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Actualizado de Segunda a Sexta

Nando Menete

Nando Menete

segunda-feira, 14 outubro 2019 07:15

Peço “Distras”!

Das brincadeiras de infância - na zona ou na escola - de certeza que se lembram do termo “distras”. Recorria-se a ele no momento em que um dos integrantes da brincadeira em causa fosse, por exemplo, chamado pela mãe (na zona) ou se quisesse ir a casa de banho (na escola) e o visado (ou aflito) proferia o “distras” como um sinal para a interrupção da referida brincadeira. E esta recomeçava – de onde descontinuara- com o seu regresso.
 
No período em que vigorava o “distras” era uma ocasião de proximidade entre as partes da brincadeira. Um momento de harmonia, conversa amena e de afectos. O mesmo conceito pode ser tomado para qualificar algo semelhante na nossa democracia/política: os dias de fraternidade entre o fim de uma campanha eleitoral (sábado) e o do dia de votação (terça-feira). Sendo assim e por estes dias é caso para dizer que se está diante de um “distras” na nossa democracia/política. 
 
E depois do “distras”? Infelizmente – nem sempre - o cavalheirismo reinante no período do “distras” é transportado para o período posterior. Assim era (é) na retoma da brincadeira de infância. E desde 1994 - na nossa democracia/política - testemunham os períodos posteriores aos dias de votação.
 
Tudo isto foi para apelar para que o dia seguinte à votação (15 de Outubro) a nossa democracia/política continue a viver e eternamente sob a égide do “distras”. Um “distras” realmente de paz geral, sem hostilidades e definitivo. Uma razão mais do que suficiente para instar a todos os destinatários: peço “distras”! 
 
PS. Nas brincadeiras de infância um outro motivo para o pedido do “distras” era (é) a desistência do(s) proponente(s) face às exigências da brincadeira em causa. É expectável que assim seja – e a mesma maturidade - com os protagonistas da nossa praça política em obediência às exigências da democracia.

Conheci Anastácio Matavel num seminário na  província de Gaza em Outubro de 2001. Na sala de conferências do munícipio de Xai-Xai ele estava sentado numa das cadeiras da frente. A partida pensei que estivesse diante de um descendente de Ngungunhana (ou mesmo do próprio), o último imperador de Gaza, tal o porte e o jeito de sentar. Também chamou-me atenção - durante as apresentações dos temas e no debate - a sua notável concentração e a exposição das suas dúvidas, questionamentos e comentários. Uma característica, incluindo sentar a frente, que lhe era congénita conforme e desde então fui certificando.

 

O seminario foi no  âmbito de um programa de divulgação de assuntos sobre a dívida externa de Moçambique e do Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA). Eu fazia parte de uma equipe de activistas do Grupo Moçambicano da Dívida (GMD) que se deslocou à  Gaza para orientar um seminário e dai a instalação de um Núcleo Provincial do GMD. Deste núcleo seriam eleitos 03 representantes a fim de participarem - no mês seguinte - num seminário nacional na cidade da Beira, província de Sofala. No ano anterior (2000) o mesmo tipo de seminário tinha decorrido nas outras províncias e que por conta das cheias do mesmo ano não foi possível em Gaza.  

 

O propósito do programa era a disseminação dos resultados positivos da campanha internacional para o cancelamento da dívida externa (Jubileu 2000) e do principal condicionalismo imposto pelos credores - capitaneados pelo Banco Mundial - aos países beneficiários do alívio reforçado da dívida, os ditos países pobres e altamente endividados e que incluía Moçambique na lista. Estes países deviam possuir uma estratégia de redução da pobreza (o nosso PARPA) de médio prazo (5 anos) e que contasse com a participação da sociedade civil na sua elaboração, implementação, monitoria e avaliação. Um condicionalismo que a sociedade civil recebeu com simpatia, pois constituía uma oportunidade efectiva para participar e influenciar o rumo dos processos e políticas de governação em Moçambique.  

 

Na altura e  era estratégico que depois de apresentado o tema era  recolhido o feedback e só depois do intervalo é que se debruçava sobre os dados colhidos. Assim e durante o “lobby” do intervalo, dava tempo para esfriar os ânimos dos mais críticos e até dos hostis com uma dose de empatia, fora a do frango do almoço. E nesse dia, no intervalo do almoço, sentei-me com o Anastácio Matavel.  Foi o nosso primeiro encontro de tantos que se seguiram.

 

Em Novembro de 2001 voltaria a ver o meu amigo Matavel no evento da Beira. No encontro nacional em seguimento das sessões provinciais de divulgação. De todas as províncias participaram representantes e o encontro resultou na consolidação da implantação dos Núcleos Provinciais do GMD e da estratégia nacional de participação da sociedade civil nos processos de governação, sendo o PARPA a porta de entrada.

 

Desse evento retenho um momento que aos olhos de hoje classifico de grande alcance estratégico e que teve influência significativa no trabalho que a sociedade civil moçambicana viria a desenvolver. No primeiro dia, depois da apresentação sobre o PARPA - na verdade sobre o que devia ser um PRSP (Poverty Reduction Estrategy Paper), na linguagem do Banco Mundial - a sessão termina com a pergunta: de onde começar para monitorar o PARPA?

 

Uma vez que a participação na elaboração do PRSP/PARPA não seria possível pois o documento já havia sido elaborado e submetido ao Banco Mundial no âmbito do alívio da dívida, a leitura foi de que a participação não se esgotava no processo de elaboração. Aliás, um dos requisitos de um PRSP/PARPA era de que fosse um documento rolante e dinâmico o que abria espaço para novos “inputs” no seu processo de implementação. 

