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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

quinta-feira, 01 agosto 2019 05:56

Carta à um amigo na diáspora

Epá, como sabes, eu não uso esses dispositivos do tipo whatsap, facebook, e outros facultativos disponíveis no nosso tempo. Não tenho estrutura para isso, para além de que a minha impressão, é de que tudo isso está a levar-nos à loucura. Toda a gente anda com os celulares na mão, entre eles aqueles que ostentam os mais modernos e poderosos, malta Huwawei. Não tiram os dedos  e os olhos do ecrâ, mesmo caminhando debaixo do sol. Ou a conduzir viaturas na estrada. No átrio das escolas então não digo: os alunos conversam cada vez mais pouco entre si. Estão sentados no mesmo banco ou no mesmo chão, no jardim, mas cada um no seu mundo. Já não há terapia de grupo.

 

Mas não é para te contar estas baboseiras conhecidas por todos que resolvi escrever-te esta carta. O motivo que me leva a fazer isto é a saudade que sinto de ti. E também a necessidade de partilhar contigo alguns medos que me assolam ultimamente. Aqui continuamos a ser  mortos, meu irmão! Assim mesmo, como cabritos içados num ramo qualquer de uma árvore e decapitados a sangue frio. O pior é que esta chacina não dá sinais de abrandamento, e estamos à caminho das eleições gerais onde ninguém sabe o que vai acontecer.

 

Neste país, que também é teu, meu irmão, já ressurgem aldeias inteiras abandonadas. Outros conglomerados foram literalmente incendiados. Os nossos irmãos, aqueles que conseguiram,  saíram de lá como baratas assustadas e foram se aglomerar noutros lugares, escondidos, mesmo assim sem a certeza de nada. Vivemos de morte em morte. E aqui onde estamos, não há ninguém que nos consola. Tudo à nossa volta representa o escuro.

 

É isso, meu irmão! O meu medo aumenta porque há metralhadoras, ainda aqui dentro, mais para cá, que parecem prontas a troar de novo contra os nossos corpos. Na verdade o que mata não é aquilo que entra pela boca, mas o que sai através dela. E as palavras que temos ouvido ultimamente, nas matas e nas cidades, são um verdadeiro rastilho. Aceso. Há um receio de que a dinamite exploda.

 

Temos muitas flores por aqui, meu irmão, como tu bem o sabes. Lindas flores. Alagadas de futuro. Mas no lugar de colhermo-las para ornamentar os convívios, investimos sobre elas como pragas. Ontem as crianças cresceram ouvindo o matraquear das armas cuspindo balas sobre os corpos dos seus pais e sobre os corpos dos seus irmãos, e hoje essas mesmas crianças assistem à decapitação dos seus projenitores, em espectáculos macabros que se repetem sem fim à vista.

 

É este o nosso país, meu caro! Que vive de morte em morte. Com homens bebendo o sangue saíndo da jugular dos seus próprios irmãos, com o fim de lhes fortalecer, segundo a sua irracionalidade, a sanha assassina. Já não esperam pela chegada da noite, para ser a própria noite a vestir-lhes o capuz. Avançam à luz do dia, e assim, as vítimas contemplam, lívidas, o brilho da catana que lhes vai decapitar como reses desgraçadas.

 

Mesmo assim ainda acredito na roda da história, meu irmão. Um dia todo este sangue que escorre nas aldeias, vai ser lavado. Quem sabe!

 

Receba este meu abraço trémulo. Sucessos por aí.

quarta-feira, 24 julho 2019 06:00

O tempo do Kivis e Inhambane 70

 

Nessa altura emergia uma panóplia de ouro, composta por jovens que haviam nascido para fazer aquilo mesmo. Foram escolhidos já no ventre das mulheres que os geraram, e a única possibilidade que tinham, nessa condição, era brilhar. Cintilaram mais do que o tempo que os cometas levam a luzir por sobre a terra. E alguns deles continuam a reverberar até hoje. Passado quase meio século.

 

Tudo aquilo era um turbilhão. Uma cascata cujas águas era a música em si. O que acontecia na cidade de Inhambane, na verdade parecia também uma ramal do pop, ou o pop feito pelos manhambanas. Com o propósito único de fazerem parte da loucura. O kivis, por exemplo, um agrupamento que tinha a base em Nassurdine Adamo, Badru, Dionísio, e Suamado, fazia parte dessa paródia. Eles lembravam, em determinados momentos, sobretudo pela maneira como se vestiam, os Beatles.

