Sem apelo e nem agravo, o INE disse da sua justiça e fê-lo com aberta humildade, mantendo todas as portas e janelas para que o CNE/STAE esgrima dos seus argumentos e faça jus dos "apriorismos gazenses".
Apriorismo!Tomo de empréstimo o jargão tornado célebre por aqui, pelos ecos dum dos debates recentemente veiculados na STV. À partida, no caso vertente, não havia nenhum apriorismo, no sentido de projecção de pré-concepções com potencial de limitar a compreensão da complexidade de pressupostos que poderiam contribuir para um melhor fundamentado entendimento da questão. O mote da discussão era relativamente claro: o que se passava com os dados do censo eleitoral divulgados pela CNE, com particular enfoque para a província de Gaza.
A projecção apriorística foi enunciada pelo emitente da expressão, ao insinuar que o interlocutor pensava que Gaza era bastião da Frelimo. Não era o caso. Uma postura apriorística é isso. Trazer de casa suas próprias convicções e projectá-las como fio condutor do debate, com atribuições ilegítimas do "lugar da fala".
Mas não é sobre esse apriorismo que aqui aporto, senão pelas subjacentes implicações e significações do pomo da discórida. Independentemente da (im)plausibilidade dos dados avançados pela CNE, o agora anedótico apriorismo gazense, encerra uma complexa amalgama de questões estruturantes, inerentes ao "processo democrático moçambicano" enquanto constructo dinâmico, epitomizado na regularidade de eventos eleitorais.
Subjacente às pipocas numéricos de gaza, existe toda uma longa história de desvirtuamento da significância do investimento eleitoral, caracterizado por reportes amplamente documentados do escamoteamento e usurpação do valor e lisura dos actos pré, eleitorais e pós eleitorais, que concorrem para um ceticismo sobre a idoneidade processual e consequente descrédito dos resultados daí decorrentes, com negativas implicações na forma como muitos cidadãos vêm, percebem e/ou lidam com as estruturas institucionais coroadas, pela força do Conselho Constitucional e pela aguerrida prontidão com que o aparato repressivo formal, e obscuro, vigiam e reprimem as contestações.
Habituados a ver as artimanhas eleitorais romperem pelas costuras no auge das campanhas e no momento do escrutínio em si, a revelação de que potencial viciação das eleições esteja a decorrer muito à prior, potencia esta onda de indignação pelo permanente desvanecer da esperança e aspiração por processos eleitorais relativamente isentos e credíveis.
Os últimos episódios de Marromeu, em que, à luz do dia indivíduos em conflito de interesse posicionaram-se como escrutinadores e membros de mesa, o escabroso saque de urnas eleitorais por janelas e posterior retorno por indivíduos trasvestidos na nobre indumentaria das corporações do Estado, exacerbam a percepção de que os concorrentes dos partidos não dominantes encontram-se em situação de desvantagem acrescida, não apenas pelo uso e abuso de meios de Estado para a materialização das campanhas, como pelo facto de terem que conformar-se perante evidentes usurpações de resultados, geralmente a favor do partidão.
Historicamente, a limitada capacidade de interposição tempestiva de recursos em situações de reportes de fraudes, por parte dos partidos que subsistem, a duras penas, à margem do poder, tem sido capitalizados por um sistema político eleitoral descomprometido com as "verdades eleitorais" e que não raras vezes agem como escudo de proteção e salvaguarda, voluntariosa e/ou mandatada, empenhada em impedir que partido tal ou qual ascenda ao poder em qualquer um dos níveis de governação que seja objecto de escrutínio.
O pseudo-apriorismo que se pretendia interpor para acalentar o tempo e espaço de legitimação de desvios matemáticos e lógicos, não se cinge na discussão quantitativa da plausibilidade dos dados populacionais avançados e nas incongruências contrastivas associadas aos dados oficializados pela CNE, verus INE.
Com ou sem ressalvas metodológicas, rearticulação de possíveis factores contribuintes e ou determinantes para tão desproporcional resultado de recenseamento eleitoral, o apriorismo lê-se nas entrelinhas que denunciam manobras visando abocanhar assentos em assembleias e estabelecer uma reserva contabilística, com potencial de (des)equilibrar a balança de resultados cumulativos a nível nacional. Já se viu no pleito das presidenciais passadas que cada província conta, e mais do que isso, cada voto faz diferença, como ficou patente nas recentes eleições autarquicas, com particular exemplo da Autarquia da Matola e dessas outras autarquias, como Alto-Molocué em que, pelo significado de cada voto, não se hesita em recorrer-se a expedientes vis, como quebra de vontade, violação da integridade física e quebra de membros até de indivíduos em exercício de actividades de representativade de Estado.
A instrumentalização apriorística de pressupostos, manifesta-se na crença de que as pessoas não se cansam de discussões circulares sobre as ilegitimidades e penumbras de processos eleitorais duvidosos, que se vai instituindo no imaginário social e como cultura política.
Ainda que superestimem a nossa ignorância, ao insistirem em enveredar por tão sinuosas trilhas, as nossas instituições de gestão eleitoral, digo, os guardiões de tais instituições, prestam um inimaginável desserviço ao país, ao contribuir na produção e perpetuação de farsas.
É tempo de não contarem com o nosso conformismo e muito menos anuências. Parafraseando o "é melhor deixar" do nosso PR, ou "relaxar", com direito a sinónimos, da nossa Presidente de Parlamento, penso que esses tempos estão minguando. Pois, a corrosão do sentido de pertença, o descaso pelas "leis", a reprodução das inequidades e da pobreza que nos assola não se materializa apenas pelas limitações na concepção, articulação e implementação dos nossos projectos de transformação socioeconómica, mas nestes apriorismos que assumem que tem de haver instruções e/ou "ordens superiores" a serem seguidas, rumo às ditas "vitórias retumbantes", a todo o custo.
