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sábado, 24 junho 2023 08:11

As pontas do iceberg

Ainda na ressaca da celebração dos 60 anos do ensino superior em Moçambique – que foi uma soberba oportunidade para radiografarmos os descaminhos e os caminhos, sobre os quais assentaram as trajectórias do nosso, ainda, incipiente e descaracterizado ensino superior – revisitamos, igualmente, o ethos universitário, os caminhos do seu futuro e o papel do Estado, pedra angular do sistema de educação em Moçambique, considerando a força e tendências neoliberais (de privatização, mercantilização, cortes orçamentais e redução do financiamento público, dentre outras) que tentam, amiúde, aproveitar as crises institucionais e de identidade, do nosso ensino, para o tornar irrelevante e desnecessário.

 

A nova visão do ensino superior para 2030, advogada pela UNESCO e, por arrasto, por todas as instituições de Bretton Woods, do qual somos signatários cegos, e seguimos, de forma tão obediente, todas as cartilhas, defende que, neste mundo em profundas transformações e transição digital, no que Yuval Noah Harari (2023) designa por “mundo dos algoritmos”, as instituições de ensino superior apenas sobreviverão para as pesquisas em inteligência artificial, big data, robótica, e a internet das coisas.

 

Ainda condoídos pela lastimável partida de Pierre Bourdieu, já na eternidade, mas sem nunca abandonar o mundo, fica a recusa tácita de que o ensino superior deixará de ser relevante, pois, qualquer que seja a transição tecnológica, terá que assentar em princípios humanistas e sociais.

 

O mundo não é feito de robôs, mas de emoções, sentimentos, sonhos e ambições. Em suma, seres humanos. Portanto, não são os jovens que se distanciam do ensino, e do ensino superior em particular, mas, são os próprios Estados que cedem terreno às pressões do FMI e do Banco Mundial e às teorias draconianas de desinvestimento nos sectores da educação, saúde pública, cultura e demais áreas sociais. Não nos esquecemos da célebre nota oferecida pelo Banco Mundial, numa reunião com dirigentes do ensino superior, em Harare, no ano de 1986, onde afirmara que o ensino superior em África era um luxo, sugerindo que as instituições do ensino superior em África deviam ser fechadas e os seus estudantes enviados à Europa para formação!

 

Desde o advento da independência, em Moçambique, em 1975, e considerando até todas as aporias e vicissitudes que tipificaram este período, Moçambique dedicou o melhor do talento e esforço económico aos diferentes subsectores da educação. As políticas da época, sobretudo, convergiam na diversificação de oportunidades com o apoio do mundo ocidental, oriental e dos países não-alinhados.

 

Não foi por mero acidente de percurso que os moçambicanos beberam das experiências dos Estados Unidos, das academias da França, Alemanha e Suíça, das escolas superiores de Moscovo, Hungria, Cuba e Bulgária, das conceituadas universidades da Suécia, Reino Unido, Portugal, e até das universidades solidárias do Brasil, da Argentina, da Austrália e, mais recentemente, do Japão, da China e da Coreia do Sul.

 

Este conhecimento permitiu que o ensino superior público estruturante tivesse corporizado as principais necessidades económicas do país e do seu desenvolvimento, minimizado os desequilíbrios regionais e, sobretudo, criado um modelo de ensino. Um ensino que busca identidade, relevância e ethos.

 

Ainda temos presente como, nos últimos 30 anos, o desinvestimento feito nas escolas primárias públicas conduziu à mercantilização do próprio ensino primário, ditando a subsequente morte da qualidade desse ensino público. As escolas privadas cresceram à custa dos professores das escolas públicas, que abocanharam os gestores e, até, alguns espaços físicos que anteriormente serviram ao Estado.

 

Há cerca de 20 anos, assistimos, impávidos e serenos, à criação de escolas secundárias privadas, por vezes, até associadas ao ensino superior, que causaram a mesma erosão junto das escolas do Estado. O fenómeno se repetiu com o aliciamento aos principais gestores e docentes, e, em muitos casos, ao material pedagógico, como livros e outros, que outrora pertenceram ao sector público.

 

Se tivéssemos que elaborar um ranking das principais escolas no país, notaríamos que as escolas primárias e secundárias privadas se encontram há anos-luz das escolas públicas. Esta, infelizmente, tem sido a tendência que se verifica em outros Estados de natureza neoliberal ou que aspiram a esse estatuto. Todavia, em qualquer um desses países, o que sucede é que os estudantes vão para as escolas privadas almejando um lugar nas universidades públicas. Têm a consciência de que os melhores professores, os melhores laboratórios e as melhores pesquisas continuam sob a responsabilidade do Estado.

 

Ao revisitarmos a lei no.8/2021 – a Lei do Sistema de Segurança Social Obrigatória dos Funcionários e Agentes do Estado, que estabelece uma reforma compulsiva para os funcionários públicos com mais de 60 anos – assistimos, de alguma forma, o mesmo filme bem conhecido que se repetiu com o ensino primário e secundário. Com efeito, esta saída de professores, programada, porém, compulsiva, englobando, grosso modo, 450 docentes e investigadores de todas as instituições públicas de ensino superior, sugere um desinvestimento intelectual, financeiro e moral cujas consequências serão imprevisíveis.

 

De algo podemos ter a certeza. As instituições privadas, que até representam já quase o dobro das instituições públicas, são as grandes beneficiárias de todo o investimento feito na formação de capital humano pelo Estado, à custa de muitos sacrifícios e de uma visão de futuro por parte de todos os sucessivos governos deste país.

 

Nem a indicação de que estes docentes e intelectuais, ora em desligamento, podem ser substituídos, servirá de solução perante a derrocada eminente do ensino superior, pois, não se substitui a experiência e, muito menos, a maturidade. Para se atingirem os níveis mais altos da carreira docente são necessários alguns decénios. Os processos de substituição vão exigir alguma serenidade, acompanhamento, rigor e um sistema de promoções mais célere. Mesmo assim, o argumento de racionalidade financeira, de modo a promover eficiência na contenção da despesa pública é questionável, uma vez que, indirectamente, os reformados continuarão a receber as suas pensões (de fundo diferente, mas ainda assim!) e os seus “substitutos”, os vigorosos graduados da geração da viragem, tornarão ainda mais pesada a despesa pública.

