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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

segunda-feira, 20 dezembro 2021 08:15

Um abraço à Oeiras gêmea da minha cidade

 

Eu tinha fé de que este dia chegaria. É o matar de uma sede antiga, na longa espera pela conclusão da ponte que ora me leva à Oeiras, porém sem nada nas mãos, a não ser a ansiedade de sobreavoar o Tejo antes de aterrar e sentir os cheiros jamais inalados. Aliás, trago comigo às costas, no bornal, palavras de verdade e de imaginação, na esperança de ver fortalecido o nó dos nossos anseios.


De Inhambane à Oeiras é um sonho, mas a ponte está pronta, transborda beleza. Até porque todo o valor da nossa amizade está sintetizado no suor do nosso abraço. E eis-me aqui, caminhando por sobre o tabuleiro deitado amorosomente entre o Índico e o Atlântico, com o único propósito de partilhar as minhas emoções com os oirenseses. Talvez não só. Quem sabe!


Nasci numa cidade pequena, em Moçambique, como bem o sabes. Um lugar extraordinário. Único. À primeira vista, quando você chega aqui, sobretudo ao final da tarde, a sensão será de que as pessoas fugiram. As poucas que vai encontrar, também estarão a recolher para as suas casas, deixando as ruas sozinhas. Sem gente nem carros. Nem nada. Quer dizer, o poeta não mentiu: para cá da porta, nada! Para lá da porta, também nada!


Aqui ninguém acorda antes de o sol raiar. Para quê, se tudo está perto, ao alcance da mão! São os pássaros que nos despertam, cantando canções regidas pelo próprio Deus, porque foi Deus quem aspergiu o sossego nesta terra onde eu nasci. Um sossego que alguém, mesmo assim, teima em vitupera-lo.


Inhambane é uma cidade linda, com histórias muitas vezes perturbantes, que eu gostaria de contar aos oeirenses. Aos oeirenses porque Oeiras é cidade gêmea de Inhambane. De onde tentei sair algumas vezes à busca de outro oxigénio, mas logo a seguir percebia que o meu oxigénio estava aqui. Por isso sempre voltei.


Andou por aqui um homem chamado Matangalane Boby, cujas origens podiam estar ligadas à São Tomé, ou Cabo Verde, não sei bem, mas que o tempo levou-o a ser uma espécie de nosso mascote. Morreu como um cão vadio, sem família sem nada. Todavia, nas tertúlias, até hoje, quando o seu nome é evocado, nasce imediatamente um turbilhão de histórias à ele ligadas. Umas verdadeiras, outras inventadas pelo povo.


Tenho falado muito sobre esta figura estranha, e cada vez que isso acontece, fica sempre qualquer coisa por acrescentar. Mas hoje só vim dar um abraço à Oeiras, desejando boas festas de natal e um bom final de ano. E dizer que sinto-me muito feliz por celebrar a vida desta forma, convosco.

 

Pois é: na verdade não tenho nada para vos dizer. Só queria transmitir os meus cumprimentos à cidade gêmea da minha cidade.

 

Um abraço profundo, com cheiro à água de côco.

quinta-feira, 02 dezembro 2021 06:15

Deixa-me beber enquanto a morte não chega

Sei que sou desdenhado em todo o lado mas isso não me importa. Sei também que o meu desfiladeiro alagado de cactos não tem volta, porém ressurjo em cada golpe. Sou um lagarto com escarpas permeáveis, incapazes de me defenderem dos ventos infaustos que me fustigam a alma abandonada na noite de bréu. Cheguei ao ponto em que já não sinto nada, a não ser as espigas de aço que me ardem em todo o dentro dos meus sentimentos profundos.

 

Ainda ontem vi uma das minhas antigas mulheres a mudar de direcção para não passar perto de mim quando me divisou de longe, então percebi o nível em que estou. Na verdade sei da minha abominação, que já não me dói. Tenho as malas aviadas, cheias de memórias. São elas que me acompanham em forma de músia, em cujo refrão ribomba esse verso cataclítico que diz assim, quando estiveres a atravessar o inferno, não pára de andar. E eu não páro de beber.

 

Abdiquei das ilusões, recuso-me a sofrer. É por isso que estou em contacto permanente com a morte, na minha esperança cheia de demora. Não temo nada, nem a guilhotina que vai descer em vibração ao encontro da minha carne. Eu sei que depois destas farpas todas que me cercam, triunfarão as harpas. Para gáudio do blues.

