“Deliberar pela prorrogação do prazo do recenseamento eleitoral e ordenar os OGE para melhorarem a sua capacidade de resposta na manutenção dos materiais de registo eleitoral inoperacionais, como forma de se permitir que milhares de eleitores com capacidade eleitoral activa, que ainda estão fora do sistema, possam ser inscritos, o que é condição essencial para que eles possam exercer seu fundamental direito de eleger e de ser eleito. Gostaríamos de sublinhar que uma eventual prorrogação do prazo, sem que os problemas há muito identificados sejam sanados, seria igual a mais um acto de manipulação do processo, dado o efeito inútil que terá”
Três semanas antes de seu epílogo, numa entrevista concedida ao Notícias, o presidente da Comissão Nacional de Eleições (CNE), Sheikh Abdul Carimo, “descartou a hipótese de prorrogar o recenseamento eleitoral de 2019”, apesar de reconhecer os inúmeros problemas de que enferma o processo. O pronunciamento dos Órgãos de Gestão Eleitoral (OGE) sobre a prorrogação ou não do prazo do fim do recenseamento eleitoral não é novo em tempo de eleições.
Bem vistas as coisas, desde 2013, os OGE, “mesmo estando longe de alcançar as metas previstas”, têm sempre optado por excluir a possibilidade de prorrogar o prazo do recenseamento eleitoral, ora alegando “motivos financeiros”, ora por não “terem recebido nenhum pedido oficial dos partidos políticos”. Por exemplo, durante o registo eleitoral de 2014, mesmo depois das autoridades eleitorais terem recusado prorrogar o prazo, razões de natureza política obrigaram os OGE a reverterem a sua posição, de modo a permitir que Afonso Dhalkama promovesse a sua inscrição, condição sine quo non para eleger ou ser eleito. De facto, o Conselho de Ministros, na sua 13ª Sessão, decidiu prorrogar o prazo do recenseamento eleitoral por mais 10 dias, de modo a viabilizar a participação de Afonso Dhalakama nas eleições Presidenciais de 2014.
Com base nos relatórios diários de monitoria ao recenseamento eleitoral realizado por várias organizações da sociedade civil (OSC), informação recolhida na imprensa escrita e leitura de literatura académica, argumentamos que o Governo deve prorrogar o prazo do recenseamento eleitoral, de modo a permitir a inscrição de milhares de eleitores com capacidade eleitoral activa, ainda fora do sistema (lista eleitoral) devido a deficiências logísticas, materiais, financeiras e organizacionais dos OGE, e assim lhes permitir o exercício do fundamental direito de escolha de seus representantes.
De acordo com os OGE, duas razões justificam a não prorrogação do recenseamento eleitoral de 2019. A primeira é de natureza técnica e a segunda de carácter temporal. Sobre estas duas razões, há que ter presente o seguinte:
(i) Relativamente aos aspectos de natureza técnica, para as autoridades eleitorais se os partidos políticos, organizações da sociedade civil e media se engajarem na promoção de campanhas de educação cívica, a afluência de eleitores vai aumentar e, dessa forma, se atingirem as metas previstas;
(ii) A razão de natureza temporal está ligada ao facto de o tempo que falta (aproximadamente uma semana e meia, a partir desta segunda-feira, 20 de Maio) para o término do recenseamento ser suficiente para atingir as metas, ainda mais porque, nas últimas semanas, terem-se registado melhorias em termos de aumento de número de cidadãos eleitores registados, conforme as estatísticas oficiais abaixo:
Semanas |
Numero de eleitores recenseados |
1ª semana |
941,601 |
2ª semana |
764,761 |
3ª semana |
995,003 |
4ª semana |
995,155 |
Total |
3. 696, 520 |
Como se pode ver, se o número de cidadãos eleitores recenseados (cerca de um milhão por semana ) se mantiver, até ao último dia do recenseamento eleitoral cerca de 84% das cidadãos serão inscritos nas listas eleitorais. Em termos gerais, esta percentagem vai-se situar 2% acima da população eleitoral prevista recenseada em 2014.
É interessante notar como os OGE, animados por estas estatísticas, secundarizam os inúmeros problemas logísticos e materiais de que enferma o registo eleitoral desde o seu início e que cuja persistência impede a inscrição nas listas eleitorais de milhares de eleitores.
