Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

Nando Menete

Nando Menete

segunda-feira, 16 março 2020 07:08

A pobreza e a briga municipal da sexta-feira 13

Dei-me a pensar, a propósito da briga da última sexta-feira 13, entre o Município de Maputo e os vendedores informais, no que se tenha falhado para que a causa da briga – a pobreza – já não fosse parte da agenda do país. Desse penoso exercício, e sem grande recuo temporal, conclui que a falha foi ou começa, em 2003, com a criação e funcionamento do Observatório da Pobreza (OP), mais tarde Observatório de Desenvolvimento (OD), um espaço tripartido de escrutínio sobre a pobreza em que convergiam (ou ainda convergem) os três mosquiteiros: o Governo, os Parceiros de Cooperação e a Sociedade Civil. Do escrutínio, reza a história, era suposto que fossem desferidos duros golpes contra a pobreza.

 

Entendo, a partida, que houve falhas na escolha da ferramenta de combate, tanto a original (Observatório da Pobreza) como a rectificada (Observatório de Desenvolvimento). Na original, a pobreza se confundia com a nobreza, tal era o respeito, a ponto de se temer em tocá-la e tão-somente, a satisfação em observá-la. De tanta observação, acaba desabrochando numa paixão dos mosquiteiros pela pureza da pobreza. Desse momento, a observação passa para o  (des) envolvimento (entre as partes). E daí, os infindáveis afectos: beijos, abraços e outras coisitas mais.

 

Hoje, depois de mais de uma década e meia de intenso namoro e pelos resultados, a pobreza foi quem – aparentemente - desferiu os tais duros golpes, a ponto de não existir espaço algum na cidade em que ela não esteja presente. Porque isto incomoda, creio, urge um “Pai, afaste de mim este cálice”. Como o fazer e sem magoar a relação, eis a questão.  

 

E aqui, a terminar, volta a briga municipal da passada sexta-feira 13: pelos vistos, a briga ainda promete e cheira à uma terceira via de observatórios. Desta vez, e com a experiência dos dois anteriores, e ao que parece, não se está diante de um observatório igual, mas sim, de um crematório. Apenas fica por esclarecer, se será o da pobreza ou o de desenvolvimento. Às tantas, em 2003, por aqui devia ter sido o caminho.

 

Há oito de Março de 1977, no Pavilhão do Maxaquene,  o  Presidente Samora Machel reuniu com alunos que deveriam prosseguir com seus estudos, na 10ª e 11ª classes, e comunicou-lhes que a partir daquele momento já não tinham mais sonhos. De que em diante: “Não é aquilo que eu quero, não é aquilo que tu queres, é aquilo que nós queremos, aquilo que o povo quer”. E o dito povo, reunido dias antes,  no seu  III Congresso,  realizado em Fevereiro de 1977,  decidira que devia sacrificar o sonho destes  jovens  em prol dos desafios que o país enfrentava na altura. Da data, do  discurso presidencial e do percurso dos jovens de então, nasceu a geração “8 de Março”.

 

Sobre os feitos e defeitos da decisão e da própria geração “8 de Março” muito já foi dito e escrito. De tudo apenas não se compreende  uma coisa: por que carga de água a geração “8 de Março”  não  tomou o PODER? (não confundir tomar o Poder com servir o Poder).

 

No debate sobre o acesso e controle do Poder no seio do partido dominante, e não só, esta geração  não é tida e nem achada e bem que poderia ser uma das alas ou grupo influente. Aliás, a sua participação e influência poderia abarcar outros quadrantes de intervenção pública nacional.  Neste Domingo e por ocasião da celebração da passagem do   43º aniversário do encontro de 77, é expectável  que os “oitomarcistas” tenham aproveitado para, entre outros,  responderem a pergunta, sobretudo e  agora que a reforma e as cobranças da consciência,  batem-lhes  a porta, e esta, para alguns, já se encontra escancarada.

 

Numa recente  discussão  com amigos e a propósito da pergunta,  ficou patente  que a geração “8 de Março”  teve (porventura continua a ter)  todas as condições para conquistar/exercer/controlar o PODER.  Fora o denominador comum de terem sido “vítimas” do 8 de Março,  os “oitomarcistas” são, na sua maioria, urbanos,  com estudos, vasta experiência profissional e de governação e com uma profunda inserção  em todos os sectores-chave de actividades a nível de todo o país, incluindo do partido dominante. Assim sendo, não se compreende que em matéria de Poder, a geração “8 de Março”,  não tenha feito melhor que a anterior geração, a geração “25 de Setembro”. Esta , maioritariamente rural, sem estudos, sem experiência profissional e muito menos inserida em sectores-chave da máquina  colonial,   conquistou o Poder, exerceu-o e controla-o até aos dias que correm. Desta geração,  fora a vénia, é importante que se tire  dela as devidas lições em matéria de manutenção e expansão do Poder.

