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Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

terça-feira, 30 maio 2023 07:42

Thchinha, minha querida sobrinha!

AlexandreChauqueNova

Estive em Maputo na semana passada por força das circunstâncias. Faleceu a minha sobrinha, a Thchinha, mulher de batalhas sem fim. Nela repousava a esperança e a fé de que a cacimba baixaria e a seu devido tempo o sol brilharia em todo o universo. As armas que a sustentavam era a poesia, da qual retirava e repetia sem se cansar esse verso, “a vida é um eterno recomeço”. É por isso que desprezava as quedas. Ria-se com gozo dos espetos que a perseguiam querendo derruba-la. Ela dizia: É verdade que não tenho nenhum feixe de flechas nas minhas mãos, mas trago um ramo de oliva no coração.

 

Thchinha tinha o impulso da partida, que até podia levá-la ao desconhecido, e ela jamais teve medo do oculto. Se tivesse o tal pavor não teria voado para outras terras, onde tinha a certeza de vencer e depois voltar para casa com o troféu da vitória a fim de nos cobrir a todos e fazer-nos acreditar que a vida é bela.

 

Voou confiando na arte que fazia em cumprimento de uma missão, e quem confia na arte não vacila. “David venceu com poesia espalhada em Salmos”, dizia em silêncio a Tchinha, e nós não percebiamos a dimensão das suas palavras. Alcançou a liberdade tendo como estandarte a arte, imitando David que decepou a cabeça de Golias.

 

Então telefonei aos meus amigos em Maputo, dando-lhes a conhecer a partida definitiva da minha querida sobrinha, na verdade uma grande mulher na flôr da idade vivendo entre a luta e a esperança. Muitos desses meus amigos foram, mais do que assistir às cerimónias fúnebres, recordar-nos o valor da amizade. E aquele silêncio todo que vai pairar à volta da Thchinha, será o testemunho da paz. Tchinha partiu em paz, superando toda a dor que lhe dilacerava o corpo em dias longos que em compensação, depois de todo o sofrimento, metamorfosearam-se em luz.

 

Choramos por dentro esta largada como a de um barco que recolhe as amarras para nunca mais voltar, mas não são lágrimas da morte, Thchinha não vai morrer. Em terra firme foi abalroada pelas ondas que se esbatiam no casco, e agora, com as velas enfunadas, está aí, acenando-nos no último adeus.

 

Thchinha, minha querida sobrinha, não nos resta mais nada neste momento de flores que nunca te oferecemos, senão agradecer todo o amor que nos deste. Ficaremos com as tuas lembranças para sempre.

 

Obrigado, amor. Deus te acolha!

segunda-feira, 22 maio 2023 12:32

Benedito Guimino no fim da carreira

AlexandreChauqueNova

Receio que Benedito Guimino, actual edil da cidade de Inhambane, enlouqueça espiritualmente depois de deixar o cargo. Pode ser que fique com a sensação – após dez anos de mandato – de ter feito pouco pelo seu município, e isso vai frustar qualquer pessoa de bom senso. Tinha espaço para no mínimo, ordenar o território das zonas de expansão, na impossibilidade de fazer voos de grande altitude, mas esse desafio carece de audácia, ou seja, de juramento. Guimino não tomou essa atitude.

 

As vias de acesso constituem – isso todos nós sabemos – pontos cruciais para o desenvolvimento da comunidade. Houve uma tentativa no sentido de se melhorarem os acessos.

 

Construíram-se algumas ruas de pavêt de certa forma aplaudidas, mas não passou muito tempo, percebeu-se que a qualidade das obras é fraca. Em alguns troços o pavimento está a destroçar-se, mesmo antes de Guimino entregar o testemunho.

 

Pode ser que Guimino saia da cadeira com remorsos, não consegue manter a cidade limpa. Prometeu construir um mercado do peixe na Mafurreira. Desalojou as vendereiras há mais de dois anos, tendo-as colocado em condições mais do que deploráveis, à espera que o edifício fosse feito, qual!. O tempo passava com peso esmagador sobre as mulheres e, do novo mercado, nada! A única coisa que o Município fez foram as fundações numa zona de pântano com riscos ecológicos, e até hoje nem água vai, nem água vem. O mais triste é que o edil costuma passar pelo local no seu carro luxuoso, desfrutando do ar-condicionado e todo o conforto, sem ao menos parar para saudar “aquele povo” que, cansado de esperar, regressou ao seu lugar agora com as circunstâncias pioradas pelas fundações.

