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terça-feira, 17 dezembro 2019 07:30

Quanto é que devemos por dia?

O Estado moçambicano terceirizou a defesa do território nacional aos mercenários russos do Grupo Wagner. Podia ter sido aos americanos da Blackwater ou aos sul-africanos da Hawks, mas o governo quedou-se no Grupo Wagner.

 

Por que o Grupo Wagner? Apenas podemos especular a razão. Há alguns candidatos mas os favoritos de muitos são o preço; a ligação histórica militar entre Moçambique e Rússia; e a necessidade de se ter um actor militar não vindo de um país Ocidental.

 

Analistas apontam ao facto de que geralmente os russos cobram entre $360.000 a $940.000 por mês para 200 soldados de fortuna. Mas há que se considerar que o preço está mais próximo dos $360.000 porque há mais ex-militares rasos do que oficiais.

 

Do outro lado da escala, os Black Hawks cobram aos governos entre $750.000 a $1.250.000 por mês para 50 ex-soldados. Mesmo assim a factura deve se aproximar ao primeiro valor por conta do facto de que há mais soldados rasos que oficiais, que estão no topo da escala.

 

Um outro factor sobre o que poderá ter pesado para que Moçambique se decidisse sobre a escolha de mercenários russos é um passado histórico militar e económico comum no auge da Guerra Fria. Esse passado envolveu uma dívida militar à Rússia (então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) que rondou os $2.4 milhões em termos nominais. Essa dívida só foi parcialmente cancelada com a entrada da Rússia no Clube de Páris, no âmbito dos Países Pobres Altamente Endividados (HIPC).

 

O relacionamento entre Moçambique e Rússia ficou em banho-maria durante 32 anos até à  visita do Presidente Filipe Nyusi à Moscovo, em Agosto, onde manteve conversações com o seu homólogo russo, Vladmir Putin. Provavelmente o impulsionador do reatamento do relacionamento é o facto de Nyusi ter se se licenciado em Engenharia Mecánica na antiga Checoslováquia.

 

Seguiu-se uma interacção entre os ministros dos negócios estrangeiros moçambicano e russo em 2018, em Maputo, que abriu caminho para uma maior cooperação na segurança e contra-terrorismo, bem como a assinatura de vários acordos de cooperação económica. E finalmente, Nyusi retornou à Rússia em finais de Agosto, tendo assinado uma série de acordos de energia e segurança – entretanto, poucos viram os textos desses acordos, sendo que, não se sabe o que cada parte deu a outra.

 

Mas possivelmente o que pode ter interessado mais a Moçambique foi evitar colocar todos os ovos na mesma cesta. É que os maiores actores nos projectos de petróleo e gás em Cabo Delgado são empresas ocidentais. E o país tem séries problemas em controlar a quantidade de recursos que saem para o exterior, dependendo dos números que recebe dos próprios investidores.

 

Sendo que, se quiser monitorar o que entra e sai, provavelmente faça mais sentido buscar ajuda de um antigo parceiro com interesses de também voltar a flexionar os seus músculos na arena internacional, em busca de um passado glorioso.

 

Um outro factor é o facto do país não ter ao momento dinheiro para fazer o pagamento de vários serviços, e muito menos ter mais espaço de manobra para solicitar empréstimos nos mercados financeiros, sabido é que a escandaleira do calote das dívidas ocultas dificulta a mobilização de recursos financeiros nos mercados financeiros internacionais, agravado ao facto de que os doadores têm condicionado as suas contribuições ao Orçamento do Estado. Sendo que, fazer um negócio em troca de futuros rendimentos ou exploração de recursos minerais ou energéticos parece ser mais apetecível a curto e médio prazos.

   

Todavia, independentemente do tipo de negócio que Moçambique fez com a Rússia, terceirizar a guerra contra os insurgentes custa uma pipa de massa. Daí que, se perguntar não ofende, quanto é que custa a nossa factura de segurança?

