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Carta do Fim do Mundo

sexta-feira, 06 maio 2022 07:53

As lições que a COVID-19 nos deixa

MoisesMabunda

Pelos dados de (não) contaminação, (não) internamentos e (não) óbitos, que vão sendo reportados nos últimos quatro a seis meses, tanto internamente no país, como internacionalmente, assim como pelas decisões que diferentes Estados vão tomando pelo mundo fora, comumente de relaxamento das medidas (muitas vezes drásticas) anteriormente tomadas, parece claro que a pandemia do coronavírus está em sentido regressivo - cada vez menos contaminações, menos internamentos e menos ocorrência de óbitos; menos pressão social.

 

Trata-se de um colossal alívio nas nossas mentes, da nossa sociedade e da comunidade mundial em geral, tendo em conta o que se viveu no planeta nos últimos dois anos e meio a três! Nunca nos passara pela cabeça que um dia passaríamos por aquilo que passamos. Melhor, nem tínhamos ideia que tal coisa existisse ou pudesse ser possível no mundo. A nossa geração dos 100 anos de idade - os que têm 110, 100 anos para cá - praticamente não conhece/eu uma verdadeira pandemia como esta que estamos vivenciando, afectando humanos. A gripe espanhola remonta a 1918, cerca de cem anos atrás, tendo tido, segundo relatos, entre 40 a 50 milhões de mortes. Pouco registo tem entre nós em África e particularmente em Moçambique.

 

Na quarta-feira passada, 20 de Abril, foi a vez do Estado moçambicano praticamente relaxar as medidas de segurança que tomara quase desde o início do terror da COVID-19. É, digamos assim, o retomar da vida interrompido em Janeiro/Fevereiro de 2020 que o Presidente Filipe Nyusi proclamou aos moçambicanos, ao levantar o Estado de Calamidade Pública.

 

Não que a terrível doença tenha chegado ao fim, nem pouco mais ou menos! Ninguém autorizado, seja OMS, ou outra instituição especializada com reputação internacional, disse semelhante coisa. Até porque a própria China, a… progenitora da catástrofe, regista numa das suas regiões, estes dias, mais uma onda de ressurgimento da doença, com contaminações crescentes; e na África do Sul há igualmente uma nova espiral de números… esta semana houve relato de mais de quatro mil contaminações num determinado dia. Bastante preocupante ainda!

 

Para trás ficam as muitas más memórias de um pandemônio mundial total. Fica a imensa dor da perda de nossos familiares directos e não directos; a perda de muitos amigos íntimos e não íntimos; a perda de conhecidos e desconhecidos; a perda de vizinhos; a perda de compatriotas, ilustres e não ilustres. Conosco fica, em nossas mãos - e não para trás, esquecido, arquivado - este terrível legado: uma sociedade amputada, meio decapitada, profundamente ferida. Muitas famílias completamente destroçadas, mutiladas; que jamais se reconstituirão da perda de membros queridos. Perdemos uma parte de nós próprios!

 

Não é, esta, nem se pretenda como tal, uma mensagem pós-hecatombe, de consolação depois de uma tragédia. A hecatombe que se abateu sobre nós ainda não pertence ao passado. Amanhã, podemos ser infectados; amanhã, podemos ser encaminhados para uma unidade sanitária. Não devemos, nem podemos e nem estamos autorizados, por enquanto, a considerar esta tragédia como “algo que passou"!

 

Temos, isso sim, que continuar a observar zelosamente todas as medidas que as autoridades de saúde nos recomendam. Observar todas as recomendações que nos deram, dão ou que nos venham a dar. A começar pelas aglomerações sociais.

Evitarmos aglomerações, sobretudo as desnecessárias - mesmo até as necessárias, cerimônias fúnebres, casamentos, aniversários, comemorações e coisas que tais, temos que ver como as fazemos e gerimos. Evitarmos provocar enchentes.

Temos que desafiar o nosso sentido de festa. Para nós, festa é aquela para a qual convidamos todo o mundo, enchente total. Temos que rever esta nossa tradicional forma de fazer festa. Temos igualmente de rever o nosso sentido de ‘colectivo’ - um desafio bastante colossal. É contrário ao espírito da nossa tradição, o comunitarismo. Para nós, a vida é estarmos em colectivo, juntos, bem apertadinhos! Certo. Mas temos que rever. Ou revemos, ou… morremos! Menos sábia é aquela sociedade que não consegue ir-se adaptando às mudanças que a natureza vai impondo.

