Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

quarta-feira, 05 agosto 2020 07:03

Jimaraida

Fomos colegas de escola entre 1965 e 1974, altura em que, movido pelos ventos que sopravam do norte, com Samora Machel na batuta rugindo no centro dos palanques, abandonei o ensino. Queria fazer parte dos cachos de jovens que vinham das matas gritando, Independência ou morte! Venceremos! Eu era um fedelho com apenas 17 anitos, mas já lia romances da coleção “seis balas”, e assistia a filmes classificados para maiores de 18 anos, onde aprendi a ter os meus próprios ídolos como Clint Eastwood, Sidney Poitier, Marlon Brando, entre outros, então senti que essa leitura que ia fazendo de forma profusa, impulsionava-me agora a seguir novos caminhos com uma arma a tiracolo.

 

Estou na fase da puberdade, e a minha frente já ressurgem rios que devo atravessar, com todos os riscos de ficar entalado em mandímbulas dos lagartos aquáticos mais ferozes da terra, sem a possibilidade de ser salvo pelos hipotéticos hipopótamos, que andam por ali, a ilharga do perigo e da morte. Mas esse terrível cenário que se aflora nos meus pensamentos não me demove, nem o amor da Jimaraida, que pode ser puxada para a teia de outro sabujo como eu. Na verdade sou um sabujo, se não o fosse não abandonaria uma esmeralda. E essa esmeralda chama-se Jimaraida, nome corrompido de Esmeralda.

 

Despedi-me dela e ela perguntou-me, vais para onde? Na verdade eu não sabia para onde ia, nem quanto tempo ia ficar lá onde vou, pior do que isso, não sabia se havia de voltar. Porém o entusiasmo de outros companheiros que também se predispunham a avançar, era tão envolvente que se tornava impossível recusar o chamamento. Aliás trespassou-me a memória uma passagem bíblica que diz, muitos serão chamados e poucos escolhidos. Ora, eu podia ser um dos escolhidos.

 

Jimaraida fustigou-me com o olhar, era a única coisa que podia fazer porque eu já estava na rampa de lançamento com os motores lançados, deixando para trás uma donzela que já fazia parte de mim, não propriamente como minha namorada, mas uma amiga, uma confidente que vai merecer todo o meu respeito. Lembro-me ainda do silêncio fulminante do olhar de uma linda tigreza impotente, incapaz de me dissuadir, mesmo com as lágrimas escorrendo pelo rosto macio que eu beijava sempre como um furtivo.

 

Era um dia de chuva branda, e no derradeiro adeus Jimaraida recusou que eu a beijasse. Ainda tentei uma, duas, três vezes, mas ela esquivava, e logo percebi que não valia a pena. O beijo não se arranca a ferros, ele acontece em mútua cedência ao impulso que vem de dentro. Então ajeitei a pasta de costas, ao mesmo tempo que sentia duas forças antagónicas atuando sobre mim. Uma força puxava-me para o interior do autocarro que já tinha os motores ligados. Outra força, mais forte, puxava-me para trás onde estava Jimaraida. Chorando. Eu também chorei muito ao longo da viagem, pensando sem parar na Jimaraida. Derrotada por um incompetente. Sem dignididade de merecer o verdadeiro amor!

 

Passam pouco mais de quatro décadas desde que nos separamos. E hoje, já no fim da estrada, estamos novamente apaixonados!

terça-feira, 21 julho 2020 08:55

Rosa Maria

Não podíamos encontrar um lugar melhor que este, onde podessemos nos despir por inteiro e deixar que a lua fizesse as suas vontades sobre os nossos corpos, dando-nos a luz em plenitude.  Foi antes desta invansão sem sentido, em que cada um construiu o seu casebre sem se importar com a natureza, passando a produzir o lixo que o mar está constantemente a devolver aos donos, e a nós que não temos nada a ver com isto. Agora o nosso local de encontro de outrora, de mim e da Rosa Maria, foi tornado um triste conglomerado, onde as pessoas convivem com a miséria. Aquilo parece um aterro santirário.