 

Na noite desse dia e porque teria que apresentar no dia seguinte a proposta da estratégia do GMD para a participação em todas as fases do PRSP/PARPA compulsei um dos documentos do Governo e nele estava escrito que para a implementação e monitoria do PRSP/PARPA não se produziria nenhum documento adicional e que para o efeito seriam usados os documentos operacionais anuais do Governo: o Orçamento do Estado (e o seu relatório anual de execução) e o Plano Economico e Social (e o respectivo balanço anual). Adicionei este item na apresentação da estratégia do GMD e pouco antes de terminar uma mão já estava no ar: era o suspeito do costume, Anastácio Matavel. 

 

Em poucas palavras e no seu tom de imperador, Matavel disse que doravante tudo passava por nos concentrar nos documentos anuais de governação e de que urgia conhecer profundamente tais documentos. No final da sua intervenção foi ovacionado em cadeia nacional. Foi algo como o primeiro tiro para o início efectivo da participação da sociedade civil na monitoria da governação. Um momento histórico que recorda um outro: o do tiro de Alberto Chipande que deu inicio a luta de libertação nacional.  

 

E foi do tiro de Matavel a gênese de um programa nacional e ambicioso de divulgação e formação rumo a monitoria anual do PARPA 2001-2005 (PARPA I) e tendo como horizonte a participação efectiva da sociedade civil na sua revisão e elaboração do que seria o PARPA II (2006-2009) em 2005. E neste exercício e outros da sociedade civil que se seguiram contou com a mão crítica e a sabedoria de Anastácio Matavel, em particular no comando da província de Gaza, sendo o fundador e o impulsionador-mor da cidadania nesta província.

 

Na passada segunda-feira, dia 07 de Outubro, volvidos 18 anos do nosso primeiros encontro e por coincidência na hora do almoço e na companhia de um amigo, recebo uma chamada que me informa que o Anastácio Matevel foi baleado por volta das 11 horas na cidade de Xai-Xai e que veio a perder a vida duas horas depois no Hospital Provincial. Eu ainda permanecia em linha e o amigo que estava comigo – depois de “googlar” sobre o baleamento de Anastácio Matavele – mostrou-me o resultado: era de facto Anastácio Matavel. O “Parpa” como carinhosamente nos tratávamos em homenagem ao nosso primeiro encontro.

 

Da última vez que falei com o amigo Anastácio Matevel foi no mês de Junho passado. Liguei para ele depois de acompanhar uma notícia televisiva sobre assuntos internos de funcionamento do FONGA, o Fórum de ONGs de Gaza que ele liderava. Do outro lado da linha o habitual “Viva Parpa”. E porque ele sabia a razão da minha ligação tratou de dizer que tudo estava a funcionar dentro da normalidade, tendo até citado algumas actividades em curso. Era o Matavel no seu melhor.

 

Na despedida ele disse e repetiu que os anos de combate cívico tornara-o resiliente a intempéries internas e externas. Infelizmente a sua resiliência não cobria a resistência a uma tempestade de balas. E de balas perdemos o Imperador (da cidadania) de Gaza e um activista de dimensão nacional e além-fronteiras. 

 

Saravá, Imperador Anastácio Matavel!

quarta-feira, 02 outubro 2019 06:32

Pim, Pam, Pum…

De cinco em cinco anos e por 45 dias o país vive sob o manto festivo de jornadas de teatro político onde a arte de encenar é uma qualidade bastante apreciada e aplaudida. Tenho estado a acompanhar e até ao momento – para efeitos do próximo mandato - não me simpatizei com nenhuma das peças postas ao crivo popular. Aliás, fora as cores, nada as diferencia. E se tivesse que responder a um inquérito sobre a qualidade do que é apresentado a minha resposta seria bem à brasileira: bota ruim! 
 
 
E a propósito do “bota ruim”: uma vez no Brasil tive que responder a um inquérito sobre a qualidade de um determinado evento em que participara. O inquiridor - que me interpelou no aeroporto e de regresso ao país - depois de explicar os propósitos, argumentou e pediu encarecidamente que eu escolhesse a opção “ruim”. Concordei com os fundamentos e fui mais a fundo, assinalando a opção “muito ruim”. Oxalá tenha sido útil.
 
 
Trago isto a terreiro porque nas eleições, pelo menos em Moçambique, a opção “ruim” ou outra - “não sei” ou “nenhum deles”- não faz(em) parte do boletim de voto. Desde as primeiras eleições (1994) que me abala ter que escolher candidatos entre os que a partida não me apresentam razões fiáveis que justifiquem o meu voto. 
 
 
Tenho dito, salvo melhor entendimento, que o modelo de boletim de voto que é usado não está concebido para o voto que se queira racional. No mínimo exclui uma parte das conclusões do exame que o eleitor faz dos manifestos dos candidatos. Em caso de manifesta discordância com todos os candidatos o boletim de voto não oferece nenhuma alternativa para expressar essa vontade.  
 
 
Apresentei a preocupação a um grupo de amigos e em outras esferas. Grosso modo o conselho é de que que (i) inutilize o boletim, votando em mais de um candidato (por exemplo), (ii) deixe o boletim em branco e (iii) não se apresente no dia de votação, adensando por ai a baixa taxa de participação eleitoral. 
 