 

As apostas do Estado moçambicano, ao longo dos seus 48 anos de independência, podem até não ter surtido os melhores efeitos para todo o sector da educação, mas garantiram a funcionalidade do sector público, do empresariado nacional e, sobretudo, da estabilidade das instituições.

 

Não questionamos o mérito ou o demérito das dezenas das instituições de ensino superior que foram criadas, e o local onde elas funcionam ou foram instaladas. Uma forma de conferir robustez a estas instituições foi a criação do Conselho Nacional de Avaliação de Qualidade (CNAQ), celebrando agora 15 anos, que estabeleceu os princípios e normas que regem as instituições de ensino superior. Paradoxalmente, o CNAQ tem princípios que podem até comprometer as instituições do próprio Estado, uma vez que com a aposentação destes professores, elas deixarão de ter as exigências mínimas para suportar os seus cursos de pós-graduação.

 

Existe uma expectativa de que as duas mais antigas instituições de ensino superior de Moçambique – a UEM e a UPM – se transformem em instituições de pesquisa e de pós-graduação. Esta é a recomendação dos seus planos estratégicos para os próximos anos. A erosão de capital humano de que deverão sofrer voltará a transformar essas instituições em apenas locais de ensino, e nunca de pesquisa ou de extensão universitária. Este poderá ser o desmoronamento de um sonho de colocar o ensino moçambicano com a relevância que o mundo globalizado exige. Temos já muitos exemplos de estudantes do sector público que brilham em diferentes academias do mundo. Deveríamos ter o dobro ou o triplo destes talentos. Porém, estes desideratos poderão sofrer um sério abalo e poderemos inclusivamente não colocar à disposição do Estado as ferramentas teóricas e conceptuais sobre as quais deveria assentar o nosso desenvolvimento social, cultural, tecnológico e industrial.

 

Estejamos claros sobre o que significará, nos actuais moldes, a reforma obrigatória de docentes universitários. Por um lado, perder-se-á imenso em capital humano, experiência e conhecimento epistemológico, uma vez que os professores visados possuem ímpares qualificações e competências em áreas de especialização, e a sua saída afectará, irreversivelmente, a qualidade do ensino universitário. A sua saída repentina poderá, igualmente, ameaçar a continuidade dos cursos e programas académicos de pós-graduação sob sua responsabilidade ou monitoria. Adicionalmente, as universidades ficarão, repentinamente, com escassez de especialistas em determinadas áreas, muitas delas sensíveis aos desafios de desenvolvimento nacional.

 

Mais grave ainda, a saída compulsiva de docentes poderá impactar, grandemente, a produção científica nas universidades onde vinham prestando serviço, afectando seriamente a sua reputação e relevância. Aliás, um efeito imediato desta medida vai ser exactamente esta: a perda imediata dos lugares nos rankings africanos e globais do ensino superior. Contudo, como dito antes, o ensino privado continuará a ser o maior beneficiário desta medida, pois estes quadros, no auge da sua produção científica, juntar-se-ão à projectos já estabelecidos ou criando novos, formando assim verdadeiros conglomerados que tenderão a monopolizar o acesso ao ensino superior, tornando-o elitista, tal como aconteceu com outros subsistemas de educação.

 

O mercado de emprego mais exigente, sobretudo, as multinacionais e não só, poderão passar a contractar exclusivamente graduados destas instituições privadas, se não quiserem correr o risco de contractar graduados do público, de qualidade questionável nessa altura ou ainda reduzir os seus planos de expansão por falta de capital humano, como já tem estado a acontecer.

 

Por outro lado, o argumento do ajustamento financeiro que justifica a reforma compulsiva parece ser, por sua via, fundamentalmente contraditório. Com efeito, ter na porta de saída um número significativo de docentes implica um igual ou maior esforço de investimento com novos contratos e em capacitações. Isso exigirá excepcionais recursos financeiros e programas de formação.

 

Outro assunto, ainda não devidamente lançado a debate, é o do impacto da reforma nas relações profissionais e interpessoais dentro da comunidade académica – a implementação de uma reforma obrigatória pode gerar insatisfação e ressentimento entre os docentes afectados, com implicações imprevisíveis no ecossistema universitário e tornando pernicioso tanto o engajamento como a colaboração intergeracional, entre os docentes mais novos e os mais experientes.

 

Estes exemplos com o ensino superior podem ser apenas uma ponta de um iceberg que atingirá a saúde, a segurança e áreas sociais afins, sob a capa de se fazerem ajustamentos financeiros e devidos balanços nas folhas salariais, nesta tentativa de redução da massa salarial do sector público que é pesada por outros motivos, mas que não tem, a rigor, nada a ver com os investimentos que ainda precisam de ser feitos em áreas sociais como as da educação e da saúde que, pelo seu estatuto soberano, deviam ser preservadas.

 

A educação é um produto de construção contínua, colectiva e, embora sujeita à reformas, é o garante da identidade de um povo. África e Moçambique perderam muito com a colonização, onde sua identidade intelectual foi brutalmente assassinada e substituída. Com as independências, tentou-se resgatar algo, em especial, o orgulho de se ter um espaço de produção científica nativa, com os seus respectivos desafios. Temos a responsabilidade de garantir este sonho de Mondlane.