Como se diz na gíria das zangas de momento, políticas e artísticas, este país é também nosso, igualmente nosso. Incluindo os gazenses em idade eleitoral activa e passiva, generosamente contabilizados entre vivos e mortos.
"Sem drama e nem trauma", pode ter soado a simples refrão de despedida. É mais do que isso. Um acto de coragem. Um convite ao (re)encontro com a verticalidade de espinha, pela qual muitos se definem.
No presente texto defendo a ideia de que faltam na nossa sociedade espaços de debates públicos abertos e descomplexados, sobre inúmeras questões-chave que deveriam fertilizar as visões e estratégias dos partidos políticos e do conjunto da sociedade, na perspectiva de enformar as grandes opções políticas do novo ciclo de governação2020-2025. Considero que têm faltado platormas abertas e inclusivas de debate apartidário de ideias, incluindo através dos meios de comunicação social de um modo geral, e do sector público, em particular. No melhor dos casos, há pessoas sentadas em salas de hotéis falando sobre si mesmas ou promovem-se conversas amenas de glamor... nas televisões!
As eleições como oportunidade de debates de fundo
Moçambique está nas vésperas das suas sextas eleições gerais multipartidárias: de escolha dos deputados da Assembleia da República, do Presidente da República e dos membros das Assembleias Provinciais, de cujas listas vencedoras se vão eleger, e pela primeira vez, os governadores de provincia. Trata-se, pois, de um processo inédito, na senda do alargamento do espaço democrático, por via de uma progressiva descentralização administrativa. Isto é, de devolução gradual de poder aos cidadãos.
Diz-se que cerca de 40 partidos políticos deverão inscrever-se para concorrer!
Uma breve retrospectiva deste processo, cujo ponto cimeiro foi a revisão constitucional de 2018, traz-nos à memória, como ponto de partida, a crise política pós-eleitoral de 2015/2016, marcada, entre outras, pelos seguinte exigências sucessivas da Renamo: constituição de um governo de gestão; decapitação do Estado Unitário, com a desanexação de seis provincias ,a serem governadas pela Renamo; de permeio com emboscadas contra conversações em curso, seguindo a digressão nacional paralisante de Afonso Dhlakama, para tudo culminanar com a “presidencialização” do diálogo Governo-Renamo, o qual vai ser simbolizado, enfim, pela histórica subida à serra da Gorongoza, pelo Chefe de Estado, Filipe Jacinto Nyusi!
Entretanto, o principal resultado da presidencialização do dialogo – que deixou em terra exautos mediadores – vai ser o acordo sobre a descentralização administrativa do país, consagrado através de uma revisão constitucional pontual, mas cuja formulação haveria de ser entregue a grupos tecnicos, e mais tarde imposta ao Parlamento, por acordo entre as cúpulas partidárias com maioria de assentos na chamada Casa do Povo! Tudo isto ocorrendo sob a ameaça de armas de guerra de um dos partidos com assentos no Parlamento e para cuja conformidade constitucional e legal “definitiva” vai ser acordado um célebre programa DDR : desmobilização, desmilitarzação e reintegração das forças militares desse partido, que têm continuado a sobrar, desde o Acordo de Roma de 1992!
Em paralelo, a nação moçambicana vive uma das mais traumáticas crises de governação alguma vez por si experimentadas: a crise originada pela revelação internacional de dívidas externas milionárias, contraidas pelo governo anterior, em arrogante e clamorosa violação da Constituição da República e da lei orçamental! Pior ainda: para encobrir um odioso esquema de corrupção de alto nivel, com tentaculares ramificações junto de gestores de topo da alta finança internacional! A crise, com impactos de longo termo, sobre a vida dos mocambicanos e a reputação do Estado junto da comunidade internacional, vai conhecer um momento juridico-constitucional dramático, com declaração da nulidade dos respectivos instrumentos e correspondentes negócios, pelo Conselho Constitucional! Consumava-se uma enorme vitória do constitucionalismo nacional, impulsionado pela Sociedade Civil! E a nação vai tapar os olhos, envergonhada com a nudez das suas mais nobres instituições!Seguir-se-ia, haja ou não relação de causa e efeito, a renúncia do cargo de Presidente deste orgão, por parte do seu titular, o Dr. Hermenegildo Gamito!
E as catanas de recursos minerais decapitando camponeses inocentes em Cabo Delgado e provocando insónias às mulheres da Ilha Olinda e de Cassoca?
E como se de caixa de pandora se tratasse, ainda viriam os mais graves desastres naturais de que o país – que ja sobreviveu a muitos! – tem memória: os devastadores ciclones Idai e Kenneth, com o seu largo rasto de mortes e de destruição de infra-estruturas económicas e sociais, no centro e norte país!
Ora, quer directa, quer indirectamente, é por debaixo deste longo e sufocante manto de desafios de governação da Nação que estas sextas eleições se vão realizar!
Qualquer destes assuntos transporta consigo impressionantes debates, quer eles correspondam a resultados imputáveis a conduta humana, quer derivem de fenómenos naturais apenas remotamente susceptiveis ao controlo soberano dos moçambicanos, mas tão complexos como raramente seriam encontrados em qualquer outro país do mundo!
Como aborda-los, numa perspectiva de debate público que torne as eleições uma oportunidade de mobilização nacional para a construção de consensos, o mais amplos possíveis, sobre o que possam ser considerados designios comuns e unificadores da nação?