 

Mas alí era onde os nossos corações batiam ao mesmo ritmo, deitados na areia branca, absolutamente nus, cada um sentido a respiração do outro, até a catarse impetuosa. Tumultuosa. Faziamos isso com o testemunho das marés enquinociais ou da maré vaza, e dos pássaros marinhos que também entravam em cio ao verem nossos corpos assim mesmo, sem nada! E Rosa Maria sorria, completamente satisfeita, entrando em consonância com os meus sentimentos e com o meu corpo, arrasado pelo prazer.

 

Éramos livres, fugidos da casa de nossos pais para aqui, onde não passa ninguém a esta hora da noite. Não se ouve nenhum som, a não ser a música de magwilili (aves marinhas cujos nomes não cnhecemos em português)  que se transforma em catalisador para o galope que nos levará as estrelas reflectidas neste mar que se esbate na areia onde estamos estirados. É uma dádiva estar aqui, ainda por cima com o meu corpo dentro do corpo da Rosa Maria. Parecendo um único corpo.

 

Ainda nem tinhamos atingido o auge da juventude, porém o nosso envolvimento estava no zénite. Começamos tudo pelo cume, com rotações de alta voltagem, e nessas condições só tinhamos duas hopóteses, ou mantermo-nos alí por não haver outra montanha para subir, o caírmos.  E o fogo da Rosa Maria, no lugar de me tornar aceso também, consumia-me como as formigas fêmeas  que consomem o macho na cópula, até a morte cheia de prazer intenso.

 

Agora sou a guitarra sem cordas, que apenas se lembra de que alguma vez alimentou as festas sem fim da Rosa Maria, mulher que continua aqui ao meu lado, mas sem verve! Eu também estou ao lado dela....  sem verve!

sexta-feira, 10 julho 2020 07:29

Maurício Madebe: o búfalo está exausto*

Conheci-o em Boane nos princípios de 1975, vindo das matas após a assinatura dos Acordos de Lusaka. Era jovem, provavelmente na casa dos trinta, e uma das características que lhe notei logo a partida é que ele era frio. Estava talhado para as batalhas mais ferozes, por isso tinha dificuldades em separar as matas da guerra que ajudou a vencer, e os treinos militares para mancebos que vinham da cidade. Foi-lhe confiado o 1º batalhão de instruendos, e em pouco tempo os jovens já falavam de Madebe, um homem temido não só pela rigorosidade de comando, mas sobretudo porque era uma pessoa inesperada. De certa forma rude.

 

Lembro-me que nos treinos de preparação político-militar, Maurício Madebe usava balas reais para a fase de progressão sobre o fogo do inimigo. Disparava rasante e gritava, avança! E os instruendos avançavam, ou vergados com armas sem munições, ou rastejavam como guerrilheiros. E Madebe divertia-se com a saga, libertando freneticamente  a música dos projécteis. Ele era o instrutor mais obstinado, e por conseguinte, formou o melhor batalhão do centro que tinha na cúpula da chefia uma dupla de orcas constituída por Dinis Moyane e Manuel Mandjichi.

 

Embora eu não pretencesse ao 1º Batalhão, era próximo de Madebe. Havia entre nós uma espécie de empatia. Aos fins-de-semana saía comigo e andávamos por aí num Land-Rover conduzido por um motorista que se tornou cúmplice de nós. Mas há uma coisa que jamais me sai da memória, Maurío Madebe nunca aceitava que eu lhe apertasse a mão. Não apertava a mão de ninguém, mesmo depois dos copos. Fumava cigarros da marca “Havana”, e como ele dizia, era em homenagem a Cuba e a Fidel Castro.

 

Na semana passada fui ao bairro militar para uma visita de surpresa. A primeira sensasação que tive ao penetrar no dito reduto dos macondes, é de que havia ali um rastilho aceso, e o elemento crucial da dinamite será Maurício Madebe, um búfalo que o ex-presidente Armando Guebuza quis ferir, sem contudo o fazer porque o próprio Madebe avisou que se o fizesse, as consquências seriam por demais fatídicas. E Guebuza acatou o aviso. Temeroso.

 

Não há guarda na casa de Madebe, nem cão, o que significa que o cão pode ser ele. Um cão que nem é cão, é um búfalo. Transpus livremente o portão do muro de vedação, na esperança de ouvir algum movimento dentro de casa. Na verdade ouvia-se música e reconheci o Casimiro Nyusi cantando “Ximbombo” a um volume moderado. Toquei a campaínha a primeira vez.....nada! A segunda.... também nada! E a terceira foi quando uma voz aparentemente resignada responde, entra!. Era o próprio Madebe, reconheci-o pelo timbre da voz,  e pelo sotaque ximanconde.