 

Tenho receio que estes fracassos esmaguem a alma de Benedito Guimino, um professor outrora elogiado por ter a Escola Secundária de Muelé bem organizada, quando era director. O município de Inhambane tem um ordenamento territorial caótico. As novas ruas foram feitas sem valas de drenagem. O mangal que veio retirar a vocação de cidade de veraneio, agravou ainda mais o estado de abandono, onde a “mão” do presidente do Município faz-se sentir pouco, em alguns momentos inoportuno.

 

Guimino entrou em colisão com os moradores do bairro Matadouro, que se sentiram não só burlados, mas sobretudo desprezados e esmagados na sua dignidade. O Banco de Moçambique propôs a construção de um monumento na referida zona, com a contrapartida de retirar as pessoas e coloca-las num outro lugar com casas construídas pelo município com dinheiro desembolsado pelo Banco, são cerca de sessenta famílias.

 

Até aqui estava tudo bem, mas Benedito Guimino, no lugar de construir casas condignas, conforme propunha o Banco e com condições criadas, foi erguer casebres inóspitos, que foram prontamente rejeitados pelos moradors. O presidente do município ainda ameaçou os moradores, pretendendo tirá-los à força, usando a polícia, mas eles foram firmes, exigindo seus direitos. Até hoje estão nas suas casas, à espera que sejam consideradas como pessoas, conforme dizia uma moradora em confronto com Guimino.

 

São estes alguns dos pontos que podem contribuir para que Benedito GUimino saia chamuscado. O que será muito triste não só para ele, como para todos aqueles que esperavam dele um grande desempenho! 

 

terça-feira, 16 maio 2023 12:35

Entre a honestidade e a fome

AlexandreChauqueNova

Por estas alturas estaríamos a desfrutar das deliciosas laranjas cultivadas em Nhacoongo, aqui perto no distrito de Jangamo. Outras chegariam de lugares um pouco mais longe como Murrombene e Massinga, os mercados estariam cheios, apelativos. O ananás viria de Muchúngwè em camiões abarrotados de doçura, e de Inharrime também, então a cidade inteira transformava-se em feira de fruta, era a festa da vitamina em si. E depois eram as tangerinas, famosas em todo o mundo por via do poema de José Craveirinha “As doces tangerinas de Inhambane”.

 

Mas toda essa fruta continua a ser despejada por uma espécie de básculas, inunda os mercados. Há compradores que mesmo assim não vão em avalanche, se calhar porque o dinheiro escasseia. Porém há um interveniente que nos faz balançar de forma particular perante a oferta, que é o paladar, redondamente descompensado, ou seja, a maior parte desses produtos que nos são dados a consumir não estão maduros, são arrancados verdes da árvore, antes da formação.

 

Ainda há dias fui ao mercado, queria comprar maracujá. A própria casca falava, dizia-me que a fruta não está apurada e, portanto, não devia estar ali à venda para consumo. Perguntei – de propósito – à vendedeira, se aquela maracujá estava madura, ela respondeu-me assim, não está bem madura! Eu ainda retornei, porquê que vende se sabe que não está bem madura, mamã? E ela, sem receio disse, “É fome, papá”.

 

A mulher estava a ser honesta. Sabia da violação do direito do consumidor que estava cometendo, mas também tinha fome e precisa de se alimentar, a barriga não sabe esperar. É assim com a laranja e o ananás e a tanjerina, são comercializados na sua maioria em estado de imaturidade, não nos permitindo por conseguinte, ter o prazer de degustar de um ananás doce ou de uma laranja apetitosa, esse tempo já passou, sem que ninguém saiba se vai voltar um dia, e o presente leva-nos a pensar que não temos outro caminho que não seja o de aceitar o que nos dão, ainda por cima com o nosso dinheiro.

 

É um doloroso dilema das vendedeiras dos mercados, que vêm de longe penduradas em carrinhas de caixa aberta do tipo “My love”, chegando a dormir ao relento nos mercados enquanto o produto não acaba. Podem ficar dias assim mesmo, pior agora que o frio chegou, elas precisam de levar pão para casa, não importa o caminho a seguir para conseguir isso. Essa é a realidade.