 

Numa comunicação do anterior Presidente da República (PR), Armando Guebuza, por ocasião da passagem do 27º aniversário do 8 de Março e diante de representantes da  respectiva geração, disse:    “Aproveito esta oportunidade para vos lançar um desafio para que se unam e  se organizem (…) para transmitir às gerações mais novas a necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre os processos políticos e históricos do nosso país, para neles buscarem referências, exemplos e inspiração, …”. Neste trecho, o então PR faltou afirmar: “Que a geração 8 de Março transmita às gerações mais novas a necessidade e a forma de conquista e manutenção  do poder de acordo com os padrões de cada época”. O PR não o tendo tido, é compreensível. Porém, é incompreensível que os destinatários da comunicação  nada tenham feito para que tal fosse um dos legados a transmitir.

 

Nas celebrações dos 38 anos do “8 de Março”, em 2015,  um representante da associação com o mesmo nome, intervindo numa sessão de auscultação  à convite do actual Presidente da República, Filipe Nyuse, disse: “De nada vale dizer constantemente que nos meus tempos, nos meus tempos, quando daí em diante nos alheamos de tudo o que ocorre à nossa volta” (Jornal Noticias, 18/03/15).   E uma das alheações  - e bem  à volta dos “oitomarcistas”-   foi a de terem deixado o Poder passar.

 

Infelizmente, e por terem deixado o Poder passar, a história não absolverá a geração “8 de Março”.  Dela,  apenas o registo da prontidão na resposta ao chamamento da pátria, e a podridão na resposta ao chamamento da cidadania.

 

 

segunda-feira, 02 março 2020 08:53

Eutanásia nas estradas moçambicanas

Em Moçambique, uma estrada em péssimas condições elimina a vida de um  veículo e  salvaguarda a dos seus ocupantes. Por sua vez,  uma em boas condições e por conta de acidentes, elimina a vida de ambos, a do veículo e a dos ocupantes.  Neste contexto, não sei se faz algum sentido (atenção o próximo Orçamento de Estado) pedir que o Governo melhore as condições de transitabilidade das estradas. Alinhar nessa diapasão não será o mesmo que o Governo defender a eutanásia (morte assistida) ou, no mínimo, que esteja em curso, um  projecto oculto e  selectivo de eliminação de certas franjas da sociedade.

 

O intróito vem a propósito da elevada  sinistralidade nas estradas moçambicanas, em particular na N4, aqui citada apenas por razões de proximidade. Igualmente, o intróito vem a reboque do recente debate parlamentar na antiga metrópole, Portugal, referente a despenalização ou não  da eutanásia.

 

Tenho dito, em privado, que graças a  manifesta incapacidade do Governo em melhorar a qualidade das estradas que o nível de sinistralidade não é maior e a população moçambicana não é inferior aos  actuais  28 milhões. A tal  incapacidade ainda concorre para desestimular a compra de automóvel, contribuindo assim para um ambiente são quanto a poluição atmosférica. De per si, isto já seria o suficiente - barata e ao alcance dos moçambicanos – para se apostar como uma fórmula/estratégia rumo ao desenvolvimento sustentável. As Nações Unidas agradeceriam imenso por este contributo imensurável do país ao mundo.

 

Mas, infelizmente,  fora melhor denominação, esse não é o entendimento. Do debate nacional sobre a sinistralidade, emergem várias soluções que recaem sobre a (i) fiscalização, a (ii) infra-estrutura e o (iii) comportamento humano. A primeira, porque à troco de alguma cifra o regulador deixa passar  o infractor (automobilista). A segunda, porque a melhoria não previra um separador físico entre os dois sentidos. A terceira, porque o automobilista se fez à estrada embriagado e o peão  sem respeitar as regras ou os pontos de travessia.

 

Dito isto, pergunto: haverá algum interesse para que assim continue? No mínimo e pelo resultado (elevada sinistralidade), a contínua insistência governamental na melhoria das estradas nacionais alimentam severas desconfianças em relação aos reais interesses do Governo. Em tese, e perante os factos, o  Governo aposta os parcos recursos dos contribuintes na  criação de  condições para o luto das famílias dos próprios contribuintes.  Um assunto para perguntar: ajudar o outro a  morrer, não será  um crime?