 

Os meus amigos zarparam. Todos. Fugiram do cheiro que exalo das minhas palavras incongruentes. Têm vergonha de mim, por isso ao lhes ser perguntado se me conhecem, respondem que nunca ouviram falar desse indivíduo que sou eu. Virei-me para um deles, num dia de chuva em que, por coincidência estávamos os dois abrigados num alpendre da cidade, e perguntei assim, vocè não me conhece, irmão? Ele disse que não, não me conhece.

 

Depois de beber quero falar. Cai sobre mim a necessidade irresistível de repetir histórias fascinantes do passado. Quero cantar em surdina as músicas dos meus ídolos, mas ninguém me ouve, e isso aumenta as minhas feridas que não páram de sangrar por dentro. O pior é que já não me permitem a entrada nos bares, nem nos esconderijos imundos onde se bebe aguardente de cana em copos jamais lavados.

 

Então, toda esta rejeição significa que os meus convivas são os arautos do próprio diabo, o Lúcifer. São eles que me vão acompanhando com todo o rancor à câmara de cianeto, e eu não posso fazer nada, as minhas forças esvairam-se na bebida. Transformaram-me em desperdício. O meu relógio deixou de marcar as horas que sempre foram cruciais para a renovação do amor. Agora é indiferente que seja manhã ou tarde ou noite, vivo abandonado no escuro, sem mais dúvida alguma de que serei executado no próximo pricipício. Mas enquanto a morte não chega, deixa-me beber.

quarta-feira, 24 novembro 2021 10:34

Carta às minhas sete ex-mulheres

É  verdade! Depois desse mar todo de amor que despejavam sobre mim, sem que eu desse conta do tesouro que isso representa, escolhi a reclusão da solidão, que na verdade é um jardim sem limites, porém desprovido das flores que eram vocês as sete, na mesma intensidade, cada uma no seu tempo. Agora vivo das vossas lembranças. Do vosso cheiro que ainda me percorre sem parar em todas as veias do meu sentimento. É como se ainda me pertencessem, como se ainda, na profundeza das noites, fosse sentir o vosso peito macio tocando-me nas costas.

 

Cheguei a conclusão, sem que para tal fizesse qualquer exercício mental, que vocês as sete amavam-me da mesma maneira, no sentido de que o que mais queriam de mim era a minha felicidade. Eu era o vosso mote. Partiam com esperança e anseio para diversas searas como os pássaros que saem dos ninhos a procura de provento, eu era a vossa rampa e porto de retorno. Ao regressarem, cada uma no seu tempo, eu era o poiso onde assentavam o corpo suado. Desejoso de mais uma noite de amor.

 

Mas mesmo assim, com a vida levada em órbita, foram percebendo em cada momento do nosso convívio, que afinal serei uma decepção, eu também senti isso. Sabia da minha incapacidade de amar. Tinha consciência do meu imerecimento do amor. Do vosso grande amor que até hoje não abandona os meus pensamentos. E vocês as sete lutavam pelo ajuntamento de ouro para mim, e eu levei esse ouro e coloquei-o no focinho dos porcos, e depois virei-vos as costas sem me preocupar em levar nada, desvalorizando o vosso suor vertido. Em vão.

 

Hoje quando me lembro dos vossos olhares dormentes na ressonância do sexo que faziamos em cascata, sinto que nunca fui pessoa para ser amada por nenhuma de vocês as sete, mas  isso corta-me o coração aos pedaços, sobretudo porque nunca se esqueceram de mim, depois destes anos todos que passaram. Jamais se riram dos meus fracassos enterrados nas bebedeiras absurdas. Antes pelo contrário, vocês as sete querem que eu volte a ser feliz, como quando o meu coração estava nas vossas mãos. Sei disso através das pessoas com quem comentam em ocasiões, querendo saber como estou.

 

Eu já não falo de vocês, limito-me a agradecer os momentos intensos que me ofereceram. De graça. Sem o merecer. Sinto-me feliz por saber que os vossos caminhos estão cheios de luzes. Então peço a Deus que coloque mais petróleo nos candeeiros pendurados nos postes da vida prenhe que merecem, para que não se apaguem. E a mim, deste lado, no meu celibato, o que me resta neste fim de estrada, é fingir que sou um cantor de blues, isso torna-me vital.