 

Por fim, uma verdadeira e sistemática renovação do corpo docente se faz por via de reinstituição de entradas por via de monitores porque estes vêm do acompanhamento dos professores com experiência acumulada. Por outro lado, a saída honrosa mas, também, proveitosa para a universidade que despede, se faz por via da figura de professor emérito, uma figura que continua a servir e a honrar a universidade, para além da reforma.

terça-feira, 20 junho 2023 07:05

Sobre a reforma compulsiva

MoisesMabundaNova3333

Depois de um prolongado sono, este ano, ou mais precisamente, de há uns três, quatro meses, acordamos e logo queremos mandar à reforma obrigatoriamente cerca de 19 mil funcionários e agentes do nosso aparelho do Estado! O que consta, bem, bem, nem, é que no processo de migração dos 400 mil funcionários e agentes do Estado para a nova plataforma electrónica de gestão de recursos humanos, descobriu-se que esses cerca de 19 mil têm 60 ou mais anos de idade e por lei devem ir à aposentação! A notícia não especifica quantos  funcionários exactamente irão à aposentação compulsiva por sector. Aqui e ali, vamos ouvindo que, entre os tais, há duzentos professores doutores da UEM, “muitos” médicos especialistas, quase todos os diplomatas (sobretudo embaixadores) nos Negócios Estrangeiros e… uns tantos magistrados!

 

Quando é que, como país, vamos ter um sistema nacional de estatística profissional, sério, moderno e à altura da “Sociedade de Informação” que vivemos. Não consigo perceber como é que é difícil termos estes dados - ou está

 

-se a ocultar deliberadamente -, quando estamos a falar que 400 mil funcionários foram integrados na nova plataforma electrónica de gestão dos recursos humanos, na sequência da nova tabela salarial única. A estatística é o método científico fundamental para a compreensão racional de qualquer empreitada, assunto ou situação. Sem ela, dificilmente se percebe o que se pretende.

 

De toda a forma, é com estes dados pobres com que temos de viver e formarmos as nossas percepções. O primeiro sapo que não aceita ser engolido é: porque será que só no processo de migração para a nova plataforma electrónica de gestão dos recursos humanos é que se descobriu que há 19 mil funcionários em idade de reforma? Antes disso não se sabia? Como? Não deveria ser o processo de o funcionário ir à reforma um processo normal em que, anualmente, ou de tempo a tempo, alguém aqui e ali vai à reforma ou porque atingiu a idade limite, ou o tempo de serviço? Tenho a impressão que se tivéssemos feito isso, não estaríamos a ser acordados com 19 mil que têm que ser aposentados obrigatoriamente dentro de 15 dias; ou serem barrados dos serviços! Quem não cumpriu a sua parte e porquê? Não cumpriu a sua parte e hoje empurrou o país para uma situação desastrosa destas! Em regiões sérias, haveria responsabilização!

 

Não estou a imaginar o que é mandar para casa de uma só vez 19 mil funcionários e agentes de Estado, entre os quais professores doutores, médicos especialistas, diplomatas, magistrados, docentes, enfermeiros e muito mais! Ao fazer isso, o nosso Estado estará a autofragilizar-se, a autocondenar-se a um paupérrimo desempenho no ranking das nações. Não tenhamos dúvidas. Estamos a dizer que o rácio médico-população é dos mais baixos do mundo… a estatística de 2021 dizia que temos 2500 médicos para 30 milhões de habitantes, o que perfaz o rácio um médico para 12 mil pessoas! E nós estamos a mandar médicos para casa! Há ainda muita falta de enfermeiros e outro pessoal hospitalar nas unidades sanitárias… e nós queremos mandar justamente aquelas pessoas para casa! Anualmente, há défice de professores em todas as províncias e em todos os níveis do nosso ensino, primário, secundário, médio, incluindo nas universidades! E nós vamos mandar docentes para casa! O que pretendemos mesmo?

 

A outra questão: afinal formamos para quê? Para mandar à reforma? É que para termos um especialista, seja médico ou não, um cientista de verdade, um magistrado de categoria suprema, um diplomata de categoria, precisamos de bom tempo; só se chega à tal posição já numa idade adulta. E nós já estamos a mandar reformar todas essas pessoas. Não engulo o rato ou ratinho de que há “professores doutores cujo desempenho é muito baixo e é desses que o sistema pretende livrar-se”! Se os há, os culpados são os gestores/o sistema no seu todo que não estabelecem indicadores de desempenho razoáveis para essa categoria, exigir o seu rigoroso cumprimento e sancionar no caso de inalcançabilidade! Assim, poderia separar-se o trigo do joio.

 

O outro rato que não entra é a ideia de que mandando para casa 19 mil funcionários, vai viabilizar-se a TSU. Vai-se sim sobrecarregar o sistema de pagamento de pensões e condená-lo à falência técnica… já não bastam os falaciosos milhares guerrilheiros da Renamo? O que vai viabilizar a tabela salarial única é a produtividade do país no seu todo, um sistema de cobrança de impostos eficaz e incorrupto, uma gestão incorrupta da coisa pública, uma governação racional, não esbanjadora, nem esbulhadora e um combate sério à corrupção. Enquanto a cobrança de taxas e impostos tiver dois pesos, duas medidas, tipo aquele empresário que importa carrões sem pagar um centavo; duplicação de instituições, tipo dois governadores e governos provinciais, ministérios a mais, esbanjamento e roubalheira do erário público, governação erante danosa e corrupção na sua melhor, tipo 500 milhões para em quatro meses se estabelecer um novo sistema de gestão municipal… não sairemos nunca da situação de solavancos no pagamento das remunerações aos funcionários e agentes do Estado.

 

Dá a ideia de que alguém nos está a sabotar. Não conhecendo esse alguém, registo aqui que estamos-nos a sabotar a nós mesmo!

 

ME Mabunda

antonio souto

António Souto**

 

Aceitei participar neste fórum pelos seguintes motivos:

- É urgente alertar para os riscos de se ignorar a importância e papel das instituições financeiras de desenvolvimento e da indústria microfinanceira, pois o sistema financeiro não são apenas bancos e bancarização;

 

- É urgente debater e reflectir se e como é que Moçambique pode promover a inclusão financeira, reduzir a pobreza absoluta sem ter um regime jurídico apropriado para instituições financeiras de desenvolvimento e para as instituições de microfinanças.

 

Alguns elementos sobre o sistema financeiro nacional

 

Em 2016 foi aprovada a ENIF (Estratégia Nacional de Inclusão Financeira) 2016-2022. Como fundamento desta estratégia o Gov declarou que “A inclusão financeira é um factor essencial para reduzir a pobreza e aumentar a prosperidade”.

