É normal pensar que já que uma vez que a ciência produz conhecimento todo o ramo da ciência necessariamente se define pela coisa sobre a qual ele produz conhecimento. Nessa ordem de ideias, a sociologia seria a produção de conhecimento sobre a sociedade. É assim que os sociólogos com falta de tempo – ou imaginação – para explicarem o que fazem descrevem a sua disciplina para os leigos. Mas não é bem assim. Para além de que essa definição seria circular – a sociologia é o estudo das coisas da sociologia... – ela retira à disciplina o mérito de ter tornado visível, através de palavras, algo imanente e que por isso resiste à visibilização. Sociedade não é uma coisa que se pegue com as mãos ou que se sinta duma ou doutra forma. Sociedade é um exercício de imaginação ao qual nos entregamos todos os dias sem disso nos darmos conta, mas sem o qual a nossa existência seria ontologicamente difícil. É uma ficção real.
Quando instituições como o mercado, a política, o judiciário, religião, etc. funcionam de forma estável – como é o caso em países que podemos chamar de “desenvolvidos” – a realidade dessa ficção torna-se mais forte e, curiosamente, permite que as pessoas convivam melhor com essa coisa imanente que se furta à visibilização. Onde as coisas não são assim, a realidade da ficção é mais ténue e, curiosamente, leva as pessoas a investirem mais numa ideia de sociedade concreta que não é o caso. Em Moz, por exemplo, o pressuposto de que a sociedade é algo bem concreto é forte e tem nos privado do recurso à imaginação tão necessária à recuperação da certeza ontológica que precisamos de ter para agirmos com maior segurança dando as coisas por adquirido. Em contextos como os nossos – peço desculpas pela imodéstia – precisamos da sociologia. Precisamos dela não para definir a sociedade, mas sim para a produzir. Sim, a sociologia é que “produz” a sociedade, ela não a estuda.
Há um homem que “produziu” a sociedade moçambicana. Carlos Serra, o primeiro e, se não estiver mal informado, único catedrático de sociologia no País. Devemos a ele a sociedade moçambicana. Ele produziu a sociedade na sua “oficina de sociologia” no Centro de Estudos Africanos como parte duma agenda intelectual alicerçada na descrição minuciosa e aturada daquilo que ele chamou de “crenças anómicas de massas”. Não é possível entender o País que somos sem prestar atenção à maneira criativa como nos apoiamos em crenças, não importa que crença, para constituirmos relações entre nós, incluindo e excluíndo. Parece um espectáculo improvisado em que o director artístico apenas diz algo como “ok, vocês foram enganados por um indivíduo mau, reajam” e logo aí cada um de nós se posiciona, assume o seu papel ao ponto de com ele se confundir e em tudo o que faz ou diz vai construíndo uma teia de relações que se concretiza na reaçcão dos outros. A verdade, a ética ou a moral não são os alicerces dessa teia, pelo menos não no sentido em que eles seriam anteriores à acção, mas sim coisas negociadas no momento pelos intervenientes.
Carlos Serra começou por articular isto em torno da figura de Samora Machel na base do fenómeno ao qual ele deu o nome de “Samorismo”. Prosseguiu com as igrejas pentecostais, os linchamentos, a cólera e os raptos de menores. O pressuposto teórico desta etnografia do quotidiano não foi apenas o prazer de descrever as coisas, mas sim de encontrar um ponto de articulação daquilo que faz de nós moçambicanos e, portanto, diferentes de quem não é. É uma agenda intelectual sem igual em muitos outros países, o que faz com que o tipo de sociologia que Carlos Serra faz seja muito mais do que a simples reprodução e imitação do que os outros lá nas Europas fazem para ser, na verdade, um momento fundador. Há algo de “pós-colonial” nisso, um pós-colonialismo com discernimento e saudável, pois ele não proclama apenas servindo-se dos mesmos recursos retóricos usados pelo “colonial”, no processo homogenizando a Europa e “sua” epistemologia. Ele faz uma sociologia de raiz. Temos sorte, nós os moçambicanos, sobretudo nós os sociólogos, porque temos a oportunidade de nos referirmos a uma sociologia concreta, de nos inspirarmos nela para continuarmos a “produzir” Moçambique. O nome da sociologia moçambicana é Carlos Serra, mas quem a quer conhecer de verdade tem que ler para além das entrelinhas e ter o arrojo de descer às notas de rodapé para onde ele sempre convida os seus leitores a apreciarem como ele raciocina.