 

Desse alfobre único, alvoreceu ainda o Inhambane 70, uma banda de família que tinha em Manuel Vicente Pires (pai), o próprio badalo para marcar o compasso. Mas foi José Pires (um dos filhos), alcunhado “Quality” pelos amigos, aquele que mais se elevou entre todos os membros do grupo, usando os  dedos de veludo para tocar piano ao mais alto nível. Ele marcou profundamente  o tempo dos clubes nocturnos na cidade de Maputo, um pouco depois da Independência Nacional, tocando particularmente em lugares como Hotel Polana. E se não chegou ao nível de Nat King Kol, é porque Zé Pires não tem voz para cantar.

 

Jaco Maria é dessa gesta, e teremos poucas margens de erro se afirmarmos que ele é uma das pedras mais brilhantes de entre todos aqueles que vieram daquela época. Gostava de calças à “boca de sino” puxadas até um pouco acima do umbigo e usava camisas extremamente apertadas. Mas esse era o estilo do momento, trazido um pouco do vertiginoso Jimmy Hendrix. Significa que Jaco provavelmente será o manhambana desse tempo que se tornou mais visível. Se calhar pelo poder cataclítico da voz, onde reside toda a sua alma.

 

Mas a cidade de Inhambane é fundamentalmente um lugar de êxodo. Todos os que são daqui querem partir, para nunca mais voltar. O Chico da Conceição nunca mais voltou, nem o Magid Mussá.  De outros, nem os corpos, na horizontal, como o Nassurdine Adamao.  Ficou a história deles que ninguém a conta para os jovens.  Já não há matinés dançantes onde o Kivis e o Inhambane 70, alí na Associação Africana, eram o centro da gravitação da juventude.

 

Outros tempos!

terça-feira, 16 julho 2019 07:18

Sumbi Mahenhane: a nonagenária do futuro

Tudo o que ela diz parece uma renovação, pela maneira como dá sentido às palavras. Vibra em todo o ser quando diz, por exemplo, que a linha férrea passava por aqui. Aqui perto da minha casa. É como se ela própria fosse o comboio à vapor puxando em tempos de história e cumplicidades e amizades desinteressadas, longas carruagens repletas de gente em feliz algazarra. Rebusca passados esquecidos e transforma-os em fonte de água nos dias de canícula. Desdenha as muletas e o andarilho, mesmo sabendo que aquelas pernas precisam de ajuda.

 

Sumbi Mahenhane é a lembrança das frenéticas execuções de zorre, em noites vertiginosas nos subúrbios da cidade de Inhambane. Era a raínha sobre quem tudo gravitava, incluindo o batuque tocado por Mafanele, o “King”. Sumbi puxava os instrumentistas para o ritmo do seu corpo, desenhado pela Mão do próprio Deus para enlouquecer. E quando ela não estivesse nesse dia, as estrelas do Céu recusavam-se a brilhar. A lua também.

 

Hoje ficaram as palavras que lhe ressurgem da boca e do espírito. São elas – as palavras – que dançam debaixo do rufar imaginário dos tambores que outrora eram os fundamentos da vida desta mulher. Só a dança lhe dá o sentido de existência. O sonho só pode prevalecer com o som do ritmo. Nada é mais importante, senão a dança. E o amor. É por isso que continua a dançar, agora com as palavras. Retumbantes.

 

O que mais impressiona em Sumbi Mahenhane é a inabalável vontade de viver. Ela fala com esperança, como se o corpo esperasse  nova oportunidade de pisar os palcos e balançar em  liberdade. Espanta a memória deste pássaro. Ela lembra-se de todas as noites em que a luz era o seu corpo. E na verdade, Sumbi era o encanto da própria vida. Ou seja, o óleo derramado em Abraão, desde a ponta dos cabelos até à ponta dos pés, foi inoculado também sobre esta mulher que brilhava em todo o corpo e em toda alma. E agora reluz  em toda a alma que ainda mora neste corpo em derrocada.

 

O que move Sumbi Mahenhane  não é o presente. Mas o passado de glória. Passado do qual nunca recebeu medalhas. Nada! Ela nem sabe o que é isso. Bastam-lhe os ecos da alegria que dava ao povo. As galardões são as pessoas do vulgo, algumas das quais ainda demandam a sua casa para falar desse passado. Com a mesma verve com que o corpo se entregava à dança. É essa presença humana que a faz  acreditar no futuro.

