O Ministério da Saúde (MISAU) contratou, em Agosto último, através de ajuste directo, a empresa FASAF Serviços e Logística, Lda., para realizar serviços de desembaraço aduaneiro de bens do MISAU. Pelo contrato, a FASAF facturou 120 milhões de meticais. Trata-se de uma empresa detida maioritariamente por Fernando Francisco Faustino, Secretário-Geral da Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional (ACCLN), o braço mais influente do partido Frelimo, membro da Comissão Política da Frelimo e esposo da actual ministra da Educação e Desenvolvimento Humano, Carmelita Namashulua. É mais uma das evidências do “tenderpreneurship” (empreendedorismo por concurso), em que empresas ligadas a pessoas próximas do regime são “campeãs” do procurement público, ao açambarcarem lucrativos contratos de fornecimento de bens e serviços a entidades do Estado.
Milton Machel
De acordo com dados da Unidade Funcional de Supervisão das Aquisições (UFSA), na Direcção Nacional do Património do Estado, do Ministério da Economia e Finanças (MEF), através do concurso Nº CR58A000141/AD/0008/OE-BM/DA/MISAU/2024, a UGEA (Unidade de Gestão de Aquisições) do Ministério da Saúde contratou o fornecedor FASAF Serviços Logística, Lda., registado no cadastro único com o número 400774323, para realizar serviços de desembaraço aduaneiro de bens do MISAU.
Pelo valor total de 120,000,000.00 MZN (cento e vinte milhões de meticais), a adjudicação foi realizada a 8 de Agosto de 2024, por ajuste directo. A UGEA do MISAU justificou o uso desta modalidade de contratação na manutenção da uniformidade de padrão de bens ou serviços contratados anteriormente. O que sugere que a FASAF Serviços Logística, Lda., é a fornecedora habitual destes serviços ao MISAU.
Fernando Faustino, o “king maker”
A FASAF Serviços & Logística, Lda., foi registada a 7 de Março de 2017 na Conservatória do Registo das Entidades Legais, sob o Número Único de Entidade Legal (NUEL) 100829045. A empresa tem como sócios Fernando Francisco Faustino, com 65% do capital social subscrito (100 mil meticais) e realizado em dinheiro à altura do registo; e Adérito dos Santos Abel Macie, com uma quota de trinta e cinco por cento.
Se Adérito Macie é um anónimo empresário com vários outros interesses e associados, Fernando Faustino é o insuspeito Secretário-geral da Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional (ACLLN) e membro da Comissão Política da Frelimo. Fernando Faustino vai no seu terceiro mandato quinquenal como dirigente máximo do braço mais influente do partido no poder. Foi eleito pela primeira vez em 2012 e, em 2022, foi reconduzido como candidato único para dirigir o organismo até 2027.
O antigo combatente é marido de Carmelita Namashulua, de etnia maconde, filha de veteranos da Luta de Libertação Nacional e actual ministra da Educação e Desenvolvimento Humano.
Fernando Faustino foi um dos “kings makers” da eleição em 2014 e reeleição em 2019 de Filipe Nyusi para candidato da Frelimo à Presidência da República. Quando, entre Dezembro de 2013 e Março de 2014, o actual Chefe do Estado e presidente da Frelimo era apenas um dos três pré-candidatos a candidato presidencial do partido, o secretário-geral da ACLLN foi um dos primeiros a endossar apoio a Filipe Nyusi.
Após o “scouting” favorável junto de Fernando Faustino, Filipe Nyusi cresceu no conceito de Armando Guebuza para o “casting” de candidatos à sua sucessão. Nyusi superaria putativos sucessores de Guebuza e presidenciáveis nas narrativas da mídia na altura...redundando no que hoje é tido como “o maior erro de casting” da liderança do partido cujos dias de hegemonia parecem estar contados.
Em 2019, quando Samora Machel Júnior era bastante cogitado para enfrentar Nyusi na corrida à sua reeleição na chefia do Estado em Outubro desse ano, Fernando Faustino chancelou, na abertura do Comité Central, em Maio de 2019, Nyusi como “candidato inquestionável” da Frelimo e dissuadiu quaisquer ensaio de debate ou rampas de pré-candidatura no seio do partido.
O clube dos “tenderpreneurs” nacionais
Um poderoso no partido governista, este ajuste directo milionário confirma o camarada Fernando Faustino como membro por direito do clube “tenderpreneurs” nacionais - um coloquialismo sul-africano que em tradução livre significa “empreendedores de licitações”.
Na África do Sul, “tenderpreneur” é um empresário que utiliza contactos políticos para garantir contratos de aquisição governamental muitas vezes como parte da troca recíproca de favores ou benefícios. A palavra “tenderpreneur” é uma junção de “licitação” e “empreendedor”.