Como sociólogo devo muito a ele e como sociólogo moçambicano muito mais ainda. Regressei ao convívio intelectual da sociedade que a sua sociologia produziu pelas mãos de Carlos Serra que nos finais dos anos noventa me convidou a participar num dos ciclos de conferências que ele organizava e que tanto estímulo deu à reflexão académica em ciências sociais na altura. Conhecemo-nos por email debatendo os seus escritos. A sua humildade intelectual formulou o convinte que, mais tarde, me abriu as portas da academia moçambicana – também com o amparo amigo de Severino Ngoenha – e me deu a oportunidade de também contribuir para a formação dum pensamento sociológico moçambicano. O nosso contacto foi forte e intenso durante vários anos de carinho e respeito, mas foi também vítima das redes sociais, afastamo-nos um do outro e – devo confessar a minha vergonha – eu nunca tive a coragem de esclarecer os mal-entendimentos e dizer a ele que há um certo sentido em que a sua agenda intelectual tem sido uma forte fonte de inspiração para mim. Esta é uma maneira de fazer isso.
Quando penso nos desafios da sociologia em Moçambique não o consigo fazer sem articular com a urgência de continuar a pensar o fenómeno das “crenças anómicas de massas”, pois é nele onde eu julgo se esconder o logaritmo que nos permite entender melhor a nossa sociedade. Cabo Delgado, paz definitiva, dívidas ocultas, profetas, “mazameras”, “meios extra-legais”, “trabalho e golfe”, “100 dias”, etc. eu duvido que um sociólogo de verdade possa entender estas coisas todas sem começar primeiro por entender tudo o que há por entender no objecto conceitual que Carlos Serra, bom sociólogo que é, inventou. Moçambique é isso aí e, por isso, espero que os sociólogos moçambicanos, sobretudo os mais jovens, se entreguem à grande tarefa de se juntarem a ele e continuar a construir este edifício cujos alicerces ele colocou.
Nem todos os nossos heróis vão àquela cripta fria quando chega o dia. Alguns, se calhar os mais importantes porque alimentam a nossa mente, estão escondidos em notas de rodapé, algures no Centro de Estudos Africanos ou num apartamento qualquer por aí. Precisam de saber em vida que são herois".
*Este foi escrito e publicado a 20 de Fevereiro, um mês antes da morte de Carlos Serra. Uma derradeira homenagem em vida.
"Moçambique é um Estado falido. O Ocidente não está ajudando" é a manchete de um artigo da revista Foreign Policy (7 de Março), de Dennis Jett, embaixador dos EUA em Moçambique entre 1993 e 1996. No artigo, ele observa que "a imprensa é amplamente administrada pelo governo ou completamente intimidada". Ele mostrou o seu apoio à imprensa livre em Dezembro de 1995, quando proibiu a embaixada dos EUA e a equipa da USAID de conversar com o editor do Boletim de Processo Político de Moçambique, Joseph Hanlon, alegando que eu era "totalmente tendencioso". https://www.africa.upenn.edu/Urgent_Action/apic_mz2496.html
A proibição foi criticada por várias organizações internacionais de liberdade de imprensa. Jett e eu temos um longo caminho juntos. Uma coisa que o deixou irritado foi a menção no Boletim (11 de agosto de 1994) de que ele usou seu discurso no dia da Independência dos EUA (4 de julho de 1994) para pedir aos moçambicanos que votassem na oposição contra a Frelimo nas primeiras eleições multipartidárias em outubro.
Jett já tinha actuado como Encarregado de Negócios, no Malawi, 1986-88, num período importante em que o Malawi e a África do Sul estavam apoiando abertamente a Renamo no norte de Moçambique, com a aprovação secreta dos EUA. Mas o verdadeiro problema aconteceu entre 1993-96, quando Jett já era Embaixador em Maputo. Foi quando a comunidade internacional começou plantar as sementes da corrupção, e elas se espalhavam pelo dinheiro, tentando converter socialistas em capitalistas. Eu conto essa história com mais detalhes num artigo de 2017 (http://bit.ly/3WQ-hanlon).