 
De forma sucinta, das três sugestões, a primeira e a terceira estão claras e não alinho. A segunda é problemática. Deixar o boletim em branco, fora o risco de ser reciclado, não expressa de forma inequívoca que nenhum dos candidatos é a escolha. Por exemplo, o voto em branco pode significar que o eleitor não se importa que seja um ou outro candidato a governar. O que é diferente de dizer que nenhum dos candidatos é a escolha certa para governar. De resto, estou convicto que este tipo de feedback é de capital importância para a saúde democrática do país. 
 
 
E no contexto das baixas taxas de participação eleitoral talvez por aqui se possa explorar alguma racionalidade na decisão dos que não vão votar. Em parte a solução – ir votar – passe pela reformulação do boletim de voto. Ciente de que não se vai a tempo para influenciar quem de direito a adequar o boletim de voto para uma variante mais democrática fica a reflexão nesse sentido e, obviamente, ressaltando se faz algum sentido. 
 
 
Enquanto isso e observando todo o enredo exposto acima, no próximo dia 15 de Outubro, irei recorrer ao método do “Pim, pam, pum…” na hora de sinalizar o “X” no candidato. Tentei uma das cores, mas “desconsegui”. Está muito ruim. Mas quem sabe se da mata densa ainda saia um coelho nos dias que restam da campanha. Oxalá!
segunda-feira, 30 setembro 2019 06:03

Samora e Eu (cont.)

Ao fim de quase cinco minutos a porta deixa de bater, dando lugar a um duplo silêncio: o meu e o da batida da porta. E do outro lado da porta uma voz anuncia que o “boss” (Samora Machel) mandou avisar que passará depois das eleições, pois o tempo eleitoral não é propício para visitas que não sejam de caça ao voto. Confesso que a notícia foi um alívio e assim preencho o resto da noite com algumas e pequenas lembranças de episódios urbanos de protesto pacífico nos tempos de Samora Machel.

 

Por muito tempo guardei de pequeno a imagem de um marinheiro branco da tripulação do barco à gasolina que fazia a travessia Maxixe- Inhambane. Da escadaria da porta do barco, o marinheiro contemplava nostálgico as ondas do mar como se estivesse a despedir de algo especial e que também lhe pertencia. Recordo que eu me interrogava: o que será que ele tanto vê nas ondas? Na segunda visita de Samora Machel tive a resposta: eram as ondas da liberdade. As ondas que naufragaram quinhentos anos de domínio colonial. E de certeza que foram as mesmas ondas que depois da independência comprimiram paulatinamente a liberdade conquistada.

 

Na época, à escassez de alimentos se juntou a de liberdade. E uma das formas de protesto foi o significado que o povo atribuía ao nome das marcas dos automóveis que circulavam com dirigentes na altura. Os famosos LADA e NIVA. Estes automóveis, para quem não se lembra ou que não saiba, proviam dos países ditos aliados naturais e socialistas: as defuntas URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e a RDA (República Democrática Alemã). O LADA ao passar pelas artérias da cidade o povo, em voz baixa, dizia: Leva Atrás Dirigente Analfabeto. E a resposta vinha logo no carro seguinte, o NIVA: Não Importa Vamos Andando.

 

Uma outra maneira de protesto urbano foi através do desporto, sobretudo o futebol. Tenho dúvida que era só o bom futebol que justificava as enchentes do Estádio da Machava ou de outro recinto desportivo. Penso que boa parte do público ia ao estádio para viver em pleno 90 minutos de liberdade. E o trio de arbitragem – coitados – era sempre usado como o alvo do destino dos protestos.

 

Outra forma de protesto era não acompanhar o “viva” ou saudar o dirigente. Uma vez, eu e um amigo arriscamos esta opção. Nos comícios orientados por Samora Machel, fora longos e obrigatórios, não se deixava sair até que se anunciasse a retirada do presidente. Uma das vezes, na praça da independência, eu e o tal amigo fomos violentamente impedidos por militares, os célebres “PMs”, numa tentativa inglória de saída. Éramos miúdos e não sabíamos que a liberdade conquistada tinha horário de funcionamento e nem havia excepção de idades.Por conta da dor e de não podermos sair decidimos que da próxima vez que nos avistássemos com o presidente não lhe saudaríamos como gesto de protesto.

 

O dia não tardou. O presidente acabara de receber um seu homólogo (creio que foi o presidente Pinto da Costa de São Tome e Príncipe) e vinham no Jeep presidencial. O Jeep Já por perto, todo o mundo saudava e menos nós. O presidente Samora Machel nota, deixa de saudar a multidão e segura com firmeza a barra do Jeep. Em seguida direcciona e executa um zoom fulminante do seu temido olhar, culminando com a nossa tímida saudação.

 

Por esses tempos e na ex-metrópole, Portugal, um amigo conta que em Lisboa, capital portuguesa, ficou estupefacto com o nível de protesto popular. Numa parede e a propósito de uma visita de Ronald Reagan, na altura presidente norte-americano, estava gravado: “Reagan go home and take Soares with you”. Soares era na altura presidente ou chefe do governo português. Por cá e nos anos oitenta quando rebentou a febre de pichar os muros da cidade (outra forma de protesto) não se chegou a esses níveis. Não imagino algo parecido numa visita ao país de Mikhail Gorbatchev, então alto dirigente da URSS.

