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segunda-feira, 27 maio 2019 06:49

Pu(t)rificação das Fileiras

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Entre os recursos que Clifford Geertz usou para vincar o interpretativismo como corrente de reflexão e problematização antropológica, tomo de empréstimo a sua rearticulação de perspectivas ética e émica, através das quais aciona a possibilidade de compreensão, usando noções e conceitos próximos da nossa própria experiência e vivência para alinhavar paramentos de leituras e interpretação de noções e conceitos relativamente distantes da nossa experiência. O que vemos, lemos, ouvimos e/ou experienciamos é passível de ser objecto de apreensão e compreensão, com recurso a uma multiplicidade de lentes. O fascinante é que a consciência disso e a vigilância epistemológica que lhe deve acompanhar amplia a possibilidade de redução do enviesamento interpretativo.

 

O folclore da "revolução moçambicana" é povoado por expressões e jargões de significação estruturante e profunda densidade simbólica, reflexo de um alto investimento visando formatar, estabelecer fronteiras, vocalizar e dar sentido ao movimento de libertação, posteriormente autointitulado "guia do povo moçambicano", como plasmado naquele hino: " ...viva viva a Frelimo/ guia do povo moçambicano/ povo heroico de armas em punho/ o colonialismo derrubou...".

 

O celebrado povo de armas em punho, para os desavisados, vide a bandeira nacional que flutua armada e que talvez continue flutuando armada por algum tempo por ser um dos feitos em que muitos se identificam e se sentem representados, especialmente em conjuntura de negações, alheamentos e distanciamentos, alguns dos quais sintetizados em " #hastag's fulano e sicrano, isto e aquilo não me representa", como artifício de reivindicação de outras narrativas.

 

Em tempos de (des)encantamentos, e mesmo fora deles, é pertinente não usar, à esmo e acriticamente, expressões prenhes de significações, a maior parte das quais consideravelmente amargas sobre a história política de Moçambique. Sob pretexto de "purificação de fileira", os guardiões do socialismo aspirado científico embarcaram em excessos de verborragia descaracterizante e uso de violência extrema, traduzida em execuções quase sumárias, vilipêndio de desafetos em praça pública e até terrorismo paralisante em que muitas pessoas confrangiam-se no seu potencial criativo e produtivo, reduzindo-se à "mediocridade de massa", para não parecer afrontar o incisivo e escrutinador olhar dos vigilantes da "pureza ideológica" e de "estirpe", semeados nos bairros, aldeias e locais de trabalho.

 

O excessivo zelo em estabelecer e salvaguardar uma certa "pureza" de "linha ideológica", como parte do processo de definição da "razão da luta", objectivo de construção do quimérico "socialismo científico" e prossecução de "vitórias contra o subdesenvolvimento" foi tão visceralmente pontificado, tendo deixado indeléveis marcas e cicatrizes que caracterizam uma cultura política violenta e fraturante com potencial de ser usado e/ou alimentar os germes das múltiplas vertentes de dissidências e sustentação de argumentos fundacionais que viabilizaram bases ideológicas de contestação aos libertadores (independentemente de ter sido à prior ou posterior, no sempre controverso caso da Renamo, ou mais recentemente no misterioso caso do Podemos).

Pudera! A conversão de movimentos violentamente contestadores, particularmente os que tem experiências de algum tipo de triunfo na sua causa, não tem sido "líquido", e não raras vezes se pensam banhados de áureas de omnipotência acreditando (piamente até) em sinas e capacidades de triunfar sobre qualquer coisa ou agenda. A Frelimo incluso.

 

"Contra revolucionário", "reacionário", "traidor" e, posteriormente, "inimigo do povo", "xiconhoca", "açambarcador" (gosto desta), "candongueiro" e, mais recentemente, "partidariamente indisciplinado", "agente da mão" externa", "corrupto", "moçambicano da gema" em contraposição a um eventualmente "sem gema(!?)", são alguns dos palavrões que estiveram (estão) activamente presentes nas formas de leitura, classificação e interpretação das circunstâncias e eventos que caracterizam a progressão e o estabelecimento do movimento libertador como partido político e ator político central e com privilegiada posição de estruturação das características e rumos que o país assumiu (e assume), consciente e/ou inconscientemente dos virtuosos e/ou deploráveis resultados. Sem descurar que, in extremis, sociedade é um permanente constructo pelo que, nunca se saberá o desfecho de nada senão um perfilar cumulativo de eventos e tempos. Ainda bem que, como humanos desconfortáveis com o 'caos' inventamos marcos históricos e temporais como artifícios e recursos de apreensão e domesticação da existência.

 

O mais recorrente e significativo dos chavões é o que alude à "purificação das fileiras", pelo carácter maniqueísta e diádico (que reduz a estruturação da realidade entre pureza e perigo, ou bem e mal) ao mesmo tempo que imprime um sentido dinâmico, associado a ideia de vigilância contínua que, evidentemente denota um permanente alerta no interesse de salvaguarda do que se supõe ser fileiras impolutas, não obstante a transfiguração conjuntural do que isso signifique.

 

Em tempos, "fileiras puras" incluíam noções de incorrutibilidade, lealdades a presumíveis "interesses do povo", "primeiros nos sacrifícios, últimos nos benefícios" e outros, ainda que nunca tenham sido cuidadosamente esmiuçados. Premissas teleológicas, encorpadas em sentidos messiânicos, aparentemente autoexplicativos, funcionam assim mesmo. Aconchegam-se na força da repetição e na praxe que, sistematicamente esconjura o que não lhe parece abonatório ou conveniente sem precisar expor-se a qualquer desafio de razoabilidade e/ou enquadramento moral ou ético, fora dos limites da grelha totalitária que possibilita que se firme como expressão de consequências fenomenológicas.

