A semana passada teve o condão de os moçambicanos e o mundo em geral verem uma ilustre personalidade sentada no banco dos réus… ainda que não como réu propriamente, mas como declarante - o que, aos olhos do zé-povinho, é igual! De facto, em termos semânticos, a diferença é igual: em ambas as circunstâncias, trata-se de julgamento; tanto aquele que se senta no banco como réu, como o que se senta como declarante, ambos são impiedosamente interrogados pelo mesmo juiz na busca do esclarecimento da verdade material sobre determinada ilegalidade.
Assim, podemos murmurar que vimos, sim, um gigante sentado no banco dos réus!
Recuando no tempo, temos é memória de Sebastião Mabote e Manuel Antônio sentarem no banco dos réus, acusados de tentativa de golpe de estado; Almerino Manhenje, acusado de uso à margem das leis dos fundos do erário público; mais adiante, recentemente, tivemos o ex-ministro Paulo Zucula. Esperamos proximamente ver… a ex-ministra do Trabalho. É pouca coisa para 46 anos de independência de uma nação. Muito insignificante para tamanhos desmandos, violações, barbaridades, ilegalidades, desacatos, actos de corrupção, e outros nomes que tais. Se efectivamente fôssemos por um estado em que governa a lei e quem age à sua margem é rigorosamente responsabilizado, muitas ilustres personalidades já teriam passado pelo banco dos réus, seja como réus de facto, mas também como declarantes ou testemunhas.
Mas tudo bem. Esta semana, tivemos o ilustre ex-governador do nosso banco central. De todo o seu exercício de passear a sua classe, eloquência, magistralidade, academice, solenidade - tudo temperado com aquele seu adocicado sotaque bitonga -, ficou que o Banco de Moçambique autorizou as dívidas odiosas em nome da soberania, em nome de garantir a sobrevivência do estado moçambicano. Este é o entendimento geral das declarações do ex-boss da autoridade financeira suprema, largamente reflectida, ou vertida (segundo os juristas), em muitas páginas de jornais.
Colocação problemática esta que o juiz não deixou passar. Retorquiu ele que "então para vocês a soberania precede a lei?” (citação de memória), ao que o nobre declarante redarguiu que “estava em causa a existência, segurança e sobrevivência do estado; não queríamos estar numa situação de não aprovar as garantias e acordarmos amanhã sem o estado moçambicano…" (também citação de memória).
Viajemos juntos com o Gove, afinal ele não nos está a viajar? Então a lei moçambicana, qualquer que seja ela, área, sector ou natureza, não tem em conta a soberania nacional? É concebível, racional, que uma lei moçambicana, ainda que seja sobre o aborto, por exemplo, nao tenha como mote a salvaguarda dos interesses do nosso estado, a nossa soberania? Particularmente, as nossas leis financeiras não destacam a questão da soberania? Não visam preservar e defender a soberania do nosso estado? Uma coisa serão as nossas leis financeiras e outra serão as outras leis que visariam preservar a soberania e a existência do estado? É isso? Há essa destrinça? De que falamos, afinal, quando sempre evocamos interesse nacional? As nossas leis não são pelo interesse e instituto nacionais?
Se é isso, então cabe entender que o proponente das tais leis financeiras não é moçambicano, muito menos patriota; ou que o legislador que delas se apropriou e emanou não é moçambicano! Será racional entender que o Banco de Moçambique possa propor uma lei que não tenha em mente a soberania nacional? O interesse nacional? Que a Assembleia da República emane uma lei que não salvaguarde a soberania nacional? Que o chefe de estado promulgue uma lei que não salvaguarde a soberania nacional? É isto que Ernesto Gove quis que enxerguemos?
Mas mais, soberania, afinal, o que é? Não é tudo o que é nossa pertença, incluindo as leis que regram sobre o nosso estado? Então, que lei financeira é essa que não previu questões inerentes à defesa da nossa soberania?
