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Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

segunda-feira, 11 março 2019 06:01

Para quê ficar grávida?

Mulher barriguda que vai ter menino

 

qual o destino que ele vai ter?

 

Que será ele quando crescer?

 

Haverá guerra ainda?

 

Tomara que não!

 

                                    (“Secos e molhados”, grupo musical brasileiro)

 

É uma mulher madura, que apesar disso já não acredita na vida. É céptica. Talvez realista. Houve tempos em que no seu horizonte tudo o que acontecia igualava-se à aurora. As próprias palavras que lhe saíam da boca eram o cacimbo em si, que molhava o capim dando-lhe frescura. Renovação. Levava tempo para responder às perguntas, como os sábios. Acima de tudo deixava-se orientar pela fé de que todos nós fomos feitos para viver em paz e em liberdade. Nascemos para a felicidade. Mas hoje ela é a antítese de todas as suas crenças de outrora. Já não tem esperança. Pior, não tem dúvida de que caminhamos em direcção à Hades.

 

Estamos sentados frente a frente na esplanada do Hotel Inhambane, lugar onde tenho frequentado com alguma relutância, e ela não se cansa de tamborilar com os dedos no tampo da mesa para dar ênfase às concisas frases compostas com pausa. Aliás o tamborilar é mesmo para isso: dar pausa às palavras. Deus já disse, meu caro, tudo o que vier do ventre da mulher será amaldiçoado, mas ao que parece, até hoje ainda não percebemos essa parábola. Continuamos a inocular catervas e catervas de filhos para depois serem assados na fornalha que nós próprios activamos.

 

Raci traça um futuro sombrio, e diz mesmo que o que nos espera não pode ser outra coisa senão o bréu. Se eu fosse essas jovens que andam por aí, sonhando com a nascente, recusar-me-ia a engravidar. Engravidar para quê se os filhos já saem doentes dos nossos ventres? Alguma vez já tinhas ouvido dizer que as crinças vêm cancerígenas do útero da mãe? Aonde é que ouviste isso? Não assusta? Não mete medo? Come on, meu!

 

Estamos sentados frente a frente, eu e a Raci. Ela bebe Whisky em doses excessivas, e eu sinto-me confortável com a água que vou consumindo enquanto escuto os discursos de alguém que, quanto mais vai bebendo, mais lúcido vai ficando. Escuta bem, meu caro: Jesus disse assim à Nicodemus, tu e esses para quem estás a falar, não entrareis no Reino dos Céus enquanto não aceitares nascer de novo. Nicodemus não percebeu logo à primeira, procurou Jesus de noite, o Qual voltou a dizer-lhe a mesma coisa.

 

A mulher que está à minha frente bebendo whisky sem parar perguntou-me se tinha entendido o que ela havia me dito. Eu não lhe respondi. Pois é: o problema é que ninguém está preocupado com o badalo que anuncia incansavelmente a descida da Espada, nem as mulheres como eu, que engravidam e desejam fazer filhos mesmo sabendo que são seropositivas. O quê isso!? O pior é que alguém ao mais alto nível da governação encoraja esse pecado de saber que pode sair uma criança infectada para sempre. Uma criança que virá à terra para padecer, por culpa da nossa insanidade.

 

Estamos na esplanada do Hotel Inhambane há mais de duas horas e eu devo ter dito apenas duas ou três palavras. Ela é que fala. Com clareza, como agora depois de entornar mais um duplo: até os homens, muitos deles, acreditam que por terem sido circuncisados, estão protegidos contra o virus do HIV. Eu não se essa percepção constitui a verdade. Mas alguém quer lhes incutir isso. Ou seja, quando vêm nos dizer que os riscos de um homem circuncisado são menores, querem nos dizer o quê?

 

domingo, 03 março 2019 19:18

Julião Mathumbu

 Mathumbu vem do bitonga. Traduzido para a língua portuguesa ficaria redes de arrasto usadas  pelos pescadores. Julião ganhou o sobrenome por ser reconhecido como indivíduo de força extraordinária. Bruta.  Capaz de realizar sozinho um trabalho reservado à dez pescadores. Homem de poucas palavras, Julião Mathumbu entornava goela abaixo um garrafão de cinco litros de sura à gargalo, sem parar um único segundo para respirar.  