 

Outro episódio marcante e que o tal amigo presenciou em Lisboa foi a ousadia de um casal de idosos que lançava impropérios contra uma comitiva governamental em sinal de protesto contra o pessoal que vivia, folgadamente, às custas do erário público. O marido mandava vir e bem alto gritava “seus marqueses de pombal” em alusão a um estadista que marcou a política portuguesa nos tempos da monarquia.

 

A mulher corrigiu o marido, dizendo que a referência estava desactualizada. Para a senhora devia ser: “seu primeiro-ministro, seu deputado, seu secretário de estado”, entre outros cargos da vida pública portuguesa que vivem sugando o erário público. Imagino que o estimado leitor esteja a pensar o mesmo por estes lados da pérola do índico. Acrescente à lista: “seu cabeça-de-lista”.

 

Depois da independência uma das primeiras obras de vulto na cidade de Maputo foi o processo de instalação de cabos subterrâneos da empresa Telecomunicações de Moçambique (TDM). Não me recordo o ano, mas provavelmente depois da morte de Samora Machel. A empresa encarregue da obra foi uma oriunda da Itália de nome SIETTE. Esta empresa foi quem iniciou com a política de abrir buracos na estrada e não tampar. Em protesto e de surdina, o povo dizia que SIETTE significava “Somos Italianos Esburacamos Todo o Tipo de Estradas”. Aliás, outros tipos de buracos, estes de ordem financeira, devem ter iniciado por estas alturas.

 

Já se faz madrugada e oiço o roncar de um carro. É tempo de dormir. Este ronco lembra-me histórias dos mais velhos sobre um outro carro oriundo dos aliados naturais de Moçambique. O ronco inconfundível do não menos famoso UAZ/WHAZ, um carro esverdeado ou da cor de caqui que os mais velhos temiam. Outros tempos.

segunda-feira, 23 setembro 2019 12:45

Samora e Eu

Tenho medo dos meses de Setembro e de Outubro. Temo que Samora Machel, o saudoso 1º presidente da pérola do índico, venha à minha casa e como sempre a altas horas. Da última vez em que bateu a minha porta foi no dia 19 de Outubro de 2016, data da sua partida em 1986. Abaixo uma transcrição considerável (e com alguns arranjos) de um texto (“a propósito de mais um 19 de Outubro”) que publiquei num dos semanários da praça. Depois volto aos meus temores.   

 

“Dia 19 de Outubro de 2016!De dez em dez anos, Samora Machel bate a minha porta. O som da batida é já do meu domínio, embora desta vez fosse menos sonoro, mas mais incisivo. Abro! Samora esboça um sorriso diferente, enquanto entra e caminha militarmente pela casa. Faço um compasso de espera e fecho lentamente a porta. Feito o reconhecimento, Samora conclui que estou só. Vou ao encontro dele para a saudação e, já próximo, ignora-me. Entre rodopios e assobios, vai andando pela casa dentro. Era a terceira visita de Samora. Bem ao estilo da ofensiva política e organizacional.

 

Isto está nublado. Penso. O que terá acontecido desde a última visita há dez anos (2006)? Pergunto aos meus botões. Silêncio total. Decido que o melhor é sentar e relaxar ao som das melodias revolucionárias e do sapateado das botas russas, calculo. De rompante, Samora interrompe a orquestra e com o indicador em riste pergunta:

 

 - Então! O Livro?

 

- Que livro? Respondo, dissimulando que não me lembrava.

 

Nessa última visita, a segunda, tinha-lhe prometido que escreveria finalmente o livro, retratando a “nossa amizade” com o título “Samora e Eu”, cujo prefácio (na verdade um postufácio) seria escrito por ele, conforme ficou combinado. Passam já dez anos.

 

A primeira visita (1996) foi depois de eu ter participado numa palestra ou algo semelhante orientada pela viúva (de Samora) Graça Machel, no Sindicato Nacional dos Jornalistas. Nesse dia, já madrugada, Samora encontrou-me a escrever os primeiros rabiscos, inspirado na palestra e num texto (redacção/composição) que escrevi num teste de língua portuguesa, anos antes, em que o mote tinha sido um artigo publicado, salvo erro, no jornal electrónico media-fax. No artigo, o autor referia-se a Samora como um homem amado por uns e odiado por outros.

 

A conversa foi tanta e prolongou-se até ao amanhecer. Confessei os 11 anos da “nossa amizade”. Na verdade, narrei factos e momentos vivenciados ou acompanhados por mim durante o seu consulado, desde o primeiro dia em que o avistei até ao dia em que me zanguei e cortei unilateralmente a amizade, observando uma trégua no período da sua morte. No livro de condolências, recordo-me de ter registado: Samora. Para os amigos, o amigo. Para os inimigos, o inimigo!

 

Na despedida, já com o sol a raiar, ocasião em que brindamos o reatamento da “nossa amizade”, Samora pediu que eu acrescentasse aos factos as minhas reflexões e pensamentos de forma imparcial. O desafio estava lançado. Acredito que esse desafio não seja só para mim e tão pouco para os que privaram directamente com Samora quer no seu dia-a-dia, quer no processo de libertação e governação do país.

 

-O Livro? Insiste Samora. E com um olhar de quem diz “daqui não saio, daqui ninguém me tira”, anota que no lugar de visitas periódicas de década em década, estará de olho todos os dias.” (fim da transcrição)

 

Por “ de olhos todos os dias” entendi que ele não iria esperar mais dez anos (2026) para voltar a bater a minha porta (a altas horas) e exigir o livro. Feliz ou infelizmente Samora ainda não me visitou desde o “encontro” de 19 de Outubro de 2016. Presumo que esteja ocupado com dossiers dos últimos desenvolvimentos do país. O facto de ele não ter vindo foi óptimo para mim, pois ainda não tenho o Livro ou algo que se pareça. E já passam dois anos. 