Temos, igualmente, que tomar como legado algumas das recomendações que temos em mãos. EVITAR O APERTO DE MÃOS! É, também, difícil. Mas é necessário. Muito necessário. Diz o ditado, que nós bem conhecemos, mas olvidamos, que pela boca morre o peixe! O que leva as bactérias à boca não é a própria boca, são as mãos! Muitas vezes, levamos o alimento da mão directamente para a boca e aí… ficamos propensos a sermos contaminados! As mãos! As mãos são a chave de muita coisa: de sucesso, de riqueza, de bem estar; mas também, de insucesso, de fracasso e de… morte!

 

Vamos continuar a abstermo-nos de abraços. Abraços efusivos. Também é difícil para a nossa cultura. Mas é uma questão de optarmos: ou aderimos (abstermo-nos de apertar as mãos, abraçar), ou pomos em risco a nossa própria vida. Dizem os experts que o coronavírus veio para ficar!

 

A máscara. Vamos continuar a pôr a máscara. Como disse o Presidente Nyusi, “a máscara não dói”!

 

É o legado que a COVID-19 nos deixa!

terça-feira, 26 abril 2022 08:46

Em socorro dos empregados de mesa!

Uma das prestimosas lições que o meu falecido pai deixou foi a de que nunca, NUNCA MESMO, devia trabalhar, em qualquer que fosse a circunstância ou empreitada, com uma pessoa esfomeada. Antes de iniciarmos o trabalho, fosse qual fosse a dimensão, recomendava o velho Eugénio que devia procurar saber se a pessoa (ou pessoas) com quem ia trabalhar teriam comido alguma coisa já ou não. Extremamente importante isto, vim a constatar anos mais tarde! Não só nas pequenas empreitadas domésticas, mas também na vida profissional.

 

Não estamos a falar de grandes empreitadas, mas de afazeres domésticos. Muitas vezes, lá em casa rural em Xipadja era necessário ou (re)construir um simples celeiro, ou uma capoeira, um curral; mas, às vezes, era preciso construir ou reconstruir uma palhota mesmo. Era nestas pequenas empreitadas domésticas em que se cingia a recomendação do professor Eugénio. Não estou a falar das empreitadas profissionais… essas foram poucas lá em casa.

 

É que, reza o ensinamento, uma pessoa com fome ou pode perder sentidos e cair e morrer até, ao longo do trabalho, portanto, nas tuas mãos; ou pode cair em cima de ti… causando-te lesões inesperadas e de dimensões incalculáveis; ou, ainda, cair embaixo dos paus, blocos, na cova, consoante o trabalho em execução e haver consequências dramáticas, que até podem ser de perda de vidas; ou, ainda mais, cair com os paus e estes irem em cima de ti… Mas, mais uma possibilidade ainda… sendo seu empregado, ou subordinado, por alguma razão, declarada ou não mas mal resolvida para uma das partes, pode ter uma raiva com o patrão/empregador… e, com fome, mau conselheiro na vida, pode ser mais arrojado, mais suicida… ele tem muito pouco a perder!

 

Esta lição persegue-me a vida toda. Hoje por hoje, para desencadear qualquer que seja um projecto, o mais micro que seja, pessoal, profissional ou outro, olho sempre para os aspectos logísticos, incluindo ou sobretudo o estado físico e emocional dos executores/colaboradores. Não fico bem disposto quando a assistente doméstica lá de casa fica muito tempo sem comer, ainda que seja uma chávena de chá.