 

Por outro lado, todas as semanas há camiões cheios de banana que chegam e baldeam a mecadoria que depois é levada em “thxovas” em estado verdíssimo, mas no dia seguinte o mesmo “thxova” leva a mesma banana que ontem estava verdíssima, já em condições de ser consumida. É estranho porque a casca, depois da fruta amadurecida de um dia para o outro, apresenta um aspecto deplorável, mas os que vendem dizem, não se preocupe com a casca, a fruta lá dentro está boa. 

 

É isso: estamos na época da fruta. Há muita fruta, mas........!

AlexandreChauqueNova

As quatro bandas já não são as mesmas, jamais voltarão ser. Surgiram do ponto mais alto da música, de onde não haverá mais montanha para subir, ou seja, depois do topo só existe o cosmos e na verdade eles gravitavam no espaço pós-atmosférico. São conjuntos mundiais cujo suporte que tinham, era a própria música que lhes catapultava aos palcos a partir de onde, feitos comportas, abriam-se como os astros que vão dar luz às massas que não se cansavam de os seguir.

 

Era a crença, mais do que a fé, que movia os seus propósitos. Tudo aquilo, a avalanche das músicas que ofereciam em grandes espectáculos com as pessoas em delírio, se calhar era uma utopia. Nenhum deles tinha ido frequentar as grandes escolas de música e o que faziam nem parecia empírico, mas convocava os estudiosos dos conservatórios.

 

Moçambique tinha representantes dos quais se vai orgulhar por todo o sempre. Os fervorosos aplausos em cada espectáculo era o testemunho disso, eram muito fortes as ondas, tão fortes que inesperadamente começaram a soçobrar com a morte de Pedro Langa e depois de Zeca Alage, fazendo com que o Gorowane tremesse nas bases, deixando Roberto Chitsondzo a lutar como pode para não deixar derrubar esse baluarte. Mas a mesma luta, sem ser inglória, só pode nos trazer as memórias de um tempo de glória.

 

Alambique esvaziou-se num momento em que ressurgia, alimentando-nos a esperança de voltar a ver nas praças e nos anfiteatros,  um conjunto musical de elite. Antes eram auto-didactas, tocando música de fina estirpe e, agora que foram à escola, ansiávamos ouvir deles “outras coisas”, porém a morte estragou tudo. Levou, da mesma forma como o fez no Gorowane, duas pedras angulares, Hortêncio Langa e Adérito Gomate, deixando Arão Lithsuri desamparado, mesmo assim podendo continuar noutra jangada, conhecidas que são os seus atributos.

 

Eyuphuru é uma palavra emakwa que significa remoínho. E não temos dúvidas de que eles eram de facto esse vento em rodopio. Mas também como é que a banda podia durar se a vigência dos remoínhos é de pouco mandato? Saíu Gimo Remane para outras terras, ficando Zena Bacar que depois de algum tempo perdeu a vida. Em combate. Então a caminhada do grupo estava comprometida, e hoje o que nos consola é a memória de um vento que soprou à volta do seu próprio eixo ao mais alto nível.

 

Apesar de todos eles serem bons, mas o Kapa Dêch era conhecido por esses dois, Tony Django e Riberto Isaías. Com eles é que fazia sentido a catadupa inteira. A sua categoria foi demonstrada logo no primeiro album, Kathume, feito de cristais. Depois veio o desfiar de um manancial pensado e ponderado, num rio abundante que podia ter ainda muito leito a seguir. Porém, durante o percurso caíu o Tony no cume, onde a sua alma levita. Roberto vai se lembrar sempre dos momentos em que os dois, ele e o Tony, eram as estrelas que seriam celebradas em qualquer parte do mundo.

quarta-feira, 03 maio 2023 06:59

Maxixe segundo Narciso Pedro

AlexandreChauqueNova

Seu nome renovou-se semana passada com o lançamento do seu livro – Poder tradicional no distrito da Maxixe. Se calhar pode ser uma grande surpresa, talvez um espanto para muitos, se tomarmos em conta o estado de saúde de um homem que implantou fundamentos sólidos visando um reordenamento territorial posteriormente aplaudido, depois de incompreensões e tumultos, durante a vigência do seu mandato como presidente do Conselho Municipal. Foi preciso arrojo para que os objectivos fossem alcançados, e os resultados estão aí. À vista de toda gente.