 

Hoje é dia 22 de Setembro. Dentro de seis, sete dias será a data do seu 86º aniversário natalício. Temo que ele venha por estes dias. Sinais não faltam. Tenho ouvido passos nocturnos com a cadência típica dos de Samora Machel. Se não for por estes dias de Setembro ainda resta o mês de Outubro que está à porta.

 

Já é madrugada. Estou diante do computador. Na secretaria o manuscrito - já com cor de ganga de caqui - em que repousam as primeiras notas, escritas na altura da primeira visita. Um trecho do manuscrito diz: “o que sinto por ele (Samora Machel) é uma miscelânea de amizade e animosidade. Em conversa com amigos uma vezes defendo-o e outras ataca-o veementemente”.

 

Seja como for tenho que apresentar alguma coisa caso ele apareça. Enquanto cogito, cochilo em busca de inspiração. Em seguida um silêncio. Um frio na barriga. De repente oiço a porta a bater de forma insistente. Será Samora Machel?

segunda-feira, 16 setembro 2019 06:45

O Futebol Sou Eu

Nos idos e revolucionários anos oitenta e bem antes de eu ouvir falar da figura de agente de jogadores (de futebol) conheci um na escola primária de nome Artur Roubão. O sobrenome sobrevinha das suas exímias qualidades de subtracção de bens alheios. Ele era o mais velho da turma e fazia valer o posto a quem ousasse contrariá-lo ou que o troçasse por uma “gafe” fora ou na aula. Algumas vezes o professor condicionava a saída da turma à uma resposta correcta do Artur Roubão. Debalde. E sempre que chamado a responder olhava de esguelha à caça de quem se atrevesse a zombar das suas debilidades.
 
 
O Artur Roubão era praticamente o “dono” da equipe de futebol de uma das turmas da segunda classe formada por um quinteto (Nando, Messias, Abdul, Abreu e Nicolau) que impunha respeito nos jogos inter-turmas. Um outro colega (Nené) era o responsável pela torcida feminina e assessor desportivo das funções de dirigente do Artur Roubão. Na confusão infantil das escaramuças diárias quer as dos jogos, quer as do fecho das aulas o quinteto e todo o corpo técnico e logístico estavam sob protecção do também treinador, o temido Artur Roubão. 
 
 
A sua costela de agente de jogadores adveio do facto de ter reprovado e o quinteto transitado de classe o que implicava que os últimos jogariam pela nova turma da terceira classe. Mas assim não foi porque o Artur Roubão alegara que detinha os direitos dos jogadores do quinteto. E estes continuaram a jogar na equipe da segunda classe. Fora e mais o agenciamento de jogadores o Artur Roubão ainda actuava como federação (organização dos jogos) e tribunal desportivo. Nas repreensões de justiceiro recorria à pancada e, no limite, erradicava o visado da prática desportiva no recinto escolar e espaços adjacentes. 
 
 
Assim aconteceu até ao dia em que o Artur Roubão rescindiu unilateralmente a sua ligação com a escola e automaticamente o contracto colectivo que o vinculava ao quinteto. De certeza que nos tempos que correm o Artur Roubão seria um respeitado Agente-FIFA e de alto gabarito internacional. 
 
 
A única vez em que a turma (turno da tarde) esteve de castigo e o Artur Roubão não teve nada a ver foi numa sexta-feira. Esse dia a pena (cárcere privado) durou até a hora do jantar e foi sustada graças a intervenção dos pais. O famoso e sonoro “ADEUS SENHOR PROFESSOR E ATÉ NA SEGUNDA SE DEUS QUISER” foi o dito crime que levara o professor a encarcerar a turma de petizes. Estes não sabiam que por essa altura histórica o todo-poderoso (DEUS) estava suspenso/banido da terra da Pérola do Índico. 
 
 
Desses áureos tempos da revolução socialista não tenho memória oficial de um agente de jogadores ao estilo capitalista como existe e pululam actualmente. Contudo, fica a indelével memória do Modus Operandi do multifacetado Artur Roubão que era bem ao estilo da época e à luz do não menos famoso monarca francês, Luís XIV: O ESTADO SOU EU!
quarta-feira, 11 setembro 2019 13:44

Mendigos à solta

Um dos sinais citadinos de que a “sexta chegou” é o movimento de pessoas - na sua maioria da terceira idade - pelas lojas da cidade em busca de doações, vulgo esmola. Há uns anos e numa dessas sextas fui interpelado por uma “cota-mendiga” que já era uma familiar de vista e de tantas sextas anteriores. Um dos “doadores” dela era um estabelecimento nas proximidades do meu domicílio na altura.  Nesse dia e de tanto calor eu estava sentado no degrau que dá acesso ao portão de casa à sombra de uma acácia (que deus a tenha) danificada por “manuelinos” (os que bebem num bar e de nome próximo). Falando nestes e pelos danos ambientais só favorável a uma “taxa-acácia” no preço de cada unidade de álcool. O valor seria usado na reposição de árvores pela cidade. Acredito que Maputo voltaria a ser a cidade das acácias.  