 

Vem este arrazoado todo na sequência de uma informação que me chegou aos ouvidos, não me perguntem como… Esta coisa de falar na rádio e televisão tem o que se lhe diga. A tomar o copinho e petisquinho da ordem, em algumas das esquinas da cidade, os empregados de mesa aproveitam-se do reconhecimento que fazem da figura que “fala na rádio e televisão” ali diante delas para pedirem que “fale também da nossa situação”. Situação? - retorqui, atônito, completamente ignorante e completamente impreparado para ouvir tal situação… ou melhor, longe de imaginar que tal pudesse acontecer no século XXI! “Sim, nossa situação” - desafiou sem rodeios o empregado interpelador. Machanganamente. “Trabalhamos oito horas consecutivas e os nossos patrões não nos dão um simples prato de comida. Servimos comida toda a hora a clientes de todas as categorias, mas o nosso patrão não nos dá absolutamente nada para comermos. Os bons cheiros só passam pelas nossas mãos e narinas… Só temos direito a uma chávena de chá e uma arrufada! Imagina… entramos às 7, 8 e vamos até 15, 16 horas, a comer só uma arrufada e uma chávena de chá?"

 

Mama mia! Algo que nunca na vida tinha esperado ouvir. Sobretudo, trazendo comigo a lição de meu falecido pai! Os meus ouvidos foram feitos ouvir esta… (abominável) mensagem… com estas ou outras palavras, em três restaurantes de categoria na cidade de Maputo, CIDADE DE MAPUTO NO SÉCULO XXI. Em surdina e com toda a vigilância, com medo que os patrões ouvissem e lhes pusessem na rua, ou lhes ralhassem desrespeitosamente, me passaram a mensagem.

 

NUNCA MAIS ME REENCONTREI! O QUE APRENDI DE MEU PAI É O CONTRÁRIO!

 

Quero acreditar que esta queixa seja verídica. Não tenho razões para pensar que… os empregados estejam a mentir diante de alguém que “fala na rádio e televisão”. Sei de restaurantes onde os patrões dão um prato de comida aos seus empregados. Mas também sei de outros onde os patrões não dão a comida constante do menu, mas mandam fazer outra à parte e disponibilizam para os empregados de mesa. Menos mal!

 

Agora, que há aqueles outros que, pura e simplesmente, não dão um prato de comida aos empregados... Um prato de comida! Os empregados trabalham sete, oito horas de barriga vazia… o que é uma arrufada e uma chávena de chá? NÃO SABIA E NUNCA TINHA IMAGINADO QUE HOUVESSE EM PLENO SÉCULO XXI! UM PRATO DE COMIDA…

 

Eixxi! Que desumanidade!

 

Já entendo a razão do mau atendimento em muitas casas de pasto. Como podem as pessoas trabalhar com fome? Como podem levar pratos de comida de toda a espécie e tipo de um lado para o outro, da cozinha para os clientes, permanentemente, sete, oito horas, se desde manhã cedo não comeram nada? Como querem os patrões que os empregados de mesa dêem tudo para que a casa tenha mais receita/renda se os serventes estão com fome? Como esperam que os serventes tenham bom humor, riam e sorriam, muita disposição, agradem os clientes com a barriga vazia? Saco vazio fica em pé?… NEVER!

 

Não sei qual é a (i)legalidade desta prática. Se houver alguma ilegalidade… eis o pedido de socorro para que as instituições de direito intervenham. Se não houver nenhuma ilegalidade, fica aqui a denúncia de uma imoralidade com cheiro à monstruosa desumanidade. Não acredito que por darem um prato de comida a meia dúzia (ou a uma dezena) de empregados de mesa deixem de ter lucro!

 

Haja humanismo!

Como para muitas crianças das zonas rurais de então - não sei se digo e de agora também… muita coisa já mudou! - o futebol foi o meu maior divertimento. Jogávamos o nosso xingufu fosse qual fosse o número de jogadores, quatro, seis, oito e por aí… raramente chegávamos a onze onze cada equipa. Campo, não era problema. A Escola Primária de Munhangane tinha pátio bastante. Mas não eram todos os jogos que ocorriam na escola. Muitas vezes, qualquer espaço disponível transformávamos em campo. Um pequeno espaço aberto algures, um caminho mais ou menos largo serviam de campo; e se não tivéssemos isso, inventávamos - tirávamos os arbustos, depois o capim e ficava um espaço baldio; de seguida era só colocar dois caniços ou paus em posições opostas… eram as balizas. Muitas vezes, nem delimitávamos o tamanho do campo, mas não chegava a ser tão grande assim.