 

Obrigado, minhas sete ex-mulheres, pelos laivos de felicidade que experimentei convosco. Depois disso tornei-me um vagabundo, que mesmo assim ainda acredita no futuro. E acredita também que no dia da minha morte, vocês as sete não se esquecerão de levar flores para embelezar a campa deste vosso ex-marido que não presta para nada.  

quinta-feira, 11 novembro 2021 07:55

Os últimos momentos de Mariano Nhongo

Não pára de fumar mbangui (cannabis sativa), cultivada ali mesmo, nas montanhas. Há dois meses que não sai da cubata construída debaixo de uma gigantesca árvore, cuja copa transborda o tecto do casebre, tornando o ambiente ainda mais sombrio. Está mais magro do que a última vez que apareceu na televisão, ostentando a arrogância  que no fundo é uma fachada, Nhongo não tem certeza de nada.

 

O general está em delírio, a cada dia que passa vai perdendo descernimento. Nunca soube o que é tremer em momentos cruciais, quando em combates ferozes a vida dele tinha que triunfar, mas agora treme profundamente, tenta buscar equilíbrio no mbangui e no dolo (aguardente de frutos silvestres), porém a realidade é implacável, o homem está em derrocada. Passa as noites de pé, tentando trepar as paredes da sua casota como um lagarto desesperado. Grita chamando por Afonso Dlakama, “vamos fugir, comandante, o inimigo está aqui perto!”.

 

Os soldados estão com medo. Se continuarem com Nhongo serão mortos pela avalanche da tropa governamental que progride naquilo que já está parecendo uma passeata em direcção ao cume, onde um general inteiro passa a vida como um sonâmbulo, sem a verve de uma luta que não se sabe se alguma vez fez sentido. Se fugirem dos acampamentos e tentarem entregar-se, podem ser castrados. Outra ideia seria matar o general, e os seus sequazes já o viram crivado de balas para no dia seguinte aparecer novamente vivo! Mariano Nhongo é imortal!

 

Ontem saíu do casebre e veio cá fora reunir-se com as altas patentes do seu exército já moribundo. Incapaz de fazer algo a não ser os laivos sanguinários e injustificados nas estradas. Estava visivelmente ébrio, e os soldados temem-no quando está naquele estado. Tentou articular algumas palavras mas o que ele conseguia era balbuciar como um condenado a morte já em estado de incosciência, após a injecção letal. Mesmo assom ainda conseguiu dizer de forma clara, naquela reunião inesperada, que jamais se entregaria, “eles que me venham matar!”.

 

Mas o que o general diz é mentira. Nhongo está a tremer. O chão que pisa, treme também. Nas noites os mochos fogem das redondezas, já não piam nas suas sinfonias arrepiantes, e isso significa que o homem está no fim da linha, ou por cima da calçada, onde não pode cair nem para um lado, nem para o outro lado. A calçada é a dolo  que bebe como um louco, e o mbangui, que lhe alucina e leva-lhe aos combates fratricidas que a história vai registar num livro lúgubre.

 

Os homens que formam a corte de Mariano Nhongo nem sequer têm perguntas para fazer a um búfalo ferido, que no lugar de ir contra o obstáculo, agora foge e esconde-se no dolo e na cannabis. Uma cannabis que outrora dava-lhe vigor, mas que agora definha-lhe o corpo e alma. E a mente baralhada, eu também sou ndawu como o general Dlakama, apesar de ter nascido na Zambézia! Não sou estúpido a ponto de me entregar a pessoas sem testículos. Eles sabem que não têm testículos, é por isso que querem os meus. Então que os venham buscar!

 

Estas são as palavras frequentes que se ouvem de um general atarantado. Amedrontado. Que caminha no escuro, sozinho. Ele já não tem dúvida sobre a guilhotina que vai descendo devagar, dando-lhe tempo para que todo o medo se materialize até as profundezas do seu ser, antes de decepa-lo. Nhongo  sabe dessa espada irrversível. Perdeu a capacidade de controlar o sistema úrico. Então não lhe resta mais nada senão esperar, pelo último pio dos mochos.

quarta-feira, 03 novembro 2021 09:25

António Jamal: um locutor anarquista

No sentido de que defende a liberdade individual. É um personagem que se destaca - cá fora - pelo cachimbo dependurado nos lábios. Pelas botas também. A Beatles. Sempre engraxadas à boa maneira dos quelimanenses, talhados para gingar, sem soberba. Mas é a forma como ele encara o  estúdio, onde exorcisa os demónios, que vai fazer com que as pessoas do seu tempo, e muitos outros antes do seu tempo e depois, fiquem colados ao rádio quando é ele a trabalhar. 