Depois, quem é que proclama que a soberania do estado está em perigo? Quem e aonde? Estando em perigo, como gritam os réus - e Ernesto Gove também fez coro -, a soberania do estado, não é o chefe desse estado que, em fórum próprio, alerta, proclama e indica as medidas que devem ser tomadas e por quem para se fazer face a esse perigo de estado? É alguém andar de gabinete em gabinete com papéis na mão a recolher assinaturas, coagindo, ameaçando e intimidando?
Mas esta já não é responsabilidade apenas do Gove, é do chefe do governo! Este devia, depois de se aperceber, informar-se devidamente e recolher e consolidar as ideias sobre uma eventual ameaça à soberania do estado, convocar os órgãos próprios, incluindo o governo do Banco de Moçambique, e lhes instruir sobre o que devem ou não devem fazer, as medidas a tomar para salvaguardar a soberania.
Isto é que devia ser. Mas, entendemos, Gove quis safar a sua pele! Vamos ouvir o que a bateria de ministros que vem aí vai dizer-nos. Esperamos que não nos façam de matrecos, como o ex-governador nos fez!
Ao Bayano Valí e ao Zacarias Tsamba
A baía de Inhambane funciona como uma ilha a separar dois mundos: o do movimento agitado da Maxixe e o do silêncio tranquilo de Inhambane-céu. O movimento no café da pousada Maxixe aumenta quando a noite se prolonga. Cada vez que um camião ou transporte interprovincial de passageiros estaciona para o habitual descanso, os seus ocupantes se fazem ao café para pedir alguma coisa, para enganar o estômago e molhar a garganta.
Esta noite mostrou-me que, quando se chega a Maxixe, a garganta seca. O mesmo aconteceu comigo. Molhei-a duas vezes num acto que também considerei histórico, pois também saudava a memória de Mac-Mahon. Quase todos faziam o mesmo. E porque pronunciar o nome do Marechal francês tantas vezes podia ser cansativo, a abreviatura tomou conta do café. Todo mundo olhava ao servente da mesa e anunciava o nome abreviado do marechal, “2M”. É como se celebrássemos uma negociação de paz entre dois beligerantes, em nome de um povo que nunca sequer lhe foi apresentado um argumento para que aprovasse uma guerra.
Eu e dois amigos ocupamos uma mesa à direita da entrada do café da pousada. De vez em quando deixo de prestar atenção à conversa para contar os pirilampos que chegam à minha vista de Inhambane-céu. As luzes do Hotel Casa Capitão, da Catedral de Inhambane e da Ponte Cais chamam a minha atenção. Como toda cidade olhada de longe, imagino quantos casais estejam a trocar sabores, prazeres ou dores e odores. “Tudo depende de como as pessoas vivem, pois quando o silêncio toma conta dos casais” ___ diz um dos meus amigos ___“dores e odores tomam conta de suas vidas e quando a comunicação flui, prazeres e sabores cruzam-se”, conclui.
Na verdade, a diferença entre Inhambane-Céu e Maxixe revelam-me que o mundo só existe porque os contrários o harmonizam. Maxixe agrada-me quando não quero dormir; Inhambane agrada-me quando quero dormir; imagino que seja por isso que os contrários existem. Por isso que normais sorriem e choram, lamentam e celebram. Nesta altura ocorre-me que os barcos da administração marítima de Inhambane gostam de dormir e quando é para dormir, deve ser do outro lado da baía, na cidade de Inhambane. Por isso a necesidade de falar aos meus amigos sobre o meu regresso.
___ Calma! Nós conhecemos isso. Fique à vontade e peça mais um café, a princípio bem amargo, para que a tristeza não consiga sobreviver no teu organismo ___ diz o meu amigo à direita. Ele usava uma camisete branca, com um desenho feito por mestres da arte Makonde. Sendo historiador, ele estava habituado a encontrar um argumento histórico para tudo que fizesse. Explicou que reza a história que nenhum hóspede já ficou sem barco na Maxixe e a acontecer. Seria o primeiro caso.