O que todos esses partidos políticos pensam destas questões, que marcam o devir colectivo dos moçambicanos? Que sistemas ou modelos de sufragação dos seus projectos de governação os partidos políticos estão a usar ou pretendem usar, no quadro destas eleições?
Como podem, os partidos politicos, na senda do periodo eleitoral, e ao lado de outras forças vivas da sociedade, contribuir para os estimular a identificar os novos factores de Unidade Nacional?
O que movimentos sociais, representados por grupos organizados de cidadãos (vulgo organizações da sociedade civil) pensam de tais questões de fundo, que se referem a instituições, sistemas e modelos e cultura de governação?
Que modelos ou formatos programáticos podem os orgãos de comunicação social adoptar, para que sejam, efectivamente, plataformas privilegiadas de circulação e de confronto aberto de diferentes correntes de opinião na sociedade?
A nação precisa de se ouvir! A nação precisa de sentar à mesa e...falar!
Termino com uma proposta de tema geral de debate público nacional, que pode ser iniciado por qualquer sector da sociedade, incluindo órgãos de comunicação : Afinal o que mais divide os moçambicanos?
A Nação precisa de conversar!
Entre os recursos que Clifford Geertz usou para vincar o interpretativismo como corrente de reflexão e problematização antropológica, tomo de empréstimo a sua rearticulação de perspectivas ética e émica, através das quais aciona a possibilidade de compreensão, usando noções e conceitos próximos da nossa própria experiência e vivência para alinhavar paramentos de leituras e interpretação de noções e conceitos relativamente distantes da nossa experiência. O que vemos, lemos, ouvimos e/ou experienciamos é passível de ser objecto de apreensão e compreensão, com recurso a uma multiplicidade de lentes. O fascinante é que a consciência disso e a vigilância epistemológica que lhe deve acompanhar amplia a possibilidade de redução do enviesamento interpretativo.
O folclore da "revolução moçambicana" é povoado por expressões e jargões de significação estruturante e profunda densidade simbólica, reflexo de um alto investimento visando formatar, estabelecer fronteiras, vocalizar e dar sentido ao movimento de libertação, posteriormente autointitulado "guia do povo moçambicano", como plasmado naquele hino: " ...viva viva a Frelimo/ guia do povo moçambicano/ povo heroico de armas em punho/ o colonialismo derrubou...".
O celebrado povo de armas em punho, para os desavisados, vide a bandeira nacional que flutua armada e que talvez continue flutuando armada por algum tempo por ser um dos feitos em que muitos se identificam e se sentem representados, especialmente em conjuntura de negações, alheamentos e distanciamentos, alguns dos quais sintetizados em " #hastag's fulano e sicrano, isto e aquilo não me representa", como artifício de reivindicação de outras narrativas.
Em tempos de (des)encantamentos, e mesmo fora deles, é pertinente não usar, à esmo e acriticamente, expressões prenhes de significações, a maior parte das quais consideravelmente amargas sobre a história política de Moçambique. Sob pretexto de "purificação de fileira", os guardiões do socialismo aspirado científico embarcaram em excessos de verborragia descaracterizante e uso de violência extrema, traduzida em execuções quase sumárias, vilipêndio de desafetos em praça pública e até terrorismo paralisante em que muitas pessoas confrangiam-se no seu potencial criativo e produtivo, reduzindo-se à "mediocridade de massa", para não parecer afrontar o incisivo e escrutinador olhar dos vigilantes da "pureza ideológica" e de "estirpe", semeados nos bairros, aldeias e locais de trabalho.
O excessivo zelo em estabelecer e salvaguardar uma certa "pureza" de "linha ideológica", como parte do processo de definição da "razão da luta", objectivo de construção do quimérico "socialismo científico" e prossecução de "vitórias contra o subdesenvolvimento" foi tão visceralmente pontificado, tendo deixado indeléveis marcas e cicatrizes que caracterizam uma cultura política violenta e fraturante com potencial de ser usado e/ou alimentar os germes das múltiplas vertentes de dissidências e sustentação de argumentos fundacionais que viabilizaram bases ideológicas de contestação aos libertadores (independentemente de ter sido à prior ou posterior, no sempre controverso caso da Renamo, ou mais recentemente no misterioso caso do Podemos).
Pudera! A conversão de movimentos violentamente contestadores, particularmente os que tem experiências de algum tipo de triunfo na sua causa, não tem sido "líquido", e não raras vezes se pensam banhados de áureas de omnipotência acreditando (piamente até) em sinas e capacidades de triunfar sobre qualquer coisa ou agenda. A Frelimo incluso.
"Contra revolucionário", "reacionário", "traidor" e, posteriormente, "inimigo do povo", "xiconhoca", "açambarcador" (gosto desta), "candongueiro" e, mais recentemente, "partidariamente indisciplinado", "agente da mão" externa", "corrupto", "moçambicano da gema" em contraposição a um eventualmente "sem gema(!?)", são alguns dos palavrões que estiveram (estão) activamente presentes nas formas de leitura, classificação e interpretação das circunstâncias e eventos que caracterizam a progressão e o estabelecimento do movimento libertador como partido político e ator político central e com privilegiada posição de estruturação das características e rumos que o país assumiu (e assume), consciente e/ou inconscientemente dos virtuosos e/ou deploráveis resultados. Sem descurar que, in extremis, sociedade é um permanente constructo pelo que, nunca se saberá o desfecho de nada senão um perfilar cumulativo de eventos e tempos. Ainda bem que, como humanos desconfortáveis com o 'caos' inventamos marcos históricos e temporais como artifícios e recursos de apreensão e domesticação da existência.