Hoje, os “tenderpreneurs” estão associados à corrupção, ao nepotismo e ao compadrio. Isto acontece porque a adjudicação de muitos concursos é motivada por interesses informais e/ou filiação política, e não por exigências de procedimentos formais. A informalidade do “empreendedorismo por concurso” reside, pois, nestas relações sociais e políticas extralegais.
Analistas acreditam que essa prática pode dar origem a uma cleptocracia como uma mutação desviante de uma democracia se não for controlada. Nesse sentido, uma cleptocracia é definida como a condição que surge quando uma elite política manipula os três braços do governo (legislativo, executivo e judiciário) com a intenção de capturar recursos que enriquecerão essa elite, um fenómeno geralmente conhecido como captura de elite.
O abuso do ajuste directo ou
a excepção que virou regra...
Mais da metade (54,74%) dos procedimentos de contratação pública a nível central em Moçambique, no terceiro trimestre deste ano, foram feitos através de contratação simplificada, ou ajuste directo, que absorveram 49,54% do valor contratualizado, segundo informação estatística de contratação pública elaborada pelo e-SISTAFE (MEX), para o período de Julho a Setembro de 2024.
De acordo com o documento, foram registados 3716 processos de contratação pública no período, dos quais 2034 foram somente por ajuste directo, contra apenas 398 por concurso público.
Nesses três meses, do total de um bilião e 283 milhões de meticais (1,283,911,723.23 MZN) gastos em contratos de prestação de serviços às entidades do Estado, a nível central, 747 milhões de meticais (747,811,551.36 MZN) foram em ajustes directos. Ou seja, 58 por cento do valor total de contratos públicos para fornecimento de serviços foram realizados através de ajustes directos, uma excepção que virou regra.
Em Maio de 2023, o Centro de Integridade Pública (CIP) alertou que a nova lei de contratação pública abre espaço para mais ajustes directos, um recurso bastante permeável à prática de casos de corrupção na contratação pública, quando usado de forma abusiva, segundo aquela agremiação watchdog da integridade na esfera pública.
A 30 de Dezembro de 2022, o Governo aprovou o novo quadro legal que regula a contratação de empreitada de obras públicas, aquisição de bens e prestação de serviços ao Estado, através do Decreto n.º 79/2022, de 30 de Dezembro.
“Era expectável que esta nova reforma no quadro legal da contratação pública, realizada num contexto de crise financeira associada às Dívidas Ocultas e à pandemia da Covid-19, introduzisse medidas para minorar o risco de desvio de fundos públicos por meio do procurement. Entretanto, a revisão efectuada compromete a transparência e aumenta os riscos de corrupção no procurement público uma vez que abre mais espaço para ajuste directo nas aquisições públicas, em detrimento do concurso público, a modalidade regra e que oferece mais transparência”, alertava o CIP.
Entre as alterações introduzidas fornecimento de bens e prestação de serviços ao Estado, destacam-se as circunstâncias excepcionais para o recurso ao ajuste-directo, especialmente em contratos da Presidência e do Sector de Saúde.
Para o sector da Saúde, aquele em que a empresa de Fernando Faustino foi contratada via ajuste directo, o novo regulamento acrescenta, no artigo 97, as circunstâncias nas quais a entidade contratante pode recorrer ao ajuste directo, nomeadamente:
- a aquisição pelo Sector de Saúde, nos fabricantes e/ou nos países de origem, de medicamentos, equipamentos hospitalares, produtos de saúde, material médico-cirúrgico e outros materiais equiparados e indispensáveis para satisfazer o objecto de Calamidade Pública no período da sua duração; e
- a aquisição de equipamento médico, medicamentos e artigos médicos para o sector de saúde, em situação que possa causar danos irreparáveis ao Estado, e/ ou à sociedade, e apenas para satisfazer o objecto da urgência.
O Ministério de Economia e Finanças (MEF) justificou que o novo regulamento visa, essencialmente, harmonizar as normas de contratação pública às alterações efectuadas ao Código Comercial e à Estratégia de Contratação Electrónica, aprovados pelo Governo em 2022.
O CIP, entretanto, rebateu este argumento, considerando que “com as reformas efectuadas, o regulamento exacerba os riscos de corrupção na contratação pública ao ampliar as circunstâncias excepcionais para o recurso ao ajuste directo, uma modalidade de contratação nada transparente e que historicamente tem beneficiado empresas ligadas à elite política”.
“Muitos dos casos de corrupção no procurement estão associados ao recurso abusivo e injustificado ao ajuste directo”, sentenciava a análise do CIP.(Milton Machel)