Na minha contra-argumentação, explico-lhe que ser o primeiro a perder barco na Maxixe, é uma ideia que me agrada porque, como todos os seres humanos, gosto da ideia de ser o primeiro. Em quase todos os lugares, o primeiro recebe uma distinção. Primeiro filho, primeiro melhor aluno da turma, primeiro homem a chegar à lua, primeiro homem a namorar com uma mulher e por aí em diante. Conto-lhe uma história que se passou em Memba sobre ser primeiro. Explico-lhe que Jentilal Muldji era o primeiro em termos de preços baixos entre as as lojas da vila de Memba; mas quando Melopia Mussa mudou a sua sede de Tropene para Memba-sede, tomou a posição praticando preços baixos jamais vistos na vila. E porque Jentilal queria ser o primeiro em alguma coisa, tornou-se no primeiro comerciante a negar dinheiro de um cliente. Num dia desses quando um vizinho foi comprar ekhutte (feijão boer), tendo primeiro passado pela loja do Melopia antes de chegar à loja do Jentilal. Chegados à loja do velho Jentilal lhe é perguntado o que queria e ele respondeu ___ ekhutte ___ ao que Jentilal respondeu “wa melopia ehavo ekhutte” (no Melopia também tem feijão), tornado-se assim no primeiro comerciante a negar-se vender a um cliente.
Contei a história para mostrar que o ser primeiro é uma luta que atravessa os humanos, a ponto de disso depender sua felicidade. Nesta altura está chegar a pousada mais um autocarro que funciona como transporte interprovincial de passageiros. Os seus ocupantes comentam que o motorista é muito matreco, por isso perderam a oportunidade de serem os primeiros a chegar entre os autocarros com mesma procedência, inclusive, recomendam ao motorista para descansar bem, porque amanhã eles querem ser os primeiros a chegar a Maputo.
Depois de vários cafés fomos ao cais da Maxixe para apanhar o último barco. À chegada algo estranho chamou nossa atenção. As luzes do cais estão apagadas e a lojinha de venda de bilhetes fechada.
___ Parece que perdi o último barco ___ digo aos dois amigos que me acompanham com uma entoação vocal de desespero.
___ Espera! Vamos ler tudo que está escrito na vitrine ___ diz o outro amigo.
Enquanto líamos as informações da vitrine, percebemos que o barco havia parado de circular antes da hora exacta. Nessa altura a opção que me restava era o regresso à pousada da Maxixe. Entretanto, faria isso depois de uma chamada telefónica para a administração marítima, para apresentar a reclamação. Minutos depois de espera, uma voz do outro lado atende:
___ Alô, boa noite!
___ Boa noite! Olha, nós estamos aqui no cais da Maxixe e verificamos que o barco parou de circular antes da hora prevista. A que se deve?
___ Eya! Tudo por causa dessa tal democracia. Eu estava a dormir e de repente tem pessoas que lêem todos artigos, documentos e decretos, a ponto de acordar-me para uma boleia de barco. Como se o barco os pertencesse ___ reclama o homem do outro lado da linha.
___ Ainda não nos explicou a que se deve.
___ O barco já está a chegar. ___ responde friamente.
Desliga a chamada enquanto uma brisa bem forte se faz sentir na baía de Inhambane. Nessa altura dou-me conta que não trago camisola e começo a fazer as matemáticas sobre quanto devo gastar para pagar por uma hospedagem na Maxixe. Quando iniciámos a caminhada de volta à pousada, o último barco já balançava sobre as águas. Afinal, nenhum hóspede já ficou sem barco na Maxixe.
Uma das variáveis de desenvolvimento de uma sociedade é o grau de incerteza no seu dia-a-dia por parte dos seus membros. A possibilidade de de repente acontecer alguma coisa desagradável e desastrosa que ponha em causa a sua existência, da sociedade ou deite a perder todo um projecto social, ou os seus valores e percurso. Quanto maiores ou muitas forem as incertezas no dia-a-dia, menos desenvolvida será essa sociedade; menor será a estabilidade emocional, social e económica. Olhe-se para as sociedades desenvolvidas. Não há nenhum investimento, individual, colectivo, institucional ou social, sem o controlo desta variável. Ninguém investe sem ter a certeza de que se não vai ganhar o dinheiro que projecta, pelo menos não vai perder o seu capital inicial, de investimento; isso seria o que os outros chamam de haraquiri!
