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quinta-feira, 15 fevereiro 2024 07:18

RICARDO RANGEL, 100 ANOS

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Ricardo Rangel é, indubitavelmente, o mais sagaz, intrépido e profícuo fotógrafo moçambicano do “instante decisivo”. O grande fotojornalista moçambicano do século XX: arguto, vivo, veloz, ágil, astuto. É também um dos fundadores do fotojornalismo entre nós. Nasceu na então cidade Lourenço Marques (Maputo) a 15 de Fevereiro de 1924 – há 100 anos! –, e seria conhecido, celebrado e festejado em muitos lugares do Mundo, onde expôs a sua arte e o seu génio. Tinha nas veias sangue africano, grego e chinês. Andou a vida toda com uma máquina em riste e devemos-lhe um país em imagens ao longo de décadas. Um país que se demarcava do conformismo colonial e nos remetia para a dissensão, para a defesa dos proscritos, para a justiça e para a liberdade e dignidade da maioria excluída. Era, sobretudo, um fotojornalista. A sua lente tinha arte, mas dava-nos sempre notícias. Notícias do seu tempo, o nosso tempo. Era, no fundo, um jornalista arrojado e audaz, intrémulo e resoluto. Um dos nossos maiores intérpretes. Um dos maiores intérpretes da moçambicanidade.

 

O fotojornalismo, sabe-se, informa. O fotojornalismo é quando a fotografia tem o carácter e a urgência da notícia. O fotojornalista mostra, revela, expõe, denuncia, opina. Interpela, interpela-nos. Indaga, indaga-nos. Esta “disciplina”, por assim dizer, afirmou-se no período ulterior à Primeira Guerra Mundial, entre as décadas 20-30 do século passado. Isto no Ocidente. A Moçambique chegará atrasada, nos anos 30-40. Deve-se, sobretudo, ao “Lourenço Marques Guardian”, de Arthur William  Bayly, um famoso comerciante e publicista, oriundo de Durban, que se instalou na antiga Delagoa Bay e prosperou. Uma casa homónima haveria de marcar a cidade durante décadas. Mais tarde, seria o vetusto “Notícias” que haveria de desenvolver a fotografia como informação. Primeiro como pura ilustração do texto. Sempre como apanágio dos ideários da época: do Império, dos colonos e da metrópole e das suas glórias, amesquinhando um povo que Rangel haveria de ajudar a sublevar.

 

Ricardo Rangel e Sebastião Langa seriam os primeiros não-brancos a fazer fotografia no país. Iniciaram a aprendizagem em estúdios profissionais que existiam na época. Os estúdios fotográficos começaram a ser instalados nos finais do século XIX em Moçambique com a chegada do daguerreótipo. O retrato populariza-se então. Nos anos 30-40 surgem, no país, publicações ao estilo das que então proliferavam na Europa e nos Estados Unidos. O “Ilustrado” no “Notícias”, entre 1933-34, seguindo-se-lhe o “África Ilustrada”, no mesmo grupo editorial, nos anos 40. Mais tarde, em 1951, o “Império”. A cidade de Lourenço Marques e/ou a sua pujança, que lhe advinha sobretudo do seu porto, assume um ineludível protagonismo.

 

Nos anos 50, primeiro no “Notícias da Tarde” e, posteriormente, no “Notícias”, Ricardo Rangel, já conhecedor dos segredos técnicos da sua profissão – expendera anos na câmara escura –, desfaz o estereótipo: é o primeiro fotojornalista não-branco na imprensa em Moçambique. É também ele que irá romper com os arquétipos vigentes. Rangel empresta à época e ao fotojornalismo um olhar inédito, sempre inconformado e, sobretudo, insubmisso. Recusa os ditames e subverte a linguagem. Uma outra realidade, aquela que só aparecia para justificar o proselitismo do regime, ganha estatuto e dignidade na sua lente. Diverge dos interesses e da ordem estabelecida. Denega o exótico que era prática e traz para as páginas da imprensa uma outra realidade social.

