Há cinquenta anos – tinha vinte – que saíu daqui para nunca mais voltar. Os seus irmãos também, e tantos outros dessa geração, entraram num êxodo para terras longínquas, e lá constituíram famílias cujos filhos chegam a este lugar como estranhos. Não conhecem as raízes dos pais. Pior do que isso, desembarcam, em viagens de férias, e correm imediatamente para as casas de hopesdagem previamente reservadas. Nos “lodges”. Aliás o que lhes apela não é a história genealógica dos seus progenitores. São as praias. E a necessidade urgente do gozo da liberdade.
Todos lhe chamavam carinhosamente por Nhalégwè, nome bitonga dado às gaivotas, mas hoje poucos se vão lembrar deste homem, tirando os que com ele partiram de vez, e os poucos de nós que ficamos. De resto o tempo vai esbatendo as memórias.
O Café Lobito está abarrotado, e a única mesa que ainda pode acolher mais um, é a minha, onde estou sentado tomando chá de camomila, mesmo assim sentindo-me asfixiado numa cidade (Maputo) que já não tem poros. É por isso que escolhi estar perto da montra, de costas para a maioria, o que me permite vizualizar a intensa “Eduardo Mondlane”. Contemplo os carros que descem e outros que sobem, e as pessoas apressadas que se roçagam umas às outras. Pelo menos essa azáfama recorda-me que estou vivo.
Atrás de mim há um burburinho de gente que vem tomar o pequeno almoço rápido, ou um simples café, e ainda o tilintar das chávenas poisando constantemente nos piris. É o início de um dia de trabalho, e as tertúlias irão esperar para o final da tarde, onde, para além do café, pode vir uma caneca de cerveja. Mas eu estou livre, amanhã volto para Inhambane, minha eterna cidade, onde nunca vai faltar oxigénio para as minhas botijas espirituais. Onde não há este ram-ram todo que me enlouquece.
Olho para o relógio, são oito horas e trinta e cinco minutos, e logo a seguir, no meu horizonte, vejo um homem alto, magro, cheio de barba da cor de prata, cambando no passeio, numa passada desinteressada. Pelo andar deduzo que usa prótese na perna esquerda, e pode estar, por assim dizer, incapacitado para encetar uma corrida, a menos que a prótese que o sustenta seja de carbono, como as duas postiças de Oscar Pistorius.
Paguei a conta. Saí e segui na direcção do personagem que me fascina pela barba da cor de prata, e pelo estilo que parece de um bailarino. Ele dança na minha imaginação, uma dança desconhecida. Usa boina preta que cobre completamente a cabeça, camisa de ganga negligenciada, calças Gins, e nos pés calça botas a Beatles, sem conseguir, contudo, disfarçar o defeito de um pé que não dobra, o que reforça a minha suposição de que este indivíduo tem na verdade uma prótese na perna esquerda.
De repente o tempo mudou e começou a chover, o que nos obrigou a interromper a marcha para nos abrigarmos na varanda de um daqueles prédios perfilados na “Eduardo Mondlane”, entre a “Salvador Allende” e “Amilcar Cabral”. Estamos muito perto um do outro. Olhei bem para ele, agora com “lupa”, e senti um gelo na espinha dorsal. Saudei-lhe timidamente e perguntei, o senhor não é o Nhalégwè!?
Não podia estar equivocado. É ele! Porém, o que eu não esperava, e esperava também, é que o dito cujo me vergastasse, Nhalégwè é teu avô!
Deu-me costas e passou para outro extremo do nosso “esconderijo”, à espera, sem voltar a olhar para mim uma única vez, que a chuva, que cai em catadupa, cessace. Mas esta atitude é de muitos bitongas, que detestam ser reconhecidos como tal, sobretudo quando estão em Maputo.