 

Na mesma altura lançou-se o projecto “Um distrito, Um Banco” colocando à disposição de alguns bancos, facilidades e fundos na ordem dos 480 milhões de Meticais através do FNDS.

 

Na revisão de meio termo da ENIF feita em 2019 dizia-se que “Moçambique fez progressos consideráveis no domínio da inclusão financeira durante a primeira metade do período de implementação da ENIF (2016-18).” Contudo, reconhecia-se que a “Proporção da população adulta com acesso físico ou eletrônico aos serviços financeiros prestados por uma instituição financeira formal” passou de 36% em 2016 para 33% em 2018.

 

Apesar das facilidades postas ao dispor de bancos no projecto “Um Distrito, Um Banco” as estatísticas mais recentes do BdM indicam que de 2016 a 2023 a percentagem de distritos cobertos por agências bancárias (em proporção do total) passou de 76,6% para 79,4%, ie, um crescimento de apenas 3,6%. Mas, nos últimos dois anos (dados do 1º trimestre de 2020 comparados com o 1º trimestre de 2023) observa-se um retrocesso, pois o número de distritos com agências bancárias caiu de 128 para 123, ie, redução de 3,1%.

 

Há outras indicações de alguns retrocessos que podem revelar os riscos de o sistema estar a agravar desigualdades sociais. Dois exemplos com base em dados do BdM:

 

Entre 2020 Q1 e 2023 Q1 as contas bancárias em % da População Adulta caiu de 30,3% para 29,8%, ou seja, uma redução de 1,4%. O mais notável é que esta redução ocorreu apenas em contas bancárias tituladas por mulheres, que reduziram 2,7%.

 

No negócio dos cartões bancários: entre 2020 Q1 e 2023 Q1 o número de cartões em % da População Adulta cresceu 0,4%. Mas, o número de cartões tendo como titulares homens em % da População Adulta masculina cresceu 74,1%, enquanto os cartões com titulares mulheres em % da População Adulta feminina reduziu 45,4%. É também útil dizer que neste mesmo período o número de cartões detidos pela população rural em % da população adulta rural caiu 5,4%.

 

Apesar destes retrocessos e questionamentos sobre a evolução do processo de inclusão financeira, há um acentuado crescimento no domínio da Moeda Eletrónica.

 

Podemos, pois, concluir que o mercado financeiro digital está ficando o principal instrumento de integração da população de baixo rendimento no sistema financeiro. Não necessariamente de inclusão financeira.

 

O que se pretende com Inclusão Financeira?

 

Está agora em preparação uma actualização da estratégia nacional de inclusão financeira.

 

É momento de nos interrogarmos sobre o que é e o que se pretende com a inclusão financeira.

 

Pode haver estabilidade numa economia assaltada por uma crescente exclusão social? Como pode a inclusão financeira impactar positivamente na inclusão e estabilidade social?

 

O problema do impacto da inclusão financeira deve ser colocado como uma questão que vai além do acesso apenas a produtos e serviços financeiros. O conceito de inclusão financeira vai muito além da chamada bancarização.

 

A inclusão financeira é um “conceito multidimensional que inclui elementos tanto do lado da oferta de produtos financeiros como do da demanda, sendo suas dimensões básicas o acesso, o uso, a qualidade e o impacto sobre o bem-estar financeiro das famílias e das empresas.” Inclusão financeira não se limita a “estar integrado no sistema” por ter conta bancária, ou conta móvel, ou outro serviço financeiro. Inclusão pressupõe que o acesso e uso desses serviços financeiros impactam positivamente no bem estar da família ou na sustentabilidade do negócio.

 

Este conceito de inclusão financeira não pode ser implementado se não se alterar a estrutura e funcionamento do sistema financeiro moçambicano.

 

A estrutura e composição de um sistema financeiro afecta a inclusão financeira de várias maneiras. Um sistema financeiro com muitas barreiras à entrada pode dificultar o acesso aos serviços financeiros para as pessoas de baixa renda. Além disso, um sistema financeiro com pouca diversidade de produtos financeiros pode limitar as opções disponíveis para as pessoas.

 

É urgente promover a diversificação do sistema integrando IFDs e Microfinanças

 

A Gapi vive e debate o tema da diversificação do sistema financeiro desde que há 35 anos se iniciou a reflexão que levou à sua constituição em 1990, como instituição financeira de desenvolvimento.

 

Os fundadores optaram pelo conceito de uma instituição capaz de intervir não apenas do lado da oferta, fornecendo serviços financeiros, mas também procurando melhorar a qualidade da procura, através de programas de literacia financeira que melhorem a capacidade e eficiência no uso de serviços financeiros. Mais tarde, acrescentou-se à estratégia a componente de desenvolvimento de instituições para alargar a rede de parcerias.  Por isso, a Gapi começou também a investir na criação de microbancos rurais.

 

Em 2007 a Gapi foi registada como Sociedade de Investimentos ficando sujeita a supervisão prudencial.

 

Porém, o sistema de enquadramento legal tem colocado enormes barreiras ao modelo institucional da Gapi. Não porque não se reconheça o contributo desta instituição para diversificar a oferta, melhorar a inclusão, reduzir a pobreza e contribuir para a geração de emprego. As barreiras que a Gapi tem enfrentado resultam dos princípios que presidem ao quadro regulatório do sistema financeiro. Por outras palavras: ainda não existe na legislação e na regulamentação espaço para uma instituição gestora de fundos prestando esta combinação de serviços. É minha opinião que a nossa legislação tem sido demasiado influenciada por modelos onde a economia é dominantemente formal. Moçambique está num polo oposto.

 

Mesmo assim, promovendo uma postura de permanente diálogo com os reguladores, a Gapi tem avançado com o seu projecto: contribuir para a edificação de um sistema financeiro mais inclusivo.

 

Felizmente a Gapi não está só. Em conjunto com algumas instituições microfinanceiras (IMFs) decidiu-se em 2018 relançar a indústria das microfinanças, começando pela reanimação e reestruturação da AMOMIF (Associação Moçambicana de Operadores de Microfinanças).