 

Pelos vistos não é crime. E aqui entra o debate sobre a eutanásia em Portugal. Dele, retive o essencial -  através da  seguinte frase:  “O suicídio não é um crime em nenhum país. Parece-me um pouco ridículo que seja crime ajudar alguém a fazer uma coisa que não é crime.” (Philip Haig Nitschke, activista pela morte assistida ao jornal português expresso do dia 20 de Fevereiro corrente). Neste sentido, e extrapolando para a realidade moçambicana,  quem se faz à estrada ao volante e embriagado ou que não cumpra as regras de travessia é um suicida. E o suicídio em Moçambique também não é crime, tanto para quem o cometa e por arrasto, para quem o ajude nessa empreitada trágica.

 

Todavia, e perante a insistência governamental em aprovar e executar anualmente um Orçamento de Estado que aposte e priorize a melhoria das estadas,  não me admira que um dia, os defensores dos direitos humanos processem o Estado por reiterada  tentativa de genocídio.

sexta-feira, 28 fevereiro 2020 09:03

Ecos do 14 de Fevereiro: a ameaça do florista

O 14 de Fevereiro, o dia dos namorados,  já passou, mas as suas incidências ainda se fazem sentir por estas bandas da capital da Pérola do Índico. Desta vez  por conta de um florista que ameaçara um  seu cliente assíduo da data em apreço e de outras ocasionais. A ameaça: executar uma acção extra-legal ou judicial contra o seu cliente, a quem acusa de ser um  devasso social.

 

O histórico: no dia 14, desloquei-me ao estabelecimento do  florista para os devidos efeitos. No local deparei-me com  um alvoroço total. Pela primeira vez, e diante do citado cliente, o solícito florista se recusava a vendê-lo  as habituais flores bem como a respectiva entrega às destinatárias.  O alvoroço recheou toda a hora do almoço, período das rosadas visitas do cliente assíduo . A desordem foi tanta a ponto do florista fechar o estabelecimento.

 

Em pouco tempo da minha estadia no local deu para perceber a querela: o florista queria dar um “BASTA” ao modo de vida de “Don Juan” do seu cliente. Isto depois de quase duas décadas   de préstimos inestimáveis e a ponto de se sentir cúmplice e abusivamente usado pelo histórico cliente.  Este, todos estes anos, recorrera aos serviços do florista para presentear a sua  “Rosa”  (o jeito carinhoso que ele trata a mulher) e a toda prole  da sua concubinagem, que até não lhe caía mal na imagem de bem sucedido. Aliás, e ao que parece, um direito constitucional que o florista não se importava em auxiliar o seu cliente na sua materialização. Isto  foi até ao passado dia 14 de Fevereiro. O dia em que a nova concubina a ser presenteada -  passando  a pertencer ao harém do seu cliente - era a  filha caçula do florista. Não havia nenhuma dúvida, pois o endereço do cartão das flores  era o da casa do florista. 

 

No auge do alvoroço, fui um dos convidados - pelo florista - a ver as provas que  sustentavam a acusação. Até então nunca vira um arquivo metodicamente organizado. Uma sistematização comparável só a da Alemanha dos tempos do III Reich. Cada concubina tinha a sua ficha, contendo  os dados pessoais e outro tipo de informações adicionais. Em cada ficha os anexos de fotos, vídeos,  gravações áudio dos pedidos das flores e a de indicação do nome e endereço das destinatárias,  as cópias dos cartões que acompanhavam as flores e por ai em diante.

 

O passado securitário do florista foi uma vantagem na organização meticulosa do arquivo.  E desta vez, um outro tipo de vantagem do seu passado securitário, amiúde, e a par da abertura de um processo judicial,  era por ele avocado.  À margem do bate-boca, e a propósito da querela “florista vs assíduo cliente”,  o  recente debate em torno da penalização da invasão a privacidade quase que resvalava em pancadaria entre os restantes clientes.

 

Infelizmente e por razões de compromissos inadiáveis, tive que deixar  o estabelecimento num momento de impasse quanto ao desfecho da querela, sobretudo,  à luz do debate sobre a penalização  ou não da invasão de privacidade. Haviam dois grupos. Um que defendia o florista, reforçando o argumento (a coesão e paz social)  em torno da  acusação: o cliente assíduo  é de facto (e gravata) um devasso social. E o outro grupo que defendia o cliente, acusando o florista de devassa da vida privada. Quid Juris?

 

Enquanto deixava o estabelecimento e para relaxar a briga  liguei o auricular e na rádio tocava uma música brasileira. Era a música de  Jorge Aragão,  mas cantada por Emílio Santiago. Estava no fim e dizia: “Malandro! /Só peço favor/De que tenhas cuidado/As coisas não andam/Tão bem pro teu lado/Assim você mata/A Rosinha de dor...”