 

Quando Mary Douglas dissertou sobre pureza e perigo, mais do que enunciar a coexistência cosmologicamente significativa de teses e antíteses, prenunciou as linearidades dualistas e multifacetadas da vida em sociedade, eventualmente aprisionados em quadros de maniqueísmos funcionalistas e de instrumentalização de noções e conceitos socialmente estruturantes.

 

Para além desse olhar cético e pouco complacente com o qual entretenho-vos, inclino-me a pensar que o "perigo" é tão maestro da orquestra da vida como a própria "pureza" e, nessas circunstâncias, importa sempre questionar e aferir a significação conjuntural dos jargões e palavrões da moda, levianamente adotados e/ou readaptados como chaves-mestras para abrir portões de duvidosos universos de imaginação sociopolítica e até totalitária.

 

Alinhamento, coesão e unidade são parte de um repertório político discursivo relativamente familiar no contexto moçambicano, especialmente quando a significação que pretendem emprestar alude à importância de convergência de ditames e prioridades político ideológico; agregação de esforços na prossecução de interesses político-partidários e promoção da integridade territorial em contexto de diversidade socio cultural.

 

Embora os jargões tenham sido cunhados, aplicados em outros contextos e circunstâncias, na conjuntura actual, quando tais jargões são forçados de empréstimo não transportam somente as eventuais virtudes de significação ou desejadas purezas mas também conteúdos subliminares e aparentes impurezas que os torna termos e expressões que pretendem representar e significar coisas que nos dizem respeito como sociedade.

 

Na domesticação das teses e antíteses que palavras politizadas veiculam, conjunturalmente falando, não se pode aludir ao alinhamento das fileiras sem perguntar-nos se estão a falar dos "nossos" ou daqueles que "não são nossos"; dos de "dentro ou de fora", não se pode falar de unidade sem se questionar se a discussão desemboca em criticismos de "alas", "regionalismos" ou "tribalismos". Dificilmente se pode entender coesão fora das possibilidades de fissuras e "caça às bruxas" potenciadas pelo extrapolar das capacidades de gestão partidarizada do Estado e do minguar de subterfúgios materiais, lúdicos e simbólicos que concorrem para a manutenção de lealdades grupais.

 

Não obstante as infindáveis possibilidades de significações que jargões politicamente instrumentalizados apesentam, o mote deste texto está nas diferentes formas de apropriação e instrumentalização político pragmática de termos e conceitos, aparentemente óbvios e inocentes, mas que prenunciam a introdução de zarabatanas novas que escamoteiam e, simultaneamente, evidenciam a persistência de tendências e posturas governativas de cunho totalitarista.

 

O esmero em demostrar a importância da "compactação" de fileiras, mais do que sinal de eventual bloqueio ou deficit lexiológico de ocasião da parte do emitente (quem não os tem!?), pode ser lido como um alarmante sinal de reafirmação da negação da diferenciação, numa conjuntura em que os sentidos identitários andam minados pelos escândalos financeiros de proporções mundiais e continuadas revelações de nichos de mal versasão da coisa pública.

 

Semanticamente falando, "compactar fileiras" significa passar um rolo compressor capaz de amalgamar as diferenças de ideias, perspectivas e abordagens dos dilemas e desafios que caracterizam o país, nivelando, literalmente, por baixo os diferentes actores (políticos, intelectuais, jornalistas, fazedores de opinião e outros) e, em última instância, a sociedade como um todo.

 

Antes de amarar e apertar sacos de laranjas ou batatas em que algumas estão podres, importa separar o que se salva e, das putrefactas, aproveitar as sementes com potencial germinativo e voltar a plantar. A revitalização política, assim como a regenerescência orgânica é um processo de selecção e não uma mera compactação constritiva que impede o fluxo construtivo e inovador da diversidade e do direito à diferença e divergência.

 

A "compactação das fileiras", enquanto sintoma da ebulição de um partido particular, mal nos diria respeito, não fosse pelo facto de tal partido também ser o que monopoliza o poder de Estado. Com palavras aparentemente inocentes e gestos fugazes estabelecem-se os déspotas e não tarda que seguidistas inebriados adotem o jargão e praxe intrínseca, numa cultura política que privilegia a premeia grandiloquentes gestos de lealdades incondicionais.

 

Há bem pouco tempo, em nome da "pureza ideológica" e de similares barbaridades, à esta distância histórica reavaliados sem nexo, ostracizamo-nos, aprisionamos uns aos outros em "campos de reeducação", combatemos nossas próprias culturas e línguas, apregoamos a forja do "homem novo", essa descaracterizada e irreconhecível figura que se esmera em tomar o lugar do tateante e quase sempre desengonçado "criador".

 

Ode à igualdade e diversidade e que não voltemos a sucumbir à homogeneização que destitui indivíduos e grupos das liberdades partilháveis, que nos são ou deveriam ser, igualmente caras.

 


Não à "compactação de fileiras" que prenunciam o recrudescer de apetites totalitaristas, onde já estivemos, e de cujos vestígios e implicações mal conseguimos desenvincilhar-nos.

Sir Motors

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