Narciso Pedro parecia esquecido depois da aposentação, no sentido de que aparentemente já não se esperava muito dele devido ao estado de saúde que lhe apoquenta, está paraplégico. Mas a força de espírito que lhe vai dentro contrariou o pessimismo, moveu a mente e trouxe “cá fora” uma obra que pode levantar um debate, aliás ele próprio questiona: “os cabos de terra indicados no distrito da Maxixe são daqui ou vieram de onde vieram? Poucos esperavam este contributo grafado em papel que vem nos mostrar o inconformismo do ex-edil.


Narciso Pedro reaparece de moto próprio, não esperou que lhe fossem buscar como a um fracassado, nem ficou de braços cruzados mamando do leite das vacas do passado. Ele ainda acredita no futuro e o futuro não se faz apenas com fé, é preciso amanhar novos pilares e deixar outros testemunhos como agora que o faz com “Poder tradicional do distrito da Maxixe”.


Narciso Pedro ressurge e com ele renovam-se os elogios do povo, que serão uma ode à audácia. Era imperiosa a coragem de se ir contra a superstição e os tabus para que se reorganizasse uma cidade que estava aos frangalhos em termos urbanísticos, e este homem teve essa coragem. Enfrentou as barricadas da população, agrediu os costumes com determinação e lanças da modernidade, ignorou os choros e os lamentos daqueles que viriam a ver as suas casas demolidas, as suas benfeitorias. Mas o edil fazia isso a bem de todos, e hoje esses todos aplaudem em unanimidade o trabalho feito por alguém que sabia muito bem o que estava a fazer.


“Poder tradicional no distrito da Maxixe” serviu também para isso, lembrar-nos que Narciso Pedro é o tipo de dirigentes que Moçambique precisa. Não será a paraplegia que vai apagar um dos nomes mais queridos numa cidade-entreposto que carece de alguém com capacidade e visão para que os fundamentos deixados não sejam em vão. Se há coisas que foram mal direccionadas depois , como as construções desaconselháveis em quase toda a marginal, então urge um dirigente para vestir o fato-macaco deixado por Narciso Pedro e reorientar tudo, a bem da beleza paisagística da Maxixe.

segunda-feira, 24 abril 2023 10:57

Celebrando vidas com Elvira Viegas na proa

AlexandreChauqueNova

Mas quem está na proa pode ser o timoneiro, e Elvira Viegas não será mais do que um pivot generoso, com sede inadiável de exaltar fazedores e criadores da arte. É isso que ela está a fazer no seu programa”Celebrando vidas” que passa na Televisão de Moçambique (TVM) aos domingos entre o final da tarde e o princípio da noite, algo que nos leva à nostalgia e permite-nos buscar, da memória, nomes que alimentam o nosso passado e fazem, por conseguinte, com que o presente tenha sentido.

 

Assisti ao “Celebrando vidas” nas últimas duas semanas com Elvira no centro de uma panóplia de músicos e actores de teatro e escritores, o que ela queria é que se falasse deles, dos seus trabalhos que vão marcar de forma indelével várias gerações, pois, evocar por exemplo Lília Momplé e Manuela Soeira, é juntar pedaços de gerações ou várias gerações por inteiro. São duas mulheres de uma inventiva notável trazidas à terreiro por outra mulher notável que avança sem púrpura, mas com simples missangas da imaginação.

 

Manuela e Lília, corporizam duas personagens que levaram sempre uma vida recatada, deixando que sejam as suas obras a irem à frente sob todos os riscos, e ali no programa da Elvira mostraram isso mesmo, ser mulheres serenas e amáveis, preferindo a plateia no lugar do palco, embora tenham sido chamadas às luzes da Televisão. Elas brilham por si mesmas, como o mel que não precisa de açúcar para ser doce, e esta é uma grandiosa homenagem despida de preconceitos.

 

O programa de Elvira Viegas embevece, ela conhece as pessoas que convida, não é obra do acaso. Então os irmãos Wily e Anibal, humildes como as duas mulheres que citamos anteriormente, nomeadamente Lília Momplé e Manuela Soeiro, foram chamados à um lugar que não podiam recusar, pela forma como o cenário foi preparado, cheio de flores e palavras de amor. Eles não estiveram ali para dar um espectáculo, mas com o propósito de receber abraços profundos de uma plateia especial. Respeitável.