 

sexta-feira, 21 fevereiro 2020 07:27

Soy loco por ti América

A reboque do dia 14 de Fevereiro ,  o dia dos namorados,  o mês de  Fevereiro é o dito de amor. Em complemento da onda amorística , está o enquadramento do título deste texto (sou louco por ti América, na língua portuguesa) que foi  emprestado com a suposta permissão dos compositores/autores brasileiros  da música com o mesmo título e feita em homenagem à Che Guevara. Desta não é para ele a homenagem, mas sim para a  América (Estados Unidas da América, EUA),  que um amigo, seu eterno apaixonado,  ofereceu-a  um buquê de rosas.  Encontrei o tal amigo,  no passado dia 14 de Fevereiro - todo de vermelho, incluindo as rosas - à porta da embaixada americana aos gritos: “Soy Loco por ti América!”

 

Esta cena fez-me algum ciúme. A América  também é minha e aposto que igualmente seja tua.   Eu tive e tenho  um caso  - na verdade casos -  com a  imortal e controversa América. Uma nação indispensável, segundo as palavras de Madeleine Albright, ex- secretária de Estado dos EUA nos tempos do ex-presidente Bill Clinton. No texto “O dia em que me encontrei com Ronad Reagan”  é evidente o meu encanto por esta mulher poderosa e talvez por isso: amada e odiada.  

 

Para ilustrar a grandeza de mulher que é a América, nada melhor  que recorrer ao conceituado jornalista português, Miguel Sousa Tavares (MST),  que,  por alturas do sismo que abalara o Haiti, em artigo no Jornal  português Expresso de 23 de Janeiro de 2010, escreve:

 

” …nos grandes momentos da história da humanidade, de há quase cem anos para cá, os Estados Unidos são, de facto, a nação indispensável. Algumas vezes para o mal, outras, como no Haiti, para o bem (…). Em 39-45, como antes, em 14-18, e depois, em 1991, na primeira Guerra do Golfo, a Europa e o Ocidente ficaram a dever a vida ao esforço de guerra da grande nação americana.” No texto e mais adiante MST prossegue: “ (Os EUA) são capazes de produzir um George W. Bush, que impõe ao país uma guerra (segunda Guerra do Iraque) sem sentido, apenas destinada a servir a sua vaidade de se proclamar "um Presidente de guerra", mas também “… são a nação que é capaz de, num instante, mobilizar os meios e a determinação para acorrer a uma tragédia com a dimensão do Haiti e fazê-lo de forma eficaz, profissional e humana”.

 

Por cá – a Pérola do índico – a generosidade do amor americano, a título de exemplo, ficou patente no  projecto “USA for África”,  na primeira metade dos anos 80,  cuja música,  com o mesmo título, reunindo, na altura, o melhor que  existia na nata musical americana. No pacote do projecto (do povo americano para o povo moçambicano) veio o leite em pó, o milho/farinha amarela, roupas das calamidades  e as carrinhas  azuis que são marcas passadas e  indeléveis da presença - em terras do índico - dessa namoradinha do mundo  que é a América. Outras passagens e mais recentes foram as registadas no quadro do  processo de implementação do Acordo Geral de PAZ (1992) sob a égide da  ONUMOZ,  Cheias do ano 2000 e mais recentemente (2019) aquando dos ciclones IDAI e Keneth e ainda a propósito das  “dívidas ocultas”.   

 

Nesta e longa relação, a América ainda foi e é das nações que mais apoia os sectores  privado e da saúde, neste destacando os esforços do combate ao HIV-SIDA.   E pelos tempos que correm,  a América é uma das esperanças para o futuro do país por conta de avultados investimentos das  suas empresas na área  de hidrocarbonetos. Registar que nos últimos tempos,  a América está cada vez mais próxima e mais preocupada com a sua beleza. Ademais a concorrência está à vista, em particular a presença de uma velha e milenar asiática, disfarçada de uma gostosa  “quatorzinha” - adoentada por estes dias - que todo o mundo a quer “paquerar”.  

 

Contudo,  e desde a primeira troca de olhares, nem sempre a relação foi um mar de rosas. A América, em algum momento da relação, relegou a Pérola do Índico para a categoria de indesejável e a Pérola, bem machão,  já considerou a   América uma “persona non grata” (pessoa não agradável). Os motivos?  não interessa lembrar de momento. Quiçá num outro texto e com um título  adequado. Entretanto,  quem quiser saber pode ligar  para a América, mas antes aconselho ao interessado a  “tchekar” o respectivo cadastro pessoal.

 

E por falar em cadastro, lembro-me das marchas de 2003 - pelo mundo fora e por cá - contra a invasão americana ao Iraque. Foi interessante reparar  que os marchantes aliviavam a sede com uma coca-cola e no mínimo cada um trajava pelo menos um dos seguintes itens: Jeans, óculos de sol Ray-Ban, fones da Bose,  sapatilhas e boné da Nike. Os mais abastados até que  se fizeram à concentração em meios circulantes de marca americana.