 

Voltando ao que contava: a velha aproximou e cumprimentou-me de forma amável e sorridente. Em seguida pediu uma garrafa de água gelada para levar. Perante o meu semblante de dúvida a cota estrategicamente reforçou o sorriso. Não resisti e num ápice respondi ao pedido. Depois de sorver o primeiro gole da água agradeceu e seguiu com a rotina.   

 

Por algum motivo fiquei algum tempo sem botar a vista nela. Até que numa outra sexta de intenso calor sucede o mesmo cenário que contei acima. Tentei fingir que não lhe tinha visto. Mas já era tarde. Desta vez e para a minha surpresa a cota não me pediu uma garrafa de água. Apenas pediu um singelo abraço de amizade. Depois do fraterno abraço a cota pergunta olhos nos olhos: “lembras de mim? “Respondi que sim acenando a cabeça. Nesse instante reparei que ela lacrimejava.  Enquanto ela limpava o rosto – denunciando certo constrangimento por estar aos prantos - voltou a agradecer a garrafa de água que lhe havia oferecido da última vez em que nos avistamos. “Deus lhe abençoe, meu filho”. Assim despediu a cota, deixando-me sem chão. 

      

Por estes dias tenho recordado deste episódio. Razões não faltam: tenho visto tanto mendigo à solta na rua. É uma azáfama diária de mendigos-extraordinários de todas as cores, idades e extracto social. Não são tão diferentes dos habituais das sextas-feiras, os mendigos- ordinários. O que lhes diferencia é o tamanho e implicações do pedido. Os mendigos-ordinários suplicam por uma fatia de pão para aguentarem a sexta-feira. Os mendigos-extraordinários imploram para que o pão seja de borla durante cinco anos.

 

Desde 1994 - ano das primeiras eleições multipartidárias em Moçambique – que é sempre assim de cinco em cinco anos. E no próximo dia 15 de Outubro corrente será o mesmo: ficar na bicha para escolheres a quem vais pagar o mata-bicho durante cinco anos. Em 2024 eles voltarão e o refrão será o pão de sempre. Por estas alturas eleitorais tenho saudades da nobreza da “cota- mendiga”.   

sexta-feira, 06 setembro 2019 13:23

Pedidos de demissão

Cresci com a mensagem de que pedir demissão é um acto fora dos costumes africanos. Entre portas, amiúde oiço que a figura de pedido de demissão embarcou com os portugueses quando estes partiram em massa no contexto do processo de independência de Moçambique. Talvez por aqui a explicação da razão do alarido social e do destaque noticioso das vezes em que um pedido de demissão é feito por um compatriota. Foi assim com o recente pedido de Rosário Fernandes do cargo de presidente do Instituo Nacional de Estatísticas (INE). E deste pedido não vou falar, mas de outros (três) que conheço. Confesso que tenho dificuldades de encontrar cinco exemplos. Apenas encontro quatro pedidos: os três que abaixo partilho e o do Rosário Fernandes.

 

Um meu chefe de turma foi o protagonista do primeiro pedido de demissão que acompanhei na vida. Corria a segunda metade dos anos oitenta e em tempos de partido único. O segundo foi nos anos noventa e em tempos de democracia multipartidária. O pedido foi de Brazão Mazula que pedira demissão do cargo de reitor da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). O terceiro foi em 2018. Desta vez por uma protagonista de palmo e meio e das funções de chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe. 

 

O primeiro pedido: em plena reunião de turma (7ªclasse), uma quarta-feira, o chefe de turma pediu a palavra no início da reunião. Se não me engano foi um ponto de ordem. O director de turma, um dos professores, consentiu e perante a sua estupefacção ouviu um categórico “Peço demissão, Senhor Director!”. Em seguida o chefe de turma fundamentou a sua decisão na usurpação de competências, sobretudo as adstritas ao controle do lanche que era fornecido pela cantina. Acontecia que os colegas mais velhos, na maioria bi-repetentes, utilizando artimanhas e ameaças, desviavam o lanche e faziam a respectiva distribuição baseada em critérios femininos (gratuitamente) e desportivos (preço bonificado). 

 

O segundo pedido: no contexto de uma greve de estudantes bolseiros da UEM, o reitor Brazão Mazula sacudiu a pressão pondo o seu cargo à disposição. Salvo melhor informação, o então presidente moçambicano (Joaquim Chissano) não anuiu. De todas as maneiras, creio que este foi o primeiro pedido de demissão depois da independência. Se não, no mínimo, acredito que tenha sido o primeiro na era multipartidária. Sublinho que me refiro aos pedidos de demissão de cargos públicos e que tenham sido veiculados pela imprensa. 

 

O terceiro pedido: conforme dito foi o de uma menina de palmo e meio e aluna da 4ª classe. Na habitual reunião semestral de pais e encarregados de educação o director de turma partilhou o pedido e explicou que a demissionária deixou o cargo de chefe-adjunta, alegando que o cargo não tinha nenhuma utilidade. Em defesa da sua decisão a petiz apontou que o colega e chefe de turma concentrava, abusava e tinha funções em excesso, não delegava nenhuma das funções, não faltava, não atrasava e nem adoecia. Foi o máximo. Da reunião ficaram lições e sinais de esperança e vitalidade para a democracia moçambicana.  