As sociedades primitivas eram cheias de muitas incertezas, não tinham os instrumentos e mecanismos de que nos servimos hoje para reduzirmos as incertezas: o conhecimento científico, a ciência e a racionalidade! Instrumentos que nos permitem aferir o grau de risco de qualquer empreitada que pretendermos desencadear. Dependiam grandemente da natureza, pouco sabiam dos estudos de viabilidade, dos cálculos de risco, das previsões meteorológicas, se vai chover ou fazer muito calor, se haverá seca prolongada ou precipitação normal, ciclones ou vendavais e quais os efeitos disto ou daquilo.
Hoje, as sociedades desenvolvidas são aquelas em que o grau de incerteza é muito menor; o risco é calculado, é especulado. Nas sociedades desenvolvidas, quando os indivíduos se dirigem a instituições do estado, mas não só, sabem muitas vezes que tratamento vão encontrar. Quando chega o fim do mês, sabem quais as facturas e mais ou menos as despesas que têm que pagar (entre nós, nunca se tem a certeza do valor da factura de água, ainda que seja aproximada; tanto pode vir 100 como mil meticais). Quando saem à rua, sabem, mais ou menos, o que vão encontrar, tipo não serem assaltados de qualquer maneira, chatices desnecessárias do agente de trânsito, estradas partidas que podem danificar o carro, POS e ATM que não funcionam, lojas onde só se paga a cash, etc., etc. Portanto, incertezas atrás de incertezas!
O nobre dia da “Cidade das Acácias”, 10 de Novembro, coincide com a data de aniversário da minha esposa. Feliz coincidência, porque, assim, temos o feriado para todo o tipo de actividade que possamos ter programado. E de facto tínhamos programado o almojantar da ordem. Uma combinação de almoço e jantar: está fora da hora do almoço, mas também ainda antes da hora do jantar.
Lá fomos nós a um grande restaurante! Grande. O Casino Polana. Em plena Marginal, nas imediações da novíssima embaixada americana. E em pleno século XXI! Tudo correu às mil maravilhas… menos a sessão de encerramento. Lá veio a conta, conferimos, batia certo e lá pedimos a tal POS. Com uma voz trêmula, menos convicta, o servente que nos atendera muito bem e sempre com voz carinhosa, diz-nos que “POS não está a funcionar…” - e, cabisbaixo, acrescenta que “... aqui na porta de saída tem uma ATM em que podem ir levantar o valor…”
Não lhe escondi que não tinha percebido, tamanha era a surpresa que a informação que me estava a ser dada causara. Repetiu, visivelmente embaraçado. Também ficamos bastante embaraçados. Um dia especial estava a ser beliscado… mas para não estragar tudo, lá me levantei, bastante contrariado, para a tal ATM, para ir pegar o taco. As tais incertezas! Você nunca sabe o que lhe pode acontecer. Mas nem era tudo!
Outra surpresa das surpresas desagradáveis, num ápice o cartão é engolido! A máquina nem sequer deu chance para digitar o código!… Imagine-se como se fica nestas condições. Uma tarde que estava a correr lindamente, romântica, estava a terminar desagradavelmente. Algo completamente imprevista. E assim ficou marcada aquela data querida.
A pergunta é: como pode um restaurante de luxo, em plena Marginal, a zona A, não ter em certo momento uma POS a funcionar e, para piorar, a ATM? Quer dizer, os muitos cartões com que andamos não chegam para estarmos à vontade, temos que andar com dinheiros e dinheiros nos bolsos com todos os riscos: a tal incerteza!
É isto que é a nossa sociedade: cheia de surpresas acima de surpresas no dia-a-dia. Prenhe de incertezas. Você nunca sabe o que lhe pode acontecer ao sair à rua. Como podemos desenvolver o país assim? Como podemos investir nestas condições? Para investirmos, precisamos de economizar e para economizar, precisamos de ter certeza das despesas do mês. Ou seja, de certeza e não de incerteza. Se você nunca sabe o que vai pagar ou não ao fim do mês, como vai calcular o que pode ou não investir? As estradas estão sempre a partir o carro; a factura de água está sempre a variar; você pode ser assaltado, ou raptado a qualquer momento… as POS e ATM embelezam a cidade, no momento certo, dão dores de cabeça…
Vamos em frente, irmãos… isto não será o Governo a resolver!