 

E é  também por estas e outras razões que a América – amada  e odiada - é a tal nação indispensável que no passado dia 14 de Fevereiro, o dia dos namorados,  o meu amigo presenteou-a com um buquê de rosas e defronte à embaixada americana, a plenos pulmões, sucessivamente, gritava: “Soy Loco por ti América!”

quarta-feira, 12 fevereiro 2020 10:19

Adios, “Dôs Santos”! (1929-2020)

Há poucos dias, compulsando caixotes de arquivo, achei o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora que prometera oferecer a Marcelino dos Santos, histórico nacionalista, poeta  e político moçambicano.  A decisão de oferta foi em resposta a curiosidade  dele em conhecer a minha biblioteca, manifestada durante uma de duas longas reuniões em que eu participara com ele e  outros convidados no mês de Janeiro de 2007. Recordei-me da promessa no texto “Por onde andas, Kalungano?” escrito e publicado, em Maio de 2019, por ocasião  da celebração do  seu  90º aniversário natalício.

 

Na publicação do texto, um dos comentários dizia: “Há que saldar igualmente a promessa oculta” (oculta no sentido de que Marcelino não sabia de tal promessa).  Confesso que me arrependo por não tê-lo feito e hoje, 11 de Fevereiro de 2020, com a sua morte,  a dívida  - fazer chegar “O Processo Histórico” a Marcelino dos Santos,  também Kalungano, Lilinho Micaia ou ainda  “Dôs Santos”- ainda continua por saldar. Segundo Óscar Monteiro, outro nacionalista moçambicano,  o “Dôs Santos” era o toque francês pelo o qual o mundo chamava a Marcelino dos Santos nos corredores das conferências internacionais.

 

Enquanto  penso numa alternativa à física  para a  entrega do livro e  fora os episódios dos “meus encontros” com Marcelino dos Santos, narrados no texto a que me referi acima, vêem-me à memória outros momentos e circunstâncias, não tão importantes, mas interessantes,  que têm em Marcelino dos Santos  o foco central.

  

Nos preparativos das  duas e longas reuniões citadas anteriormente, o  interlocutor  destacado por Marcelino dos Santos contou-me um episódio de ambos quando da participação de Marcelino dos Santos  - como convidado e orador - numa conferência internacional em Paris, França, algures em meados da década de 2000. Creio que foi por ocasião da celebração cinquentenária de um encontro internacional da nata intelectual de nacionalistas e poetas africanos, e não só, que se realizara  igualmente em Paris no qual Marcelino esteve presente. Aliás, nessa celebração ele seria um dos ainda vivos participantes desse memorável encontro.  Na preparação do discurso, o interlocutor conta que  Marcelino dos Santos estava relutante em  usar uma certa frase por si recomendada, mas no final aceitou-a. Na apresentação, essa frase foi muito apreciada o que levou Marcelino dos Santos  a comunicar  ao interlocutor que  ele, o interlocutor, passaria  a citá-lo quando a empregasse.

 

Numa recente viagem a  Angola,  visitei,  em Luanda, o Majestoso Mausoléu Agostinho Neto, nacionalista e 1º presidente de Angola. Na sequência de fotografias emblemáticas  que passam numa tela gigante vi o inconfundível  “Dôs Santos” nos tempos passados e de esforços nacionalistas para  as independências africanas. Emocionado, enchi-me de orgulho e ao virar para os lados por pouco dizia aos outros visitantes: aquele é meu “amigo, meu  camarada, meu líder!”. 

 

Muitos  países africanos  exaltam os seu líderes históricos.  O Senegal, Gana e a África do Sul aclamam  Senghor, Nkrumah e Mandela, respectivamente,  e Moçambique aclama Marcelino dos Santos, correligionário das mesmas andanças nacionalistas.  Nelson Mandela, o líder histórico  sul-africano, um pouco depois de ser liberto (por coincidência no dia 11 de Fevereiro de 1991) perguntara por Marcelino dos Santos num dos primeiros encontros que tivera com delegações moçambicanas. Aliás existem fotografias que testemunham um encontro de Mandela  com “Dôs Santos” antes de  Mandela  ser encarcerado por 27 anos e até da Frelimo ser criada em 1962. 

 

Fora as recordações habituais de ocasião , Marcelino dos Santos também deixa outras facetas para serem lembradas.  Uma delas, a de temido dirigente, foi eternizada na sua passagem pela Beira, na qualidade de Dirigente-residente/Governador da Província de Sofala. Há poucos dias, essa faceta foi  recordada a reboque de um suposto recrutamento militar à moda da temida “operação tira-camisa”, atribuída a ele nessa passagem pela Beira nos anos de 1983 à 1986 .