 

Completou noventa anos no dia 15 de Junho passado. Festejou com a família e amigos, num ambiente em que não faltaram batucadas leves,  para celebrar o passado de alguém que continua a falar com alegria. Com esperança.

 

Parabéns, Sumbi Mahenhane!

Todos eles serão elegíveis a sumo-pontíce, no clero restrito a que pertencem. Foram escolhidos entre muitos, e recebido a missão de cintilar em palcos de nunca acabar. Sem outro propósito senão o de fazer da melodia, a própria almadia de libertação do espírto. Fizeram isso. Cantaram em revolta.  Apelaram-nos ao amor nas letras espontâneas e buriladas com sabedoria. Dançaram com todo o corpo. E o resultado é aquele que se viu, deixaram baba por onde passaram.   

 

Com Pedro Langa, Zeca Alage, Roberto Chitsondzo, juntos, Gorwane era de facto a lagoa infinita. A alma da banda eram os três. Gorhwane sintetizava-se neles. De tal modo que, mesmo havendo correntes diferentes no mesmo rio, as águas mantinham a doçura dos tempos. Os “Bons rapazes”, como Samora Machel os apelidava na sua loucura de actor, só faziam sentido com uma alma composta por aquelas três peças fundamentais. Mas hoje, eu pessoalmente não conservo o mesmo entusiasmo perante o Gorhwane. Porque a alma deste grupo está despedaçada. Ficou o Roberto Chitsondzo, e o Roberto vale por ele mesmo. É por isso que considero injusto, continuar a chamar Gorhwane a um grupo de mito, sem o Zeca Alage e sem o Pedro Langa.

 

Kapa Dêch vai ser para sempre o paradigma da juventude. Mas também este grupo será eternamente ligado ao Tony Django e Roberto Isaías, juntos. Quando se fala de Kapa Dêch, avulta imediatamente o nome de Tony. A banda pode fazer tudo, pode ir para todos os lugares exibindo uma grande perfomance, até porque na sua plêiade tem artistas de primeiro nível, mas eles próprios vão perceber que falta o Tony Django. Então isso significa que há alguma coisa que deve ser repensada. Talvez debatida. Porque se quisermos continuar com a marca de um determinado produto, temos que ter a certeza de que estamos certos.

 

Em relação ao Eyuphuru, depois da saída de Gimo Remane, era evidente que Zena Bacar estaria sozinha. Eyuphuro era Gimo e Zena. Tudo o que eles fizeram  pelo mundo e dentro do país, tinha as duas vozes como eixo principal, fazendo do grupo o cristal de Nampula e de Moçambique. A alma do ritmo macua estava nos dois, tornados um pelo compromisso que tinham com a boa música. Mesmo assim, depois da saída de Gimo, Zena manteve aquele nome sagrado, sem que ela própria se sentisse bem. Tremia nas bases, porque Eyuphuro era muito grande demais para ela. Sozinha. Sem o Gimo.

 

Sobre o Alambique tenho outro sentimento. Pode faltar o Childo. Podem ser incoporados outros elementos e novos instrumentos, mas a banda não vai tremer porque a alma está intacta. O coração do Alambique é o Arão Litsuri e o Hortêncio Langa, astros inquestionáveis com lugar cativo nas prateleiras de ouro existentes no mundo. Aliás estes dois, agora, mais do que nunca, exibem no trabalho a estabilidade dos monstros, e a criatividade inesgotável de um espírito que está sempre no auge. Alambique continua a ser a banda do futuro.

terça-feira, 02 julho 2019 06:42

Txifuliane: a minha última machope

Estou sentado, como o tenho feito com alguma relutância nos últimos tempos, num dos bancos perfilados ao longo da marginal da cidade de Inhambane, a contemplar o sol que se vai deitar daqui a pouco. Desta vez é Txifuliane, mulher chope do interior de Zavala,  o forte motivo para eu estar aqui. Ansioso. De certa forma nervoso. E para espantar a demora, sustento o tempo de espera enquanto observo a natureza, pensando ao mesmo tempo na mulher que vai-me alimentando, aos poucos, a esperança, como o próprio gotejar da luz.