O mais recorrente e significativo dos chavões é o que alude à "purificação das fileiras", pelo carácter maniqueísta e diádico (que reduz a estruturação da realidade entre pureza e perigo, ou bem e mal) ao mesmo tempo que imprime um sentido dinâmico, associado a ideia de vigilância contínua que, evidentemente denota um permanente alerta no interesse de salvaguarda do que se supõe ser fileiras impolutas, não obstante a transfiguração conjuntural do que isso signifique.
Em tempos, "fileiras puras" incluíam noções de incorrutibilidade, lealdades a presumíveis "interesses do povo", "primeiros nos sacrifícios, últimos nos benefícios" e outros, ainda que nunca tenham sido cuidadosamente esmiuçados. Premissas teleológicas, encorpadas em sentidos messiânicos, aparentemente autoexplicativos, funcionam assim mesmo. Aconchegam-se na força da repetição e na praxe que, sistematicamente esconjura o que não lhe parece abonatório ou conveniente sem precisar expor-se a qualquer desafio de razoabilidade e/ou enquadramento moral ou ético, fora dos limites da grelha totalitária que possibilita que se firme como expressão de consequências fenomenológicas.
Quando Mary Douglas dissertou sobre pureza e perigo, mais do que enunciar a coexistência cosmologicamente significativa de teses e antíteses, prenunciou as linearidades dualistas e multifacetadas da vida em sociedade, eventualmente aprisionados em quadros de maniqueísmos funcionalistas e de instrumentalização de noções e conceitos socialmente estruturantes.
Para além desse olhar cético e pouco complacente com o qual entretenho-vos, inclino-me a pensar que o "perigo" é tão maestro da orquestra da vida como a própria "pureza" e, nessas circunstâncias, importa sempre questionar e aferir a significação conjuntural dos jargões e palavrões da moda, levianamente adotados e/ou readaptados como chaves-mestras para abrir portões de duvidosos universos de imaginação sociopolítica e até totalitária.
Alinhamento, coesão e unidade são parte de um repertório político discursivo relativamente familiar no contexto moçambicano, especialmente quando a significação que pretendem emprestar alude à importância de convergência de ditames e prioridades político ideológico; agregação de esforços na prossecução de interesses político-partidários e promoção da integridade territorial em contexto de diversidade socio cultural.
Embora os jargões tenham sido cunhados, aplicados em outros contextos e circunstâncias, na conjuntura actual, quando tais jargões são forçados de empréstimo não transportam somente as eventuais virtudes de significação ou desejadas purezas mas também conteúdos subliminares e aparentes impurezas que os torna termos e expressões que pretendem representar e significar coisas que nos dizem respeito como sociedade.
Na domesticação das teses e antíteses que palavras politizadas veiculam, conjunturalmente falando, não se pode aludir ao alinhamento das fileiras sem perguntar-nos se estão a falar dos "nossos" ou daqueles que "não são nossos"; dos de "dentro ou de fora", não se pode falar de unidade sem se questionar se a discussão desemboca em criticismos de "alas", "regionalismos" ou "tribalismos". Dificilmente se pode entender coesão fora das possibilidades de fissuras e "caça às bruxas" potenciadas pelo extrapolar das capacidades de gestão partidarizada do Estado e do minguar de subterfúgios materiais, lúdicos e simbólicos que concorrem para a manutenção de lealdades grupais.
Não obstante as infindáveis possibilidades de significações que jargões politicamente instrumentalizados apesentam, o mote deste texto está nas diferentes formas de apropriação e instrumentalização político pragmática de termos e conceitos, aparentemente óbvios e inocentes, mas que prenunciam a introdução de zarabatanas novas que escamoteiam e, simultaneamente, evidenciam a persistência de tendências e posturas governativas de cunho totalitarista.
O esmero em demostrar a importância da "compactação" de fileiras, mais do que sinal de eventual bloqueio ou deficit lexiológico de ocasião da parte do emitente (quem não os tem!?), pode ser lido como um alarmante sinal de reafirmação da negação da diferenciação, numa conjuntura em que os sentidos identitários andam minados pelos escândalos financeiros de proporções mundiais e continuadas revelações de nichos de mal versasão da coisa pública.
Semanticamente falando, "compactar fileiras" significa passar um rolo compressor capaz de amalgamar as diferenças de ideias, perspectivas e abordagens dos dilemas e desafios que caracterizam o país, nivelando, literalmente, por baixo os diferentes actores (políticos, intelectuais, jornalistas, fazedores de opinião e outros) e, em última instância, a sociedade como um todo.
Antes de amarar e apertar sacos de laranjas ou batatas em que algumas estão podres, importa separar o que se salva e, das putrefactas, aproveitar as sementes com potencial germinativo e voltar a plantar. A revitalização política, assim como a regenerescência orgânica é um processo de selecção e não uma mera compactação constritiva que impede o fluxo construtivo e inovador da diversidade e do direito à diferença e divergência.
A "compactação das fileiras", enquanto sintoma da ebulição de um partido particular, mal nos diria respeito, não fosse pelo facto de tal partido também ser o que monopoliza o poder de Estado. Com palavras aparentemente inocentes e gestos fugazes estabelecem-se os déspotas e não tarda que seguidistas inebriados adotem o jargão e praxe intrínseca, numa cultura política que privilegia a premeia grandiloquentes gestos de lealdades incondicionais.
Há bem pouco tempo, em nome da "pureza ideológica" e de similares barbaridades, à esta distância histórica reavaliados sem nexo, ostracizamo-nos, aprisionamos uns aos outros em "campos de reeducação", combatemos nossas próprias culturas e línguas, apregoamos a forja do "homem novo", essa descaracterizada e irreconhecível figura que se esmera em tomar o lugar do tateante e quase sempre desengonçado "criador".