 

Uma outra faceta que retenho era a sua veia desportiva e solidária. Ir a um  recinto desportivo , fosse qual fosse a modalidade, e cruzar-me com Marcelino dos Santos era tão normal que passou a ser uma regra.  Uma das vezes,  nos anos 80, num domingo de futebol, não me cruzei com ele, mas senti inveja de adolescente por causa da sorte de um amigo  que pedira e apanhara boleia de Marcelino dos Santos no seu carro protocolar, do centro da cidade  até ao Estádio da  Marchava.

 

Ainda no campo das múltiplas  e conhecidas facetas de Kalungano , uma a registar é a de  boémio.  No livro “O meu coração  está nas mãos de um negro: uma história da vida de Janet Mondlane”, escrito por  Nadja Manguezi , uma das passagens se refere a essa particularidade. A propósito testemunho que as noites de Maputo não eram indiferentes para ele. No início dos anos 90, numa dessas noites e na febre das festas nas flats, cruzei-me com Lilinho Micaia.  No decurso da festa e a pretexto de apanhar ar, eu procurava, no espaço comum do prédio, um lugar recatado para trocar algumas palavrinhas. Feito o diagnóstico e enquanto me aproximava, oiço uma voz poética e familiar pronunciando: “Olha para o outro discreto”. Foi bem baixinho, mas o suficiente para que eu ouvisse e partisse para uma outra freguesia. 

 

Com a sua morte - a partida de  Kalungano, Lilinho Micaia, “Dôs Santos” -  acredito que o vazio que deixa será  preenchido por  inúmeros testemunhos que imortalizarão Marcelino  dos Santos.  Um Homem cuja dimensão e trajectória a História deve o seu registo do mesmo jeito que me cabe ainda cumprir a  promessa oculta: oferecer a Marcelino dos Santos o original do livro “O Processo Histórico” de Juan Clemente Zamora. 

 

O dia 11 de Fevereiro de 2020,  será apenas o de partida terrena de Marcelino dos Santos. Em jeito de despedida, chamar  à colação uma das suas célebres frases:  “Enquanto houver revolução por refazer, não há tempo para morrer!”. E a propósito da frase  e da pergunta “Por onde andas, Kalungano?”  o país inteiro responde: “Estou aqui!”   

 

Saravá, “Dôs Santos”!

 

terça-feira, 11 fevereiro 2020 07:40

Quando o Estado o faz chorar

Espero que o leitor  não chore no final do texto. E já adianto que o assunto não são os impostos e muito menos os últimos acontecimentos políticos do país. Aí vai:  guardo lembranças  da luta cívica do Reverendo  Desmond Tutu ,  o primeiro Arcebispo negro  da Igreja Anglicana da cidade sul-africana  de Cabo.  Ainda guardo de outras  do tempo em que ele - também  Prémio Nobel da Paz em 1984 -  chefiara  no período pós-apartheid a Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul. Nesta comissão o relatado pelos agentes ao serviço do Estado sul-africano e respectivas vítimas na época do apartheid, levara com que  Desmond Tutu  chorasse. Abaixo volto ao assunto depois de contar dois episódios intramuros.    

 

O primeiro: um dia e na temporada da revolução dei de caras com uns polícias no cruzamento da Vladimir Lenine com a Rua da Rádio. Foi do lado do Jardim Tunduru. Não portava comigo  o BI e como alternativa o polícia procurou saber onde eu  morava. Apoiado com um  caniço de uns 50 centímetros indiquei a direcção de casa que  por coincidência foi na exacta direcção do brasão da república cravado no  chapéu do polícia. Foi  um 31 cujo desfecho foi graças a uma   intervenção solidária  de solícitos  transeuntes. Não me recordo dos argumentos do polícia, mas creio que o único mal tenha  sido a “coincidência” dos aposentos: o meu e O do Estado. Do episódio  retenho a lembrança da choradeira de menino em direcção à casa. 

 

O segundo: há uns dias contei o episódio acima  a um amigo de Nampula. E este disse que tal não foi nada e que o polícia apenas  excedera no zelo. Segundo ele, muito grave  e desagradável foi o dia em que ele vira um polícia, em Nampula, a exceder  na falta de zelo e sentido de estado. Um 31 de avesso: um 13  da sexta de Agosto em pessoa. Nesse dia e numa  acção rotineira (de saque) de um  polícia este interpela um cidadão estrangeiro – a partida oriundo da África ocidental ou dos Grandes Lagos -  que farto de ser interpelado pela polícia e quiçá pelo mesmo polícia desobedece a ordem de paragem e continua a sua caminhada. O polícia insiste e o forasteiro, uns bons metros distante , vira e com elevado desprezo  atira ao ar uma moeda, provavelmente de cinco meticais, caindo a bons passos de distância do polícia.  