 

Regozijava-se pelas mãos que tinha, rijas como pedra. Dizia para todos, se eu te der uma bofetada, a Polícia vai pensar que foste agredido por um ferro. Mas hoje ele já não fala disso, são os outros que repetem com as palavras as façanhas de outrora, quando Mathumbu era um orango-tango. Com  músculos bem distribuídos, num corpo sempre pronto a exercer as tarefas dos sáurios.

 

Julião Mathumbu já não bebe. Já não tem aquela energia. Não mostra as mãos agora sem calos. Limpas. Leves como de uma criança. As pernas já não suportam aquele corpo enorme. Vacila quando se move, como um leão exausto. Velho. A voz roufenha fala para dentro. Não sai. Perdeu a vontade de viver. Os seus amigos dos tempos trazem-lhe o peixe que ele não come. Estou cansado disso, diz o homem  sentado na sua eterna cadeira de cordas de sisal. Sem qualquer expressão no rosto. Frio.

 

A mulher morreu há cinco anos e a vida para este personagem perdeu o sal. A casa modesta que construiu com o suor da pesca é o único elemento da sua vida que se mantém de pé. É o seu orgulho. Nunca teve filhos. Quem dava sentido à sua existência era a mulher e os amigos. A mulher já não está e os amigos não bastam. Bebe um pouco, Mathumbu! Para quê?

 

Um jovem artesão esculpiu um enorme peixe em madeira de mafurreira e levou a escultura para casa de Julião Mathumbu. Queria ter o privilégio e a honra de deixar algo importante para o ídolo de muitos na zona. Uma prenda que vai trazer alegria ao homem. É para quê, isso? É uma recordação dos seus tempos, mais velho! Quem te disse que eu quero me recordar dos meus tempos? Tira isso daqui, faxavor. Se gostas de mim não me traz essas coisas e nem me fales dos tempos que  vivi com muita alegria.

 

Julião Mathumbu está obsoleto. No corpo e na alma. Os amigos visitam-lhe cada vez mais pouco. Sofrem quando vêm um homem a descer devagar para o precipício. Em silêncio. Sem olhar para trás e lembrar as glórias. Vividas com intensidade no mar e na terra. É uma pessoa afável. Sempre foi. O seu corpo de brutamontes jamais teve algo a ver com o coração. Grande. Onde cabem todos os que agora lhe engrandecem. Mesmo não estando com ele nas paródias que ainda acontecem depois das fainas intermináveis.

 

As gargalhadas de Julião Mathumbu, ora vibrantes, desvaneceram. Passa maior parte do tempo com a cabeça pendida para o peito. Parece um condenado à espera da guilhotina e sua descida vertiginosa para lhe decepar a cabeça. Na verdade ele pode estar à espera do golpe final. Porque pelo que parece, a morte de Julião Mathumbu está cansada de esperar.

segunda-feira, 25 fevereiro 2019 06:40

Na enfermaria de oncologia

A mulher sentada nesta cama à minha frente deve andar nos quarenta. Ou pouco mais. Se não fosse todo o crepúsculo do entardecer que a habita, diria que está no auge. Da vida. Mas tudo leva-me a acreditar que os dias que a esperam serão ainda mais dolorosos. Quer dizer, naquilo que eu imagino e sinto, ela pode estar a viver numa sombra gelada. Pensando que só Deus é que pode reverter toda a situação dramática que enfrenta.  É isso: já não resta nada no seu corpo.

 

Está sentada com o travesseiro a suportar as costas. O lençol serve apenas para cobrir os quadris porque a partir dali para baixo não tem nada. Ou seja, as coxas e as pernas foram amputadas. O braço direito foi removido inteiro pelos malditos serrotes cirúrgicos, e o outro braço que resta está engessado, na iminência de ser cortado para eliminar  a derradeira esperança. E eu faço um tremendo esforço para não chorar. Porém, notando ela  a minha forte comoção diz-me assim: amor, chora à vontade, vai-te fazer bem.

 

Ainda não consegui arvorar outra paralvra para além do supérfluo e estúpido “como vai, Joana?!”  Sinto-me dominado. Arrasado. Apanhado numa rede de emalhar da qual jamais sairei. Mas ela parece superior ao seu próprio sofrimento. À minha fraqueza. Joana é mais forte que eu. O rosto dela, brilhante,  parece o anúncio do amanhecer. As palavras que saem da sua boca vêm directamente do coração, como agora que me olha nos olhos e diz: não te preocupes, amor, tudo isto vai passar como os ventos que sopram e passam.