 

Txifuliane é diminuitivo de Txifule, que significa mulher sáfara. Que não faz filhos. Mas eu não olho para ela na perespectiva de gerar ou não, os filhos que até podiam estar no seu horizonte, entretanto ferido pela descompensação de não poder ser mãe. Nunca coloquei esse lado biológico como equacionante para a nossa relação, que até aqui não sei se vai produzir algo de bom, como as videiras plantadas na berma dos rios.

 

Conhecemo-nos há cerca de cinco meses, tempo durante o qual fui percebendo que Txifuliane pode ser uma criatura  muito delicada. Que vai arder à mínima faúlha, e queimar-se a si mesma, tipo emolação espiritual. Então ganho uma certa exitação, porque na verdade o meu maior medo será magoar esta alma que me parece muito leve como pluma. Por vezes chego a pensar que é melhor desistir, antes que a minha imprudência provoque fogo posto, no interior de uma mulher que está num eterno período de gestação da dor de não poder dar à luz um ser humano.

 

O que mais me atemoriza é que ela parece confiar em mim. Sinto que os pensamentos dela são de que encontrou finalmente o porto onde possa atracar com todas as bagagens em segurança. Isso é que abala a minha alma, porque nunca fui porto seguro de ninguém. Txifuliane não merece um terreno movediço que sou. Só nos olhos dela noto algo de muito profundo. De muito sincero. Quando  pronuncia o meu nome, todo o meu corpo arrepia e alguma coisa me diz que nela tudo é verdadeiro. E se for, então não a mereço.

 

Penso em tudo isso sentado neste banco da marginal, numa espera que não me dói. Txifuliane é uma mbila. Ressoa para dentro de mim com suavidade. A voz é melancólica como o cântico das rolas ao fim da tarde. E esta realidade profunda perturba-me. Estou num dilema que me pode degenerar, porque este, com certeza  será, pelo que sinto, o último sinal. Se não fosse, então tudo em mim estaria tranquilo. Mas estou a tremer. Tremo muito mais ainda quando Txifuliane me toca e diz-me em chope assim: naku dunda (amo-te).

quarta-feira, 26 junho 2019 06:22

Minha mãe

O que dói é perceber a minha incapacidade de  nunca a ter tratado na dimensão que ela merecia. Fui distraído durante toda a vida e não entendi os inabaláveis fundamentos da minha mãe. Sinto agora, que ela partiu, deixando um enorme vazio em mim, que afinal  esta mulher enchia a minha vida, com todos os exíguos meios à sua mercê. Mas tinha outra arma crucial para todas as lutas:  o imenso coração onde eu, mesmo assim, recusava-me a permanecer para desfrutar do maná inesgotável de amor.

 

Na última década da sua vida, minha mãe já não se locomovia com os seus próprios meios. Era um duro golpe para um ser independente, que acordava nas manhãs antes dos pássaros saírem dos ninhos, para dar o  corpo à terra. Ignorando que aquela entrega sem reserva, levá-la-ia, mais dia, menos dia,  ao ponto de já não poder andar. Danificou completamente a coluna vertebral nesse amanho, e o resultado disso não podia esperar eternamente. Tremeram as manilhas da sua anatomia, e nunca mais se pôs de pé.

 

Naquela posição, sentada para sempre, minha mãe era uma tigresa vencida. Com as patas trazeiras esfrangalhadas nas armadilhas, e uma terrível descompensação nas ancas. Os olhos brilhavam com sede da  paisagem verde, não para atacar as gazelas, mas para enterrar a enxada. No fundo era uma águia que já não podia desafiar as alturas e poisar no topo das montanhas de pedra. As asas foram decepadas pelo próprio uso. Mesmo aqui perto, no mercado que fica à ilharga da nossa casa, onde ia conversar com as amigas, contando histórias de nunca acabar, já não podia ir. Parecia que a escuridão inteira lhe cercava. Sem ninguém para conversar porque eu não percebia que minha mãe precisava de mim. E eu precisava de beber todos os dias.

 

Ela partiu usando  praticamente os meus braços  como rampa, no movimento de levantá-la todos os dias para o banho, deixando dentro de mim o cheiro dela de mãe. Mas eu não merecia esse privilégio de cuidar de alguém que nunca valorizei. Nunca soube retribuir o amor que sempre me deu, sem querer nada de volta.  Contudo, tranquiliza-me o facto de tudo ter mudado nos últimos três anos da minha mãe,  tempo durante o qual, nós os dois vivemos em amor intenso. Ela chamava-me de pai. Sempre que eu entrasse no seu quarto, olhava para mim e dizia, papá. Aliás o quarto dela fica aqui mesmo, ao lado do meu. Numa pequena casa e um enorme quintal cercado de “espinhosa” sempre podada.

