É muito provável que tenha chegado ao fim da estrada, porque se assim não fosse, sentiria pelo entusiasmo que me tem faltado nos últimos tempos, ao ponto de sair de casa com a camisa amarrotada. Já abdiquei das minhas próprias mãos, que deixaram de me convocar ao encontro do corpo da minha mulher que também ficou insensível de mim, se me sentisse havia de perceber pelo olhar ora com gotas ardentes de amor. Tenho a sensação de ter despejado toda a areia da minha báscula, e nem a pouca poeira que resta consegue levantar ao sopro do vento que igualmente perdeu o impulso.
Está a acontecer algo desesperado no meu ecossistema emocional, a minha mulher já não me acorda com as maõs leves nas manhãs para dizer bom dia. Então todo esse choque quer dizer que estou na mó de baixo, meu coração está frio como o mármore. Nem que a vontade de articular palavras ao acaso me invada, sinto que sou incapaz e o melhor que devo fazer é manter-me no mutismo, sob risco de sair desta penumbra que ainda me mantém com alguma luz, e cair definitivamente para o lado do escuro.
Mas as nuvens do meu espaço estão cada vez mais densas, nunca senti tanto medo. O pior é que cada vez que vou à cama, a minha solidão fica mais pesada. A mulher que está ao meu lado vergasta-me com o silêncio das costas flácidas, eu também tenho as mãos flácidas, incapazes de despertar o pólen. Tremo no centro de mim ao pensar que nesta casa onde tudo gravitava a à minha volta e da minha mulher, quem vibra agora são as vespas espalhadas em todos os cantos, incluindo nas minhas mãos que perderam o tacto.
Fiz anos ontem e a minha mulher nem sequer se lembrou de me oferecer uma flor, como sempre. Eu disse-lhe assim, amor, hoje é dia do meu aniversário, ela nem sequer olhou para mim. Continuou sentada na varanda olhando para o vácuo, com a mão tremendo por sobre o braço da cadeira de madeira que trouxe de São Tomé. Ignorou-me absolutamente, e, naquelas condições, senti-me desdenhado. Voltei à sala onde nunca gostei de estar por me sentir enclausurado.
Seja como for, ainda acredito no indulto, como os condenados que ficam longos anos no corredor da morte à espera da execução, eu também estou à espera da execução, com essa esperança de que um dia poderá abrir-se uma nova luz e ser chamado outra vez para a liberdade. Porém, enquanto esse dia não chega, continuarei aqui a ser incentivado ao castigo, pelas esporas do tempo. Sinto com dor o tilintar dos copos e das grandes canecas de cerveja nos bares que frequetava, e não posso sair daqui, as minhas pernas vacilam.
Estou à caminho dos noventa e pensava que o meu beco tivesse saída. Sim, tem saída! Para o aterro onde estou prestes a ir sem nada nas mãos, a não ser as memórias. As lembranças dos amigos. As saudades da liberdade. As músicas. E os agradecimentos todos à minha mulher, que deixou de falar comigo como se não me conhecesse. Recusa que as minhas mãos a toquem para despertar as melodias como noutros tempos em que éramos dois passarinhos desejosos de amor. Então, é essa a azagaia que levarei espetada no peito, por alguém que me acolheu durante toda a vida no coração, e que agora não me sente mais.