 

Há músicas que António Jamal toca, e que noutras rádios jamais serão ouvidas. Ele recusa-se a seguir os padrões estabelecidos pelos princípios de radiodifusão, e entra pelo atalho que ele próprio criou, marimbando-se para as regras. Comunica na cabine como se estivesse na mesa com os seus amigos a beber café, em mangas de camisa, numa cavaqueira sem fim. É um marinheiro que prescinde dos remos para levar a sua mwandiya (almadia) ao destino. Os remos são a música.

 

Uma das melhores formas de você envelhecer sem dor, é escutar António Jamal, no Rádio Desporto da Rádio Moçambique, “à caminho das 13”, entre o Índico e o Atlântico. Na velhice não se fala do futuro, o futuro é este presente. Então, tudo o que Jamal tira cá para fora, é o testemunho do passado. Não importa o que vem. O que importa é o edifício que este locutor está constantemente a renovar, com os mesmos materiais, que nunca mudam.

 

Provavelmente estejamos em presença de um grande defesa, não como Joaquim João, mas um defensor desse património que é a música de outro tempo. Que muitos teimam em querer apagar da forma mais inculta. É isso! Enquanto a juventude inventa estrelas, António Jamal nunca quis ser estrela, ele brilha assim mesmo. Com luz própria. Tocando música que ajuda a evelhecer com alegria.

 

Pois é! Jamal pode estar aqui em baixo - no sopé - parecendo um taciturno sem nada nas mãos, mas não é isso que conta. Pode ser ainda que os seus  pulmões estejam a bombear cada vez menos oxigénio, ou os “vedantes” a vacilarem. Seja como for, o que ele faz é feito no cume, valorizado por uma música cuja melodia é filtrada pelo fogo. E pelas palavras. As mesmas palavras daquele tempo. Sempre novas.

quarta-feira, 27 outubro 2021 13:06

Agora que os bares abriram

Sabe bem uma grande caneca de cerveja nesta manhã em que estou aqui, sentado na esplanada do Hotel Tofo-mar. Outra vez. À semelhança de todas as vezes que tenho vindo a este lugar que a vida oferece-me. De graça! É como se toda a existência  fosse esta síntese, ou seja, como se tudo se circunscrevesse na praia e nas dunas e na música orquestrada pelas ondas que não páram de se esbater na terra. Em constante progressão lenta. Porém, irreversível.

 

O líquido que parece ouro, borbulha sem parar no interior da caneca, transmitindo a mensagem de que a cerveja está viva, e isso reconforta-me. Significa que eu também estou vivo. Como as gaivotas que voam em voo rasante por sobre o mar do Índico, ao encontro dos seus destinos, é lindo. Há uma combinação perfeita entre o oceano que está aqui mesmo, aos meus pés, as dunas violadas, os pássaros marinhos, o silêncio. E eu, que me entrego totalmente a liberdade.

 

Para além da minha, há uma outra mesa ocupada por dois casais de raça branca, entrados na idade. Falam tão baixo que não consigo perceber que língua falam, mas também estaria pouco me lixando com isso, não fosse o facto de estarem a beber cerveja como eu. Em grandes canecas. No mesmo lugar. Com a mesma protecção do Índico.

 

Estou na quinta caneca e já transpus a atmosfera. Levito no cosmos, onde as coisas não dependem de mim, mas da falta de gravidade. Sinto um grande prazer como se a minha alma, ela própria, tivesse asas de águia. Plano em toda a dimensão do espaço que vai sendo criado pela minha imaginação. Pelo efeito do álcocol que me vai entranhando. Sou um homem livre e, desde que estou aqui há mais de quatro horas, ainda não chegou mais  ninguém. Os  dois casais que partilhavam comigo a esplanada, bateram as asas como passarinhos cansados que agora carecem de repouso.

 

Pedi mais uma caneca, a sexta. Sem saber ao certo se seria a última ou não. Cada gole que viro goela abaixo, é um degrau que subo em direcção a libertação, e a memória abre-se como a luz do amanhecer que nos traz novas auroras. Sinto leveza no meu interior e descubro-me a repetir em surdina as músicas que aprendi a ouvir nos discos da Rádio Moçambique, nos tempos em que a locução era a minha jangada.  Então quer dizer que estou em órbita.