Ode à igualdade e diversidade e que não voltemos a sucumbir à homogeneização que destitui indivíduos e grupos das liberdades partilháveis, que nos são ou deveriam ser, igualmente caras.
Não à "compactação de fileiras" que prenunciam o recrudescer de apetites totalitaristas, onde já estivemos, e de cujos vestígios e implicações mal conseguimos desenvincilhar-nos.
Por Domingos M. do Rosário*
“Como se pode ver a partir das constatações das equipas de monitoria presentes nos 161 distritos do país, existem ainda inúmeros problemas de inoperacionalidade dos materiais de registo eleitoral, que resultaram não só na lentidão no registo de eleitores, mas também no fecho de muitas brigadas de recenseamento eleitoral..”
No passado dia 8 de Maio corrente, a África do Sul foi às urnas para eleger os 400 deputados para a Assembleia Nacional (AN) e membros das assembleias provinciais (AP) para as nove províncias do país, nomeadamente pela sexta vez desde a libertação do carismático Nelson Mandela. Diferentemente de Moçambique, na África do Sul não há eleição directa do Presidente da República: este é eleito pela Assembleia Nacional, de entre os 400 deputados. Geralmente, o presidente é eleito do partido com maioria parlamentar, sendo, comumente, seu líder e/ou cabeça de lista.
Um total de 48 partidos políticos estiveram na corrida para a AN. O número de partidos concorrentes para as AP varia de província em província, assim como o número de membros da AP, que varia de acordo com o tamanho da população de cada província, sendo a mais pequena AP composta por 30 e a maior por 90 membros.
Há alguma semelhança com Moçambique em relação a como os deputados da AN são eleitos: o uso do sistema proporcional de lista fechada, com as províncias formando os círculos eleitorais. O sistema eleitoral é também o mesmo para a eleição dos membros das assembleias provinciais. Portanto, na África do Sul cada eleitor recebe dois boletins de voto: um para a escolha do partido para a AN e outro para o partido para a AP.
Foram 17.671.616 de eleitores que se fizeram às urnas, dos 26.779.025 recenseados, o que correspondente a 65.99% de participação, representando uma descida, quando comparado com os níveis de participação (73.48%) nas eleições gerais de 2014. Até às eleições de 2014, a África do Sul apresentava níveis altos de participação na região da SADC; por isso, esta descida deve constituir preocupação regional e um alerta a países como Moçambique, Malawi e Botswana para tudo fazerem para maior mobilização do eleitorado. Dentre estes países que irão às urnas antes do final de 2019, Moçambique está em melhor posição em relação às facilidades de, potencialmente, fazê-lo, , uma vez que está na fase de recenseamento dos eleitores. Uma maior mobilização do eleitorado para se recensear, principalmente em zonas afectadas pelas calamidades naturais (ciclones, Idai e Kenneth, em particular), pode ser um passo significativo para o aumento dos níveis de participação.
O que dizem os resultados eleitorais
Não há nenhuma surpresa significativa. O partido libertador, o Congresso Nacional Africano (ANC), recebeu 57.50 % do total dos votos, a nível nacional, o que lhe confere uma maioria parlamentar, com 230 deputados. Este resultado não é muito celebrado entre os comrades[1], porque revela o agudizar da descida de popularidade do seu partido, descida essa que começou nas eleições de 2009 quando o ANC baixou dos 69.69% que tivera nas eleições de 2004, para 65.90%. Nas eleições de 2014 a sua popularidade nas urnas veio a baixar ainda mais, nomeadamente para 62.15%.
Existem várias possíveis explicações para a descida de popularidade deste partido histórico, desde os conflitos internos que dividem os membros próximos do antigo presidente Jacob Zuma dos do presidente Cyril Ramaphosa, muito facilmente visíveis mesmo no Congresso de 2017, quando Ramaphosa derrotou Nkosazana Zuma e ficou com a presidência do ANC. Segundo, a percepção de que o ANC, na pessoa de Zuma, abriu espaço para a captura do Estado, associados às denúncias de corrupção de alto nível, certamente terá contribuído de alguma forma. Terceiro, há também uma visível frustração dentre os apoiantes tradicionais do ANC, os mais desfavorecidos, que acham que o ANC se esqueceu deles. A campanha eleitoral para estas eleições foi caracterizada por múltiplas manifestações populares de rua, exigindo melhoria da prestação dos serviços públicos.
Certamente que o ANC estava ciente de que a colheita eleitoral de 2019 não seria das abundantes, a olhar para os resultados obtidos nas autárquicas de 2016, onde chegou a perder o controlo de grandes cidades metropolitanas como Joaneburgo, Tswane (Pretória) e Nelson Mandela Bay. Se o ANC fez uma reflexão e operou alguma mudança para corrigir a percepção negativa depois das eleições locais, então não foi suficiente para recuperar a sua imagem eleitoral.
O descontentamento dos membros do ANC com o desempenho do Governo do ANC terá também contribuído para a subida da abstenção. Em teoria, eleitores insatisfeitos com o desempenho do governo tendem a punir o partido governante votando para partidos da oposição. Mas um estudo feito na África do Sul mostra que os apoiantes do ANC preferem mostrar sua insatisfação ficando em casa, do que dar o seu voto a outros partidos.