 

Agora que tudo se consumou, mais do que sentir a ausência da Marta, minha inesquecível mãe, e o medo de estar aqui sozinho, tenho a agradável sensação de que ela me vigia. Ela enche a nossa casa e me dá paz em todos os momentos. Obrigado mãe, perdoa-me por tudo o que fiz contra ti, e por todo o amor que nunca te dei.

O que me impressiona neste homem muito conhecido na cidade de Inhambane, é que o álcool, na verdade, como diria o escritor e jornalista Baptista Bastos, reconforta-lhe  e ajuda-lhe a aclarar as ideias. Quanto mais embriagado, mais lúcido. O mais espantoso porém,  é perceber que ele anda bem informado e actualizado, apesar de se saber que não pára de beber nas barracas onde passa a vida. A que horas lê os jornais e vê televisão? Mas sabe tudo o que se passa à sua volta e no mundo, por isso todos querem estar junto dele para lhe ouvir. É o paradigma da juventude.

 

É notável na leitura dos tempos. Já disse uma vez que as chuvas que caem sem parar na arena política, são tão persistentes que estão a inundar, aos poucos e poucos, o poder. As águas andam pelas narinas deles. Daqui a pouco estarão sufocados, pois não há sinais de que a precicipatação vá parar para permitir que os níveis baixem. Isso não vai acontecer.

 

O actor que fala torrencialmente, como a própria chuva, com pequenos intervalos para molhar as goelas que nunca se fartam, chamou como exemplo a hidroeléctrica de Cabora Bassa, que tem descarregadores  projectados para evacuar a água da albufeira em tempos de chuvas abundantes. Para além destes canais, há uma outra comporta lá em cima, de reserva, que se pode abrir, se porventura houver ameaça de as águas deitarem à baixo um dos colossos energéticos de todo o mundo.

 

As comportas do poder, de acordo com o homem que fala com a alegria proporcionada pelo etílico,  estão a submergir, e não  parece que eles tenham alguma de reserva. O pior é que  continuam a fingir que está tudo bem, mas a chuva contraria-lhes. Não pára de cair sobre as suas fortalezas, tornando os seus discursos instáveis. Mas tudo isso resulta do terramoto provocado pelo sentimento de revolta popular. E eles estão a sentir isso. Têm medo.

 

Para este personagem que nos convoca nas tertúlias, o Presidente Filipe Nyusi perdeu a oportunidade neste mandato, de marcar o terceiro momento de vulto na história do nosso País. O primeiro momento foi a Independência Nacional em 1975. O segundo foi o Acordo-geral de paz em 1992, onde todos nós aprendemos que a guerra é por demais nefasta para voltarmos a desejá-la. Nyusi poderia ter lutado para fazer algo notável. Algo extraordinário. E sair de peito aberto . Mas até aqui não nos parece que tenha conseguido justificar que a história de Moçambique o coloque no pedestal.

 

O ex- Presidente Armando Guebuza, citando as palavras do nosso “astro”, pelo menos tinha discursos bem arrumados. Falava bem. O que não sabemos é se fazia também bem as coisas. Parece que não. Mas deu-nos uma base, a partir das suas intervenções, para o descontruirmos. Guebuza tinha erguido um edifício, agora demolido pela verdade. E o Presidente Nyusi? Qual é o edifíco  que ele já  levantou para avaliarmos a sua qualidade? Esta é a pergunta que fica perante um jovem engenheiro, que nos animou à todos, no seu discurso de tomada de tomada de posse. E dele esperávamos o terceiro maior momento do nosso país.

terça-feira, 11 junho 2019 05:46

A fasquia de Guebuza é muito alta

Em 2005  publiquei no jornal “Notícias” um artigo em que entrevistava o escritor Daniel da Costa, o qual mostrava sérias dúvidas quanto as metas de governação  traçadas por Armando Guebuza, então Presidente da República. Da Costa dizia taxativamente isso: a fasquia de Armando Guebuza é muito alta. Porque, no seu entender, as promessas que fazia eram demasiadas para serem cumpridas.  Algumas delas eram irreais. E eu, atento, não fiz mais nada senão  “puxar” as palavras do meu interlocutor e usá-las como título, sem a certeza de que “aquilo” passaria após o crivo dos chefes de Redacção e do próprio director editorial.