Jett ignorou seu próprio papel na criação de um Estado falhado
Jett também foi embaixador quando os EUA foram acusados de ameaçar cortar a ajuda ao país se Moçambique não assinasse um contrato desfavorável com a empresa americana Enron para a exploração de gás em Pande, Inhambane. O ministro dos Recuros Minerais, John Kachamila, acusou a embaixada dos EUA de ter feito uma "campanha de difamação", dizendo à imprensa que ele não assinaria o contrato porque queria uma grande recompensa (suborno). Jett disse ao Houston Chronicle: '' O papel do comércio internacional para os EUA é tremendamente importante. Vemos outros governos ajudando seus negócios. E não vamos esperar, sem ajudar os negócios americanos. "(Boletim 16 de dezembro de 1995)
As edições do Boletim de 1994-5 estão em http://www.open.ac.uk/technology/mozambique/political-process-1993-2008
"Temos feito progressos significativos nos últimos três anos na nossa luta contra a corrupção, apesar do cepticismo de pessoas com registos questionáveis", disse o presidente na quinta-feira da semana passada. "Reforçamos a estrutura legal para combater a corrupção, com a ajuda do parlamento, aprovando a Lei de Proteção a Testemunhas, o Gabinete da Lei de Promotoria Especial, a Lei do Direito à Informação e uma Lei das Empresas que fornece um quadro para um registo de propriedade benéfico".
"O governo aumentou as alocações orçamentais para todas as instituições de prestação de contas do Estado", incluindo o Parlamento, o judiciário, o Auditor Geral e o Gabinete do Promotor Especial, disse o presidente ao parlamento.
"Cerca de quarenta ou mais personalidades de alto nível estão atualmente perante os tribunais sob várias acusações de corrupção e outras estão em processo. Gostaria de repetir que, se forem apresentadas evidências de corrupção, ninguém será poupado, independentemente da posição ou filiação política. Ninguém está acima da lei. Esse é o verdadeiro significado de igualdade perante a lei ", concluiu o Presidente no seu discurso ao Parlamento na quinta-feira, 20 de Fevereiro.
Infelizmente, não foi o Presidente moçambicano falando ao parlamento moçambicano. Em vez disso, foi o Presidente Akufo-Addo, dando o seu discurso sobre o Estado da Nação ao parlamento do Gana. O discurso foi transmitido ao vivo pela rádio e milhões o ouviram dizer "ninguém está acima da lei".
Seria maravilhoso se o Presidente de Moçambique pudesse fazer tal discurso ao parlamento. E seria emocionante se o parlamento moçambicano, em apenas dois anos, pudesse aprovar quatro leis anticorrupção importantes. Quando é que ouviremos o presidente moçambicano a falar as palavras de outro presidente africano: "se forem apresentadas evidências de corrupção, ninguém será poupado".
Joseph Hanlon em Accra, Gana
A pequena vila de Mueda na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, símbolo de resistência dos moçambicanos contra o colonialismo português na década de 60 do seculo XX, não faz transparecer a tensão política militar que ali se vive nesta segunda década do seculo XXI, tudo por conta da acalmia que se vive durante o dia. Mas, mal o sol se põe procede-se a uma retirada estratégica dos seus habitantes revelando assim o recolher obrigatório tácito que reina na pequena urbe.
A paródia que me ofereço quando estou fora de casa, livre da reclusão doméstica e controlada pela minha parceira fica comprometida por conta deste mal-estar social.
Mas mesmo assim arriscamos a ficar fora da estalagem depois das 19h00, habitamos um bar de terceira categoria, consumindo o que nos aprazia vigiados pela secreta a paisana e mal disfarçada.
Eramos três, eu, António Nangole e Paulino Atale provenientes de Maputo, estávamos em Mueda por conta de uma pesquisa sobre a dança mais representativa dos macondes, o Mapiko. O único natural de Cabo Delgado era António.
Nas vésperas da partida de regresso à Pemba, António lembram-nos que gostaria de passar da sua terra natal para visitar a sua família. Como o individuo estava levemente embriagado, não levei em consideração a sua solicitação.
Como precisávamos descansar para viajar na manhã seguinte, decidimos retirar-nos para a estalagem onde estávamos hospedados. Ainda tivemos um papo animado no quarto de António por conta da embriagues para depois cada um rumar para o seu.
