audição à música do oceano e dos pequenos montes de areia que vão sendo deluidos pelas ondas. Eu oiço esses montículos cantando dentro de mim a melodia da dor, composta pela ganância e estupidez. E nós mesmos não quisemos perceber os limites da nossa liberdade, indo até onde não deviamos, tocando em obras da natureza feitas apenas para a contemplação.

 

Eu também faço parte desta praia que vai sendo demolida pelas águas, pedaço a pedaço. Estou aqui há muitas horas e ainda não vi ninguém passando ou chegando, a não ser as aves marinhas voando rasante por sobre as ondas, outras passando perto de mim, saudando-me, ou simplesmente para admirarem alguém que ousa estar sozinho num sítio em decomposição. Sem medo de nada, nem da imensidão assustadora do mar determinado na devastação da terra.

 

Na verdade não tenho medo de estar aqui, e isso pode significar que estou no zénite, e a solidão, como se sabe, é o ponto mais alto da vida, e eu já estou lá, onde posso delirar livremente nas minhas alucinações provocadas pela incenssante imaginação. Aliás a minha vinda à Barra revela isso, mas no fundo é mentira, nunca estou sozinho. Tenho o mar como almofada, as dunas ruindo, as aves planando, e a presença magnética do silêncio que me faz viver como nunca.

 

Se há uma ave por estas bandas, arrebatada e desfrutando  deste encanto sem limites, eu sou! Não me importam os ponteiros do relógio, nem as chamadas dos amigos que ligam ao meu telefone activado para o silêncio, esses podem esperar, contrariamente a esta consonância entre mim, o Índico, as dunas, os ventos, e o próprio silêncio. Até porque cheguei a pensar que a praia estivesse vazia, ela está repleta desta poção mágica vertida por sobre a minha alma.

 

A praia da Barra dói-me na música que ela canta, composta no conservatório do fundo dos mares. Ninguém a quer escutar, pois cada vibração  é uma facada na esperança. A Barra pende num fio frágil que vai rebentar daqui a pouco, e  eu estou aqui assistindo a esse momento dramático, com o celular no silêncio. E como o sol já está a cair no horizonte, por hoje basta, vou-me embora, entristecido, desolado como todo este espaço esplendoroso. Se calhar volte outro dia, sem expectativa, quem sabe!

M´saho é essa grande festa dos chopes, organizada anualmente para esconjurar os espíritos que têm trazido ventos infaustos por aqui. O próprio mwenje, árvore de onde se vai extrair a madeira para produção da timbila, está sendo varrido por poeiras invisíveis que se instalaram em mãos humanas para destruir. De ano para ano a sensação que nos fica é de que o remoinho provocado pelo toque e dança e canto desta tribo do sul de Moçambique está a desvanecer. E para agravar o cenário sombrio, veio a COVID-19  impedir a realização – que teria sido em Agosto – do festival cujo palco entra em consonância com as Lagoas de Quissico.

 

Warethwa! (Cuidado!). Na verdade quando a xipalapala retumba, é preciso ter-se cuidado com o que vem das mãos e do corpo inteiro dos chopes. Da alma deles. Inabalável. Revolta. Insaciável. Quer dizer, Quissico - o vilarejo eleito - ressurge. Engrandece-se. Embevece. E é projectado para o mundo inteiro, de onde depois traz as pessoas do planeta para este lugar insignificante na sua geografia. Todos querem estar aqui para se embebedarem com a loucura da timbila. Delirarem com as diabruras esvoaçantes da mathchatchulani, que vai parecer uma gazela dançando livre nas savanas, nas manhãs, agradecendo à Deus pelo sol que raia com esplendor no crepúsculo..

 

Mas hoje em dia  eu não sei se o M´saho ainda tem verve. Não sei se esta festa continua a resguardar o unguento dos tempos para amassajar as almas sedentas da secular música vertiginosa  dos chopes. Não sei! Tenho as minhas dúvidas. Parece ser urgente e inadiável que se tenha em grande consideração o facto de estarmos perante um Património Cultural da  Humanidade. Não que não haja esse respeito, mas a sensação que tenho é de que está-se a fazer pouco, começando pelo palco que acolhe as orquestras.  Ou seja, para quem chega antes de começar o M´saho, e antes de chegarem as pessoas da assistência, regra geral o que se vê são pequenos sinais como dísticos  apelativos com pouca chama  em termos de imagem. E pior do que isso, olhando-se para o palco, a pergunta que vai surgir imediatamente  será: é aqui onde vamos assistir às loucuras dos chopes? Na verdade o palco instalado não é de forma alguma digno de receber uma manifestação de tão elevado porte cultural.

 

É aqui provavelmente onde começa, ou se agudiza a contrariedade.  Talvez a decepção.  Os executantes são acolhidos naquilo que tende mais para um alpendre carrancudo, do que propriamente para um palco. Quem construiu aquilo provavelmente não tem sensibilidade sobre o que é um festival desta dimensão, sobre a grandeza da timbila no mundo. Não só temos na obra os irritantes pilares múltiplos, como também o tecto atarracado, sufocando os artistas e aqueles que estão sentados nas bancadas.

 

Em conversa oportuna com Filimone Meigos (director do ISARC) e Rufas Maculuve, músico e professor de música na mesma instituição, eles também indignaram-se com o palco que deve ser repensado urgentemente para os próximos festivais. O lugar tem um tesouro invejável que são as Lagoas de Quissico, esplendorosas, algo que não pode passar despercebido durante o evento. As Lagoas de Quissico devem fazer parte do Festival. E fazer com que aquela paisagem seja pertença do M´saho, passa necessariamente por repensar o palco.

 

É imperioso e urgente levar as coisas mais a sério, porque aqueles que vão à Quissico pelas alturas do M´saho, querem ver a beleza em si estampada em todo o lado. Os estrangeiros em particular, vão para ali  porque já ouviram falar desta manifestação cultural e sabem que é Património Cultural da Humanidade. Sabem que a festa da timbila é elevada, então os organizadores precisam de corresponder à todas as expectativas, tornando o festival num importante eixo que deve passar também pela capacidade de fazer a comunicação e imagem. O Marketing. E espreitar aquilo que se faz noutros eventos pelo mundo fora, porque o M´saho tem dimesão mundial. E em tendo uma dimensão universal, é preciso fazer algo que justifique isso.

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