 

Lá fora está a chover, e esta mulher não vai poder assistir ao belo espectáculo da queda pluviométrica. Pior do que isso, não sabe como serão os dias que a esperam depois de sair de uma enfemaria que pode ser das mais desesperadas do hospital. Mas ela não desespera. Diz-me que ainda vai a tempo de ser como Óscar Pistorius, que ganhou medalhas correndo com próteses de carbono. “Eu vou me levantar daqui, amor. Aguarda-me”.

 

O que mete medo nesta mulher é o brilho do rosto. Dos olhos. É o sorriso permanente. Que demolem  por completo o sofrimento de um corpo que a partir de agora vai servir para muito pouco. Para quase nada. Joana desmente tudo isso. A leveza imposta na firmeza das palavras que lhe saem do coração pela via da boca, deixam exposta uma mulher que ainda sonha em voar. Sem asas. Decepadas para sempre.

 

A única mão que lhe resta naquele braço engessado parece de uma criança. É leve como pluma.  As unhas, lindas, estão cuidadosamente cortadas, mas ela diz, sorrindo, que daqui a pouco esta mão também vai ser serrada juntamente com o braço e atirados ao forno para  incineração, como se fazia naquele tempo com os ramos de oliva que não produziam. Eram cortados e queimados. E os membros da Joana já não dão frutos.

segunda-feira, 18 fevereiro 2019 06:17

Ajudante de camião de longo curso

A história que vou-te contar vem de dentro de mim. Das minhas memórias tristes. Da vida rastejante que não me larga, e das derrotas acumuladas perante a minha incapacidade de correr ao encontro da luz, como fazia, nos seus tempos de glória,  O.J. Simpson, um dos mais importantes jogadores de râguebi norte-americano do seu tempo.  Sempre pensei que a culpa de todo este sofrimento imparável fosse do meu pai, mas graças a Deus ainda fui a tempo de perceber que não. Quer dizer, ele vai ser absolvido de todas as minhas acusações.

 

Meu pai era um bêbado e fumador inveterado. Isso é verdade. Cresci partilhando com ele o mesmo tecto, inalando desde criança os odores da cachaça e do fumo e do próprio cheiro do seu corpo negligenciado. Desmazelado. Aprendi dele a beber e a fumar. A ser negligenciado e desmazelado. Também. Mas há uma coisa muito importante que deixou comigo: a lealidade. E a fé de que amanhã o sol vai nascer outra vez. Isso é que me orienta.

 

Hoje sou ajudante de camião de longo-curso. Nunca aprendi a fazer nada na vida, senão beber e fumar. E o preço que pago é este: vou sucumbindo em cada viagem. Pendurado por de cima da mercadoria em viagens de não acabar. Mas o que me dói mais é que sigo para frente de costas. Vejo as coisas depois de passar. Nas noites pareço um pássaro de mau agoiro cheio de medo perante os holofotes dos carros que nos ultrapassam. O frio arrasa-me. A chuva festeja por sobre o meu lombo. E não posso fazer nada, senão encolher o corpo para dentro de mim, temendo interminavelmente o pior.

 

Apesar de tudo isto que passo cá fora, lá dentro, na cabina confortável deste Frethline, o condutor está sozinho. Gozando. Sabe que nesta zona de Catandica, onde se ergue aquela linda cordilheira  como linha de fronteira entre Moçambique e Zimbabwe, faz muito frio. Para além disso está a chover. Mesmo assim está pouco se lixando. Ele dança com a alma a música dos limpa-pára-brisas, enquanto cá em cima eu é que sou o pára-brisas de mim mesmo. As minhas costas é que são a muralha de um esqueleto que está a vacilar.

 

Nestas viagens passamos frequentemente pelos controis da Polícia, sem que no entanto os agentes da autoridade obriguem o condutor a levar-me lá dentro. E essa dor toda faz-me lembrar o meu pai que morreu na sargeta. Bolas! Eu também vou morrer na sargeta, como o meu pai. Não tenho nada. Nem mulher. Nem filhos. A casa onde vivo é um buraco imundo. É pior que este cadafalso onde sobrevivo. Onde vou sendo executado devagar. O que castiga a minha alma é que estamos no mesmo carro, eu e o condutor, mas ele é um menino privilegiado. E eu um sabujo qualquer. Sem direito à entrar na cabine, mesmo quando está a chover. Mesmo quando o frio é de enregelar.