Partimos pela manhã, eram já 9h00 de uma quinta-feira em que o sol já irradiava intenso, fiquei com a vaga sensação que o sol nasce primeiro nesta parcela do país.
A caminhada pelo asfalto conferido pelo “suv” ajudava-nos a subtrair a distância para o nosso destino a cidade de Pemba.
Enquanto descendíamos do planalto, eu segurando firme o volante e com os olhos fitos na estrada e os meus colegas desfrutavam da bela paisagem que se oferecia.
A manifesta volição de António ficou expressa quando afirmou convicto:
“Em Namaua tem um desvio”
Eu que havia pensado que ele se esquecera por conta do estado etílico que se encontrava quando apresentou o seu pedido, fiquei meio decepcionado com o juízo que fizera. Tive que fazer inversão de marcha pois já tínhamos passado do desvio que nos levaria para terra natal do meu colega.
Quando finalmente alcançamos Namaua, embocamos em direcção ao posto administrativo de Imbuho. Depois de algumas curvas e contracurvas finalmente chegamos ao destino almejado.
“Entra daqui” – conferiu António depois de uma pesquisa ocular demorada, já não se lembrava do caminho.
Encaminhei a viatura para o caminho indicado, descemos uma pequena ladeira e paramos defronte de uma das três casas contíguas de adobe e cobertas com chapas de zinco.
António apeou-se, gingou estiloso pelo chão da terra natal, descobriu seus parentes que demoraram a reconhecê-lo por conta da surpresa.
Quando o reconhecimento facial efectuado por uma mulher terminou, esta correu de encontro a António e gritou:
“ Mano, você aqui!” – afirmou oferecendo um largo sorriso ao mesmo tempo que o abraçava.
Fomos então apresentados, ganhamos uns beijinhos carinhosos. Logo depois ela chamou por alguém que apareceu instantes depois. Era uma anciã, caminhava devagar, focou os estranhos que estavam no seu quintal sem nos reconhecer.
“Mama!” – gritou eufórico António.
Só quando a velhota se aproximou o suficiente de seu parente dilatou as pupilas ai o reconheceu. Envolvam-se num fraterno amplexo que me deixou emocionado. Não tardou para sermos apresentados.
Quando saudei-a, ela ofereceu-me um sorriso que enaltecia o seu rosto tatuado e falou em shimakonde algo que não percebi patavina, mas alegrei-me.
Enquanto conversavam alegremente em shimakonde, pondo as notícias em dia, eu e Paulino que não entendíamos nada do que falavam fomos trocando impressões, eu alertando que não podíamos demorar senão teria que conduzir durante a noite e isso não seria agradável.
Uma pequena assembleia familiar teve início, ofereceram-nos cadeiras, aguardamos, eu sempre lembrando que não nos devíamos demorar.
Um cacarejo efectuado fez-se ouvir e galinha derrapou perto de nós na fuga que empreendia dos seus verdugos.
Logo depois António aproximou-se e segredo-nos que a sua família convidava-nos a almoçar. Franzi a testa sem conseguir disfarçar o meu mal-estar, mas logo me refiz e falei algo para amortecer o meu descontentamento.
Capturei-a pelo visor da câmara, ela a anciã, estava sentada no chão e procedia ao preparo do madumbe, quando ela de relance me espiou, o seu olhar sossegava uma paz contaminante e cada vez que cruzávamos os olhares ela voltava a oferecer-me o seu sorriso, premi o gatilho da canon e ela ficou ali registada na memória do dispositivo. Mas o prévio dessa imagem já havia sido processado pelos meus neurónios e arquivada algures no cérebro.
Quando tentei escamotear a segunda fotografia, ela detectou e libertou um queixume na sua língua materna, desta vez, o meu colega de viajem natural de Imbuho, traduziu-me “ela pede para esperar”
Então ergueu-se e caminhou sem presa e entrou para uma palhota perto dali, não percebi porque ela me pedia para esperar, talvez não tivesse gostado que a fotografasse, magiquei e logo tratei de partir para explorar o local.
Decidi observar os lugares que o vilarejo proporcionava, desde a majestosa igreja ao monumento a uma santa até a pequena praça de heróis, ia vagando na minha pequena incursão.