 

Depois, era só o esférico a rolar, cada um mostrar as suas abilidades. Ao contrário de outros “esportes”, que precisam de equipamentos especiais, ou condições especiais; o “nosso” futebol era bem mais fácil e prático. Não precisávamos - nem tínhamos - sapatilhas ou botas, os nossos pézinhos serviam de botas;  guarda-redes, depende, se alguém não gostasse de jogar com os pés… e se não houvesse dois, um da equipa contrária tinha que fazer o papel de jogador-guarda-resdes. Árbitro… nada… não havia árbitro ali! Todos nós éramos árbitros, com toda a confusão que isso dava. E o nosso jogo não tinha apenas 90 minutos. Tinha, sim, o nosso tempo disponível. Podia ser uma hora, ou uma manhã inteira, ou mesmo o dia inteiro. Muitas vezes, até sermos chamados em casa para realizarmos alguma tarefa…

 

É assim como em muitos de nós o futebol se tornou “ópio”! Dali, continuamos a jogar em muitas das escolas por onde passamos: Malehice, Xai-Xai, Chókwè e Maputo (Manyanga e Munhuana). Ainda cheguei a federado, mas tive que optar; em Chókwè, pelo CAIL - Complexo Agro Industrial do Limpopo. O CAIL fez furor em Gaza nos princípios dos anos oitenta (1981, 82 e 83), não tendo ganho campeonato provincial porque o Clube de Gaza e o Ferroviário local eram os dominadores. Mas acabou conseguindo o segundo lugar! Chegado a Maputo, ainda tentei ensaiar uma carreira de futebolista… mas não deu. No internato onde ficávamos, Munhuana, a hora de recolha era 18:30, mais tardar 19. Depois disso, fechavam-se as portas. Pus-me ao fresco: desisti do futebol profissional, não tive coragem de ir dizer ao pai que deixara a escola e abraçara o futebol… algo que ele não queria - e eu já sabia que o velho não queria nada com futebóis…!

 

A paixão pelo futebol empurrou a que tivesse uma equipa favorita. Não há nenhum adepto que não tenha uma equipa favorita. Pode omitir, mas no seu íntimo tem uma equipa pela qual torce. E eu acabei torcedor do Sporting Clube de Portugal. Como? Nos principios dos anos setenta, a partir de Munhangane mesmo, algures no distrito de Chibuto. Meu pai não era de futebol. Certo sábado, no seu aparelho de rádio de marca National, no princípio da noite, dão relato de um jogo do Sporting. Aquele devia ser o primeiro relato que eu ouvia já em alguma consciência. Gostei de ouvir o relato do jogo e do Sporting, fiquei maravilhado com o guarda-redes Vítor Damas. E assim ficou a paixão pelo Sporting.

 

Como apreciadores de futebol, ou de qualquer outra modalidade, gostamos de futebol de nível. De muito bom futebol. É assim em todas as modalidades. Gostamos de ver um bom jogo. Polêmica à parte, o futebol europeu é dos mais desenvolvidos que há neste planeta. E assim temos estado a nos deliciar com o futebol europeu ao longo de todos estes tempos, quatro a cinco décadas.

 

Não somos dos tempos em que Eusébio, Coluna, Matateu e outros poucos brilharam nos palcos europeus de futebol. As nossas referências são os nossos hinos Calton Banze, Artur Semedo, Chiquinho Conde, Sergito e Aly. Grandes jogadores que são, não chegaram, no entanto, a grandes emblemas do velho continente. Não tiveram o brilho que Eusėbio, Coluna e Matateu tiveram. Não se lhes proporcionaram oportunidades para exibir todos os seus talentos! Foi pena.

 

E eis que agora nos aparece Reinildo Mandava! Uma bênção. Os jogos da “Champion” eram/são muito apetitosos, víamo-los (vemo-los) com todo o gosto e prazer. Mas os deste ano tiveram um sabor muito especial. Um sabor moçambicano!

 

Obrigado Reinildo Mandava por nos ter feito sentir parte da “Champion Europeu”!