 

Foi bom ver Roberto Chitsondzo que teve, a determinado momento da sua actuação, de pedir a um dos seus filhos que pegasse na guitarra e continuasse a tocar “Mussakazi”, para que ele, o Roberto, se sentisse livre e cantasse à vontade e dançasse um pouco também. Com alegria incontida. Porém, quem estava voando mesmo, é Elvira, que pensou num programa que vai nos levar ao delírio e à fortes emoções.

 

“Celebrando Vidas”, por aquilo que nos mostrou nas últimas duas semanas, servirá de grande motivo para nos mantermos ligados à TVM aos domingos, entre o final da tarde e princípio da noite. Há um grande sinal como aquele que por via dos filhos, foi lembrada a “doce escandalosa” Zaida Lhongo. Aliás a Tânia (filha) actuando no palco dizia assim, “não se escandalizem com o que vão assistir aqui, não fosse eu filha de Zaida”.

 

Pois é: os gêmeos Parruque são desse tempo de grandes euforias no Ngoma Moçambique da Rádio Moçambique e estiveram ali para nos fazer recordar essas temporadas vibrantes, mas “Celebrando Vidas” é uma galeria pronta a receber o inesperado, e nós estamos aqui na esperança de viver o passado.

 

Obrigado Elvira.

terça-feira, 18 abril 2023 08:45

Gildo Maphutumane

AlexandreChauqueNova

O emissor provincial da Rádio Moçambique em Inhambane, pode ter – ao longo da sua existência – produzido alguns dos locutores mais efusivos do nosso país, de entre eles Gildo Maphutumane, um profissional que em pouco tempo após ingressar nos quadros da RM nos finais da década de 90, conquistou um vastíssimo auditório que irá para além dos bitongas, língua que Gildo falava com denodo, chegando a usar termos nunca antes conhecidos pela maioria, naquilo que será na verdade uma ousadia.

 

Na cabine, Gildo Maphutumane não era ele, entrava em transe só de saber que daqui a pouco vai ter o microfone a sua disposição, e através desse instrumento mágico irá conquistar os ouvintes que estarão à sua mercê do princípio ao fim. Todo o corpo dele estremecia enquanto falava, alheio a tudo como nos meandros da feitiçaria, em que a pessoa é usada por espíritos. Gildo era um objecto dessa força invisível, um locutor de nomeada que todos queriam ouvir, então não era ele, como os grandes artistas de génio.

 

Durou pouco sobre a terra onde cumpriu a missão sagrada de comunicar e entreter, morre em princípios da década de 2000 no auge da carreira, deixando todo o seu cheiro profissional na cabine que afinal seria a outra gruta de uma pessoa nascida a cinco kilómetros da Praia do Tofo. Gildo era um crocodilo emergente e já possuia invencíveis escamas. Nunca soube fazer mais nada na vida, a locução era a sua lagoa, onde agitava as águas com a voz tonitruante, firme e alegre.

 

Gildo Maphutumane gabava-se de ter desbravado o seu próprio atalho, obedecendo aos ditames da criação de novos horizontes sem dogmas, sem se preocupar com o que os outros pensam dele, sobretudo sobre o seu “mudus agendi” na cabine de locução, ele era livre como os verdadeiros criadores da arte.  Se calhar será por isso que se sagrou vencedor, ao ponto de traduzir para o bitonga -  inesperadamente – a expressão radiofónica “comprimentos de onda” para “thsiba nya mapwelo”, deixando em delírio todos os bitongas que o ouviam.

 

Mesmo assim não era propriamente um homem forte no sentido de enfrentar os torpedos, por isso escondia-se na cabine onde perdia todo o medo e sentia-se sem grilhetas na mente e nas palavras, ou juntava-se aos amigos e desfraldava todas as emoções e todas as desinibições, enquanto não chega o próximo turno para deixar a voz ecoar por via de “thsiba nya mapwelo”.

 

Era assim o Gildo, um personagem que a história jamais o abandonará nas margens do rio, pela forma como imprimiu sua vida profissional como locutor da Rádio Moçambique.

terça-feira, 11 abril 2023 07:22

Já não se fazem bolos de sura

AlexandreChauqueNova

Os bolos de sura que se faziam aqui eram únicos. De entre os temperos que podiam ser incorporados havia o cardamomo, leve aromatizante que conquistava os paladares mais delicados. Todo o carinho das mãos era convocado no confecionamento desse alimento delicioso que faz parte da nossa culinária e da nossa cultura. Nem era preciso dar-lhe uma pitada de manteiga depois de pronto para o chá como muitos gostam, os bolos de sura por si só, quando feitos com esmero, cumprindo com todos os requisitos recomedados, serão uma iguaria irresistível.