Um pequeno alarido vinda do local onde havia estado fez com que interrompesse a investida turística e regressasse apressadamente.
Uma pequena turba olhava maravilhado para a eminente figura que desfilava sumptuosa na passarela de areia sem levantar poeira, a vestimenta de cor branca contrastava com o laço vermelho que lhe coroava a cabeça, todos os espectadores miravam atónitos. Ela dona de si alegrava-se com a admiração dos espectadores, largou um sorriso incrementando as rugas do seu rosto e fazendo sobressair a tatuagem que tinha no rosto.
Quando reconheci a minha estrela fiquei estupefacto e corri para o carro em busca da câmara fotográfica, posicionei-me defronte dela pronto para ganhar seu retrato.
A anciã veio calmamente, chegou perto, segurou-me a mão direita e puxou-me para lhe ladear, e com gestos indicou que o meu colega Paulino nos fotografasse.
Os actos I e II protagonizados pela velhota deixaram-me perplexo e ainda hoje, quase um ano depois, o enigma prevalece.
Depois sentados na esteira, deleitamos dos manjares, madumbe, água e sal de galinha e xima.
Seguidamente, todos animados despedimo-nos; uns em português, outros em shimaconde e partimos, ainda pelo retrovisor e a rectaguarda empoeirada vi acenos até perdê-los de vista.
Imobilizou-se repentinamente na berma do passeio, perscrutou o ambiente que residia na via depois de olhar para esquerda e para a direita, carros, bicicletas e pessoas moviam-se rapidamente de um lado para o outro, numa azáfama que caracterizava a cidade de Quelimane no fim do dia laboral.
Ela ensaiava pousar o pé direito na estrada, mas o medo demovia-lhe de tal aventura.
Um carro passou rente ao passeio ela deu um pulo para trás, franziu a teste e a sua jovialidade ficou subtraída naquele acto.
O seu cabelo oleoso com brilhantina reluzia quando as folhas da acácia deixavam escapar tiras de sol, o seu rosto completamente maquiado era evidenciado pelo batom vermelho pronunciando os lábios e para rematar os seios erectos agregavam os seus dotes femininos. Usava uma saia de caqui castanha que combinava com a sua tez escura e uma blusa branca sem mangas. Calçava umas sandálias pretas que deixavam visíveis as unhas pintadas.
Um homenzinho acantonado na esplanada gesticulava ininterruptamente procurando captar a atenção do atarefado servente, ignorado por este o senhor levantou-se e toda a extensão da sua altura mediana ficou exposta. Gesticulou mais umas vezes até ser descoberto.
Quando estava para sossegar no seu acento e esperar pelo atendimento eis que descobre a moça na sua tentativa de atravessar a rua. Arregalado não perdia de vista o pequeno espectáculo.
- Sim faz favor – abordou o servente, distraindo-o
- Um café – disse sem tirar os olhos da moça
Quando o café prontamente chegou, absorveu num trago pediu a conta e retirou-se energizado ao encontro da moça.
Quando a alcançou abordou-a:
- O que se passa moça? perguntou solícito.
- Tenho medo.
- Vamos – convidou ele.
Um pico da sua pulsação cardíaca sacudiu o seu peito quando ela segurou a sua mão esquerda, caminharam calados pelo passeio até ao semáforo, ele esperou que o vermelho brilhasse e então iniciaram a travessia pela passadeira. Este conctato físico fez com que ele libertasse gotículas de suor que sulcaram pela testa apesar da frescura vespertina.
Quando finalmente alcançaram a outra margem da via, ele quis se libertar da mão dela apesar de estar a gostar do calor que ela transmitia, mas a rapariga continuou segurando firme.
- Tenho medo de atravessar as estradas ajuda-me a chegar a paragem de chapa? – solicitou timidamente.
O homenzinho demorou a responder, apreciando a beleza que ela emanava.
- Sim, sim – disse sem pensar completamente enfeitiçado pela sua beldade.
Taxistas de bicicletas pedalavam em fila indiana conversando animados com os seus respectivos passageiros.
Continuaram caminhando de mãos dadas como um casal de namorados atravessando as vias a caminho da paragem.
Quando alcançaram a terminal de transportes semi-colectivos o último chapa acabava de partir superlotado, bufando pela via em direcção a Nicoadala.