 

O jornal  “A Tribuna”, quando surge nos 60, vai para além da “fronteira do asfalto” (Luandino dixit) e Ricardo Rangel é um dos responsáveis por cartografar, ali, a chamada “cidade de caniço”. Vale, a propósito, ler o que Luís Bernardo Honwana ou Calane da Silva testemunharam sobre o tema. Aliás, muitos anos depois, o próprio fotógrafo haveria de exultar, ao lembrar-se daquelas páginas que se rasgavam diante de outros olhares e através das quais ele moçambicaniza a fotografia. Estamos num tempo – ulterior à Segunda Guerra Mundial – em que uma geração de jovens intelectuais se afirma e há uma importante agitação cultural nos jornais e nas agremiações culturais e cívicas: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Nogar, Luís Bernardo Honwana, Rui Knopfli, Ruy Guerra, entre outros. Há, no entanto, os ecos de “O Brado Africano” e a acção da Associação Africana ou das figuras de Rui de Noronha ou José Albasini.

 

Rangel calcorreava a cidade com a máquina em riste e há no seu vasto repositório a memória dolorosa do tempo colonial que o mito intenta obnubilar. A periferia e as suas contradições estão também, por assim dizer, inscritas no seu mítico “Pão Nosso de Cada Noite”. Rangel conheceu e amou a noite de Lourenço Marques. Para trás ficaria a memória da Delagoa Bay ancorada ali no tempo, entre os arrabaldes da antiga Baixa, do antigo presídio e toda aquela zona onde se situava a Praça 7 de Março (hoje 25 de Junho).

 

O porto e a navegação internacional fizeram de Delagoa Bay, primeiro, Lourenço Marques, depois, um lugar de referência para os marítimos de passagem. Fizeram, no fundo, a própria Lourenço Marques. Na baixa, que era o centro da cidade, as ruas tinham um bulício que impregna alguma da nossa boa literatura. Lourenço Marques fora a cidade dos trens, dos “rickshaws” e das galeras puxadas a parelhas. Fora a cidade dos quiosques da praça, dos “bars” e das cervejarias.

 

Foi naqueles anos fervilhantes e excitantes para os que viviam ou passavam temporadas em Lourenço Marques – anos 50 e 60, sobretudo – que Ricardo Rangel fotografou a vida nocturna de uma das mais emblemáticas ruas da baixa – a Rua Araújo. Desde meados do século XIX que a Rua Araújo se revestira de um carácter dúbio: durante o dia mantinha todo o aspecto normal duma rua comercial e de escritórios, ao fim do dia ganhava os contornos de clandestinidade que a tornariam mais tarde célebre.

 

Foi com a descoberta das minas do ouro do Rand e a construção da linha férrea para o Transvaal que Lourenço Marques deixar-se-á invadir por gente exótica e estranha. Será esta gente que transformará depressa a Rua Araújo, à noite, numa pequena rua do “Far West”, cheia de “saloons” com bebidas e jogos animados pelas “barmaids”. Na década de 30 do século XX apareceram os casinos com as “taxi-girls”, então em moda em Joanesburgo, e donde veio depois da última guerra outra vaga de “night-clubs”, “cabarets” e “dancings”. Tudo isto em Lourenço Marques, a conhecida Xilunguine, ou a antiga Delagoa Bay. De Reinaldo Ferreira a José Craveirinha, passando por autores diversos, há textos notáveis sobre a Rua Araújo. Há personagens míticas, como Daíco, musas ou deusas.

 

O jazz, que lhe chegava da longínqua telefonia primeiro, depois dos discos que os marinheiros que faziam a rota do Cabo e aqui aportavam lhe ofereciam, fará de Ricardo Rangel o indutor desta sua paixão entre nós. A Rangel, Moçambique deve a devoção pelo jazz. Não tocava, mas é dos seus maiores divulgadores e promotores. Conhece e fotografa os seus maiores intérpretes. Em 1971, o contra-baixista Charlie Haden, num concerto em Portugal, interpreta “Song for Che” e dedica-a a revolucionários de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ricardo está na plateia e exulta. Esteve com os seus mitos: Dizzy Gillespie, Miles Davis, Thelonious Monk, Ornette Coleman. Fotografou-os. Apostrofou-os. Os lugares de culto do jazz na cidade guardam a sua presença: Topázio, Zambi, Sanzala, Costa do Sol, Princesa, ou Chez Rangel na Estação dos CFM. Abdullah Ibrahim, aliás Dollar Brand, descobriu na casa de Rangel um disco seu que ele próprio não tinha.