 

Continue a elevar o nome do seu Moçambique!

quarta-feira, 13 abril 2022 08:19

Abril, Mês da Desintoxicação das Mentes

7 de Abril é o dia da mulher moçambicana. Por isso, escolhi defender a ideia segundo a qual, o mês Abril simboliza, na nossa historicidade moçambicana, o início da luta contra mentes ensombradas pelo machismo (ou masculinidade) e feminismo (ou feminidade) tóxicos. Mas, por razões óbvias e em respeito à data, vou limitar-me ao que este mês representa a luta contra uma masculinidade tóxica.

 

Nascido numa família onde maioritariamente são mulheres, aprendi logo cedo neste meio cultural e tradicional, que nós, irmãos, e homens no geral, temos como missão proteger e cuidar as nossas irmãs, mães, tias e de qualquer mulher. Não é por acaso que, na perspectiva ubuntu, todas as mulheres mais velhas, e em alguns casos as mais novas da família e aldeia, sobrinhas ou netas como exemplos, são chamadas “mãe”. Digo “são” com a consciência de que alguns intelectuais distraídos do meu tempo preferem usar o passado “eram” quando falam do seu meio cultural de origem, esquecendo que passado não é o mesmo que ultrapassado.

 

O que depois, pela sociologia, veio a ser chamado “bastidores”, e, pela ciência política “espaço subalterno” ocupado pelas mulheres nas culturas africanas, era para mim apenas valores tradicionais: respeito e cuidado pelo “sexo fraco”. Esta era uma masculinidade básica, por outra culturalmente originária e não toxicada. Trata-se da masculinidade segundo a qual qualquer “mãe” da aldeia tem por missão educar a todos os filhos. Não sei quem terá dito que uma aldeia africana é composta por dois tipos de pessoas: mulheres e seus filhos e filhas, incluindo em ambos grupos os “ainda-vivos” e “morto-vivos” se falarmos com filósofo queniano John Mbiti.

 

Mas, à medida que eu crescia, ia tropeçando perante um outro tipo de masculinidade. Já no contexto mais amplo da sociedade colonial capitalista, a masculinidade já não aparece sob a mesma forma original e tradicional que aprendi, senão forma “tóxica” – como classifica a filósofa brasileira Djamila Ribeiro. Isto é, segundo esta filósofa, ligada ao músculo, à violência e ao machismo. Enquanto culturalmente original a masculinidade se apresenta em forma de uma educação para assumir o papel social de responsabilidade, protecção e segurança da mulher e família, como sustentava o sage Viegas, a masculinidade tóxica, por seu lado, tomada de uma narrativa da cultura patriarcal-colonial capitalista, empurrava-nos, a assumir comportamentos socialmente sexistas, discriminatórios baseados no género e mesmo violentos. Estes resultavam nocivas para o próprio homem e com consequências graves para a sociedade moçambicana, por esta, durante muito tempo, privar-se do uso da força, inteligência e estética da “capulana”, como afirma a intelectual moçambicana Dulce Passades.

 

Por isso, o 7 de Abril representa o dia em que as mulheres moçambicanas decidiram dizer basta e lutar pela desintoxicação das mentes machistas dos tempos da luta armada pela libertação e, mais tarde, nas estruturas culturais, políticas, sociais e económicas da sociedade.

 

Quais são, então, as armas que as mulheres, representadas e simbolizadas pelo então Destacamento Feminino da Frente de Libertação de Moçambique, teriam usado na sua longa marcha pela desintoxicação das mentes machistas, escondidas sob capa de masculinidade? Elas foram três: a força física, a inteligência (adicionalmente a emocional) e a estética simbolizada na capulana.

 

O primeiro grupo de mulheres que aceitou receber treinos militares para a frente de combate, incluía a Marina Pachinuapa, cuja retórica sucinta e profunda me deixa sempre admirado quando disserta sobre esta data e momentos da nossa história recente. Elas, naquelas circunstâncias, ao aceitarem o que até então se considerava tarefa dos homens, desafiaram a ideia, segundo a qual, pertenciam ao “sexo fraco”, com a qual todos nós, africanos e europeus, crescemos com sendo o “normal”. Aquelas meninas demonstraram que o dito sexo fraco possuía, na verdade, a mesma força física que o companheiro e o camarada detinha, dependendo apenas da capacidade e vontade política de educação e adequado treino.