Os conflitos internos no partido da Aliança Democrática (DA), que culminaram, de resto, com a saída de Patricia de Lille, quadro sénior do partido e antiga Presidente do Município da Cidade do Cabo entre 2011 e 2018, terão afectado negativamente o desempenho eleitoral do DA, a nível nacional. Um membro sénior do DA, Solly Msimanga, antigo Presidente do Município de Tswane, reconheceu que a maneira como o DA lidou com a ‘Questão De Lille’ terá penalizado o partido nas urnas. De Lille formou um novo partido, o Good, um dos debutantes, mas que conseguiu assegurar dois assentos na AN. DA desceu dos 22.23% conquistados nas eleições de 2014 para 20.77%. A olhar-se para os números e para as características dos partidos, o mais provável é que os cerca de 1.5% de eleitores que o DA perdeu se tenham distribuído entre o Partido Good e o VF-PLUS. Este último é um dos partidos que pode cantar victória, ao ter conseguido uma subida dos 0.9% em 2014 para 2.38%.
O partido de Julius Malema, o Economic Freedom Fighters (EFF), foi o terceiro mais votado. EFF conseguiu a mais alta subida de todos os partidos, dos 6.35% de 2014 para 10.79%. Contudo, a expectativa que se havia levantado sobre o desempenho do EFF faz com que este resultado não seja euforicamente celebrado. Em campanha eleitoral, com recurso ao uso agressivo dos media sociais, o EFF fez passar aos cidadãos sul-africanos a mensagem de que era desta vez que destronava o histórico ANC.
A questão da expropriação da terra e sua devolução aos seus “legítimos proprietários”, os negros, para corrigir os erros históricos, foi sempre o pendão discursivo do EFF. Contudo, um pouco mais de um ano antes das eleições, o ANC afogou o protagonismo do EFF, mormente quando puxou para si, a nível do parlamento, o debate sobre a questão da necessidade da correcção dos erros do passado, com a devolução da terra. Esta viragem do ANC terá, sobremaneira, influenciado os resultados do EFF.
O partido de Mangosuthu Buthelezi, o Inkatha Freedom Party (IFP), também conheceu uma ligeira subida de cerca de um porcento (de 2.40% em 2014 para 3.38% em 2019). Este é um partido predominantemente regional, de KwaZulu Natal, terra natal do presidente Zuma. Curiosamente, nesta província o IFP evoluiu dos 10.86% para 16.34 % e o ANC regrediu cerca de 10%, dos 64.52% para 54.22%. O mais provável é que alguns membros do ANC, a nível de KwaZulu Natal, que não tenham gostado da forma como os dossiers Zuma, Nkandla e Guptas foram tratados, tenham preferido apoiar o IFP.
Lições para Moçambique
Nenhuma democracia terá jamais uma eleição perfeita. O processo eleitoral ora terminado no país vizinho também teve alguns desafios, desde acusações de fraca qualidade da tinta indelével, um elemento importante para a garantia da integridade do processo, o que resultou em tentativas de múltipla votação. Há evidencias de que algumas urnas foram encontradas em lugares indevidos. Algumas assembleias de voto abriram tarde e poucas não abriram, em resultado de bloqueio pelos protestantes. Por causa destes e outros problemas, um número significativo de pequenos partidos juntou a sua voz para exigir a anulação total do escrutínio, enquanto outros pediam a realização de uma auditoria aos resultados. No entanto, o nosso enfoque aqui é para o que correu bem e que pode servir de lição para Moçambique.
A primeira lição a copiar é a estratégia usada pela comissão eleitoral (IEC) para mobilizar os jovens. Apesar da subida dos níveis de abstenção a nível nacional, e embora não haja ainda dados desagregados por idade, existe a percepção de que a estratégia do IEC e dos partidos para a mobilização de eleitores que iriam votar pela primeira vez e os jovens nascidos depois do fim da era do apartheid (os born free) foi um sucesso. A campanha de educação cívica lançada em Janeiro, o X SÊ, foi muito bem elaborada e abrangente. Há muito a aprender deste sucesso, assumindo que os abstencionistas são a camada jovem.
Segundo, uma experiência que mostra resultados positivos na prevenção e gestão de conflitos é a existência do Party Liaison Committe[1] (PLC). O PLC junta todos os partidos políticos a todos os níveis. Se um conflito eclodir a nível do distrito, o PLC reúne-se e em conjunto com o IEC a esse nível delibera e resolve o conflito. O mesmo acontece a nível provincial e nacional. Os encontros regulares para discussão de várias questões e partilha de informação, funcionam como elemento importante na prevenção de conflitos. A CNE tem efeito esforço importante para realizar encontros regulares com as partes interessadas, mas a existência deste órgão seria uma mais valia para a credibilidade dos processos eleitorais. Pode-se perceber que o modelo já existe em Moçambique, uma vez que os órgãos de gestão eleitoral são compostos de membros de partidos, mas a exclusão de partidos extraparlamentares e os mecanismos de funcionamento são diferentes.
Terceiro, a África do Sul registou apenas 235;472 votos nulos, cerca de 1.3% do total dos votantes. Este não é resultado do acaso. O boletim para a eleição da AP tinha 48 partidos, uns com nomes, cores e símbolos próximos dos outros. Para além dos níveis satisfatórios de educação do eleitorado sul-africano, há que reconhecer o papel do IEC e dos partidos políticos na educação do seu eleitorado, um exemplo a seguir.
Quarto, depois de uma campanha eleitoral violenta, com protestos e conflitos intra e inter-partidários, o dia de votação e todo o processo de contagem e transmissão de resultados foram, no geral, calmos e pacíficos. É preciso procurar saber o que ditou esta paz. Não restam dúvidas de que houve uma grande colaboração entre todos os stakeholders, com enfoque para as forças de segurança, que, duma forma imparcial, trabalharam a todos os níveis. A polícia nunca deve, pois, trabalhar em favor de um determinado partido, como tem acontecido em Moçambique.