 

As dificuldades e barreiras enfrentadas pelas instituições microfinanceiras levaram ao encerramento de dezenas desses operadores. Outras abandonaram as regras do sistema e passaram a operar como informais sem qualquer supervisão nem monitoria.

 

A nova direção da AMOMIF desenhou um projecto que está a implementar e que tem como foco o estabelecimento de uma rede nacional de instituições microfinanceiras sustentáveis, devidamente licenciadas, com boa governança, e operando com proximidade geográfica e cultural junto a microempresas e famílias de baixa renda, principalmente nas zonas rurais e periurbanas. O desenvolvimento destas capacidades e serviços são indispensáveis para preencher um perigoso vazio no sistema financeiro.

 

Neste projecto, das 12 instituições microfinanceiras que em 2019 ainda eram membros efectivos da AMOMIF, hoje conta-se com 52 membros espalhados por todas as províncias. Está a apoiar os seus membros a instalarem software bancário para melhorarem a sua gestão, promover acesso a programas de formação dos seus quadros e a assistência jurídica.

 

Através da AMOMIF, as IMFs estão agora a participar no Comité Nacional de Inclusão Financeira, dirigido pelo Banco de Moçambique.

 

Uma das grandes preocupações é a necessidade de um instrumento permanente de refinanciamento que permita aos membros elegíveis e com boa governança poderem capitalizar-se para alargar a sua capacidade de oferta de serviços. É também preocupação das IMFs o sufocante sistema de supervisão, pois exige uma complexa e dispendiosa máquina administrativa e de gestão.

 

Reconhecendo a urgência e os desafios da modernização, a AMOMIF está a preparar uma aliança com a Associação das FinTechs de forma a estimular a cooperação entre empresas de tecnologias e os microbancos. As duas indústrias precisam uma da outra, pois a tecnologia precisa do elemento humano, ie, da proximidade junto às famílias e microempresas, que vem da rede microfinanceira.

 

Enfim, com a nova AMOMIF e a sua parceria com a Gapi, a indústria microfinanceira pode renascer e contribuir para que a estrutura do sistema financeiro seja menos polarizada em bancos tradicionais.

 

*Intervenção no Fórum de Economia e Finanças.(Maputo, 2023/05/17)

 

**António Souto é economista, fundador e Conselheiro Principal da Gapi-Sociedade de Investimentos e actualmente Presidente do Conselho de Direção da AMOMIF.

terça-feira, 16 maio 2023 06:27

ANÍBAL ALELUIA

“Os homens, estáticos, observavam o préstito que avançava. Os corpos das mulheres, besuntados de óleo de rícino, brilhavam, nus, prendendo os olhares dos homens.

 

Moças de pomos semiesféricos, túrgidos, inclinando os rostos à admiração dos olhos, cerrando as pálpebras sob o véu do pudor; mulheres de meia idade, de corpos tatuados, ventres flácidos e seios semelhando a barbelas de vacas tísicas; velhas de cútis rugosa e pregueada pelo tempo; mulheres gordas e magras, belas e feias, todas expunham o seu físico com uma impudência sem limites.

 

Agora, lá longe, nas dunas cujos cimos se desenhavam em contornos suaves como que a traços de bistre, a face da lua poisava branca e redonda, vestindo as dançarinas com clâmides de prata que mal lhes velavam os corpos.”

 

(Aníbal Aleluia, “Mbelele e outros Contos”.)

 

Em Gaza, num ano de seca severa e de absoluta desolação, em que se adivinha e teme o apocalipse, com o povo a atribuir o infortúnio da falta de chuva à zanga dos “nguluves”, mesmo quando o “nhamussoro” imolava carneiros e bodes ou sacrificava galinhas, a esconjuração revelava-se sempre improficiente. Os homens pegavam nos seus “xitendes” e faziam malas e rumavam para a terra prometida do Jone e as raparigas deixavam para trás os berimbaus, abandonavam as palhotas e iam para Mafalala ou Estrada Nova comerciar o corpo. Os sobas resolveram mandar consultar “Nengueuassuma” (homem de perna de mosquito), o mais famoso “nhamussoro” em toda a região de Gaza e este não foi de tergiversações, mas sim assertivo: “Ide fazer mbelele...”

 

“Mbelele e Outros Contos”, que narra, de forma exímia, a ocorrência miraculosa da chuva, na sequência do mbelele, naquelas terras assoladas pelo desfortúnio, é um livro que Aníbal Aleluia escreveu em meados dos anos 50, mas só foi publicado em 1987. Estes belos contos estiveram para ser publicados em 1961 por iniciativa do jornalista Joaquim Correia. Contudo, o autor foi preso em Maio desse infausto ano e a sua mulher relacionou aquela detenção com as suas investidas literárias e pediu o livro de volta. O volume iria permanecer inédito longos proverbiais anos.

 

Aníbal Aleluia era acusado de ter contactos com Kamuzu Banda, do Malawi, era aviltado como “nacionalista africano”, ou visado por estar mancomunado com Baltazar da Costa na revolta do Norte do Zambeze.  Tudo inverdades, patranhas, invencionices de quem o odiava, sobretudo os “bufos de Zóbuè”.

 

A ligação que, eventualmente, se lhe poderia assacar era aos chamados democratas, sobretudo Santa Rita e Soares de Melo, em cujo escritório trabalharia, vínculo que o levaria a colaborar na publicação “Itinerário”. Santa Rita, Soares de Melo, Ricardo Fernandes, Ovídeo Cordeiro ou Almeida Santos encorajam-lhe a escrever e ele fazia-o com denodo: animava-se por um espírito contestatário e incumbia-se da tarefa de falar de uma comunidade sem cidadania e das suas misérias. Debutaria em 1947 e foi decisivo o estímulo de Cassiano Caldas – figura tutelar para a geração da Noémia de Sousa e do José Craveirinha –  que lhe pagava 250 escudos naqueles tempos difíceis. A escrita de intervenção era, por conseguinte, o seu apanágio.