 

Depois de entregar ao meu chefe  o texto da entrevista, fui para casa esperar. Ansioso em que amanhecesse para ler o jornal e ver se “eles” terão “mexido” na minha prosa. E o mais provável, nas minhas contas, é que o título – pelo menos o título -  fosse rejeitado. Tanto mais que o “Notícias” representa uma espécie de porta-voz oficioso do governo. Portanto, se passasse seria um milagre. Mas o que eu próprio não sabia, é que já estava escrito que naquele dia iria celebrar  a publicação de um dos melhores textos que escrevi no jornal Notícias durante sete anos. Intensos.

 

Cheguei à Redacção muito satisfeito porque já me tinham trelefonado a informar que o artigo saíu com aquele título. Tremi  porque eu era a ponte que transmitia os pensamentos de um homem com visão. Porém o que eu ignorava é que para “esfaquear” a minha alegria, muito grande, estava o director editorial à minha espera. Arfando. Quer dizer, das hostes do Partido Frelimo tinha chegado uma chamada telefónica a perguntar como é  que se tinha deixado passar aquele título. O director entrou em pânico. Em desespero porque “aquilo” poderia lhe custar o “tacho”. Talvez pior do que isso.

 

Mandou-me chamar ao seu gabinete  logo que soube da minha presença na Redacção. Fui tranquilo, e logo à entrada, sem quaisquer cerimónias, recebeu-me com um palavreado baixo: você está a “mexer com as minhas partes mais sensíveis”. E eu fiquei sem saber quais eram as tais  “partes mais sensíveis” a que ele se referia. Não me deixou sentar, muito menos permitiu-me o uso da palavra. Levantou-se várias vezes da cadeira com vontade de me “grampear”, mas  eu amedrontei-lhe com a minha serenidade.

 

Escorraçou-me como se eu fosse um canino, vadio, mas antes de eu cumprir as suas ordens, mostrei-lhe um sorriso de desprezo, e dei-lhe costas. Nenhum dos chefes de Redacção – eram dois -, nem sub-chefes de Redacção – também eram dois – perceberam que o título que eu colocara no meu artigo era tão elevado e sério e verdadeiro, que poderia provocar tremores imprevisíveis dentro do Partido Frelimo, com consequências para aqueles que foram colocados para dirigir o jornal com muita atenção.

 

Fartei-me de rir depois de ter saído do gabinete do director. E nesse dia tive motivos mais do que suficientes para comemorar com os meus amigos, alguns deles dentro da própria Redacção. Aliás, são eles que hoje abordam-me, com gozo, passados quase quinze anos, para dizer que eu tinha razão. Que a profecia de Daniel da Costa era de uma pessoa que vê longe, encavalitado nos ombros da própria sabedoria. Quer dizer, Guebuza prometeu-nos içar muitas bandeiras à bem de todos, e hoje, se lhe exigirmos os resultados de tudo que falou nos seus discursos, vai ter, com certeza, algumas dificuldades para nos apresentar.

terça-feira, 04 junho 2019 06:29

Quo vadis, Alice Mabota?

Chegou à um outeiro, ofegante, molhada de suor, esgotada pelas palavras,  e largou as armas  e todas as mochilas cheias de esperança. Tinha ainda pela  frente montes e montanhas firmes  para subir, mas  tremeu nas bases,  entregando-se, por conseguinte, ao escorrer do coração. Levantou várias vezes a cabeça para libertar a respiração.  Em vão!  Tentou cantar canções antigas dos machanganas em revolta, com o intuíto de ostracizar as nuvens que lhe adensavam o espírito... também nada! A voz saía gutural. Sufocada pelas poeiras levantadas em redemoínho.

 

Alice Mabota vacilou.  Agora sente nas mãos o vazio deixado pelas rolas, que partiram rumo aos mesmos céus que ela almejava para todos. Caíram as bandeiras que içava nas noites intermináveis, ao som da gargalhada das hienas. E se essas bandeiras não caíram em definitivo, então fazem falta as mãos da Alice, para juntos reiventarmos as melodias que vimos cantando desde as matas. Desde esse tempo em que atravessávamos os rios escoltados pelas feras aquáticas.