 

Como poderíamos continuar a chamar fraca à uma mulher que carregava material e alimentos à cabeça e nas suas costas por longas distâncias? A propósito, mesmo hoje, quando se trata de deslocar-se das zonas afectadas pelas guerras no Centro e no Norte, para zonas mais seguras devido aos desastres naturais, a mulher demonstra a mesma força. Esta teoria de sexo fraco, demonstraram as mulheres do Destacamento na prática, era, de facto, uma grande aberração, uma grande narrativa enganosa. Na verdade foi criada no quadro de uma sociedade patriarcal tóxica machista – refiro-me à sociedade colonial – e projectada às tradições africanas como se fosse um comportamento natural, não desviante para o dito negro.

 

O facto de as mulheres se terem mostrado mais fortes no carregamento do n´tolo à cabeça (os homens, por natureza, usam mais os braços) serve-me de uma ponte simbólica para a segunda “arma” de luta feminina contra a masculinidade tóxica – e inteligência. Também nos foi imputada a ideia que ela é a menos inteligente que o homem. Daí que não se lhe tenham sido desde reservado papéis de liderança na família e na direcção política. Numa sociedade que se organiza de forma de luta e competição, e não por cooperação, para a conquista de lugares na estrutura do poder, interessava construir uma narrativa de uma mulher menos inteligente. No entanto, a experiência que fomos tendo enquanto sociedade política moçambicana em crescimento – e aqui refiro-me à criação da OMM, das Ligas Femininas dos partidos políticos, dos gabinetes e associações femininas operárias e camponesas, funcionárias públicas, fóruns mulheres parlamentares, grupos de pesquisas sobre o gênero, o seu desempenho na educação, no ensino superior em particular, etc. – a mulher moçambicana tem demonstrado uma dupla vantagem.

 

Pois, ela não apenas demonstra possuir uma inteligência “normal” e igual ao homem em termos de percepção, entendimento, ciência e acção, como sobretudo e adicionalmente, a inteligência emocional. E esta lhe dá vantagens competitivas em relação ao homem em lidar com situações de crises familiares, de guerra, calamidades, deslocamentos forçados, tensões sociais, crises institucionais, etc. O seu amor e carinho naturalizado coloca freios à tendência masculina, também naturalizada, do uso da força e violência brutas. Ela nos convida sempre a um “segundo olhar”, antes do uso da força. Nos recorda sempre ao “o que diria a nossa mãe”, antes de enveredarmos pelo caminho violento. Porém, não devemos naturalizar esta característica emocional feminina. Devemos perceber que ela foi conquistada a partir do seu lugar de resistência contra a masculinidade tóxica tradicional e machista das sociedades tanto europeias como africanas.

 

Durante muito tempo, o mundo e as sociedades, desviados pela masculinidade tóxica, perderam a oportunidade de se deixarem aconselhar por esta inteligência emocional. Até porque o sucesso do que chamamos hoje inteligência artificial, aproveita-se muito da inteligência emocional da mulher. Por isso, podemos dizer que, em certa medida, o mês Abril, simboliza, com a inclusão da inteligência emocional, para além da sua inteligência natural, um grau acrescentado na humanização nas várias frentes do movimento de libertação moçambicano. E também das lutas que ainda travamos para o desenvolvimento, sobretudo pela reconciliação. A não inclusão e consideração da mulher moçambicana em todas estas frentes, seria declarar uma derrota antecipada. O respeitar a “mãe” da aldeia, deve transformar-se em “ouvir” e “seguir” a voz feminina e no feminino. Este aconselhamento naturalizado feminino deve transformar-se num dos elementos fundacionais de uma ética de reconciliação com o Outro, algo muito ausente na nossa (des)convivência política, sobretudo no período das eleições, no parlamento e afins.

 

A terceira “arma” de Abril contra a masculinidade tóxica – a estética – me parece ter sido a mais forte, embora até agora com menos narrativas feministas moçambicanas. A masculinidade tóxica olha para a mulher com sexismo e na perspectiva do sexo belo. A Marina Pachinuapa, numa palestra na Universidade Pedagógica de Maputo, relativamente ao papel do Destacamento Feminino, denunciava o que alguns homens integrantes do movimento de libertação, em particular os progenitores, chamaram por “mulheres desviadas”. Consideravam estes que, indo as jovens participar nos treinos militares ao lado do homem, seriam consideradas “mulheres de má vida”, temendo, sobretudo os pais, elas depois não serem aptas depois para construir um lar “normal”.