 

Para além do “Itinerário” colaborou em “O Brado Africano”. Curiosamente, fê-lo na mesma época que Carolina Abranches. Aníbal Aleluia tinha uma rubrica mensal, intitulada “De mês a mês”, na qual se debruçava sobre várias personalidades. Um dia quis escrever sobre Noémia de Sousa, de quem ninguém sabia tratar-se, e resolveu pedir ajuda à Carolina Abranches do “Brado Africano”. Ela respondeu-lhe dizendo que conhecia Noémia de Sousa e sabia que era uma pessoa modesta  e que talvez ficasse extremamente melindrada  ao saber que iria ser objecto de um artigo no jornal. Aleluia redigiria o seu artigo com os materiais de que dispunha e, só mais tarde, descobriria que Carolina Abranches e Noémia de Sousa eram uma mesma pessoa: Carolina Noémia Abranches de Sousa.

 

A sua vida foi dura e marcada por adversidades. Não só a agrura da prisão, mas os afrontamentos ou ultrajes que teve que suportar. Certa vez redigiu um texto (“Dignificação do Trabalho”) criticando o salário de fome  que era pago aos chamados “indígenas” e denunciando o próprio conceito de trabalho entre os nativos. Enviou-o para a publicação na qual colaborava. Não foi publicado. Quem dirigia o jornal mandou-o para o caixote de lixo e com o mesmo título redigiu um outro texto que estava nos antípodas daquele feito por Aleluia e que era um verdadeiro ditirambo às políticas laboral e salarial do regime. Não muito tempo depois o tal cavalheiro seria nomeado conselheiro de uma instituição em Portugal.

 

No tempo em que Aníbal Aleluia colaborava para o “Itinerário” e/ou “O Brado Africano”, nos anos 50, despontavam alguns dos nomes fundadores da literatura moçambicana. Ele acompanhava discretamente a sua produção, sobretudo a dos poetas: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Knopfli, Ruy Guerra, Fonseca Amaral ou até Santos Abranches (que teve um papel crucial na época).

 

Uma pérfida personagem, de seu epíteto Parafuso, que se comprazia em usar o pseudo linguajar negro, que racicamente classificava de “pretoguês”, fazendo, assim, pouco dos pretos, adquirira notoriedade. Aleluia sentir-se-ia vexado por essa personagem e rejeitava, por assim dizer, aquele tipo de narrativa. Noémia de Sousa, também, haveria de falar-me da espécie que lhe causara tal Parafuso e de objectar por completo aquele tipo de linguajar para caracterizar os moçambicanos.

 

Aníbal Aleluia falava, nos seus artigos, da injustiça social, da discriminação racial, proclamava a necessidade de se dignificarem os moçambicanos, advogando a premência de lhes serem facultados recursos para se desonerarem do sadismo social de que eram vítimas e no qual estavam atolados. Este era o escopo da sua escrita.

 

Como somos um país que não preza a memória, mas sim faz descaso do passado e do que realmente importa, estes artigos que mereceriam uma edição cuidada e uma atenção crítica dos nossos acadêmicos, não concitaram, até hoje, o entusiasmo indispensável para saírem do sepulcro dos jornais. A despeito, as nossas universidades afadigam-se a arrazoar, com volúpia, sobre questiúnculas e se deleitam com a enxúndia dos dias.

 

Henrique Aníbal Aleluia nascera a 30 de Agosto de 1921 na Península de Linga-Linga em Inhambane e era oriundo de uma família de antigos construtores de barcos. Carpinteiro, marçano, enfermeiro, professor, solicitador, auxiliar de veterinária, funcionário administrativo, calcorreara o país, sobretudo como enfermeiro, do extremo norte litoral em Palma, em Cabo Delgado, às províncias de Nampula, Tete, Manica, Gaza, Inhambane e Maputo. A sua permanência em Zóbuè foi indubitavelmente marcante. Os seus contos testemunham o seu conhecimento do país.

 

Teria sido um repto do seu amigo António Caetano Fernandes que o levaria a escrever ficção. Havia quem asseverasse, à época, na “Elo”, que existia um substracto orgânico que incapacitava o nativo de fazer ficção e a recusa de Aníbal Aleluia de a praticar seria então prova bastante. O autor, que vivia no Zóbuè, na zona europeia de inspecção de combate à tripanossomíase, encontrando-se, por essa razão isolado e com tempo que lhe enfastiava, resolveu contraditar aquele anátema.

 

Houve quem visse, nos seus textos literários, exposição dos segredos que seriam sagrados para os naturais. E houve quem o acusasse de “denegrir a comunidade africana”, o que lhe valeu impropérios, por vezes, violentos. Aleluia procurava tão somente “revelar facetas da vida e dos sentidos dos grupos menos evoluídos da minha terra com os olhos de dentro, fazer uma observação centrífuga da alma da minha gente”.

 

Guardados na gaveta durante décadas haveriam de ser publicados em finais dos anos 80 quando o autor tinha 67 anos. Talvez por isso, Aníbal Aleluia não se considerasse escritor: “Um homem que se estreia próximo dos 70 não pode ser de esperanças nem de mudanças”.

 

Recordo-me da sua extraordinária elegância, do seu formalismo, do seu rebuscado vocabulário e da sua retórica enformada, da sua conversa culta e inteligente, do seu asco à indigência e à mediocridade, do seu vasto percurso e do seu pecúlio. Da sua probidade.  Da sua solidão. Da sua profunda solidão. Sobretudo recordo-me do facto de ser um homem marcado pela dureza da vida, pela tristeza, pelas provações, pelos tormentos, pelas aflições.

 

Ainda que fosse corrosivo ou incisivo na crítica e irónico e alegórico nas invectivas, fazia-o com galhardia. Aníbal Aleluia não se furtava a uma boa polémica. Gostava de alegar, de citar, de demonstrar, de pretextar. Denotava uma grande cultura literária. Aliás, quando frequentou a Escola de Professores devorava 10 romances por mês e era lendária a sua avidez pela leitura.