Não sei o que acontece a alguns espíritos, sobretudo aqueles dotados de cultura e inteligência, sensibilidade e mundo, quando fazem proclamações exacerbadas e despudoradas sobre a vetusta Lourenço Marques. Quando se arrogam a esse desplante.
A desenfreada apologia de Lourenço Marques é uma afronta que deve merecer a mais vigorosa censura. Há um dever de memória que é preciso exercer quando se fala do passado que foi, para a maioria dos moçambicanos, negros ou não brancos, demasiado penoso, na antiga cidade de Lourenço Marques, mas não só.
Esta impetuosa mania de celebrar Lourenço Marques não decorre de uma amnésia. É acintosa, é ostensiva, é provocatória. Este triunfal vitupério do nosso passado é inadmissível. Principalmente quando exercido por aqueles que se querem igualmente moçambicanos.
Ouvir dos que foram coagidos, pelos ventos da História, a abandonar Moçambique, o seu desprimor por Maputo, a sua mofina, não me parece extraordinário e é até expectável. Conheço muitos que se recusam a chamar de Maputo a capital moçambicana e insistem em designá-la de Lourenço Marques. Mas aqueles que insistem, entre nós, com seus panegíricos à Lourenço Marques, aí, simplesmente, acho abominável. E não me coíbo de o dizer.
Não me recuso a aceitar a realidade, nem a ouvir as críticas. Eu também as faço. Mas há uma diferença entre Lourenço Marques, cidade colonial, e Maputo, capital de um país independente. Divergem em tudo: na economia, na política, na sociedade ou na cultura. Não são a mesma coisa, nem representam uma continuidade. Há uma importante disrupção com o 25 de Junho de 1975. Esses bons espíritos laurentinos que por aqui lavram não o entendem?
Eu posso até subscrever o retrato de uma dura realidade da cidade, que é a nossa, hoje, da nossa incapacidade, do nosso desgoverno, da nossa incompetência, da nossa displicência, do nosso descaso. Percorro todos os dias a cidade e sofro com isso.
Igualmente não me chocam os retratos que os forasteiros fazem de Maputo, com o olhar que é deles, que difere necessariamente do meu, mas embirro quando certos portugueses, ao assomarem a Maputo, venham logo proclamar estar em Lourenço Marques. Implico ainda mais com aqueles moçambicanos que continuam a proclamar que o melhor que Maputo tem é Lourenço Marques. Fazem-no disfarçadamente alguns. Outros tantos de forma desbragada.
Então alteiam loas à sua vida, mansa e tranquila, na velha Lourenço Marques, omitindo algo decisivamente importante: que era Lourenço Marques a não ser uma cidade colonial e discriminatória? Lourenço Marques era politicamente excludente. Quem nela vivia? Como era a sua paisagem humana? Nós todos cabíamos lá? Perguntem-me onde nós vivíamos. Como vivíamos. Quem éramos. Como éramos. Onde estamos nesses encômios?
Esta é a Cidade de Maputo. Não é mais Lourenço Marques. Alguns destes nostálgicos de Lourenço Marques são próximos de mim. Mas tenho que ser severo, ríspido e enérgico com eles. Essencialmente com eles.
Maputo, 10 de Novembro de 2021
Graças a um grande amigo e a um amigo do meu filho, este fim de semana tive o grande prazer de ir viver um Chibuto que, apesar das minhas mais de cinco décadas de existência, ainda não tinha vivido, melhor, curtido, como sói dizer-se. Eu que sou chibutense de gema, natural de Malehice e criado em Chipadja!
Pode ser por azar meu que ao longo destes tempos todos não tenha tido oportunidade de curtir a minha cidade natal. Pode ser. Mas não foram poucas as vezes que estive por lá, são incontáveis na verdade. Mas agora, o Chibuto que me foi dado ver pareceu-me um pouco mais agitado; se calhar também porque o Chefe de Estado abriu um pouco para os convívios sociais depois de cerca de dois anos de contenção e a tendência é de… recuperar o tempo perdido.