 

Antes dse nos saudarmos perguntou-me se “vai um café”. E eu como não desdenho esse estimulante, aceitei de pronto. Perguntou-me ainda se “vai com um cheirinho”, e o “cheirinho” havia de me ajudar a espantar o frio. Caí na fita.

 

Maurício Madebe treme nas bases. Dentro da sua casa não se ouve nenhum outro som que não seja o “Ximbombo”. As janelas estão todas fechadas e cheira a bafio. Mas o que ainda dá graça a vida do comandante de Boane, é esta mulher que me serve o café. Uma senhora de beleza ilimitada e o meu anfitrião disse-me que era sangue do sangue dele. Nem parece! Madebe ainda vive a guerra, tem uma pistola negligenciada no sofá, e eu perguntei, é para quê isso, comandante? E ele não respondeu.

 

No fundo a minha pergunta pode fazer sentido. O homem parece movido mais pelas lembranças do que pelo futuro. E a uma pessoa nestas condições, o melhor é não fazer  perguntas. De resto ele parece frustrado.

  • * Texto imaginário com alguma realidade
quinta-feira, 02 julho 2020 07:43

Carta ao antigo combatente

Eu nunca quis escrever-te esta carta. Fui relutante todo este tempo, com receio de avivar as feridas abertas em todo o meu corpo. Acordava nas manhãs decidido a sentar-me diante do computador e dizer-te tudo o que sinto na minha dor, e não conseguia alinhar as palavras que saíam das teclas silenciosas. Vacilava perante o teu rosto que ressurgia, reflectindo-se no ecrã como lâminas a percorrerem-me toda a anatomia, e eu tremia de medo e de sofrimento. Parecia que tu próprio tinhas medo de qualquer coisa, e isso assustava-me. Os teus olhos sangravam no rosto aterrorizado, aterrorizando a mim também.

 

Mas já não podia suportar o padecimento de incubar as palavras que iam explondindo uma por uma para dentro de mim, por isso hoje decidi escrever-te, e não me importo com as consequências, nem que venham a ter o efeito de boomerang. O que dói é perceber que toda a aurora que andaste a alinhavar nas noites ecuras sem fim, ficou contigo, e com os filhos que saíram do ventre amaldiçoado da tua mulher. Isso é que me castiga. Mentiste para nós, e para ti próprio, dizendo que lutavas pela libertação do povo inteiro, porém o que vejo é a bazófia dos teus dias abastados.

 

Passei toda a noite em atalaia, arrotando o sangue das sílabas que desejavam ardentemente a liberdade. Fechava os olhos e via crianças com máscaras de papelão apanhado na gandaia, como se fossem foliões,  pedindo-te com os olhares despedaçados, as migalhas de pão que sobra todos os dias dos teus banquetes. Elas têm os pés descalços, enrijecidos pelas pedras do caminho que lhes leva a opacidade. Estão nuas, ou na melhor das hipóteses, usam saiotas de farrapos, e as barrigas avantajadas murmuram de fome.

 

É este o quadro de dor que nos ofereces no teu cinismo, desmentindo Samora no auge do poder,  as crianças são as flores que nunca murcham! Claro que isso não é verdade, estas crianças penduradas no caudaloso estendal da miséria, já nasceram murchas, sem o leite que não vai sair dos seios esfomeados das mães sem perspectiva. Elas foram vomitadas para a desgraça, e tu, meu caro antigo  combatente, habitas em mansões erguidas por cima de todas essas chagas. Insensível ao clamor slencioso de quem não tem nada.

 

Pois é, eu já queria dizer-te estas palavras que me engasgavam, mesmo assim não me sinto livre. Sei que és indiferente a todas as poeiras que levanto na minha revolta. O pior é que ainda tens a coragem de te dirigires às crianças famintas, com essa garrafa de água mineral que trazes nas mãos, e bebes à frente delas sem remorsos, enquanto o espampapanante carro aguarda-te para te devolver ao palacete, onde vais megulhar nas poltronas adquiridas a custa da miséria dos petizes.