 

Aníbal Aleluia usou diversos pseudónimos na sua vasta actividade jornalística e literária: Roberto Amado, Augusto António ou Bin Adam. Colaborou, para além do “Itinerário” e “O Brado Africano”, em: “Voz Africana”, “Boletim Médico do Sul do Save”, “Almanaque de Moçambique”, “Elo”, “D´Aquém e D´Além Mar”, “Vértice”, “Notícias”, “Voz de Moçambique”, “Tempo” e “Charrua”. Não será de todo um disparate dizer que ele pertenceu ao movimento da “Charrua” ao lado dos jovens iconoclastas que o promoveram. Um dos seus integrantes, Ungulani Ba Ka Khosa, que um dia disse que esta era a melhor revista do mundo (uma “boutade”, certamente) quando se refere à “Charrua” nomeia, entre os seus constituintes, Aníbal Aleluia.

 

Aleluia sonhava escrever um ambicioso romance. A ideia central do livro defendia a “tese” de que o nacionalismo (ou o proto-nacionalismo, se se quiser) não nascera no Sul, mas brotara no Centro e Norte do País. Para o autor o berço da resistência não era Gaza, mas sim Angoche, entre o tempo de Mogossurima, no século XVIII até aos tempos de Farelay no limiar do século XX, quando os sultões cótis, de origem quiloana, opuseram o Crescente à Cruz.

 

A sua contumácia irá render-lhe dissabores também nos anos ulteriores à independência. Tendo uma posição equidistante politicamente, não se comprometendo com o regime, exercendo aliás sobre este um espírito crítico, acerbo muitas vezes, cedo viu os prosélitos e defensores do antigo regime se transfigurarem em revolucionários inequívocos. O que lhe causava urticária.

 

Era crítico firme das exorbitâncias da revolução, como a operação produção e de outros exageros e desregramentos que se praticavam. Foi contra o banimento da educação moral e via, como consequência, uma sociedade que resvalava para a imoralidade.  Repugnava-lhe a lei da chicotada.  Indignou-se quando um causídico, em plena Assembleia Popular, defende tal lei e foi ovacionado pelos deputados. Censurava o facto de, na administração pública, a inteligência e a competência se subjugarem aos interesses políticos que, a seu ver, não concorriam para o desenvolvimento equilibrado da sociedade.

 

Preso no tempo colonial, não faltou quem o quisesse ver proscrito no tempo subsecutivo. “Pertenço à primeira leva – caça grossa para a Pide, reaccionário para a Frelimo”, dizia sem acrimónia, mas profundamente desgostoso. Não praticava nenhum júbilo quanto ao futuro. Muito ácido nas suas análises, não se animava com aquilo que a efervescência política então produzia. Numa entrevista a Michel Laban terminava o seu juízo sublinhando: “Quero com isto significar que considero inquietante o futuro deste país”.

 

Aníbal Aleluia sentir-se-ia sempre marginalizado, quase sempre omitido. Tivera uma vida vivida sempre com dificuldades, atribulações, agruras. Em Agosto de 1990, quando o entrevistei para o livro “Os Habitantes da Memória”, quis, entre outras coisas, saber se ele, à beira dos 70, escreveria um livro de memórias. Não enjeitava de todo a ideia, contudo realçava o facto de que o seu “testemunho acordaria em algumas pessoas recordações amargas”. Foi quando me disse uma frase que eu nunca mais haveria esquecer: “Tenho um hábito que atrai empatias incómodas”. Usei-a para título.

 

A 21 de Janeiro de 1993 redigiu o prefácio para a sua novela “O Gajo e os Outros”. Esta é a sua derradeira efeméride literária. Pediu a Calane da Silva que lhe aduzisse um posfácio. A 13 de Maio, regressado de Inhambane, liga a Calane  para saber do texto. Combinam um encontro no dia seguinte para que este lhe entregasse o texto. Esse encontro não acontecerá. Henrique Aníbal Aleluia morrera nessa madrugada, 14 de Maio de 1993, passam hoje 30 anos. O livro sairia em edição póstuma no mesmo ano com a chancela da AEMO. Era a obra subsequente a “Mbelele e Outros Contos”. Em 2011 a AEMO publica, postumamente, os seus Contos do Fantástico:

 

“Na Península de Linga-Linga onde nasci – cunha de palmares encravada entre o Índico, a nascente, e a baía de Inhambane, a poente, seis léguas a Sul do Trópico de Capricórnio , cobrindo perto de quarenta e cinco quilómetros quadrados, com centenas de fogos distribuídos por seis ou sete clãs – conheci um único nhanga, dos de tocar batuque, cantar e dançar.

 

Deixe a Península, infante, para ir estudar em Inhambane primeiro, seguindo depois para Morrumbene e acabando em Furvela.

 

Quatro anos depois, voltei à Península onde apenas me detive por ano e meio, aprendiz de carpinteiro barçal (sic) na pequena oficina de meu pai. Depois que parti dali, nunca mais voltei a morar na Península.

 

Cruzei então esta terra de lés a lés. Pelo litoral, conheço Moçambique do Cais de Maputo ao rio Rovuma (que atravessei). Para o interior  atingi as regiões serranas do Alto Tete, pois vivo no Zóbuè. Com esta vida de nómada fui-me empobrecendo cada vez mais materialmente, enquanto enriquecia no conhecimento das nossas microetnias.”

 

(Aníbal Aleluia, “Contos do Fantástico”.)

 

Henrique Aníbal Aleluia: aqui o lembro hoje neste breve preito e neste país onde se pratica, com complacência, o esquecimento, a deslembrança e o oblívio. Ou neste tempo de desatenção, indiferença, desrespeito, omissão e descaso.

 

KaMpfumo, 14 de Maio de 2023

quarta-feira, 10 maio 2023 06:12

Cidadania

Define-se cidadania como a qualidade de um cidadão com um vínculo jurídico, que traduz a condição de um indivíduo enquanto membro de um Estado, constituindo-o como detentor de direitos e obrigações, perante esse mesmo Estado. A cidadania é exercida através da participação na vida pública e política de uma comunidade, (dicionário infopedia).