Sem pretensão de se ser exaustivo, apresentamos, abaixo, o resumo dos principais problemas registados em quase todos os círculos eleitorais:
a) Cabo Delgado: “Em Macomia, há brigadas não funcionais devido à avaria dos mobiles, das impressoras e falta de energia eléctrica (...) Em Namuno e Montepuez muitos cidadãos não estão a receber cartões por falta de tinteiro, falta de boletins e falha das impressoras, (...) Em Pemba Metuge, elementos das brigadas não aceitam registar eleitores por alegadamente estarem com fome por não terem ainda recebido seus subsídios”.
b) Niassa: “Em Lichinga, no bairro popular, faltam boletins com cartão desde o dia 13 de Maio (...) Em Muembe, a maioria dos postos enfrenta o desafio da falta de tinta para as impressoras, o que faz com que muitos eleitores não recebam os seus cartões de eleitor”.
c) Nampula: “Desespero de eleitores na vila sede de Nacaroa, onde funciona apenas um posto com filas muito longas. Cada dia que passa, a procura é maior e jovens, funcionários públicos e comerciantes ainda não recensearam. Tudo indica que há muita gente que não será abrangida pelo recenseamento até ao dia 30 de Maio” (...) Em Monapo e Moma, postos ficaram muitos dias sem recensear devido à avaria do equipamento e por falta de tonner e de painés solares (....) Em Lalaua e Meconta, a falta de boletins e avarias dos geradores impediu, durante uma semana e meia, o registo de eleitores (...). Em Ribaue, algumas brigadas ficaram duas semanas sem funcionar devido à falta de combustível e insuficiência de material de recenseamento, (...) Em Mogovolas, verificam-se constantes avarias das máquinas fotográficas e falta de inversores para os painéis solares”.
d) Zambézia: “Em alguns postos de Gurué e Quelimane, o recenseamento apenas decorreu nos dias 15 a 21 de Abril. De lá para cá nunca mais registaram eleitores. As impressoras não funcionam, não há tinta para impressão dos cartões de eleitores (...) em Quelimane, eleitores mandaram os brigadistas remover o dístico que indica a existência de uma brigada (...) Em Gurué, eleitores estão há três semanas sem conseguir recensear porque a brigada está fechada; (...) Em Mocuba, existem postos de recenseamento eleitoral que não abrem devido à avaria de computadores ... potenciais eleitores não estão a conseguir se recensear devido a problemas logísticos, quais sejam falta de fonte de energia eléctrica e defeitos nos equipamentos”.
e) Tete: “Em Changara e Chiúta, brigadas de registo eleitoral são muito lentas desde o início do registo eleitoral. Eleitores chegam a permanecer entre 6/7 horas de tempo para promover sua inscrição (...) outros eleitores abandonam as filas sem se recensear (...) Em Chiúta, cerca de 14 localidades que devem beneficiar de brigadas móveis ainda não foram abrangidas (...) em Angónia, as brigadas móveis percorrem mais de 10 quilómetros para registar eleitores. A lei prevê um raio máximo de 5 quilómetros e as máquinas estão inoperacionais devido à falta de combustíveis nos geradores e painéis solares que não capacidade para alimentar as baterias e (....) na cidade de Tete, cerca de 500 famílias vítimas das cheias e realojadas em Matundo, Chimbonde, ainda não foram recenseadas, (...) Em Macanga, existem também brigadas que funcionaram apenas nos dias 15, 15 e 17 nunca mais funcionaram devido a avarias constantes de computadores por incompatibilidade com outros componentes do kit”.
f) Inhambane: “em Homoíne, as brigadas ficaram paralisadas durante 5 dias por falta de carga nos mobile (...) em Maxixe, existem postos que só iniciaram suas actividades no dia 5 de Maio (...) em Jangamo e Panda, existem postos que iniciaram suas actividades no dia 10 de Maio devido à avaria dos mobiles (...) Em Panda, mesmo depois da retomada da actividade, nalguns postos os potenciais eleitores não receberam seus cartões de eleitor porque as impressoras estavam inoperacionais por falta de tinta”.
g) Gaza: “ No distrito de Chigubo, os kits não possuem boletins suficientes e os que existem são de difícil manuseamento – no acto da impressão, o plástico atrás do boletim derrete, encravando a impressora (...) em Mabalane e Bilene, os postos ficaram inoperacionais devido à falta de corrente eléctrica e painéis solares obsoletos incapazes de fornecer energia eléctrica para o arranque dos mobiles (...) Em Chonguene, Chibuto e Limpopo, as impressoras não estão a connectar com os computadores”.