Quinto, há que reconhecer a celeridade na transmissão dos resultados. As urnas abrem das 7horas da manhã até às 21horas, e a contagem começa imediatamente. Até à meia noite do dia de votação os resultados já começavam a chegar ao centro de operações nacional (ROC) depois de ter passado pelos ROC provinciais. Isto permitiu que os resultados fossem anunciados três dias depois da votação. No modelo moçambicano os resultados estariam ainda a ser agregados a nível do distrito. Em África, é a demora que leva, em grande medida, à eclosão de violência eleitoral, porque os eleitores perdem a confiança no processo. Há que pensarmos numa possível revisão da legislação eleitoral para nos aproximarmos aos patamares do gigante eleitoral que é a África do Sul.
Por último, a África do Sul conduziu o processo eleitoral com uma transparência invejável, com recurso ao uso de Tecnologias de Informação e Comunicação, facilitado pela pujança de infraestruturas físicas, electrónicas e recursos financeiros. Os painéis electrónicos gigantes montados no ROC central faziam a actualização dos resultados a cada 10 minutos, fazendo-se o mesmo na página web do IEC. Moçambique está longe de fazer algo próximo do que vimos na RSA, mas é de encorajar a CNE e o STAE para consolidar a iniciativa iniciada e interrompida no meio nas eleições autárquicas de 2018, para que os eleitores, os partidos concorrentes e todas as pessoas interessadas possam acompanhar os resultados. O benefício disto é que se evitam desconfianças e torna-se o processo mais transparente e credível.
*Pesquisador do Eisa-Moçambique. O artigo foi publicado hoje no boletim semanal daquela organização, versando o processo eleitoral em curso em Moçambique.
A atender pelo testemunho de diferentes apóstolos, quando Jesus visitou o Templo de Jerusalém, cujo pátio estava repleto de comerciantes e cambistas que vendiam animais e cambiavam dinheiro romano por hebraico, num período em que a cidade estava repleta de peregrinos da páscoa, no único episódio considerado de uso de "força bruta" no evangelho de Cristo, Jesus teria usado de um chicote de cordas para expulsar “todos os que ali vendiam e compravam", derrubando as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores de pombas, teria dito: "Está escrito. A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a fazeis covil de salteadores” (Mateus 21:12-13). A versão de João, 2:15-16 inclui o colocar em debandada ovelhas e bois que ali se comercializavam.
Os vendilhões do templo, em narrativas bíblicas, representam o desvirtuar de uma certa escolástica e linha evangelista. Assim como nos questionamos sobre o tipo de "cultura e personalidade" que poderia levar alguém a usar do avião de combate como última arma que inclui como detonador o sacrifício da própria vida, como faziam os Kamikazes japoneses (no contexto da segunda guerra mundial); que tipo de "convicção religiosa" recorre ao corpo e a vida para a “destruição dos infiéis”, como os "homens e mulheres bomba", no contexto das narrativas sobre a "radicalização" Islâmica; também podemos questionar-nos sobre milhares de homens e mulheres que alimentam programas de fé salvacionista por via de “exorcismos" para a “esbelteza”, para a "abundância de cheques”, para o alinhamento dos, digamos, "tomates", ou até para ensaios de ressurreição, acompanhados por farta e "condigna" refeição, para saciar a fome de um ex-morto. Ainda me questiono se o que quereria fazer após uma eventual ressurreição seria degustar dos meus sofridos cozinhados, ler os livros que não tive oportunidade, resolver o dilema entre "Txilar e 2M" ou, simplesmente, proceder ao ritual de reverência ao meu improvável ressuscitador.
Nos dias que correm, conscientes e ricos de direitos e deveres, o único chicote viável para os diferentes tipos de vendilhões nos múltiplos templos e mercados da vida talvez ainda sejam o voto (na política), a educação e as próprias tecnologias de informação e comunicação que, se por um lado nos imbecilizam com "fake-news", "faith" e "fake-faith, também propagam visualizações e explicações sobre os detalhes acionados para a desqualificação de presumíveis milagres. Todavia, independentemente da revelação da “farsa", como bem disse Evans-Pritchard, a crença e explicação sobre o feitiço não se esgota porque um feiticeiro particular possa ter sido desmascarado. Em tal sistema de crenças, o problema é visto como sendo de um feiticeiro específico, que não é tão bom assim, ou até do enfeitiçado, que não sabia que havia contra-feitiços activos, com poderes superiores às do feiticeiro, considerado barato.
A áurea de sacralidade que acompanha vivências da religiosidade e espiritualidade é passível de ser observada por qualquer um que embarque em exercícios de reflexividade e postura relativista, sem que isso signifique qualquer reivindicação de verdades ou conhecimentos supremos. Religião, ciência e política são domínios de significações caracterizados por armaduras de estruturação relativamente diferenciadas que podem caber em noções de visões de mundo, um todo ou parte de sistemas cosmológicos.
O tráfico de ideias, sistemas de crenças e representações remonta a própria história da humanidade e, apesar da afeição ao fetiche das modernidades e coisas ditas pós-modernas, o que anima a experiência humana é essa contínua mobilidade, tensões, conflitos estruturantes e negociações entre domínios de alguma forma contíguos e/ou interdependentes.
A estas distâncias históricas, naturalizamos a coexistência de mesquitas, igrejas, templos, academias, parlamentos ou palhotas de curandeiros, não como meros edifícios mas, como espaços especialmente concebidos para o exercício e para experienciar formas particularmente expectáveis de estar e ser em cada um desses distintos espaços, ainda que elementos de um possam ser arrolados, invocados, instrumentalizados ou simbolizados entre e intra domínios.