 

Por coincidência o primeiro pedido de demissão foi no ano anterior (1987) à vinda do Papa João Paulo II (1988) ao país e o terceiro pedido no ano anterior (2018) à vinda do Papa Francisco (2019). Depois da visita de João Paulo II foi necessário passar oito anos para presenciar um outro pedido de demissão (o segundo). Espero e havendo circunstâncias – no mínimo as que ditaram as três demissões e a do Rosário Fernandes (a quarta) - que eu não tenha que aguardar outros oito anos para ouvir o próximo pedido de demissão. E assim não será por obra de Rosário Fernandes que tratou de contrariar os dados, apresentando a sua demissão no mesmo ano da visita do Papa Francisco. O próximo?

 

PS. Perante circunstâncias que suscitem um pedido de demissão e tal não aconteça a comissão de ética devia agir. No mínimo o visado que fosse notificado sobre as lesões causadas à saúde pública e na própria dignidade do visado, seus colegas, família e amigos por tamanha e vergonhosa falta de atitude e brio profissional. Que o visado não espere pela acção da comissão de ética e nem que lhe seja recordado o nobre exemplo da menina de palmo e meio, chefe-adjunta de uma turma da 4ª classe, em circunstâncias análogas, incluindo as de outros pedidos. Não faltam exemplos para o quinto pedido de demissão. Por enquanto: Atenção a chamada!

Há dias acompanhei - num dos canais de televisão da praça - uma reportagem sobre o elevado custo (160.00Mts) da portagem da ponte “Maputo - KaTembe”. O mote foi uma petição de residentes da Katembe, sobretudo de potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. A reclamação-mor era a redução do valor da portagem para um nível comportável e semelhante ao valor (35.00Mts) da portagem da Matola. Outra reclamação recaia sobre os riscos da alternativa usada: estacionar os carros (sem nenhuma segurança) nas proximidades da portagem e viajar de transporte público/chapa (excesso tempo de espera e condições de viagem). 

 

Por onde alinho? Pela manutenção ou redução do valor praticado na portagem da ponte? Em benefício de mudanças na mobilidade (redução de congestionamento) e na saúde pública (redução da poluição do ar e sonora) alinho do lado que não estimule o uso de carros particulares. Dito de outro modo: alinho por políticas/medidas que restrinjam a circulação de carros particulares na cidade. E para o caso o valor da portagem funciona como meio de restrição.  

 

Também alinho por tais políticas/medidas por uma questão de justiça/democracia: os carros particulares ocupam a maior parte do espaço público (circulação e estacionamento) e transportam menos pessoas em detrimento de outros modos (transporte colectivo, pedonal e bicicleta) que ocupam menos espaço urbano e são responsáveis pela maioria das deslocações dos cidadãos. Logo: reduzir a circulação de carros particulares (reclama a minoria) melhora a mobilidade dos restantes modos de transporte (aplaude a maioria) e ainda melhora a saúde pública (beneficia a todos).    

 

Neste contexto e nas actuais (péssimas) condições de mobilidade em Maputo o foco da solução é óbvio: transporte colectivo, pedonal e de bicicleta. E uma aposta na qualidade e articulação/integração destes modos devia ser a base do conteúdo de campanhas de advocacia e da própria resposta do estado, autarquias e do sector privado. Felizmente e na área metropolitana de Maputo já existem sinais encorajadores nesse sentido (Agência Metropolitana de Transportes de Maputo e o projecto Metrobus do Grupo Sir Motors). 

 

No mesmo sentido - para o caso em apreço da petição em marcha - a melhoria das condições da alternativa usada para a travessia da “Ponte Maputo – KaTembe” - estacionar o carro e apanhar o transporte colectivo - devia ser o foco da petição dos potenciais automobilistas/utentes frequentes da ponte. O que vale atravessar a ponte no seu (confortável) veículo - mesmo que seja grátis - e ficar parado/engarrafado nos acessos da mesma?

 

PS (i). Trouxe à mesa este assunto como contributo e antevisão do debate no quadro da campanha eleitoral que se avizinha. A mobilidade urbana será de certeza um dos temas de destaque. O que os partidos esperam fazer nesta área? Como fazer? Os custos e fontes de financiamento? Não faço ideia. E por esta razão: antes de confiar (o voto) confira (o manifesto). O provérbio “confie, mas confira” é russo e foi mundialmente cunhado por Ronald Reagan, 40º presidente norte-americano (mandato 1981-1989). Assim devia ter sido no processo de concepção e construção da ponte “Maputo-Katembe”. O presente pode estar envenenado.

Um senhor de família que sempre passava pela zona, na época de férias escolares, decidiu parar para as perguntas habituais - de mais velho – a um grupo de miúdos sentados num muro. Um dos miúdos era eu. O “tio” - depois do papo protocolar - quis oferecer um bolo que lhe sobrara. O modo sugerido foi o de fazer uma pergunta e fê-lo questionando quem sabia o nome do presidente dos Estados Unidos da América (EUA). Respondi com toda a certeza do mundo: Ronald Reagan (06/02/11 - 05/06/04). Corria o ano de 1985 e Reagan acabava de tomar posse do seu 2º mandato como o 40º presidente dos EUA.  
 
Veio-me à memória esta cena depois de rever um vídeo de um encontro em 1985 – em solo americano - entre Reagan e Samora Machel (1º presidente de Moçambique). Os dois foram na altura os meus presidentes. Samora Machel (e depois Joaquim Chissano) por razões óbvias e Reagan porque era o presidente dos meus ídolos (do cinema, desporto e música) e da terra das boas coisas (“jeans”, “sapas” óculos e chapéus) logo era o meu presidente. Guardo algumas lembranças dos dois. As da “amizade” com Samora Machel conto em outro momento. Neste texto apenas partilho algumas com R. Reagan. 
 