 

Ainda recentemente, tenho reparado que, quando uma mulher é nomeada ministra, administradora, ou para um outro cargo público, o sexismo volta à carga. Os camera men, apesar do respeito que tenho por eles, não escapam, muitas vezes a este impulso sexista: mostram a “corpo” inteiro no pequeno ecrã, começando dos pés à cabeça, sugerindo motivos adicionais para a sua nomeação, que não tenham sido a sua formação, capacidade e inteligência. A tal pergunta não falta – por que “outros” motivos ela teria sido nomeada? Teremos que combater esta “mulher boleia” do homem, pela mulher-competência.

 

“Mas não se enganem” – diria o historiador Carlos Machili – “a qualidade vem da quantidade; querendo dizer com isso da inclusão”. Pois, não existe o númeno sem o número.

 

Defendo que, enquanto sociedade moçambicana, encontramo-nos num ponto de inflexão de confundirmos a beleza com o sexismo: as cores, a elegância, a graça, enfim a estética, com a qual as mulheres moçambicanas emprestam a nossa vida pública, cultural, política e institucional não se deve reduzir ao sexo belo. A mulher africana impôs, nas últimas décadas, uma estética própria. E a mulher moçambicana tem somado vitórias nesta luta contra a toxidade machista. A mulher está a conduzir, por via da estética africana simbolizada aqui pela capulana, repetindo Passades, a revolução mais inteligente de todos os tempos na história da humanidade.

 

Para o caso de Moçambique, para mim, Abril simboliza o início formal da luta contra o sexismo e pela desintoxicação da mente machista. Pois, a maior revolução foi normatização desta imagem: uma mulher com um lenço na cabeça e com uma arma nas mãos. Não uma arma para matar, mas para libertar a terra e libertar-se do machismo. O lenço e a capulana, proibidos no tempo colonial e nos primeiros momentos do fervor revolucionário, passaram a hoje a embelezar qualquer espaço público. Uma conquista e vitória feminina sobre o sexismo e masculinidade tóxica despercebida, cuja a “arma” fundamental foi a estética do belo.

 

Não tenho a certeza se aquelas meninas do Destacamento Feminino foram admitidas a levarem os lenços na cabeça para os treinos militares – perguntarei isso à “mamã” Marina Pachinuapa um dia. Todavia, tenho certeza que, quando esta veio falar aos intelectuais da universidade sobre suas lutas, trajava um lenço que condizia com o vestido de capulana. O triunfo da revolução estética feminina – a mais inteligente revolução a que já testemunhei nestes últimos tempos da nossa historicidade. E considerem-se vitoriosas, porque a  juventude moçambicana, sejam rapazes ou raparigas, continua a revolução estética africana hoje, seja por via de penteados afros, seja nos diferentes Mozambique Fashion Weeks, somente para dar alguns exemplos.

 

Naturalmente que haverá assuntos menos vitoriosos nestas narrativas de lutas feministas moçambicanas. É o caso, por exemplo, a inclusão do papel das diversas “ligas femininas” e de outras mulheres revolucionárias do “outro lado”, como o caso da Joana Simeão, por exemplo. Estas deveriam sair das notas-de-roda-pé a que se encontram destinados na nossa narrativa oficializada, para o texto principal da nossa historicidade colectiva. Mas fico, por hoje, pela celebração do símbolo da desintoxicação.

 

Viva Abril, mês em que, para nós moçambicanas moçambicanos, iniciou a revolução feminina contra a masculinidade tóxica. E ainda bem que há cada vez mais homens que embarcam nesta batalha, “ao lado”, como tratou de frisar Mariza Mendonça no dia 7 de Abril.

terça-feira, 05 abril 2022 07:50

Um terror chamado viagem a Inhambane

quarta-feira, 23 março 2022 08:21

É preciso ser cara de pau mesmo!

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