h) Maputo-província: “Em Matutuíne, alguns postos só abriram 12 dias depois do início do registo eleitoral (...) Na Manhiça e Marracuene, há postos que não funcionaram durante pelo menos três dias devido à inoperacionalidade dos painéis solares e computadores sem energia eléctrica para operar (...) Em Moamba, em alguns postos, devido à falha das impressoras e falta de tinta, alguns eleitores não receberam seus cartões de eleitores e em outros eleitores eram registados em sebentas (...) Em Matutuíne, há falta de corrente eléctrica e os painéis solares não produzem corrente eléctrica para alimentar os mobiles”
Como se pode ver a partir das constatações das equipas de monitoria presentes nos 161 distritos do país, existem ainda inúmeros problemas de inoperacionalidade dos materiais de registo eleitoral, que resultaram não só na lentidão no registo de eleitores, mas também no fecho de muitas brigadas de recenseamento eleitoral, o que impossibilita algumas brigadas móveis de cobrir certas áreas. Estes problemas se gravam devido à da fraca capacidade de resposta das estruturas eleitorais na reparação/reposição dos equipamentos.
Portanto, algumas perguntas merecem ser colocadas em relação aos dados apresentados pelos OGE: Como é que, apesar de relatos de organizações da sociedade civil e de alguns partidos políticos da oposição denunciando anomalias técnicas e graves problemas de inoperacionalidade das brigadas de registo eleitoral, constrangimentos logísticos e financeiros em quase todos os círculos eleitorais do país; efeitos das inundações e dos ciclones Idai e Keneth que impediram o registo de muitos eleitores nas últimas semanas, as provinciais de Cabo Delgado (103%); Manica (97%), Zambézia (90%) tenham conseguido atingir estes resultados? Não estaremos diante de um processo de “manipulação estatística por parte das OGE eleitorais para iludir a inexistente opinião pública e iludir o governo para não prorrogar oprazo do registo eleitoral?
Seja como for, é necessário aqui recordar que o recenseamento eleitoral é essencial para a planificação das eleições, e, considerada a quantidade de problemas que o processo está a registar – e exemplificativamente mencionados acima –, somos de opinião de que o Governo deveria:
(a) Deliberar pela prorrogação do prazo do recenseamento eleitoral e ordenar os OGE para melhorarem a sua capacidade de resposta na manutenção dos materiais de registo eleitoral inoperacionais, como forma de se permitir que milhares de eleitores com capacidade eleitoral activa, que ainda estão fora do sistema, possam ser inscritos, o que é condição essencial para que eles possam exercer seu fundamental direito de eleger e de ser eleito. Gostaríamos de sublinhar que uma eventual prorrogação do prazo, sem que os problemas há muito identificados sejam sanados, seria igual a mais um acto de manipulação do processo, dado o efeito inútil que terá;
(b) Solicitar uma auditoria independente ao recenseamento eleitoral, de modo a se proceder não só a uma análise qualitativa e quantitativa dos dados do registo eleitoral, mas também para se reforçar a confiança dos actores do processo eleitoral e se dissipar dúvidas que pairam na sociedade em relação à credibilidade deste processo eleitoral.
Como se sabe, os processos eleitorais em Moçambique são marcados por desconfiança entre os principais actores políticos, nomeadamente a Renamo, o maior partido da oposição, e a Frelimo, partido governamental. Uma eventual consideração do que aqui sugerimos ampliaria, por um lado, a probabilidade de muitos cidadãos não serem prejudicados no usufruto do fundamental direito à participação política, como, por outro lado, mitigaria os referidos problemas de desconfiança, que, como se verificou depois das eleições gerais de 2009 e 2014, podem constituir fonte de confrontações político-militares.
Num quadro em que a mera percepção de ausência de transparência e integridade no processo eleitoral pode resvalar para descrédito de todo o processo e posterior défice de legitimidade dos entes eleitos e ocorrência de eventuais actos de protesto com recurso à força (e, por isso, ilegais), uma auditoria independente, feita por uma entidade com créditos firmados na matéria e contratada por via de um concurso público transparente, auspiciado por um júri independente (constituído, por exemplo, por juízes, representantes da Ordem dos Auditores, académicos, etc.), mitigaria, à partida, um eventual descrédito de todo um processo.
NE:Texto publicado na edição de hoje do Boletim Eleitoral semanal do EISA. As notas de rodapé foram excluídas. Rosário é um académico que se dedica em questões eleitorais, entre outras.