 

Apetece-me chamar sacana a este indivíduo que vai ao volante do “nosso” Frethline, mas na verdade eu é que sou inútil. Sou obrigado a suportar a ignomínia de dormir debaixo do camião, enquanto ele festeja com putas e bebida na cabine, num lugar qualquer onde lhe apetece estacionar. E depois de tudo, de madrugada, cara sem vergonha, ainda me pergunta se está tudo bem. Pior, manda-me procurar água para ele se lavar. E eu faço tudo isso curvado como uma besta.

 

Porventura haverá algum camionista que não seja sacana? Todos eles o são, excepto pouquíssimas excepções. Repare bem: quase todos eles são baixinhos. E homem baixinho só tem duas alternativas: ou é um bom bailarino, ou um sacana.

terça-feira, 12 fevereiro 2019 08:45

Zandamela: a alma esvaíu-se

À memória de Jaimito Malhathini

 

Jaimito Malhathini, o célebre guitarrista moçambicano varado pela morte em Maputo onde deambulava como um vadio nos últimos dias da sua vida, é um dos mais importantes e belos átomos  de Zandamela, uma localidade do distrito de Zavala na província de Inhambane. Nasceu ali. Obviamente! Participou e deu tremendo vapor ao vertiginoso tema Wa lhanya de Salimo Mahamed, quando este ainda  chamava-se  Simião Mazuze. Mas não foi só essa passagem. Jaimito perfumou a um nível elevado o projecto Amanhecer, corporizado por uma panóplia de músicos de grande performance, nos finais da década de setenta. E depois disso o chopi achou que devia subir outra montanha. Subiu, ou tentou subir, tendo-se descoberto, porém, à posterior, que afinal aquele empreendimento era uma falésia. Escorregou até ao ponto onde a morte, cansada de esperar, acolheu-o para sempre.

 

Zandamela agora é uma mulher esquálida. Sáfara. Aqueles que conhecem  bem aquele vilarejo desde os tempos idos, ao passarem por ali actualmente, não deixam de notar, certamente, a ausência das colossais árvores (grevilhas) que nos chamavam à atenção pelo seu porte e alinhamento. Abateram-nas deixando o lugar nu. Completamente nu. Quer dizer, ao penetrarmos, escorrendo pela via nevráliga e inevitável, a sensação que nos fica é de que não passamos de lugar nenhum. Se este local fosse efectivamente uma mulher, diriamos que interiorizamos um corpo frio por demais.  Insípido. E por consequência não sentimos nada. Os seios e as coxas e a parte mais macia de Zandamela eram as grevilhas. Agora decepadas. Deixando todo aquele chão dos chopi sem essência.

 

Depois do alívio do espírito ao assitirmos ao orgasmo interminável que o rio Inharrime atinge no oceano Índico, com testemunho das espectaculares dunas ao longe, e o esplendor das Lagoas de Quissico, no longo percurso Inhambane-Maputo, o que nos restava eram as grevílias de Zandamela. Plantadas num pedaço de cerca de cem metros, formando uma espécie de túnel verde, onde os condutores redobravam a atenção. Era refrescante passar por ali. Ninguém falava durante aquele pequeno troço. As árvores é que falavam.

 

Hoje tudo aquilo parece um deserto. Os pequenos deuses daquele lugar vacilaram. Emigraram. Deixando a assombração daquilo que foi, nesse tempo derrubado, a loja provavelmente dos Dalsucos. Não sei bem. Sobrou ainda a notável casa do temido régulo Malhathini, plantada num pomar que teima em se manter para lembrar a história de um homem que só sossobrava perante outro homem chamado Mangujo. Parecia que tinham dito ao Mangujo o seguinte: se quiseres enfrentar um monstro, tens que ser um monstro. E este chopi irreverente fez isso. Tendo ficado, por conseguinte, nos compêndios de Zandamela como o único que mostrava o peito ao régulo.

 

Que pena! Ou seja, para além dessas lembranças , Zandamela já não tem nada. Já não tem as grevílias. E a pessoa que mandou deitar abaixo aquelas históricas árvores, devia saber que matou a alma dos chopes dali.

quarta-feira, 06 fevereiro 2019 08:13

As minhas lágrimas acabaram, amiga!