 

 - O que fará o polícia? cutucava curioso o meu amigo. Em seguida o polícia – imbuído com as insígnias do Estado -  caminha lastimosamente em direcção do local da queda da moeda e  agacha  vergonhosamente para apanhá-la.  Segundo o meu amigo:  foi horrível e arrepiante ver o Estado moçambicano  (território, poder político e população)   a ser vulgarmente humilhado e espezinhado em praça pública por conta de  uns  míseros cinco meticais jogados ao ar  e com altivo desdenho.  Nem  que o polícia tivesse tirado o chapéu – como o fazem ao entrar num bar -  ou que fossem milhões  de dólares atirados à rua  tal acto é inaceitável e imperdoável para a dignidade de um  Estado que se preze e queira ser  respeitado.

 

Enquanto o meu amigo  contava o episódio fúnebre  à rodos decolavam lágrimas nos nossos olhos. E aqui aterra de regresso o Reverendo  Desmond Tutu. Sobre ele é contado que no tempo da Comissão de Verdade e Reconciliação a dada altura ele  fizera questão de reservar uma bacia no gabinete anexo ao de trabalho.  E cada vez que ele ouvisse um relato funesto dos  tempos do Apartheid era em tal gabinete em  anexo que se refugiava  e chorava aos prantos. Consta que a bacia chegara até a transbordar de tanta lágrima.

 

Aposto que se a mesma ou semelhante bacia estivesse diante de nós   –  do meu amigo e eu no dia do relato das exéquias do Estado  e  hoje, adicionando o leitor depois da leitura deste texto - transbordaria do mesmo jeito  que transbordara com Desmond Tutu.

A professora e académica  Iraê Lundin (1951-2018)  contara uma vez – na verdade mais do que uma – que no seu tempo de juventude e estudante universitária na Suécia  ela perdeu o verão por culpa de umas horinhas a mais  de sono.  Ela contara que certo dia  e depois de meses molestada pelo frio sueco  foi anunciado que no dia seguinte seria o esperado verão e daí   uma oportunidade tropical  para ela matar as saudades do sol e reviver o Brasil, a sua terra natal. O momento mereceu uma saída “by night” de despedida do inverno da qual se arrependera pelo resto da vida: por conta de excessos dessa noite ela teve que dormir um pouco mais e quando acordara o verão já se tinha ido.

 

Imagino que o mesmo esteja a acontecer com os actuais Governadores Provinciais (GPs): logo que os Secretários de Estado da Província (SEPs) tomaram posse de repente o verão que se pensava igual aos anteriores  durou apenas umas horinhas. Assim e contra todas as previsões “políteorológicas” da corrente do Poder o  inverno cinzento do processo político moçambicano continua com a diferença de que para além de longo,  agora chove intensamente no inverno. 

 

Nas cerimónias oficiais de abertura do ano lectivo e mais recentemente as do 3 de Fevereiro, o dia dos heróis,  foram avistados -  logo pela manhã - aguaceiros  locais no semblante dos GPs que denunciavam uma temporada de intensa chuva cujas inundações a História  encarregar-se-á de registar e estudar as consequências.  Agora e diante das inundações  cabe aos GPs  escolher a melhor estratégia para a própria  sobrevivência política.

 

E em matéria estratégica de sobrevivência recomendo aos  GPs que recorram à uma estratégia  dos tempos de moleque do bairro. Nesses tempos e perante um sinal de algum perigo, principalmente  de agressão exterior e diante da nítida inferioridade na capacidade de  resposta,  a estratégia de defesa (preventiva) passava pelo recurso ao  “agarrem-me senão não respondo por mim”. No caso, os GPs  podem adaptar a estratégia para o “agarrem-me se não desisto/bato-lhe”.

 

E assim segue a democracia à moda moçambicana onde a política também ( como em outros quadrantes) não se difere tanto do clima. Nos dois casos não se celebra uma previsão, sobretudo quando a partida ela é  boa. E por estes tempos de mudanças  climáticas/políticas não se guie pelo embrulho  é necessário que saiba previamente o seu conteúdo e o quanto é resiliente às intempéries dos ventos que sopram do norte.    

 

 

sexta-feira, 31 janeiro 2020 06:49

Praias de Maputo: quando limpar é sujar

Um grupo de assaltantes de bancos depois de uma das suas incursões -  das mais ousadas e lucrativas  - delibera que a divisão do dinheiro  seria feita no dia seguinte logo que soubessem do valor através da imprensa. Para eles não havia necessidade para tanta massada, pois alguém faria por eles. O mesmo raciocínio para a limpeza que é feita nas praias do Conselho Autárquico da Cidade de Maputo (CACM), sobretudo  as situadas na Av. Marginal: porquê deixar limpa se alguém (associações/voluntários)  virá limpar?  