Eles entreolharam-se calados, já passavam das 18h aquela hora era improvável que conseguisse um carro que a levasse para o seu destino.
- Como te chamas? – perguntou-lhe repentinamente o senhor preocupado.
- Zainabe – respondeu - não sei como faço vivo em Nicoadala, não sei onde vou passar a noite – desabafou ela entristecida.
Arrojado no espírito solidário o senhor avançou com uma proposta:
- Podes passar a noite no hotel onde estou hospedado e de manhã segues para o teu destino.
Ela anichada na oferta que acabava de receber, ficou divagando digerindo a boa nova.
- Obrigado senhor – titubeou ela.
- Trata-me por Juventino – afirmou ele afável.
Uma dupla timidez conferia a caminhada um ambiente tenso, até que ele recebeu um zéfiro no coruto descabelado e então lembrou de perguntar.
- O que fazes?
- Perdi a matrícula escolar e agora faço pequenos negócios.
Um bando de marriés partiu num voo rasante e foi ganhando altitude gradualmente em busca dos seus ninhos.
Os candeeiros das vias já brilhavam para minimizar a escuridão que chegava com a noite, eles caminhavam lado a lado sem pressa de chegar.
- O que fazes cá? – perguntou ela envolta na sua timidez suburbana
- Estou de passagem venho de Maputo e amanhã parto para Mocuba em missão de serviço – replicou à vontade.
Antes de se embrenharem no hotel pararam num restaurante e tomaram uma leve refeição.
Encontraram a recepcionista embrenhada no seu telemóvel, Juventino pigarrou para não a assustar.
- Chave 14
Sentaram-se no sofá da recepção, ela ofereceu-lhe um olhar benevolente pelo acolhimento oferecido. Ele replicou o gesto com um sorriso terno antes de lhe falar.
- Podemos dormir no mesmo quarto pois, possui duas camas – alertou para evitar qualquer mal-entendido.
Ela ponderou demoradamente antes de proferir qualquer resposta, como se buscasse na sua mente a afirmação mais acertada.
- Sim podemos – sussurrou ela meio acanhada.
Seguiram pelo corredor em direcção ao quarto sob o olhar inspectivo da recepcionista.
Cavaquearam durante horas enquanto o sono não chegava, falavam disto e daquilo, como velhos amigos. Primeiro foi ela que bocejou e logo Juventino ficou contaminado.
- Boa noite! – sussurrou ensonado.
Um elemento calorifico conferiu um aumento substancial da temperatura corporal, ele despertou não demorou muito para encontrar Zainabe ali na sua cama completamente nua.
O impulso animal catapultou-o para cima dela, não demorou muito para o gemido unilateral expelido por ela catapultasse mais a sua apetência carnal.
Evoluíam no coito libertando duplo gemido sonoro que confiscava o silêncio da noite, copulavam selvaticamente como verdadeiros animais indistintos de qualquer norma ética que aprisiona os humanos. Ela animada pelo vigor do seu parceiro derrubou e trepou-o, assumindo agora a liderança movia-se devagarinho sentindo cada centímetro da penetração nos seus múltiplos nervos genitais. Gozava e gozava mais ainda quando via Juventino rendido a sua grandeza de governante do prazer.
Suavam e esse odor tornava-se num perfume afrodisíaco que excitava mais o ritual sexual.
O domínio dela demorou o tempo suficiente dele se revigorar, saiu debaixo e posicionou-se por trás reiniciou a penetração com uma das mãos segurava um dos seios e com outro a omoplata, movia-se rapidamente fazendo com que ela deixasse escapar pequenos grunhidos. O acto demorou pouco mais de vinte minutos até que a sua euforia masculina encheu o balão que lhe revestia o órgão genital, ela sentiu aquela volúpia sensacional deixando os músculos afrouxarem completamente relaxados. Ele libertou um suspiro e capturou todo o oxigénio que pode para refrescar o seu ser agora também mais descontraído.
Deixaram-se cair na cama, respirando fundo, descobrindo o teto escuro, cada um pensou em nada ainda apreendidos pelo prazer que haviam sentido. Encontraram espaço na pequena cama e adormeceram.