 Ao Carlos Beirão, o eterno “Rei Momo” dos beireinses

 

Amiga, escrevo-te esta carta sem lágrimas nos olhos. Secaram. Acabaram. Comecei a chorar quando o pai do João ainda estava vivo. Doente. O meu rosto não parava de ser uma albufeira. Hoje é o coração que escorre e molha-me a alma toda. Já não sinto nada, senão a dor de viver sem o meu marido. Sem o meu filho, João. Que também morreu como o pai, sentado na borda da cama. Eram eles que davam luz à minha vida. Levantava-me da cama cedo por eles. A comida que eu cozinhava todos os dias era para eles. Quando fossem ao trabalho e à escola, eu ficava em casa alagada de demora. Queria que eles voltassem depressa para me abraçarem.

 

É isso, amiga, agora tudo isto é um vazio. Já não está aqui o meu marido para me dizer que as minhas mãos são leves como pluma. Ele lisonjeava-me.  Tudo o que eu fazia merecia da parte dele elogios que me davam felicidade. Se eu cometesse um erro, reconfortava-me com palavras lindas. Dizia assim: amor, as próprias estrelas por vezes são ofuscadas pelas nuvens, mas não deixam de ser estrelas, tu és a minha estrela. Falava enquanto afagava-me. Passava a mão dele por sobre o meu cabelo curto e puxava levemente a minha cabeça para o seu peito.

 

Nhenhezi, amiga, o coração dele quando batia, tinha um compasso que parecia de mapiko. E quem dançava era a minha cabeça. Mas tudo isso passou como o orvalho que seca depois de molhar alegremente o capim. É isso! O João copiava o pai. Ele também fazia-me feliz, de outra forma. Chegava perto de mim, abraçava-me e dizia assim: mãe, tá tudo bem? Eu sorria. Transformava-me em criança perante o meu o meu filhote. 

 

E hoje quando oiço a música do Carlos Beirão: Wassaíka João (João morreu), é como se o meu filho estivesse aqui ao meu lado. Este bairro de Muchatazina que tu conheceste já não é o mesmo, amiga. Mudou. Aliás toda a cidade da Beira está a mudar. Até o meu rosto mudou, já não é banhado pelas lágrimas. Mas lá dentro o coração continua a chorar. Batendo como batia o coração do meu marido, tipo batuque de mapiko. Houve um tempo que passei a ter a casa um pouco negligenciada, porém achei que isso não faria bem à alma dos meus dois amores. Voltei a dedicar-me à ela. Continua a brilhar como eles gostavam de a ver. Assim como sempre a conheceste. As fotos deles mantêm-se nos mesmos lugares. Representando aqueles que serão para sempre os meus ídolos. Isso reconforta-me. 

 

Nhenhezi, minha amiga, como vai esse Portugal? Tens te dado bem com esses tugas? As cenas de racismo que volta e meia têm-se relatado por aí ainda não te afectaram directamente? E tu como és reguila, imagino! Mas eu também não “bato cem”. Existe porventura um ndau que não seja reguila? Kkkkkkkkkkk! Pronto, minha irmã, esta carta já vai longa. Chega, antes que eu meta os pés pelas mãos, se bem que ainda não meti. Beijo, beijo.

 

Da tua amiga Dzuwa, com muita saudade.

quarta-feira, 30 janeiro 2019 05:28

O comboio dos bitongas não volta mais

Ao Fazal Lacá, um machope nascido em Inharrime, e que Niassa arrebatou até à morte.

 

Não era só dos bitongas, mas também dos machopes. Misturava as duas etnias em carruagens com bancos de madeira, e uma ou duas com estofos de napa para os privilegiados. Mexia com os locais por onde passava, fazendo tremer a terra. Parava em estações e apeadeiros do tipo “farwest”  - para embarque e desembarque - estendidos ao longo de uma extensão de cerca de noventa quilómetros entre a cidade de Inhambane e a vila de Inharrime. Era uma festa. Proporcionada por uma máquina à vapor numa altura em que não se falava, como hoje, da poluição do ambiente. E esse tempo não dá indicações de que vai voltar um dia.