 

Era só isto que eu queria dizer-te, meu caro antigo combatente. O resto está nos olhos dos meninos, e no vácuo das suas vidas. Um forte abraço!

sexta-feira, 26 junho 2020 07:15

Maputo não é Hamburgo

Tenho um amigo que me decepcionou redondamente, um homem que o tomava até certo ponto como meu paradigma, pelas intervenções lúcidas que sempre fez e a  forma serena com que abordava os assuntos do quotidiano e do futuro, embora na verdade o futuro não lhe peretencesse. Ele sempre abriu margens nas suas abordagens, para que o tempo se encarregasse de esclarecer as dúvidas, havendo. Nunca assumiu a verdade como absoluta, mas socorria-se dos factos para intervir, no sentido de evitar que amanhã houvesse desmentidos nos jornais.

 

Hoje porém ele entristeceu-me ao dizer que todo aquele trabalho há muito esperado e dirigido pela sensatez e pela honestidade, que o ilustre Eneas Comiche está a realizar em Maputo, não vai dar  em nada. Olhei para o meu amigo, uma figura ponderada, e senti que alguma coisa podia estar a mudar nele, ou eu é que não estava a compreendè-lo. Perguntei se era aquilo mesmo que pretendia dizer-me ou era uma mensagem velada, e ele respondeu-me que Maputo não é Hamburgo ( cidade alemã classificada em primeiro lugar entre as dez mais limpas do Mundo). Ou seja, o que o meu amigo queria fazer-me entender é que os africanos são incapazes, por isso Eneas Comiche não chegaria longe.

 

Fiquei revoltado perante tamanho vilipêndio moral aos meus sentimentos, e aos sentimentos dos maputenses de boa fé,  dos moçambicanos num todo. Era um insulto à grandeza de um homem que põe Maputo a sonhar como nunca. Um desprezo injusto à uma pessoa que nos recorda que em Moçambique existe boa gente interessada em puxar a carroça para frente, e Eneas Comiche, que desafia de dia e de noite um ecossistema por demais degradado, faz parte dessa boa gente. O ilustre edil de Maputo está metido num desfiladeiro íngreme, como se ele próprio fosse as bombas usadas no Afeganistão, que quanto mais duras forem as rochas que fazem as grutas onde se escondem os jahidistas, mais raiva elas ganham e furam aquelas fortalezas naturais.

 

Maputo é uma cidade com chagas abertas, feridas gangrenadas, e já precisava de um cirurgião competente e corajoso, capaz de arrancar com as mãos o coração de pedra que já não batia, e colocar outro, de carne, para os batimentos voltarem a dar vida a “Cidade das Acácias”, e esse cirurgião é Comiche, ao qual o meu amigo lança farpas, no lugar de harpas, “isto não é Hamburgo”!

 

Infelizmente os tempos que passaram, educaram muita gente a pensar que toda aquela desordem e vergonha e repugnância fossem o nosso destino. Uma situação do tipo “não temos onde ir”, mas Eneas Comiche, um cidadão moderno, competente, responsável, revoluionário, veio a terreiro dizer que a nossa vida merece dignidade, e não pode contar com gente resignada. Pessoas que não acreditam em nada, nem neles próprios.

 

Comiche faz-me lembrar Edward  Sechwarzenegger, governador de Califórnia entre 2003 e 2011. O fisioculturista americano desafiou o território árido e o mais seco dos Estdos Unidos, e não queria terminar o mandato sem dar água canalizada às populações locais. E Eneas Comiche quer deixar uma cidade “txunada” quando sair, ignorando completamente os que dizem, como o meu amigo, que “isto não é Hamburgo”. Parabéns, ilustre!

quinta-feira, 18 junho 2020 09:35

General Nhongo em Maputo*

AlexandreChauqueNova

A chuva intermitente que caía era afinal o prenúncio. Também houve graniso do qual ninguém se apercebeu, a não ser o próprio Mariano Nhongo, hospedado na suíte presidencial  do Hotel Polana,  a partir de onde ele observa a exuberância do Índico, sem que o luxo, mesmo assim, lhe retire o foco da sua luta. Chegou na noite de terça-feira, transportado num hélio das Forças Armadas Zimbabweanas, que aterrou na base aérea instalada do outro lado do Aeroporto de Mavalane. Foi tudo feito num secretismo absoluto que até a segurança destacada para o receber, não sabia de quem se tratava.