A manhã encontrou-os ainda dormitando estafados pelo exercício nocturno, o pio dos pássaros, o som dos motores, misturada com a vozearia popular compunham um alarme madrugador.
Descobriram-se mutuamente com a luminosidade fosca que entrava pelas cortinas.
Ela desembarcou da cama que lhe acolhera completamente despida, caminhou pelo soalho em direcção ao quarto de banho, deixando bem evidente cada parte do seu formoso corpo na passada lenta que executava, não era a mesma menina que temia atravessar a estrada, era outra, toda poderosa, ele todo babado limpou os olhos remelados com as mãos para capturar cada quadro daquele movimento soberbo.
Mil projecções eróticas chegaram a sua mente quando a perdeu de vista, não sabia o que fazer estava agora vigiado pela luz diurna.
Quando ela reapareceu a tela voltou a ganhar vida Juventino pulou da cama completamente nu o seu membro viril erecto desafiava a força de gravidade e pulsava ao ritmo cardíaco. Arrebatou-lhe de encontro a parede levantou-lhe a perna direita descobriu o manto de pelos púbicos com o seu falo e entrou, o movimento de vaivém foi ganhando cadência, as suas matunas iam serpenteando seu membro viril, ela soltou um vagido e logo ele beijou-a. A sua boca ora a beijava ora sugava os seios, ela o abraçava e arranhava nesse momento de êxtase sublime. Quando finalmente derramou o fluido seminal libertou um suspiro e a largou. Ela caminhou para se preparar e ele dirigiu-se ao quarto de banho.
Juventino encontrou-a se maquiando e foi-se preparando para deixarem o hotel.
– São dez mil meticais – disse ela estreando as palavras nessa manhã de quinta-feira
Ele percebeu que ela emitira um som, mas não foi capaz de descodificar.
– Não ouviste eu disse que são dez mil! – voltou a proferir alto e serena.
– Dez mil de quê? – perguntou ele estupefacto.
– Pelos serviços da noite passada e desta manhã – conferiu ela e toda a meiguice de moça inocente ficaram dissipadas.
– Menina você não esta boa, quem te mandou vir para minha cama nua? – disse ele com a voz tremula deixando transparecer algum nervosismo.
– Senhor eu não sei quero meu dinheiro. – gritava ela.
– Você é puta? – questionou visivelmente fora de si.
– O que eu sou não interessa, quero o meu dinheiro senhor.
Ele não quis divagar em busca de qualquer interpretação ainda sentia nas suas entranhas o gozo do sexo que tivera.
– Vamos embora, preciso de viajar - disse ele.
Já na rua uma baforada de ar fresco renovou-lhe o ânimo caminhava meio apressado e ela logo ali no seu encalço. Eram nove horas, não tinha tomado o pequeno almoço, estava sem apetite, precisava mesmo de apanhar o carro para Mocuba. Ela interrompeu a sua caminhada prostrando-se a sua frente.
Uma passageira montada na garupa de um táxi bicicleta pede o condutor para parar quer presenciar o pequeno espetáculo onde um grupo de jovens uniformizados que estavam a caminho da escola já fazem parte dos espectadores.
– Estou a pedir pagar-me senhor! - diz muita convicta.
Ele fuzila-lhe com um olhar vítreo afasta-lhe de seu caminho e continua o seu percurso apressando o passo. Ela alcança-o logo de seguida e pega-lhe pelo cinto.
O pequeno público liberta murmúrios animados ainda lhes seguem até perderem interesse.
Quando Juventino percebeu que ela não desarmava das suas intenções convidou-lhe a irem a um posto policial.
– Não vou a lado nenhum até você dar o meu dinheiro – agora ela gritou.
Já tinha alcançado a terminal de autocarros para os distritos da província.
Um a um ia chegando curiosos desocupados para se entreter com o pequeno espectáculo que ela investia.
Juventino começava a sentir-se acossado com a determinação da moça segurou-lhe pela mão e mudaram de posição para fugir os mirones.
– Não tenho esse dinheiro.
– Paga-me.
O homem desesperado puxou da carteira tirou o dinheiro que tinha e antes de conferir ela confiscou-o.
Ele olhou pasmada para ela sem sabe o que fazer e dizer.