 

Estou apinhado num “chapa”. Sou uma lenha. Que se junta à outras lenhas que vão compor um feixe  pronto para ser destruído a qualquer momento numa curva ou numa ribanceira, ou ainda num embate frontal irresponsável. Porém o que me reconforta apesar desse desconforto é que aqui dentro, onde mesmo assim estamos todos sentados, não há algazarra. O nosso silêncio colectivo dá total liberdade à música que se ouve nas colunas que libertam som equalizado. Boa música, em volume baixo para  o sossego da alma!

 

Lá vamos nós. De Inharrime à cidade de Inhambane. De “chapa”. Apertados. Oiço o som dos pratos da bateria anunciado a entrada em cena de Hugh Masekela que vai cantar o embalsamante “Stimela”. Transformando o pequeno autocarro que nos transporta como sardinhas desdenháveis numa agradável discoteca. E toda essa levitação do espírito faz esquecer o sofrimento do corpo. Ao mesmo tempo que me recordo do tempo em que nesta terra tivemos um “stimela” que fazia parte da nossa história. Mas do registo desse “poema lírico”, ficaram apenas os hangares transformados num mamarracho, e uma locomotiva negligenciada. Lembrando-nos que aquele comboio era um poema dos bitongas. E dos machopes.  

 

Arrancaram os carris. De aço. Como se estivessem  a arrancar-nos o coração. Sem nos dizerem nada. Sem direito à consulta. Vieram buscar as locomotivas e as carruagens e os vagões. Meteram tudo em grandes camiões e foram-se embora. Deixando-nos com a saudade da música que o comboio cantava para dentro de nós: “pouca-terra, pouca-terra, pouca-terra”. Hoje já não há nada disso. Aliás, Eusébio Johane Ntamele já cantava: “khombo la mina mamana, va ranga hi mbilu va lhomula” (que azar é o meu, mãe: a primeira coisa que fizeram foi arrancar-me o coração). E se te arrancam primeiro o coração, o quê que vai restar de ti?

 

Tudo aquilo era um regalo. Por exemplo, quando a máquina apitasse, anunciando a chegada, homens e mulheres e velhos e crianças e paralíticos, desciam como várias ondas do mar que vão ser despejadas na estação. Ou no apeadeiro. Uma parte deles ia receber os familiares ou amigos. Mas a grande  maioria  ia apenas celebrar a chegada do comboio. Que traz no seu bojo passageiros distribuidos entre os bitongas e os machopes. Todos queriam abraçar a máquina com os olhos e a alma.

 

Os vagões vinham cheios de lenha. Troncos para os fogueiros. As carruagens de carga abarrotavam de mandioca fresca, milho, farinha de mandioca, mel, ananás, manga e quejandos. Cumplicidade. Os Caminhos de Ferro de Moçambique por estas bandas não faziam muito dinheiro com o empreendimento. Contudo davam alegria às pessoas. Ofereciam vida. Quase de graça. Também hoje se calhar as máquinas à vapor não façam parte do nosso tempo. Mas a poesia celebra-se eternamente.

terça-feira, 15 janeiro 2019 16:58

Jaco Maria, meu irmão de sangue

 Em 1973 Jaco Maria gravava o seu primeiro disco (um single) onde consta o tema Hana nga nyi haladza. Uma elegia. Um apelo ao amor de uma mulher que se calhar nem existia. Provavelmente imaginada. Mas também toda aquela poesia emotiva, comovente, podia ser real, quem sabe! A verdade é que o disco era um foguetão preparado para lançar uma nave que ainda está em órbita. Quase quarenta e seis anos depois. E uma nave que fica esse tempo todo levitando, não pode voltar à atmosfera terrestre.

 

Quando ouvi pela primeira vez a voz de Jaco naquele disco de vinil, eu não tinha estrutura para perceber que estava diante de um anjo concebido por Deus para cantar no cume.  Das montanhas de pedra onde se ensoberbecem as águias. Com a nota de que este músico não se envaidece. Ele embevece. Aliás foi no Hokolókwè, uma banda de cristais puros, onde Jaco Maria retumbou humildemente, parecendo ele quem ia à frente. Então aí eu já tinha alguns elementos no intelecto para ficar assustado com o vulcão que já estava em erupção. 

 

Hokolókwè também não parecia daqui.