 

Mas o dia está a entardecer sem contemplações, deixando-me todas as suas marcas  para que eu possa recordar-me de tudo amanhã. O mar  ensorberbece-se, meio furioso, em maré cheia, como que a dizer, vai para casa! Na verdade estou aqui desde o meio da manhã e já são 16.00 horas. Estou saciado. Pelo camarão que comi. Pelo ambiente do mar em harmonia com as dunas e as gaivotas. Pela cerveja bebida numa grande cabeca. Em paz e em liberdade.

Há dois que não fecha os olhos. Não pestaneja. O médico que cuida dele está em desespero. Recorreu aos colegas, que responderam de imediato, mas a situação não muda. Nem para frente, nem para trás. Tentaram induzi-lo com aparelhos, na esperança de trazê-lo à estabilidade. Sem sucesso. Chegaram a pensar no sistema de respiração boca-a-boca, ideia imediatamente reprovada por se mostrar desnecessária. Os pulmões de Mbata Mapengo não pararam de respirar.

 

Nunca foi visitado por familiares desde que está aqui, não se conhece nenhum. Nem por amigos. Chegou ao hospital em estado de coma, após ter sido sacudido por um camião, cujo condutor nem sequer parou para alguma coisa, como se Mbata Mapengo fosse um cão. Foi uma mulher generosa, se calhar uma samaritana, que, passando casualmente pelo local do sinistro, parou o carro e levou o homem ao centro de saúde.

 

Parece um cadáver, naquela posição chocante, coberto de lençóis brancos em todo o corpo, deixando apenas a cabeça que me lembra a mulher árabe adúltera, enterrada até às axilas, com o “crâneo” à mercê das pedras. Mbata Mapengo pode estar assim, se calhar na expectativa de que haja algum milagre que lhe permita dizer a última palavra antes de morrer.

 

Entrei para o interior da enfermaria – onde ia visitar um vizinho -  e alguém me disse que aquele senhor não fecha os olhos há dois dias. Não fala. Não pestaneja. E, segundo relatos que vão me chegando dos doentes e dos visitantes, os médicos não sabem o que fazer. Para eles, este homem não está nem morto, nem vivo. Está em estado de dúvida. Provavelmente em estado de talvez.

 

Aproximei-me do desafortunado, por instinto, sem saber o que ia fazer perante um cenário macabro. Os próprios médicos e os enfermeiros e outros agentes da saúde, tinham capitulado. O corpo de Mbata Mapengo recusava-se a receber sondas. Houve ainda a ideia, acreditando no que se diz nos corredores, de alimenta-lo  por via retal,  porém, esse recurso desconfortável não chegou a materializar-se. O anus estava duro de tal ordem que se tornou inviável esse procedimento.

 

Mas eu cheguei perto de Mbata Mapengo. Olhei-o nos olhos e em resposta a minha ousadia, recebii profundos arrepios na medula. Cheguei a conclusão de que tinha ido longe demais, e agora não me resta mais nada senão render-me  a asfixia. Ou seja, os olhos que não se moviam há dois dias, pestanejam agora perante mim, . Mbata Mapengo saúda-me com os olhos, perfurando-me todo o interior. Então, estou completamente apavorado.

 

Mbata Mapengo moveu os lábios. Balbuciou. E as únicas palavras que ainda consegui captar nesse balbúcio, referiam-se ao juiz Efigénio Baptista. Eram sílabas desarrumadas. Inexpressíveis.  Retalhadas. Mesmo assim esforcei-me a junta-las, tendo conseguido traçar uma linha que dizia assim, tenho pena do juiz Efigénio!

 

Mbata Mapengo ia dizer mais alguma coisa. Nada! Os lábios voltaram a cerrar-se. Os olhos fecharam-se, e logo a seguir ouviu-se um vibrante e profundo suspiro, que levou toda a enfermaria ao silêncio de sepúlcuro.

quarta-feira, 13 outubro 2021 08:24

Não se tira fotografia a uma mulher grávida

Escrevo este texto em memória de Raul Honwana, que viveu a vida inteira na profunda cegueira, porém gotejando luz para os outros, que não eram cegos como ele. Já o fiz antes, em muitas ocasiões, inclusive em ambientes de paródia, e isso reconforta-me. Dá-me a sensação de que há um rugido do tempo sobre mim, que me apela a urgência de viver. Percebi que a cegueira é uma intensa luz que só os os próprios cegos entendem, e quando comunicam connosco, surpreendem-nos com detalhes que, mesmo estando ao nosso alcance, não conseguimos decifrá-los.