 

Chovia uma chuva leve, e o silêncio na pista e em todo o perímetro das instalações, era por demais sepulcural que entre os anfitriões que incluiam oficiais de alta patente moçambicana, perguntavam-se entre eles afinal quem é esse fulano. Nhongo saíu do pássaro metálico vestindo uma gabardina preta e um gorro que lhe cobria completamente a cabeça e uma boa parte do rosto, tornando-o irreconhecível. Um dos capangas que o aguardavam quis protegê-lo com o guarda-chuvas, mas o general recusou. Caminhou resoluto para o Range Rover cinzento luzidio que o esperava e sentou-se no banco da trás. O motorista tremeu quando viu um homem encapuzado a entrar apressadamente para a vitura. Parecia um algoz.

 

Eu já estava em Maputo há uma semana, discretamente, sem o conhecimento do editor, alojado no quarto contíguo ao que acolheria um homem cujas acções, façanhas para outros,  podem ter já superado a sua condição de pessoa vulgar. Nunca o vi pessoalmente, mas ele é que me escolhe para a materialização da entrevista, e não poderia questionar sobre esta preferência. Lembrei-me de um dia que Deus disse a Moisés, vai ao Egipto libertar os filhos de Isarael! E Moisés perguntou, porquê que tenho que ser eu? E Deus trovejou como o Leão dos Céus, porquê que não tens que ser tu?

 

Estou deitado com o televisor desligado num quarto sumptuoso que nunca antes imaginara. Mas também já superei há muito os materiais da vida. Desactivei os dados do meu celular para que o silêncio tome livremente conta do meu espaço. Aliás, do espaço onde me colocaram. Quero ouvir os movimentos da chegada do General de Gorongosa, já que ele me avisara, através do telefone ligado directamente ao satélite, que a entrevista aconteceria ainda naquela noite.

 

Alguém bateu à porta dos meus aposentos, sem que antes tivesse havido qualquer sinal indicando a chegada de uma figura temida. Era estranho porque devia receber antecipadamente uma informação da recepção. Mas, nada! Perguntei quem era, e do outro lado respondeu-me o mutismo. Saltei da cama apressadamente, já estava vestido, calçado  e tudo, como se estivesse no teatro das operações, sob comando de Nhongo. Peguei no gravador e no bloco de notas e disse, Deus, seja feita a Tua vontade.

 

Abri a porta e dei-me com dois homens dessimuladamente armados, do tipo furtivos. Balancei de medo na espinha, mas logo recompus-me. Olharam para mim de cima a baixo sem falarem, e logo a seguir indicaram-me a entrada ao lado onde supus estar o general, o próprio Nhongo. Entrei de mansinho e vi um personagem sentado tranquilamente na plotrona, de pernas cruzadas e as duas mãos por sobre o joelho direito. À mesinha de centro uma garrafa indisfarçada, dois copos que foram abastecidos na minha presença, ao mesmo tempo que o meu anfitrião indicava-me o lugar que me colocaria frente a frente com ele.

 

A suite, sob luz ténue, ficou impregnada com o aroma agradável de algo que reconheci ser aguardente de massala. Mariano Nhongo já não se cobria com o sinistro gorro, porém continuava com a gabardina. Bebeu num trago o conteúdo do copo sem cerimónias, e o que me disse logo a seguir foi de tal maneira inesperado que o seu sentido  ganhou a dimensão da espada. Falava como se tudo estivesse sintetizado naquelas palavras. Ele disse assim, enquanto a preocupação forem os ganhos individuais ou de grupos, então jamais vai amanhecer em Moçambique.

 

E eu não sei se isso não é hipocrisia!

 

* Texo imaginário

quarta-feira, 10 junho 2020 10:10

A morte de Nhathswa

Nunca antes veio a minha casa pedir sal, ainda por cima a uma hora destas. Na tradição respeitada desde os tempos dos meus ascentrais, e seguida por nós também, não se pede sal ao vizinho quando a noite se materializa. Mas Nhathswa está aqui a pedir esse tempero imprescindível, desculpa vizinho, só agora é que me apercebi que o sal acabou, já com a panela ao lume, e não tenho outra alternativa porque as lojas estão fechadas.