Na altura da pergunta eu já era “amigo” de Reagan. A amizade foi selada pouco antes. Foi pela TV em Novembro do ano anterior na data do anúncio da sua vitória para o 2º mandato. Desde esse dia a administração Reagan foi parte da minha agenda infanto-juvenil. Até conhecia de cor todos os escândalos e os principais secretários e subsecretários de estado americanos. No mesmo diapasão até o nome e a morada do Director da CIA conhecia (risos). 
 
Por conta desta amizade e da Guerra-Fria tive alguns dissabores. Um deles foi na 5ª 21 (Escola Secundária da Maxaquene). O "Bloco Soviético" ou "Ala do Leste" da turma liderado por um colega mais velho bloqueou o meu acesso ao lanche: sempre que chegasse a minha vez, na fila do lanche, este esgotava. Era algo como a reedição do "Bloqueio de Berlim" (fecho do acesso ferroviário, rodoviário e hidroviário à Cidade de Berlim Ocidental) feito pelos soviéticos contra os Aliados, liderados pelos EUA, que obrigou os últimos a abastecerem Berlim através de uma ponte aérea de Junho de 1948 a Maio de 1949. O mesmo com o meu lanche: durante um ano tive que usar meios alternativos, recorrendo a pontes subterrâneas com amigos da 6ª classe. Mais tarde fiquei a saber que tudo era orquestrado entre "Moscovo" e os seus agentes infiltrados no refeitório da escola.  Era o auge da Guerra-Fria (risos).  
 
As notícias por cá eram aterradoras em relação aos EUA: os imperialistas americanos. Salvo erro Moçambique boicotou a sua presença num campeonato mundial de Hóquei, que participaria os EUA, em protesto contra o imperialismo americano. Outros tempos. Quando Samora visitou os EUA fiquei confuso: como assim? Ir ao encontro e em casa do inimigo? Só mais tarde percebi que na arena internacional e entre os estados “não existe amizade, mas sim interesses”. O discurso de Samora foi claro: “queremos uma parceria de longo prazo”. Demorou, mas trinta e poucos anos depois e por outros tantos e indefinidos anos cá estão os americanos de pedra e cal. 
 
Fui crescendo com o "feeling" de um dia estar ao vivo com Reagan. Na primeira metade dos anos 90 ele anunciou que padecia de Alzheimer e a hipótese de estar com ele ao vivo adoecia à medida que ele ia despedindo. Em conversa com amigos eu dizia que iria ao funeral de Reagan.
 
Em 2004 fui convidado por uns amigos do Brasil para visitar a terra do samba e do futebol. Na manhã do dia 06 de Junho parti com destino à cidade de Porto Alegre. Logo que entrei no táxi, a caminho do aeroporto, pedi ao taxista que sintonizasse a rádio e uma voz bem audível diz: " morreu ontem Ronald Reagan, antigo presidente americano ". Fiquei estarrecido. Parecia que estivesse a receber a notícia da morte de um amigo ou de um familiar próximo. O taxista não entendeu a minha repentina tristeza. O que me confrontou foi o facto de estar a viajar ao continente americano. Estaria próximo de Reagan. 
 
Já em Porto Alegre tive que mudar os planos, pois o meu amigo e hospedeiro ia passar uns dias numa cidade do interior e voltaria depois do dia 12 de Junho, o dia dos Namorados no Brasil. Ele ia bem acompanhado e recusei o convite para segurar a velinha. Já estava triste e outra tristeza não iria aguentar, não! Como alternativa teria que fazer algo para cobrir os dias em branco. A cidade do Rio de Janeiro foi a escolha. Não fazia ideia de que a decisão foi um impulso que me levou ao "encontro" de Ronald Reagan: no Rio, Baía da Guanabara, estava ancorado o porta-aviões nuclear USS Ronald Reagan. 
 
Em 11 de Junho de 2004 foi o funeral de estado de Ronald Reagan. O Presidente George Bush (filho) declarou que seria um dia de luto nacional. Na data e por todo o mundo foram feitas homenagens. No Rio foi no porta-aviões Ronald Reagan. Presenciei a singela e sentida homenagem – dirigida pelo capitão Andres Brugal, segundo na linha de comando do navio - com outros fãs e mirones. 
 
“Cremos firmemente no que Ronald Reagan acreditava: paz, paz através da força e isso é o que representamos como seu legado, levando o nome de Ronald Reagan” disse o capitão, no fim da breve homenagem, conforme noticiado pela agência Reuters no mesmo dia. Na minha despedida, enquanto atravessava a ponte de Niterói, acenei para o “Ronald Reagan”: um Herói dos tempos infanto-juvenil. 
 
PS (i). Para o actual contexto em que se encontra a política moçambicana nada melhor que partilhar uma frase de Ronald Reagan sobre a política: “Eu achava que a política era a segunda profissão mais antiga. Hoje vejo que ela se parece muito com a primeira”. Outra: “ A política é como o show business: você desliza por algum tempo e termina num inferno.”
 
PS (ii). Não tanto a propósito do texto: conhecemos tão bem a Casa Branca, palácio presidencial dos EUA, em detalhe (exterior e interior), incluindo a famosa sala oval, mas não conhecemos a nossa Ponta Vermelha, palácio presidencial. Será isto um detalhe ou indicador do nível democrático (de transparência) de cada país?
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