O meu amigo convidou-me para um casamento da sua sobrinha; enquanto o amigo do meu filho convidou-me para cortar bolo com o pai dele que, como eu, completara anos há dias desse Outubro que já se foi. Lá nós fizemos nós à nossa lamentável N1 - sobre a nossa "auto-estrada", já escrevi alguma coisa que tarda em ser tida em consideração. Entre outras coisas, queixava-me de ao longo da via não haver chapas que ajudem a saber onde se está e quanta distância mais falta para certos pontos. Para meu azar, até a chapa que indicava que se está a entrar para a província de Gaza, ido de Maputo, ali em Incoluane, já não está mais lá… só andar, não sabes se ainda estás numa província ou já estás noutra!
Mas voltemos ao nosso Chibuto. Cerca de 10 horas daquele sábado, lá estávamos nós nas ruas de Chibuto. Tanta agitação nas artérias como aquela, só se via quando o Moçambola escalava aquelas “lides”, quando o saudoso Clube do Chibuto recebesse o seu adversário! O dia em que houvesse jogo em Chibuto eram enchentes de toda a ordem, toda a gente da província e das vizinhas ia lá parar. Como dirigente desportivo, desloquei-me várias vezes para acompanhar os jogos do nosso Campeonato Nacional.
Naquela manhã de sábado, era um pouco a mesma coisa. Caravanas para aqui e para acolá pelas parcas ruas e ruelas de Chibuto, buzinadelas, sessões de fotografias aqui e acolá. A entrada do Registo Civil, bem como as ruas adjacentes estavam bem apinhadas de senhoras em vestidos de casamento e de gente de fato e gravata. Nem havia distanciamento social ali!...
Tratava-se de casamentos. Tanto quanto nos foi feito saber, havia pelo menos três casamentos, a um dos quais eu era convidado. Decorreu a cerimónia do registo civil e, depois de umas voltitas pela urbe, fomos desaguar no… Desheng Comercial (Golden Peacock Resort Hotel)! Um imponente hotel que os chineses construíram na então pacata cidade de Chibuto e que faz dele não mais pacata!... vinte e dois quartos standard, três casas tipo três e quatro casas tipo dois - portanto, 39 camas no total. Além de hotel, tem um grande super-mercado, com tudo lá dentro, uma série de lojas, padaria e uma bomba de combustível. Consta que pessoas de diferentes pontos da província de Gaza vão para ali fazer compras.
Aquilo tem espaço que nunca mais acaba! Além do hotel, tem quatro grandes salões de eventos diversos, incluindo casamentos e aniversários, e um espação para quem prefira esticar uma tenda. E os três casamentos foram lá, ordeiramente, realizar-se; distanciamento social observado, tudo organizado.
O nosso casamento correu muito bem. Senti-me… como se estivesse em Maputo! É que é em Maputo onde a gente faz de tudo. Ou Maputo, ou as capitais provinciais ou grandes cidades ou vilas… um distrito, não costumamos encontrar grande e bons serviços. Senti-me bem que Chibuto tenha salões de festas dessa dimensão, espaçosas e de qualidade standard. Pena é não serem muitas. Na verdade, não tenho conhecimento de muitos mais salões em Chibuto.
Agora, a minha dor e indignação é que este colossal espaço, empreendimento ou infra-estrutura não é propriedade de moçambicanos. É dos chineses! Não que devesse ser só e só de moçambicanos, somos uma economia de mercado, precisamos de investimentos e não nos podemos fechar. Hoje por hoje, o mundo está globalizado e mesmo os moçambicanos podem ir investir… na China!
A questão é: afinal, onde é que nós estamos a investir? Onde é que nós investimos? Onde é que nós estamos? Eu incluído! Estamos à espera de quê mesmo! Temos que investir, compatriotas, sob o risco de chorarmos porque os chineses estão a fazer!