 

Há duas semanas que venho acompanhando os movimentos de um casal em que o marido é cego, e a mulher desfruta em pleno das cores da natureza, andam sempre abraçados. Parecem dois siameses que não terão outra escolha que não seja a de descerem juntos pelos desfiladeiros íngremes da vida vida. Mas também, quando chega a vez de explodirem em gargalhadas, explodem juntos, como crianças que se contentam com uma simples pipoca.

 

A última vez que os vi, estavam sentados na varanda da loja do Madobole (Fonte Azul – cidade de Inhambane), vendendo duas cabeças de repolho murcho. Ninguém se aproximava deles, provavelmente por serem andrajosos. Dói dizer isso, mas o cheiro que eles exalam, vai contribuir para o afastamento dos potenciais compradores. E os dois nem sequer sabem que são repelentes. Mesmo que chegasse alguém e comprasse todo aquele pouco, o dinheiro que iriam receber serviria para quase nada, mas esse pouco será muito na sua condição.

 

Aproximei-me deles, ignorando a repulsa que emanam. Estou cmpletamente arrebatado pelo cenário de amor que expelem, sem se importarem com tudo o mais à sua volta, nem com as pessoas que não vêm comprar o que vendem, sentados no chão. É tudo  isso que perturba os meus sentimentos. É isso que me leva a chegar mais perto, não exactamente para inalar o cheiro nauseabundo do casal, mas para inalar o cheiro do amor, que tanta falta me faz.

 

Saudei-lhes e perguntei se podia tirar uma foto. Queria falar deles, partilhar a sua história nas redes sociais, mas o marido respondeu prontamente que não, porque, segundo ele, não se tira fotografia a uma mulher grávida. Capitulei. Não fiz mais perguntas, não queria continuar a ser incoveniente. Até porque estou saciado pela imagem esplendorosa, como o amor, que os dois vêm oferecendo-me há duas semans. Isso basta-me.

 

É isso: a mulher, jovem e linda, tristemente suja, estava grávida, e eu pensei: quando a criança nascer, o quê que a vão dar, se eles próprios não têm nada! Quem vai dar banho ao bebé, se eles próprios não tomam banho! E a resposta chegou-me imediatamente: se este casal não tem nada e vive feliz, então a criança que vai nascer, também será feliz. Sem nada. Como os pais.

segunda-feira, 27 setembro 2021 07:31

Mataram a poesia de Khudzi Nhassengo

Não se cansa de dizer que destruíram a beleza da Maxixe. Repete isso,  sempre que procura o mar, a partir do antigo Hotel Golfinho Azul, e não o vê. O próprio Hotel perdeu o sentido da sua existência, por isso fechou e está a cair por si mesmo, implodindo no silêncio da dor. O que dói é que ninguém se importa com a derrocada desse símbolo tão importante, agora transformado. Em mamarracho.

 

O Hotel Golfinho Azul tem uma esplanada que se escancarava para a baía, deleitando não só os que nela desfrutavam da vida, mas os transeutes anónimos, aos quais bastava a espectacularidade do lugar, que entrava em harmonia com o miradouro, do outro lado da estrada. É essa memória forte que fere a poesia de Khudzi Nhassengo, mulher incapaz de reunir os pedaços espalhados na raiva de conviver com a anarquia. Com a incultura.

 

Ocuparam o miradouro, privatizaram-no, construindo um restaurante que leva o nome de “Stop”. Khudzi Nhassengo insurgiu-se contra esta acção, considerando-a uma violação ao nosso direito colectivo de estar ali, a contemplar a arrebatante paisagem que inclui o arquipélago de Mucucune e a Ilha de Inhambane. Gritou, implorando que não cometessem tamanha agressão ao meio ambiente, sobretudo à alma das pessoas. Ninguém lhe deu ouvidos.

 

O Hotel Golfinho Azul só se tornaria essencial com o miradouro. Sem isso, perderia os pulmões. Sem os pulmões, deixaria de respeirar, e sem respirar, morreria, como agora que morreu, sobrando apenas o esqueleto que vai sendo corroído pelo tempo. E o restaurante “Stop” só serve a elite, que goza num lugar que é nosso. Que pertence a toda cidade.