 

O título imaginoso de José Craveirinha – “Pão Nosso de Cada Noite” – está na origem do livro-álbum, de Ricardo Rangel, publicado nos seus 80 anos, em 2004. O fotógrafo deambulara pelo “Notícias”, “A Tribuna”, “Diário de Moçambique” e “Notícias da Beira”. Estivera na fundação da revista “Tempo”, outro marco. Tudo isto no tempo anterior à independência. Regressaria ao “Notícias” em 1977. Em 1981 torna-se o primeiro director do semanário “Domingo”. Mais tarde irá criar o Centro de Formação Fotográfica, onde se manteve activo – na companhia cúmplice e firme de Beatrice – até ao fim e empreendeu como formador e como uma reserva de sabedoria.  Os mais jovens profissionais encontravam nele disponibilidade para partilhar os seus vastos conhecimentos e os seus avisados ensinamentos. Mas também o homem assertivo, incisivo, crítico, indignado. O Mestre.

 

Não tinha um génio fácil, antes pelo contrário. Era difícil, irascível. Por vezes impulsivo ou truculento. Vituperava a mediocridade, desgostava-lhe o paupérrimo jornalismo, ou a ausência dele. O seu “Notícias” passara a ser um jornal de anúncios e não de notícias. Vociferava, zangado, contra o estado das coisas. Era um conversador brilhante, maravilhoso, contador de histórias, tinha um sorriso rasgado e os olhos e os zigomas que o aproximavam das suas origens orientais. Tinha um olhar brutal, indagador, frontal, poderoso. Por vezes, intimidatório. Mas era fraternal, de uma ternura no sorriso e no olhar, amigo dos seus amigos. No fundo, as suas fotografias transmitiam essa ternura, que ele disfarçava.

 

Fotojornalista de longo curso, homem profundamente enraizado na história do seu país e do seu povo, Ricardo Rangel testemunhou, não indiferente, uma longa era da vida de Moçambique, tendo-a documentado, como jornalista e como artista. No Centro que criou registou o nosso país em imagens. Um trabalho ciclópico e primordial. É um dos seus legados. Como as suas belíssimas e pungentes fotografias que são o primeiro rascunho da História. O jornalismo – o fotojornalismo – é também isso: o primeiro esboço da História.

 

Ricardo Rangel era um prodigioso homem do “instante decisivo”, com uma intuição, uma sensibilidade, uma prática e poética que estão na origem de fotografias que fixavam, na “linguagem do instante”, o momento, a essência e o significado da nossa História no século XX. É o fotógrafo de Moçambique. Mas é também um grande fotógrafo de África. Num texto remoto disse de Ricardo Rangel: “Que belo o teu ofício e dos que te antecederam e daqueles que se seguem, este de nos devolverem algo que é nosso antes de nos ter pertencido”.

 

Foi sobretudo um fotógrafo do olhar. Um dia ofereceu-me uma fotografia da mulher da gabardine com um olhar dilacerantemente melancólico. Ela está na célebre rua, tem uma cabeleira emprestada e nota-se-lhe uma profunda tristeza. Tem a mão esquerda sobre a cintura. Há silhuetas de uma parelha ocasional por trás. Esta, como tantas outras fotografias de Ricardo Rangel, faz parte de uma poética partilhada por uma geração única. De um mito geracional. De uma estética e poética. De uma ética. Guardo-a ciosamente, como guardo a lembrança feliz do amigo.

 

Ricardo Rangel, que morreu aos 85 anos, a 11 de Junho de  2009, nascera a 15 de Fevereiro de 1924, há precisamente 100 anos! É uma efeméride que nos diz muito. A despeito de sermos um país do descaso, da desmemória ou do esquecimento. O seu nome está entre os nossos maiores intérpretes: José Craveirinha, Noémia de Sousa, Luís Bernardo Honwana, Malangatana, Alberto Chissano ou Fany Mpfumo. Os nossos instauradores. Os grandes intérpretes da moçambicanidade.

 

Cidade do Cabo, 15 de Fevereiro de 2024

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