 

Ora, se as lojas estão encerradas, e esta mulher já tem a panela ao lume, não tenho outra escolha que não seja desobedecer aos ditâmes dos antepassados, mesmo sabendo dos riscos que isso representa. Não sei o que poderá acontecer depois, mas também não posso recusar sal a alguém tão respeitado como Nhathswa. Ela sabe que a atitude que toma, de vir a minha casa numa hora proibida para as suas intenções, é desaconselhada. Eu também sei. Nenhum de nós sabe, porém, sobre quem  vai cair o raio depois disto. Mas estamos cientes de que isso pode acontecer.

 

Eu disse para que ela fosse pessoalmente a cozinha tirar a quantidade desejada. No fundo invadia-me algum remorso, ao mesmo tempo sentia-me incapaz de dizer “não”. Também tinha a sensação de que a vinda de Nhathswa a minha casa transmitia outros sinais que eu não podia perceber. Aliás, já houve tempos em que, sempre que nos encontrássemos por aí, desfiavamos conversa entusiasmada. Porém, ultimamente ela distancia-se. A nossa saudação é fria, sobretudo do lado dela, e eu nunca me preocupei com isso porque sempre acreditei que a vida é feita de ciclos. E ela hoje vem pedir-me sal.

 

Enquanto Nhathswa ia a cozinha, eu mantive-me na varanda, de pé, pensando, sem olhar para ela, que isto é sinal de mau agoiro. Já ouvi histórias trágicas  sobre o sal que não se pode pedir a noite, mesmo assim eu ainda prevarico conscientemente. Se calhar pela magnitude da personalidade desta mulher perante a qual ninguém resistiria. Qualquer ordem que ela emanasse, seria cegamente cumprida. Se calhar seja por isso que estou a cometer um erro grave que pode resultar em danos irreversíveis. Estou hipnotizado!

 

Nhathswa sai com o sal na mão direita feita concha. Passa por mim e não diz nada, como se estivesse a sair da cubata de um curandeiro onde não se despede, e eu não sou curandeiro. Nem sequer fechou o portão do quintal, que ela própria abriu. E tudo isso pode estar a transmitir-me uma mensagem que eu não consigo decifrar. Seja o que for, acho que o leite está derramado.

 

Durante a noite, dormindo,  parecia que eu estava no paraíso. Via Nhathswa correndo na orla marítima, vestida de branco numa praia desconhecida, cheia da luz do luar. Ela acenava-me, e a mão dela brilhava. Parecia um anjo que ia para casa, pisando levemente a areia branca, e eu sentado também na areia ouvindo a música que as ondas tocavam para acompanhar Nhatswa, que agora caminha por sobre as ondas até desaparecer, como Jesus por entre as nuvens, depois de se despedir dos apóstolos em Galileia.

 

Quando despertei já era madrugada. Ouvi choros de tristeza e de lamentação na casa de Nhathswa, e pensei: já estava escrito! 

quinta-feira, 04 junho 2020 06:57

Mwali

Está no fim da estrada e mantém a dignidade dos tempos. Não verga. Quanto mais perto da meta, mais pujança na sua personalidade. É como se estivesse num grande estádio a abarrotar, sentido as palmas que a catapultam. Sabe que já não terá mais forças do que estas que estão no limite, por isso usa-as até ao limite. Não recorre aos anabolizantes, os anabolizantes é a música do passado, que repete sem se cansar no seu inacreditável gira-discos, daí a frescura transbordante da Mwali, recolhida numa casa transformada em Meca, onde os amigos vão regularmente para ouvir as histórias de uma era pura, que parece voltar em cada palavra.

 

Vive na orla do mar, de onde continua a usufruir, como sempre desde a nascença, da pompa de uma paisagem fascinante que se estende a seus pés. Dali ela acompanha o movimento dos pescadores, que muitas vezes voltam com os cestos vazios, depois de longas horas puxando as redes de emalhar ou de arrasto, ou ainda das mulheres, que ao cair da noite descem com as pequenas redes de pesca de camarão, e regressam também derrotadas, sem nada. Mas há muitos momentos também, que Mwali testemunha o festejar da faina farta.