 

Eventualmente não percebíamos que os rapazes daquela banda eram possuídos por demónios de outro planeta. Jaco também. Quer dizer, do lugar onde se encontrava, o autor de Hana nga nyi haladza já não podia voltar para trás. O que lhe restava era continuar a avançar. Como os gnus. Feitos para avançar como o próprio mundo. As naves sagradas não retrocedem. E o homem mostrou-nos isso quando cantou o ressonante Sengue, acompanhado ao mais alto nível por aqueles rapazes que buscaram o funk para hastear um tema com letra simples. Profunda. Jaco Maria é meu irmão de sangue. No sentido de que nascemos no mesmo chão.

 

Ele no bairro Santarém, eu na Fonte Azul. Mas todos nós daqueles dois conglomerados parecíamos feitos da mesma massa. Dos mesmos grãos da terra que vestíamos com os pés. O que nos unia era a euforia de sermos crianças. Jogávamos à bola no “bángwè”, de onde me lembro de duas “estrelas” aos pés das quais nos rendíamos. Vencidos: Chumbo Lipato e Nando Guihoto. E talvez Papato. Lembras-te, Jaco? Claro que te lembras! Foram tempos. Bons. Vividos sem recalques. E o músico estava lá. Incubado naquele miúdo que nos intervalos da Escola Industrial e Comercial Vasco da Gama dava uns toques na bola de básquete. Mas Jaco não nasceu para “aquilo”.

 

Sentados frente à frente com Arão Litsuri, nos princípios do ano 2000, eu disse assim para ele: “Arão: tens uma das vozes masculinas mais bonitas de Moçambique! E o Arão respondeu-me assim: mas a voz mais bonita mesmo, é do Jaco Maria. Liguei para Salimo Muhamed, nesta segunda-feira (14.01.2019) e disse-lhe que a estava a escrever um texto sobre Jaco. Salimo disse-me assim: aquele manhambana canta para caramba! Pois é: Jaco Maria chama-se Angélico, de seu nome oficial. Angélico significa puro como os anjos. E com este nome, Jaco não podia seguir outro caminho que não fosse o da luz

terça-feira, 08 janeiro 2019 15:06

Meu nome é Nhambuli, um farrapo de mim mesmo

Chove há dois dias e aqui em Chalambe onde vivo, toda a desgraça vai despertar para renovar as nossas feridas colectivas. Os becos com saída vão ser desmentidos na sua vocação de vasos de comunicação. Assim como as vias estão no meu bairro, alagados, não posso movimentar-me em liberdade. A adega da Joana, onde geralmente tenho recorrido com os meus amigos para matar o tédio, está repelente. É lama por todo o lado. Charcos. Pior do que isso, a casa de banho que mesmo sem chuva é inóspita, agora tornou-se repugnante. Todos nós mijamos no chão. Sem nos importarmos com o forte cheiro da nossa própria urina. Estamos habituamos a este fedor. A este esterco. Mas o que me dói mais ainda é que eu, Nhambuli, já me resignei. Faço parte dessa escória.

 

Estou sentada na borda da cama escutando a música da chuva. Desliguei o televisor e o rádio. O som da precipitação pluviométrica, ao bater nas chapas de zinco que cobrem a casa a precisar de reparação, faz-me ouvir, na minha imaginação, o afro beat de Fela Kuti, com aquela enxurrada toda de sopros. Vivo sòzinha há mais de vinte anos, cercado de livros e discos que o meu marido deixou. Ele abandou-me e deixou-me com tudo. Foi por via dele que passei a amar os livros. A ouvir boa música. Mas agora que ele não está, tornei-me um farrapo. Não leio nada. Passo a vida a beber. A fumar. A drogar-me.

 

Chalambe, um dos bairros míticos da cidade de Inhambane, é a minha musa. Tenho muitos amigos aqui, mas celebrei ontem o meu sexagésimo aniversário natalício sozinha. Sem ninguém. Não queria ninguém. Desejava ardentemente sentir, agora como nunca, a dor da solidão, como uma verdadeira masoquista. Aviei-me com uma quantidade suficiente de “sativa” para aguentar o dia, quatro pequenas garrafas dessas bebidas horripilantes que estão a levar a juventude ao desvario e uns peixinhos (mihili), tirados desta baía linda como eu nos meus tempos de juventude.

 

Já perdi o hábito de recorrer à sombra da mafurreira que se ergue na marginal, junto à catedral da Igreja Católica, para contemplar o pôr-do-sol, que na minha ilusão de óptica cai por detrás daquela bela elevação do alto-Maxixe. Já não tenho motivação para o belo. E se aquele belo espectáculo da natureza já não me atrai, é porque eu própria  perdi a beleza. Sobretudo por dentro. O belo atrai o belo. E o que me resta é esta molécola de Chalambe onde me misturo com desperdícios humanos. Eu também sou um trapo humano.