Semana passada, este espaço foi dedicado ao nosso Movimento Democrático de Moçambique - versão portuguesa do Movement for Democratic Change!, que temos na vizinhança. Nada me tira da cabeça que o nosso não teve como inspiração aqueles. Nas nossas linhas, deixávamos grafada a nossa profunda decepção com o “galo” por não ter sido aquele “galo de que estávamos à espera”! A inspiração pelos “movimentos para as mudanças democráticas'' dos vizinhos não passaram disso mesmo, não serviram para um sério aprendizado sobre como organizar e gerir um partido político. A preocupação foi de tal sorte que acabamos não dando o devido tratamento a um outro aspecto muito importante na nossa vida em geral: a forma como elegemos os nossos dirigentes.
Voltemos ao MDM, a despeito de que não é somente com o MDM que assistimos a incoerências e incongruências. Tudo entre nós é farinha do mesmo saco! A forma como “aparecem” os nossos dirigentes dentro das formações políticas e não só são histórias e histórias de encher livros.
Como todos sabemos, muito proximamente, o Movimento Democrático de Moçambique vai a votos para eleger o sucessor de Daviz Simango. Sabemos igualmente que havia três candidatos, mas que um, o José Domingos, está em vias de ser excluído, alegadamente porque não conseguiu reunir a papelada necessária. A ser verdade que não conseguiu reunir o expediente suficiente, é caso para perguntar: como é que alguém que não consegue organizar papelada pode ser bom dirigente? Um bom dirigente é, necessariamente, uma pessoa organizada, bem planificada!
Mas… adiante. Um cenário ideal seria aquele em que os três candidatos apresentassem aos militantes do MDM os seus manifestos eleitorais; aquilo que outros chamam de “compromisso”! Um documento bem elaborado, no qual desenvolvem as suas ideias de governação partidária, de gestão e organização, o que pretendem fazer do e no partido, a estratégia que vão seguir e tudo mais alguma coisa para pôr a turma relevante. E os militantes do partido teriam a oportunidade de ler, conhecer, perceber e debater as ideias dos que pretendem ocupar a cadeira cimeira; e daí fazerem a escolha do que lhes parecer melhor! Seria muito bonito!
Nada! Puro romantismo. Não é isto que estamos a ver. Não sei se há algum documento de cada um dos concorrentes. O “manifesto”... que achei mais interessante é de Domingos, que diz que é o melhor candidato a suceder a Daviz porque trabalhou muito tempo com ele. Só e só isso. Ou seja, tudo quanto se propõe a fazer, se for eleito presidente, é copiar o que o falecido lider emedemista fazia… O que ele pensa, o que tem na cabeça, nheto! E o que é que Daviz Simango fazia?… é o que tentamos resumir na crônica passada! Portanto, com Domingos teremos “mais do mesmo”! Por outras palavras ainda, nada de significativo!
Mas esta não é apenas trafulhice do Movimento Democrático de Moçambique! É de todos. Grandes e pequenos! E é de quase todas as nossas instituições. Raramente ouvimos falar de manifestos dos candidatos à liderança dos partidos. Nalguns nem há ou deve haver candidatos, os candidatos são candidatados! Bom seria que nos nossos partidos políticos tivéssemos candidatos munidos dos seus manifestos, das suas ideias, das suas propostas de governação e que os militantes tivessem a oportunidade de, livremente, escolherem aquelas ideias que lhes parecerem melhor articuladas, bem conseguidas, adequadas ao momento e aos desafios que o país vive.
O partido Frelimo já começou, aquando da eleição de candidatos a edis. Um movimento bastante desusado, em que os candidatos tinham que apresentar ideias, tinham que dizer o que pretendem ir ali fazer. Mas precisa consolidar. Precisa de fazer deste procedimento um método próprio do partido e alargá-lo a todos os outros escalões, incluindo o mais alto. Esperemos é que todos os outros, incluindo a Renamo e outros, enveredem pelo mesmo caminho.
Enquanto as nossas instituições políticas e outras continuarem a candidatar os candidatos, teremos tudo menos democracia real e não nos devemos queixar quando os outros nos dizem que a nossa democracia está muitos passos atrás!