 

Ela é a nossa secerdotisa, colocada no lugar de sumo pontífice, posto conquistado pelas “homilias” inacabáveis que inocula para que, segundo ela própria,  pelo menos nos recordemos da existência do Criador do Céu e da Terra. E dos Homens. Mas Mwali por vezes exagera, se calhar levada pelas emoções de um ambiente borbulhante, que nos espicaça a querer voltar sem cessar, num ciclo vicioso, para aquele lugar que nos entusiasma. Citou, numa das recentes ocasiões, sem saber que provocaria um efervescente debate, uma vez que está habituada a ser ouvida sem grandes questionamentos quando evoca a bíblia, uma passagem que nos pareceu ser um contra-senso.

 

Normalmente nunca temos o livro Sagrado por sobre a mesa, para aferir o que vamos ouvindo da Mwali. O que ela diz é por demais caudaloso, tão profuso que nos limitamos a abanar a cabeça em sinal de consentimento, como vassalos, virando goela à baixo, de vez em quando, uma cachaçazita sempre disponível, para aclarar a mente. Mas nesse dia as coisas mudaram de rumo. Segundo Mwali, no Salmos, cap. 21, David diz o seguinte: “o que me magoa, é que o Altíssimo já não é o mesmo”. Perante esta afirmação, um dos companheiros virou-se para Mwali e disse, isso não é verdade! Não sou leitor da bíblia mas Deus sempre foi o mesmo desde que existe, quem não é o mesmo somos nós. Deus não é metamorfo.

 

No lugar de o ambiente gelar, uma vez que a “raínha” era posta em causa pela primeira vez, a “afronta” tornou-se  motivo para voltarmos a encher os copos e desligar o gira-discos que tocava, em disco de vinil, a música de Percy Sledge, When a man loves a woman. Pedimos a bíblia, e Mwali disse que não tinha bíblia, porém - como nos afiançava -  o que ela dizia era a pura verdade, e que se quisessemos nos certificar disso, então podemos ir consultar nas nossas casas. E é o que vamos fazer, enquanto aguardamos o próximo enconto que já está a criar emormes expectativas.

quinta-feira, 28 maio 2020 05:57

Patrão, compra garoupa!

Ir ao mercado da Mafurreira  nas manhãs fazer compras, já se tornou um vício, e isso dá-me um enorme prazer. É um exercício quase de instinto, que me restabelece as emoções, e ajuda-me a não sentir o escorrer do tempo, que por vezes demora passar sobretudo quando estou sozinho, sem que esteja a escrever, ou a dedilhar a guitarra emprestada. É também uma dádiva, no sentido de que regresso sempre à casa com a alma cheia, pelas conversas esporádicas que vou ter aqui e ali, com as vendedeiras que, ao verem-me, vão dizer logo, sorrindo, pari yangu! (amigo!). E eu exulto pela saudação tão sincera. Simples. Profunda.

 

Ainda ontem desci àquele lugar que também é meu. Ou seja, eu sou uma das pétalas desta flor cheia de feridas que podem estar a gangrenar. Flor é todo o mercado, que mesmo sendo pequeno na sua geografia, é o maior da cidade de Inhambane. Pétalas são estas mulheres cujo sonho metamorfoseou-se para dar lugar ao conformismo e a incerteza. Elas já não esperam, são aquelas por quem as crianças esperam em casa com a barriga vazia. Uma barriga que pode não ser saciada porque ninguém comprou nada. O marisco apodreceu.

 

Mas todo este cenário parece sombrio, pois se não fosse, então teriamos ali uma tagarelice de não acabar, e isso não está a acontecer. Há um silêncio dorido, cheio de desesperança, porque ninguém compra nada. Elas já perceberam que não há dinheiro. Ninguém o tem. Porém, não saiem das bancas, onde ruminam todos os dias os seus desesperos. Perderam a vontade de apelar aos potenciais clientes – que vão passando - para comprar qualquer coisa. Ninguém as liga.  E não encontram outra saída que não seja a de aceitar a humilhação de estar ali a boair.

 

Ontem eu queria comprar alface para acompanhar o meu  chá. Contei rigorosamente as moedas, e o valor servia “in extremis” para as minhas necessidades limitadas, que se resumem na alface, tomate, cebola e pão. As outras propostas estavam longe de mim, não que eu não goste de um bom camarão, de uma boa lula e das garoupinhas brilhantes que me enchem os olhos nesta banca à minha frente.  Mas não há nada a fazer,  com o bolso descompensado, senão apenas sonhar com as referidas garoupinhas grelhadas, acompanhadas com batata cozida, pimento assado na brasa e etc.. Porém, todo este meu derretimento não passa da imaginação. Aliás, a aquisição daquele tipo de peixe, é uma empreitada para grandes engenheiros, e eu sou apenas um mirone, que vai enchendo o estômago de baba.