 

Maxixe era um lindo poema virado para o mar. Havia duas esplanadas que conviviam em consonância: de um lado a “Pousada da Maxixe”, do doutro lado o Hotel Golfinho Azul. E, como o belo atrai o belo, então  baía e esses dois empreendimentos hoteleiros, cantavam a mesma música. Da beleza.

 

Khudzi Nhassengo recorda-se dessa espectacular imagem gravada na memória e no coração, e fica triste. Muito triste ao concluir que todos nós fomos desperezados. Ignoraram-nos como aos vermes. Fecharam a parte frontal da Maxixe e ergueram construções em toda a dimensão da fachada por onde passam os viajantes, sem poderem sequer sentir a aragem do mar e apreciar a natureza que trouxe de volta os flamingos.

 

Feriram a poesia de Khudzi Nhassengo com estúpidos edifícios, como no tempo em que as mulheres eram dolorosamente tatuadas no rosto, matando a janela inteira do corpo, e o poeta já dizia: o rosto é um pouco a janela da alma. E Maxixe perdeu essa alma. Para sempre!

Mandei várias mensagens (SMS) ao ilustre presidente do Município de Inhambane, com o meu nome devidamente assinado, a alerta-lo sobre a má qualidade das vias de acesso pavimentadas, que têm sido construídas nos bairros. Guimino ignorou-me. Recorri ao facebook na tentaiva de uma maior visibilidade, porém, o silêncio que me chegou foi pior que o primeiro. Cruzei-me com ele algumas vezes, e a minha expectativa era de que provavelmente fosse abordar-me. Nada!

 

O que me dói não é o silêncio do edil, mas sim, o facto de termos zonas de expansão com ruas cujo pavêt, para além de não assentar em bases sólidas e niveladas, está a desintegrar-se precocemente. Não precisamos ser engenheiros de construção de estradas para perceber que aquilo não tem absolutamente nenhuma qualidade, mas a caravana continua a passar, e eu sou integrante da matilha que não pára de ladrar. Em vão.

 

Não sinto que haja, por parte de Guimino, alguma perespectiva de futuro, como o fez Narciso Pedro, ex-presidente do Município da Maxixe, que deixou uma cidade infraestruturada de modo a suportar o crescimento. Os “maxixenses” têm orgulho desse  homem audacioso, talhado para enfrentar pedregulhos, e foi contra toda a resistência, em nome do desenvolvimento. Em nome do futuro.

 

Guimino parece estar a pensar no agora, e essa não é a vocação de um dirigente elegido para trabalhar a bem da comunidade. Por exemplo, ainda não percebi a prioridade da rua que sai do “Mercado do Peixe” até ao cemitério Maometano. É uma via muito forçada, sem espaço para drenagem, e no dia que a chuva vier, há um grande receio de que as casas sofram por demais. O mesmo pode acontecer com a rua da “COGEMO”, até ao Posto Médico de Muelé.

 

De que valerá, o presidente Guimino fazer estas coisas apressadas, para logo a seguir desmoronarem? Que orgulho terá, do trabalho que está sendo feito neste momento? Eu falei-lhe destas minhas inquietações nas mensagens enviadas ao seu telemóvel, na esperança de que estivesse a contribuir para ajudar em alguma coisa. Enganei-me!

 

Benedito Guimino podia fazer muito mais sobre a limpeza da cidade de Inhambane, que já perdeu o estatuto de mais limpa do país. Podia nos ajudar no combate a poluição sonora, envolvendo as estruras do bairros, mas, ao que parece, há uma grande incapacidade ou desinteresse em investir nesta área importante, que interefere no bem estar da população. O próprio mercado central, é pólo de poluição sonora, e nem os polícias municipais, nem os vereadores, que passam por ali todos os dias, conseguem agir para travar esta agressão à tranquilidade.

 

Eu ainda disse, nas mensagens a que tenho feito alusão, ao ilustre Guimino, que ele devia lutar muito, para que, ao sair do cargo, andasse de cabeça erguida na sua cidade. Orgulhando-se do que terá feito. Mas, pelo que vejo, duvido muito que consiga isso, pela má qualidade das obras, em particular das vias de acesso, que deixam muito a desejar. Se calhar, também, por incapacidade de nos devolver a limpeza da cidade, e fazer qualquer coisa pelos mangais, tornados depósito de lixo. E por muito mais!

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