 

Hoje já não se fazem bolos de sura como se fazia antigamente. Dói dizer isto mas é a verdade. Há-os em todo o lado, nos mercados e nas ruas e nas praças. Nas paragens dos autocarros de longo curso os jovens vão a correr com sacos de plástico nas mãos gritando “bolos de sura, bolos de sura”, e os passageiros compram, muitos deles não para comer ao longo da viagem, mas para presentear aos que os esperam no destino, sem saberem que o produto adquirido é falso.

 

O que temos sentido é que a oferta que nos fazem é constituída por massa de trigo, água, açucar e uma leverina qualquer para o bolo “levantar”. De sura não há nada na maioria das vezes, nem cheiro dela, então estamos a ser enganados. Porém, ainda aparece um e outro que nos vende os verdadeiros bolos de sura, mas essa qualidade, regra geral, consegue-se quando o confecionamento é feito por encomenda. O resto é uma burla, salvo raríssimas excepções.

 

O problema é que todos querem vender qualquer coisa, mas os bolos de sura não podem ser qualquer coisa, são peças especiais da nossa existência como bitongas. Então porquê que nos enganam? Se calhar algumas  pessoas que hoje fazem isso nunca saborearam um produto bem feito como se fazia nos tempos. Ser calhar pensam que o bolo de sura é assim mesmo como eles fazem, sem a dose adequada da seiva e sem os temperos dos quais se destaca o cardamomo e a erva doce. Seja como for, estamos perante um cenário triste, que se pode explicar pela necessidade urgente de sobrevivência num panorama de dolorosa pobreza.

 

É como as badjias, já não são as mesmas daquele tempo. As que se vendem por aí, em particular na cidade de Inhambane, não levam cebola em folhas verdes, nem piri-piri. Não têm cheiro, mas os jovens devoram-nas com gula, sem saberem que a verdadeira badjia carece de condimentos que farão dela um petisco da primeira linha. E é com muita saudade e pena que estejamos hoje sem a possibilidade de desfrutarmos de uma boa badjia, em  Inhambane já não tem essa qualidade, nem nas badjias, nem nos bolos de sura (excepto em raríssimas excepções).

 

Mas esta questão faz-se lembrar um episódio em que digo a um perdreiro que construía um muro de vedação: “mestre, não acha que aqui há um pequeno desalinhamento?”. E ele respondeu-me: amigo, o que é que não está desalinhado neste país?

terça-feira, 04 abril 2023 10:02

Mwali *

AlexandreChauqueNova

Enquanto lá fora a chuva cai em liberdade, tamborilando por sobre as chapas de zinco, Mwali está absorta em pensamentos que a levam aos tempos em que, com o marido, partilhava a vida intensa que ressurgia em cada precalço, trazendo mais labaredas de fogo ao amor dos dois, como se tudo o mais não importasse. Ela está deitada de costas por debaixo dos lençóis que a cobrem até à cintura, com as pernas flectidas, na enorme cama que agora, após o companheiro ter morrido enquanto dormia, depois da esbórnia, perdeu o conforto. Toda a casa está despojada de graça, até o relógio de pêndulo, dependurado na parede da sala já não a diz nada, quem dava valor ao tempo e às horas da Mwali era Mbata que, terminadas as caminhadas que fez na terra, deu o último suspiro numa madrugada de domingo abraçado à mulher que dormia profundamente como ele.

 

Chove desde a noite e já são nove da manhã. Os céus paráram de ribombar nos seus insuperáveis sons, mas a chuva não! Chove intermitentemente ora em silêncio, ora em rajadas, despertando na mulher as lindas lembranças da cumplicidade com o companheiro, que se tornam muito mais lindas hoje, mesmo estando sòzinha sem o homem que dava todo o sentido à sua vida. Mas se esta – diz Mwali apertando no peito o livro aberto – é a minha história, então deixa-me vivê-la no cume, onde o meu marido gostava de estar comigo. Recuso-me a desvanecer pois, se assim o fizesse, estaria a espetar a lança da dor na alma do Mbata, que será para sempre o meu baluarte.