 

Ela olha para mim, sem parar de sacudir as moscas que vão sobreavoando o peixe acabadinho de sair do mar e diz, patrão, compra garoupa, é fresca! Na verdade é uma tentação irresistível, todavia distante para as minhas capacidades. Aliás, foi por conhecer as fraquezas da minha tesouraia, que nem sequer perguntei o preço. Limitei-me a imitar o macaco que, de tanto insistir em saltar par arrancar as uvas, sem nada conseguir, acabou dizendo que não as arrancou porque estavam podres, e eu disse a senhora que não como garoupa.

quarta-feira, 20 maio 2020 09:07

Abaixo o colonialismo!

Chama-se Lundunu, um maconde aportado em Inhambane nos finais de 1974, logo depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, aos quais seguiu-se a independência de Moçambique no dia 25 de Junho de 1975. Já não ostenta a marca da tatuagem incrustada no rosto, desenhada a frio com recurso a incisão por objectos cortantes, e se calhar é a idade que foi apagando esses sinais da crueldade. Mesmo assim, ainda há resquícios numa face violada para sempre, porque a navalha penetrou de tal maneira que o seu rasto será indelével.

 

Nunca saíu daqui, desde que chegou com uma AKM à tiracolo, gritando, abaixo o colonialismo! Nesse tempo, Lundunu era um homem engajado, pronto a dar tudo, incluindo a juventude que ainda lhe sobrava, depois da longa noite nas matas. Tinha imensas dificuldades de articular a língua portuguesa, mas isso não era importante. O que contava era a euforia, o fascínio de estar na cidade sob o brilho do néon, contrariamente às florestas, onde a luz era emanada pelos pirilampos, e pelo encandescender das balas.

 

Mora na periferia da urbe, numa casa que não mereceria a um combatente da libertação de um povo que não é feliz. Mesmo que eu tivesse uma mansão, diz Lundunu, não sentiria prazer, pois, o mote da minha luta é a felicidade de todos. Será um absurdo e inútil todo o sacrifício que fizemos, se no lugar de provermos pão à mesa de todos, buscámo-lo para o nosso egoismo e ganância. Então não valeu nada a nossa epopeia!

 

Lundunu é um homem frustrado, no sentido de que agora percebe que tudo o que fizeram, e tudo o que disseram nos comícios, diluiu-se. Ele próprio considera-se escória, levado num camião basculante e entregue aos catadores de lixo, depois de ter feito parte da tripulação, durante anos e anos. Não tem nada que lhe dê o orgulho de ter erguido a plataforma da liberdade, juntamente com os mesmos camaradas que hoje lhe olham com desdém, a não ser o manancial de histórias de nunca acabar, que conta com rigozijo nas bebedeiras sem fim.

 

No fundo, Lundunu já não espera nada. É uma pessoa resignada, que se entristece pela mentira dos seus camaradas, pela falsidade de dizerem uma coisa à luz do dia, e fazerem outra coisa no escuro. Nós não lutamos para isto, di-lo desesperado enquanto puxa sofregadamente o charuto de tabaco puro trazido de Murrombene. O que me dói ainda mais é que somos indignos dos nossos filhos, não são eles que aprendem a roubar, somos nós que os ensinamos. Somos nós que os mostramos o caminho da desonestidade. Abaixo o colonialismo!

 

O colonialismo a que Lundunu se refere não é o ora português. Esse já foi desmantelado. Lundunu chora lágrimas profundas ao dizer que estamos a nos colonizar entre nós, sem vergonha de nos apresentarmos perante os que se riem da nossa incapacidade de construir um Moçambique próspero para todos. Lundunu diz mais, estamos a nos ridicularizar aos olhos do Mundo. E enquanto os jovens, que já estão embebedados pela necessidade desenfreda de amealhar dinheiro sujo, não mudarem o seu próprio rumo, então ninguém sabe para onde vamos.

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