 

Num texto recente e sobre a cidade defendi que não se consegue  combater os males e lutar pelo desenvolvimento da cidade  sem a participação activa dos seus munícipes e visitantes. E de que uma “cidade bela, limpa, próspera e empreendedora” ( a visão do CACM) só seria possível ser alcançada quando os próprios munícipes (e visitantes)  se apropriarem da cidade e no caso das suas praias.

 

O intróito foi a propósito  da realização (30 de Janeiro) da primeira  auscultação pública da proposta de postura sobre a protecção, gestão e utilização  da costa de Maputo e em particular  das jornadas regulares/sistemáticas e pontuais de educação cívica e de limpeza que são feitas tendo como epicentro as praias de Maputo. Pelo que se consta o resultado não difere do da Ajuda Pública ao Desenvolvimento: os respectivos destinatários resistem veementemente  aos esforços  empreendidos por quem quer ajudar.  Alguma coisa não está a bater bem.  O que será?

 

Creio que a abordagem que é feita devia ser alterada.  A boa vontade e os recursos existentes deviam ser reorientados/centrados na capacidade municipal de encaixe e recolha do lixo (recipientes e transporte)  nos pontos previamente definidos.  Quanto a limpeza ao longo das praias que ficasse uma responsabilidade cívica  dos seus utentes. Estes - na sua maioria frequentadores cativos -  seriam os próprios protagonistas e fiscais do asseio da praia.

 

Em resumo e uma dica para a postura em elaboração: recolher apenas o lixo depositado nos pontos definidos e o resto deixar ao critério dos utentes. Do caos pode emergir a ordem. Mboralá experimentar!

segunda-feira, 27 janeiro 2020 07:01

Embarquei Mulatinho, desembarquei Neguinho

Em tempos  infanto-juvenil o Brasil – o país do futebol, da mulata e do samba -  representava, no meu imaginário,  uma terra que também era minha. O colorido da sua miscigenação era o íman e  o “verde e amarelo” da  bandeira a marca identitária. Na verdade e à distância do olhar do tempo: o Brasil era o país  para um provável  pedido de Asilo Político - “instituição jurídica que visa a protecção a qualquer cidadão estrangeiro que se encontre perseguido em seu território por delitos políticos, convicções religiosas ou situações raciais”. 

 

À  época - anos 80 - era normal que  as querelas do bairro desembocassem em palavreado hostil  sobre o tom da  pele de cada um. A mim e a outros com o tom de pele semelhante era dirigido o inevitável: Mulato não tem bandeira/não tem pátria. E a resposta era automática: a nossa bandeira/pátria é  “verde e amarelo”.

 

Anos depois - no início do actual século - tive a oportunidade de viajar ao Brasil. Afortunadamente por nenhuma das razões que justificasse um pedido de asilo. Mas e por outras razões afins/contrárias, nomeadamente: as de combate à ordem mundial (então e ainda prevalecente) que criam e alimentam  as condições para que os  pedidos de asilo continuem na ordem do dia.  

 

No dia da partida - depois da praxe das despedidas caseiras e cercanias  - fui ao aeroporto no limite do tempo. Desço do táxi e um bagageiro - notando a minha aflição - pergunta: “Mulatinho, posso carregar a pasta?”. Ainda não lhe tinha respondido, lá tratou de fazê-la chegar ao ponto do  “check-in”.  Na despedida e com o peso da amável gorjeta o bagageiro sorriu e dedicou uma  “boa viagem mulatinho”, terminando com a típica (e enciumada) recomendação (que é sempre dada  à quem vai ao Brasil):   não se distraía só com o futebol e o samba.  É preciso completar a tríade. 

 

No Brasil , concretamente na cidade de Porto-alegre,  fui convidado a uma “peladinha”  de basquetebol. Em pleno jogo eu fui  ouvindo, entre outros, “corta ai, Neguinho”  e “cuidado com o Negão”.  Depois de um certo tempo – e até então  não entendera nenhuma jogada - é que me apercebo que o “Neguinho” era eu e o “Negão” , um cara adversário e bem corpulento  que  para as minhas lentes do índico era  mais para branco do que para mulato ou negro. De “Negão” apenas delatado por algumas características físicas no rosto que lhe expediam (os brasileiros)  para a África.

 

No avião e de regresso à Perola do Índico   veio-me à memória as brigas que  sempre  - na ausência de argumentos - culminavam no tom da pele. Assim foi até ao dia em que Mia Couto,  escritor moçambicano, deu outro sentido ao debate, escrevinhando: “Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça…” .  

 

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