 

Mbata era um bom homem, muito embora fosse negligente no que diz respeito aos cuidados com a sua saúde. Fumava de forma inveterada, e provavelmente terá sido ele mesmo a influenciar a mulher a enveredar por esse vício. Mwali fuma demais. Muito demais, e quando está em órbita no eixo do fumo e da bebida, liberta as palavras em cascata para uma plateia constituída quase sempre pelas mesmas pessoas, que a escutam com avidez nas barracas espalhadas pelo bairro Chalambe onde mora, palavras eivadas de poesia, assim como falava o marido, sempre pronto a meter flores mesmo naquilo que parecia um vaso partido, sem condições de preservar a humidade. Só assim, pintando  as palavras com as cores da imaginação, como ele próprio dizia à companheira, é que vale a pena conversar. Se não fizeres isso, não é conversa. É demagogia.

 

Mwali ficou com esses ensinamentos de uma pessoa que partiu sem lhe deixar filhos, Não importa, Mbata passou-me, como testemunho, a imensa luz do candelabro que ele era, e será para sempre. Estes livros todos arrumados meticolosamente na estante, e outros encaixotados,  embora nunca os tenha lido, sinto-os como se os tivesse devorado. Conheço a história contida de cada um deles, tornei-me uma fonte que não pára de borbulhar água fresca para o leito dos rios, mas na verdade essa fonte foi construída dentro de mim pelo meu marido. Ele lia, e a  única pessoa que tinha de imediato para contar todo o enredo, era eu, sem ele saber que estava fazendo de mim um fiel depositário da sua doce loucura. É esse, o elo mais forte que me prendia ao Mbata.

 

*Excerto do livro “Mwali”, de Alexandre Chaúque, no prelo

segunda-feira, 27 março 2023 09:45

Se houvesse a ponte!

AlexandreChauqueNova

“Roubei” este título ao Areosa Pena, cronista de proa irresistível de ler em todos os momentos. Passam décadas após a sua morte, mas o cheiro da lavra deste personagem de ascendência judia, vai continuar a gotejar na memória em determinadas circunstâncias da vida, como  nos dias em que o vento sopra com intensidade e os barcos não podem fazer a travessia entre Inhambane Maxixe, deixando por terra, consequentemente, a necessidade urgente das pessoas chegarem aos seus destinos.

 

Se houvesse a ponte teríamos maior fluidez de tráfego, os ventos não seriam condicionante, mas nunca será redundante dizer isso embora haja quem pense de forma diferente. Quer dizer, a cidade de Inhambane é um lugar particular, é uma península, tornando-se portanto a única capital provincial de Moçambique por onde não se passa. À esta urbe só se chega e se sai da mesma porta. Daí a pacatez, o silêncio que alguns inergúmenos teimam em vituperar com estúpidos decibéis em todos os bairros, perante a incapacidade das autoridades municipais e dos próprios líderes comunitários.

 

Então, se houvesse a ponte a cidade seria escangalhada, diferentemente do pensamento de Areosa Pena que defendia essa infraestrurura. Ou seja, o movimento de viaturas e  pessoas iria crescer sem controle, matando toda a calmia dos tempos. Mesmo assim há aqueles que dizem que a economia da cidade ganharia outra dinâmica, uma pujança que nunca teve. Há outros ainda que vão pela linha de que Inhambane como cidade não tem mercado para grandes esfervescências, uma postura que nem a construção da ponte mudaria.

 

Se os próprios moradores da Maxixe e negociantes locais nunca se interessaram por Inhambane, não serão os grandes emperesários que rasgam a EN1 em demanda de outras províncias para fazer dinheiro, que irão desviar suas atenções para uma cidade sonolenta, é perca de tempo. A ponte se calhar vai beneficiar a pequenos comerciantes e reduzir o sofrimento das pessoas sobretudo em dias de mau tempo. De resto pode ser um gigantesco investimento com poucas possibilidades de retorno.

 

O governo provincial de Inhambane já ensaiou em tempos um projecto de construção desta infraestrutura que merece debate. Até porque chegou a haver uma aproximação a empresários chineses nesse sentido, cujos resultados não são conhecidos. E enquanto não se toma alguma decisão, permanece o dilema: é viável a construção da ponte Inhambane-Maxixe?

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