Eram sete mil e quinhentos meticais, ela ainda tirou quinhentos e ofereceu-lhe para que ela apanhasse o chapa para Mocuba. Depois largou um sorriso trocista.
– Estás arrependido nem!
O Estado moçambicano terceirizou a defesa do território nacional aos mercenários russos do Grupo Wagner. Podia ter sido aos americanos da Blackwater ou aos sul-africanos da Hawks, mas o governo quedou-se no Grupo Wagner.
Por que o Grupo Wagner? Apenas podemos especular a razão. Há alguns candidatos mas os favoritos de muitos são o preço; a ligação histórica militar entre Moçambique e Rússia; e a necessidade de se ter um actor militar não vindo de um país Ocidental.
Analistas apontam ao facto de que geralmente os russos cobram entre $360.000 a $940.000 por mês para 200 soldados de fortuna. Mas há que se considerar que o preço está mais próximo dos $360.000 porque há mais ex-militares rasos do que oficiais.
Do outro lado da escala, os Black Hawks cobram aos governos entre $750.000 a $1.250.000 por mês para 50 ex-soldados. Mesmo assim a factura deve se aproximar ao primeiro valor por conta do facto de que há mais soldados rasos que oficiais, que estão no topo da escala.
Um outro factor sobre o que poderá ter pesado para que Moçambique se decidisse sobre a escolha de mercenários russos é um passado histórico militar e económico comum no auge da Guerra Fria. Esse passado envolveu uma dívida militar à Rússia (então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) que rondou os $2.4 milhões em termos nominais. Essa dívida só foi parcialmente cancelada com a entrada da Rússia no Clube de Páris, no âmbito dos Países Pobres Altamente Endividados (HIPC).
O relacionamento entre Moçambique e Rússia ficou em banho-maria durante 32 anos até à visita do Presidente Filipe Nyusi à Moscovo, em Agosto, onde manteve conversações com o seu homólogo russo, Vladmir Putin. Provavelmente o impulsionador do reatamento do relacionamento é o facto de Nyusi ter se se licenciado em Engenharia Mecánica na antiga Checoslováquia.
Seguiu-se uma interacção entre os ministros dos negócios estrangeiros moçambicano e russo em 2018, em Maputo, que abriu caminho para uma maior cooperação na segurança e contra-terrorismo, bem como a assinatura de vários acordos de cooperação económica. E finalmente, Nyusi retornou à Rússia em finais de Agosto, tendo assinado uma série de acordos de energia e segurança – entretanto, poucos viram os textos desses acordos, sendo que, não se sabe o que cada parte deu a outra.
Mas possivelmente o que pode ter interessado mais a Moçambique foi evitar colocar todos os ovos na mesma cesta. É que os maiores actores nos projectos de petróleo e gás em Cabo Delgado são empresas ocidentais. E o país tem séries problemas em controlar a quantidade de recursos que saem para o exterior, dependendo dos números que recebe dos próprios investidores.
Sendo que, se quiser monitorar o que entra e sai, provavelmente faça mais sentido buscar ajuda de um antigo parceiro com interesses de também voltar a flexionar os seus músculos na arena internacional, em busca de um passado glorioso.
Um outro factor é o facto do país não ter ao momento dinheiro para fazer o pagamento de vários serviços, e muito menos ter mais espaço de manobra para solicitar empréstimos nos mercados financeiros, sabido é que a escandaleira do calote das dívidas ocultas dificulta a mobilização de recursos financeiros nos mercados financeiros internacionais, agravado ao facto de que os doadores têm condicionado as suas contribuições ao Orçamento do Estado. Sendo que, fazer um negócio em troca de futuros rendimentos ou exploração de recursos minerais ou energéticos parece ser mais apetecível a curto e médio prazos.
Todavia, independentemente do tipo de negócio que Moçambique fez com a Rússia, terceirizar a guerra contra os insurgentes custa uma pipa de massa. Daí que, se perguntar não ofende, quanto é que custa a nossa factura de segurança?
Mais: como é que vamos pagá-la? Se por via dos recursos, que recursos são esses? Petróleo? Gás? Diamantes? Pedras preciosas? Camarão? Atum? E quais são os termos de pagamento? Que implicações terá isso no nosso peso da dívida? Quando é que isso reflictir-se-á no Orçamento do Estado? Ou será que vai ser também uma dívida oculta?