 

Moral define-se como um conjunto de valores, individuais ou colectivos, considerados universalmente como norteadores das relações sociais e da conduta dos homens, (dicionário Oxford).

 

Impostos são os valores que o Estado cobra, pagos pelo cidadão-contribuinte para custear as despesas desse mesmo Estado, em benefício dos cidadãos. Com a cobrança de impostos, o Estado visa diminuir as desigualdades sociais, sendo a tributação uma das ferramentas para a redistribuição de renda.

 

Desde que existem as civilizações que os cidadãos contribuem através de impostos, taxas e outras diversas formas para garantir a existência do Estado.

 

Sem o cumprimento dos cidadãos, nenhum Estado poderá subsistir na sua função, afim de atingir a igualdade de oportunidades no acesso à educação, saúde, segurança pública e territorial, pelo que a cidadania e moralidade fiscais são a base da civilização e do desenvolvimento sustentável.

 

Soberania define-se como o direito de um Estado ter o domínio e poder sobre si, que não e delegável nem renunciável. Sempre ouvi dizer: “quem paga, escolhe a música”. Se o Orçamento Geral do Estado de Moçambique é neste momento constituído aproximadamente com 40% entre ajuda e dívida externa, é caso para perguntar, como podemos ser soberanos?

 

Uma certa  “moda” impregnada pelas agências multilaterais e ONGs veio branquear a economia ilegal, apelidando-a de paralela ou informal (não confundir com o sector familiar), além de atribuir-lhe a indevida dignidade, fazem acreditar que têm direitos como agentes económicos. Como a  maioria dos nossos dirigentes dançam a música de quem paga, acabam massacrando os poucos contribuintes que cumprem com os seus deveres (matando a galinha dos ovos d’ouro).

 

Imoral e insustentável é tolerar e defender ou considerar como parte da “economia” os sistemas paralelos ou ilegais. Estas são algumas das formas que os países que dominam as instituições supostamente multilaterais encontraram pós-colonização, para perpetuar o empobrecimento dos nossos países em seu benefício.

 

Mais grave é que usam essas mesmas instituições para acusar o nosso Governo de inconformidades fiduciárias e monetária (lavagem de dinheiro). Como é possível combater o contrabando e a fuga ao fisco, quando 60% da nossa economia é ilegal (informal), patrocinada pelas agências de desenvolvimento e cooperação.

 

Aceitar este tipo de cooperação é uma violação ao juramento que os nossos dirigentes dos três poderes fizeram, aquando da sua tomada de posse, em “cumprir primeiramente com a Constituição da República e demais leis”, fazendo tudo em sua capacidade para preservar a soberania e servir os cidadãos.

 

Desmotivante é um contribuinte cumprir com as suas obrigações e verificar que o Estado não lhe respeita nem lhe dignifica, distribuindo parte dos seus contributos para o sector ilegal que causa disrupção económica e social, razão pela qual muitos cidadãos e agentes económicos desistem da actividade formal, optando pelos negócios informais ilegais. Porquê?

 

Porque  é muito confortável ser-se informal, ninguém fiscaliza, não há regras, tão pouco leis, até os agentes do Estado mais corruptos não aparecem. Por outro lado, os cidadãos e empresas formais estão registados, localizáveis, alvo fácil para os sanguessugas que não medem a sua agressão, atropelando todos os valores de servidor público e de cidadania.

 

Mais grave é que o contribuinte que tenta cumprir com as suas obrigações, pagando os seus impostos e taxas, é convidado por agentes tributários a pagar efectivamente menos (com documentos carimbados com o valor oficial) desde que a diferença seja paga em benefício destes agentes corruptos, para não dizer coisa pior. Precisamos de mudar radicalmente a forma como o Governo gere a política tributária.

 

Precisamos de uma mudança paradigmática da forma como as instituições tributárias fiscais, aduaneira e sociais lidam com os poucos contribuintes, tratando-lhes como criminosos, devendo estes contribuintes estarem constantemente a provar a sua inocência. Mais de 75% das inspecções do sistema tributário visam ameaçar os visados, para alimentar a cadeia de corrupção de cima para baixo, uma cópia ampliadíssima da polícia trânsito. 

 

Se as instituições de anti-corrupção não vêem estes crimes devem fechar as portas, porque estes bandidos não são discretos, nem modestos, actuam com maior descaramento. Para reduzir a corrupção no sistema tributário e aduaneiro, adopte-se modelos digitais de pagamento, de verificação e de inspecções, como acontece no resto do mundo.

 

Contrate-se empresas privadas para fiscalizar os sistemas contributivos, com benefícios recíprocos sobre a receita adicional. Não pode haver país soberano sem sustentabilidade fiscal, aduaneiro e social. Mais grave ainda é que as vítimas da corrupção tributária (empresas contribuintes) são também vítimas das dívidas, que o Estado não paga às empresas. O Estado é o maior devedor da praça.

 

Quando o Estado mata as empresas, está a suicidar-se a médio prazo, porque está a destruir a “machamba” que lhe alimenta e que garante a criação de postos de trabalho, estabilidade social e desenvolvimento sustentável. Falamos muito de direitos fundamentais, democracia, eleições, mandatos, para quê?

 

Se não tivermos cidadãos e soberania, deixamos de existir!

 

Indivíduos qualificados fiscalmente que não cumprem o seu dever deveriam ter os seus direitos suspensos. Se não contribui para o sistema tributário de forma proporcional não é cidadão! Os agentes tributários corruptos deveriam ser julgados e castigados severamente, como traidores à Pátria.

 

Nenhuma instituição, incluindo as multinacionais e ONG’s, ou indivíduo deveriam estar isentos da contribuição fiscal proporcional, enquanto o Estado não tiver contas públicas sustentáveis.

 

Os nossos líderes têm de separar o “trigo do joio” não se deixarem entreter com “faits divers”  ou seja, factos diversos, sobre hipotética democracia e direitos fundamentais, quando na verdade os cidadãos supostamente beneficiários quase não existem. 

 

A Luta continua!

 

Amade Camal

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