 

Agora só lhe sobram – para gáudio dos donos de tudo isto -  as lembranças de um tempo fresco  que ainda nos sustenta em colectivo. Ainda lhe ouvimos aqui e acolá, falando, porém sem a verve que lhe erguia para os pedestais do povo. Ela  continua, mesmo assim, a mesma. Ouvindo em sua casa sem se cansar, as músicas de Xidiminguana, para o ciúme do marido.

 

Mas  nós estamos aqui para dar o testemunho em todos os tribunais. Levantar-nos-emos diante dos juízes para dizer que sim, que conhecemos esta mulher que gesticulava,  tenaz, nas praças. Que desdenhava os polícias armados,  acompanhados de cães melhor alimentados que o povo. Diremos  à todos os magistrados que sim, que é esta a mulher que sempre vos enfrentou sem medo. Desprezando-vos na vossa incompetência. Na vossas condescndência ao poder. Diremos que sim, que é ela que vos apelava no sentido de virem para o lado da razão. Diremos isso, sim. Sem medo também. Como ela. Quando esgrimia. Em doses de avassalar.

 

Pode ser que sim, que Alice Mabota tenha sido encostada às cordas, neste combate da selva que está no último round, mas  nós cotinuaremos a ovacionar à volta do mesmo ring, agora ocupado por outra mulher. Alice caíu por sobre as pedras, com as quais ia construíndo o seu país, porém o sangue dela recusa-se a coagular. Ainda goteja como a própria luz que está prestes a gotejar nas nossas casas. Estamos no limbo da efectiavação dos vaticínios da mulher que, embora fragilizada nos fundamentos, não foi vencida.

terça-feira, 28 maio 2019 05:43

Carta do povo moçambicano à Fátima Mimbiri

O que nos faz acreditar em ti é o teu peito aberto permanentemente entregue às balas. Aos verdugos atentos à tua volta, prescrutando-te os pensamentos. E nós temos as baquetas preparadas para o rufar dos tambores, porque a certeza de que tu representas o amanhecer que ainda vem, assim nos diz. Se assim não fosse teríamos sabido. Sentiríamos isso nas palavras que dão luz à tua clarividência. À tua saga.

 

Há muito que esperávamos por uma mulher como tu, desafiando a fúria das orcas no meio da tempestade. E agora estás aqui sem  a menor possibilidade de retrocederes. Estás exposta sem escafandro para te protegeres do fogo que te cerca, e nós estamos debaixo da terrível ansiedade. Sem a menor capacidade de libertar o tigre da nossa revolta. O nosso tigre és tu, FátimaI. Aliás, a única coisa que podemos fazer é seguir-te.

 

Eles estão com medo de ti. Tremem em todo o ser quando falas e olhas para arrogância deles de frente. Dizendo-lhes sem vacilar que o tempo “ruge” na luta da juventude que tu representas. És o nosso instrumento de medida. Cada vez que apareces na televisão, a nossa esperança aumenta. Concentramo-nos todos diante dos ecrãs porque a Fátima Mimbiri vai falar.

 

És o nosso depósito de géneros. O nosso arauto que corre seguro ao encontro da luz, nestas trevas implantadas despois das armas que anunciavam a liberdade na epopeia das matas.  Recusas-te a ficar na popa deste imenso barco navegando à deriva no oceano Índico revolto. Estás na proa desmentindo todas as falácias. É a ti que cabe a descontrução das palavras dos manhosos, que urdem diariamente as naus do desespero para atravessarem o fosso que eles próprios construíram. E tu olhas para eles com desdém.

 

Na quinta-feira, na STV, só queremos ouvir a ti. Eles também ficam ansiosamente à espera desse dia. Sabem que o nosso combustível és tu. Tremem quando pensam em ti. Bóiam nas discussões que tentam manter contigo. E no lugar de serem eles a encurralar-te, tu é que os cercas com a rede de emalhar das tuas palavras. Lúcidas.

 

Esta carta é da lavra dos nossos sentimentos mais profundos. Representa a necessidade urgente de cura das nossas feridas dolorosas. E tu, Fátima, recebeste a missão de ser a nossa enfermeira. É a ti que recorreremos em todos os momentos para nos indicares o azimute que devemos seguir. E enquanto isso, continuaremos na longa espera com as orquídeas mais lindas para ti.  

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