 

É extraordinária esta música de Fela Kuti replicada pela chuva que cai sobre as chapas de zinco que cobrem a minha casa. Estou sentada na cama a dançar. Não sou eu quem dança. É a minha alma alucinada pela “cosa nostra” que dança. O meu corpo não. Nem pode dançar. Está definhado. Inútil. E ao comemorar ontem os meus sessenta anos, percebi melhor que na verdade o que resta de mim, é este farrapo

quarta-feira, 02 janeiro 2019 05:13

“O comboio dos duros” na Maxixe

Jamais será reduntante  dizer que a cidade da Maxixe é um entreposto do diabo.  Onde  há dinheiro o Lúcifer  está lá. Pessoalmente. E não existem dúvidas absolutamente nenhumas de que aquela urbe instalada do outro lado da baía de Inhambane é um reservatório desse metal de fel. Na verdade deve ser uma das “jazidas” mais vibrantes do nosso país. Alí não se dorme. Onde há “cacau” não há sesta.  No último fim-de-semana estive lá, levado  por um evento familiar. Nunca vou por ir àquele lugar, apesar de estar aqui perto. Vivo numa margem da baía de Inhambane, e a Maxixe está na outra margem da mesma embevecedora língua de água. De barco são dez-quinze minutos. E já está. Vejo-a todos os dias. Se gostasse dela beijá-la-ia sempre. Mas ela repele-me.  Sobretudo por albergar magotes de pessoas que estão sempre a correr. A empurarem-se uns aos outros. Ao encontro do “kombu”.  E eu sofro de parafobia.

 

De regresso à Inhambane-minha musa, depois de tudo, já no final da tarde, balancei na rampa que vai até à ponte onde devia fazer-me  numa barcaça com motor fora de bordo. As ondas estavam revoltas. Naquelas  condições e numa embarcação precária, podia ser forçado à um banho desagradável, e eu não estava disposto à tanto. Girei sobre o meu próprio eixo. Reatravessei a larga estrada aberta para o sul e para o norte, roçagando a cidade de lés a lés, dando-a vida. Sentei-me num dos bancos à espaços ocupado pelos vendedores de bolos que caçam sem parar os viajantes que passam. Transportados em autocarros  que sobem e descem. Não tenho pressa. Quero sentir essa Maxixe. Vesti-la outra vez como uma roupa que não nos fica muito bem. Mas que nos renova em certos cantos da alma.

 

Estou sentado sem me fixar especialmente em nada. Vejo muita gente em movimento. Ninguém está parado. O único que está despreocupado sou eu. Daqui onde estou vejo uma nesga do mar. Todo, ou quase todo o espaço que se libertava para nos dar o esplendor da paisagem marítima foi invadido. Ocupado. Violado. Estuprado. Sacaneado. As gaivotas zangaram-se e zarparam. Os cisnes, nem um.

 

De tempos a tempos passam camiões-cavalo e eu filmo-os com a memória do meu cérebro. Vão em direcção ao norte. Outros vêm do norte para o sul. Carregados. Super-carregados. São monstros que me fazem lembrar esse filme de acção dirigido por  Sam Peckimpah, de 1978: O comboio dos duros, baseado na canção country “Cnvoy” de C.W. MacCall. Estou sentado. Despreocupado. Tenho uma alternativa. Posso apanhar um “chapa” e dar a volta percorrendo sessenta quilómetros, no lugar de apanhar um banho forçado naquelas barcaças precárias. Epá! Vejo um velho atravessando  aquela estrada movimentada. Tem a espinha danificada. O lombo dobrado. Apoia-se num cajado. Bamboleia como um dançarino de mapiko.

 

Naquele instante há um camião que assome à alta velocidade. O condutor vê o velhote. Acciona a buzina que mais parece a cirene daqueles comboios à diesel que fazem Maputo-Chicualacuala. Poooommmmmm! Tremi na espinha. Lembrei-me do camionista que era perseguido pelo xerife no filme O Comboio dos duros. Mas o “madala” estava com os seus anjos. Saltou para o outro lado. Olhou para o monstro que ia se esfumando na distância, e mandou um manguito.

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