Não raras vezes, cientistas ou candidatos a cientistas agradecem aos deuses por terminarem etapas rituais de legitimação como cientistas. Religiosos cultivam o conhecimento científico, o domínio dos cânones religiosos e, por vezes, não se distinguem de actores políticos em actos de pregação e vice-versa. O fascínio da vida emerge dessa complexidade e multiplicidade de domínios e espaços de transito e vivências que emanam das relações sociais.
Na era do "triunfo do mercado" e, mesmo antes disso, qualquer uma das instituições sociais ou patrimônios humanos imateriais são passíveis de virar bens ou produtos disponibilizados nos diversos tipos de mercados, como simples "commodities", à mercê das mais elementares leis de oferta e demanda.
No “mercado científico”, por exemplo, vende-se de tudo um pouco. “Escolas de pensamento”, “linhas editoriais”, “(in)verdades científicas”, tecnologias provadas e improváveis, bugigangas que interpretam teorias e descobertas, a ideia de deleite pelo conhecimento de “torre de marfim”, fórmulas, palavrões e chavões, além do "turismo científico que se materializa entre conferências, seminários locais e globais que assumem contornos de verdadeiras passarelas de desfile de egos e vaidades, associadas a maleáveis noções de razoabilidade, razão, legitimidade e prestígio. Indivíduos fazem carreiras na academia, estabelecem alianças, adotam ou privilegiam “agendas” (ditas de conhecimento) e reproduzem-se, em termos de construção de si (simbólica e materialmente), assim como legam ideias e representações, passíveis, ou não, de serem capitalizadas e ou disputadas no "mercado de conhecimento" ou no que, em função da escola e praxe, configura uma verdadeira “indústria do conhecimento”.
O campo académico ou científico é passível de ser observado com a mesma aproximação ou distanciamento que podemos usar para qualquer outro campo, domínio ou indústria, se usarmos o jargão mercadológico de coisificação “das coisas”.
A política também configura mercado. Por ser demasiado óbvia a forma de estar, ser e transacionar no mercado político, desde a venda de ideias e ideologias no afã de cativar indivíduos ou multidões, propostas de gestão e governação, modelos de sistemas e toda uma série de produtos, subprodutos e aspirações que dispensam exaustão na sua caracterização. A política qualifica uma indústria, em sentido lato, onde até sonhos de “futuro melhor” se vendem ou impingem-se pela força da repetição, encantamento de líderes carismáticos, lealdades históricas que permeiam dimensões existenciais. No limiar, alguns indivíduos não se imaginam em vida plena fora dos laços e vínculos políticos partidários. A expressão, "eu sou político(a), não sei fazer outra coisa", proferida por figura pública em espaço privilegiado de antena nacional de TV é lapidar.
A percepção do domínio da religião e religiosidade como espaço de evocação e experimentação de formas particulares de ascetismo, teologias salvacionistas, evangelhos da prosperidade (e do bem estar), bem como territórios de articulação de significados e sentidos da vida, experimentação e vivência de níveis e dimensões diferenciadas de espiritualidade não impedem a visualização deste campo como espaço competitivo de negociação e mercantilização de narrativas de capital cosmológico, com potencial de contribuir para a inserção e localização de indivíduos e colectividades em sistemas relativamente abrangentes de definição e interpretação do "mundo" e da "realidade".
No brotar de cogumelos de tendas de promoções de milagres, não devemos perder de vista que a epifania da “salvação” manifesta-se de diversas formas e, apesar da dimensão súbita que parece acompanhar esse momento, obedece à roteiros sociais multidimensionais permeados por diversos sentidos, para não dizer razões, simbolismos e efeitos tacitamente apelativos e/ou coercitivos. O "festival de milagres" ostensivamente mediatizados nos últimos tempos não são novos e acompanham experiência humana como parte integrante de sistemas cosmológicos fechados e/ou fluídos. Visões de mundo reservam espaços privilegiados para as manifestações e expressões religiosas, independentemente da ocorrência de outras narrativas sociais, algumas das quais reivindicam, para si, lugar de ascendência (como a política, as religiões seculares ou a ciência).
A, simultaneamente, confortante e desconfortante multiplicação e mediatização de formas pregação, oração, incomoda pela visibilidade, ocupação de espaços de antena nos mídias modernos e pela e pela ousadia na apropriação de roteiros que assumem contornos lúdicos e instituintes de lugares de poder, como o atabalhoar do trânsito com sirenes e "motocadas" que, tanto quanto simbolizam a materialização do poder do Estado e, literalmente, suas "estruturas", concorrendo para a produção e reprodução das desigualdades sociopolíticas, abrem espaço para a cristalização, no imaginário social, de diferentes dimensões de reificação das premissas e versões conjunturais da "teologia da prosperidade". À posteridade, reservo a discussão sobre o “papa-móvel” e o aparato mobilizável nas digressões ou mobilidade papal.
Os edifícios morais, como obra do homem, ainda que exibam bases estruturais relativamente perenes, são feitos de materiais maleáveis, suscetíveis e permeáveis à recriações, mimetismo e decalques de códigos e linguagens conhecidas (e novas), esticando os limites dos parâmetros mais genericamente estruturantes, ao mesmo tempo em que acomodam convicções e oportunismos de indivíduos e grupos.
A batalha pela comunhão de "juízos de valores" (não reduzida à simples homogeneização) em vários domínios, com particular destaque aos campos político e religioso, é longa e passa pela problematização das nossas concepções sobre moralidade, ética, direitos e deveres de indivíduos e colectividades, em contexto em que parece predominar o "estado de natureza".