 

Mais: como é que vamos pagá-la? Se por via dos recursos, que recursos são esses? Petróleo? Gás? Diamantes? Pedras preciosas? Camarão? Atum? E quais são os termos de pagamento? Que implicações terá isso no nosso peso da dívida? Quando é que isso reflictir-se-á no Orçamento do Estado? Ou será que vai ser também uma dívida oculta?

terça-feira, 17 dezembro 2019 07:24

RESGATE – A minha escolha para o melhor de 2019

Escrevi esta crónica em dezembro de 2018. Mês em que o filme RESGATE fez a sua correção de cor, em Lisboa. Sete meses antes de estrear. Vimos o filme nos estúdios da Tobis, no Lumiar, para quem entende de cinema percebe a simbologia deste momento. O que escrevi não pode continuar na gaveta. 

 

Teria sido um ótimo spoiler. É o melhor que Moçambique levou ao Mundo em 2019. Podem acreditar. Já esteve em cinemas comerciais em Portugal, bateu o Rei Leão e foi presença assídua em festivais na Europa e em África. Agora lança o seu CD e streaming. 

 

Uma produção independente e a força de querer, de um grupo de pessoas que não desiste de sonhar, num país em que os velhos insistem em não nos deixar assumir um lugar merecido, suado e especializado, e quem vem de fora só quer sugar. O RESGATE já bazou! 

 

“Assim que entra a banda sonora dá um arrepio. Vêm memórias. Vem o presente. Vêm os dias quentes do nosso grande Maputo e a esperança que acompanha "Bruno" a caminho de casa. Ao sair da penitenciária ele quer resgatar a sua família e ser feliz. 

 

Esta podia ser a crónica de um filme normal e de uma realidade perfeita que queremos ver retratada nas telas de cinema.

 

Histórias de amor e finais felizes. O RESGATE não é isso, é muito mais. 

 

Tive a oportunidade de assistir a esta produção independente escrita por Mickey Fonseca e direção técnica de Pipas Forjaz. 

 

É um ato de coragem de um grupo de pessoas que arriscou. Um filme pensado com os pés no chão e que conta a história da minha geração. 

 

Uma geração que pertence a um dos países mais lindos do mundo que todos os dias se confunde com um ecossistema que nada tem a ver com a realidade do dia a dia de milhões de jovens que passam ao lado das "boas práticas" e da cooperação de Moçambique com o mundo. 

 

Homens e mulheres que já são pais e são filhos de uma independência que os torna dependentes da necessidade. RESGATE vem confirmar que o cinema feito em Moçambique e por moçambicanos já não contempla apenas os passeios longos e bucólicos na marginal, nem a linguagem poética e pós-colonial que agrada a gregos e a troianos e atrai financiamento para contar histórias que já não nos pertencem. 

 

Volto a reiterar que é o dia a dia, a vida das ruas de muitos homens com quem nos cruzamos no Estrela (mercado) quando vamos às compras ou recuperar uma peça do carro que de manhã já não acordou nele. 

 

É a vida daquela moça que nos vende cabelo e cruza a cidade de norte a sul para garantir a sua subsistência e a dos seus. É uma história de amor, também, onde duas almas se cruzam, se amam e acreditam num futuro melhor. 

 

Sol de pouca dura já que, como contava há pouco, assim que "Bruno" se vê em liberdade começam as tentações. O seu olhar terno esconde uma já vida anterior e assim que consegue chegar a Marracuene para reencontrar a sua mulher e a sua filha, tudo volta. Nesta ficção vive-se o minuto, mas não aquele minuto à espera que acabe e sim o viver do que vem a seguir. 

 

Filmado no grande Maputo e contemplando as zonas de Boane, Marracuene e Matola, RESGATE não é um filme da town e sim o epicentro de onde tudo se passa. Não é nos prédios altos do cimento que se luta pela sobrevivência, que se arranjam gones e que se perdem vidas. É numa periferia em crescimento que se sente o pulsar desta geração. 

 

No decorrer da trama acredito que Mickey tenha olhado para esta realidade e prestado a justa homenagem à Matola, esta cidade a oeste de Maputo. Cidade onde cresceu e que conhece com os olhos fechados e que serve de pano de fundo para expelir memórias adaptadas aos nossos dias. Aos cinemas que ia na infância.  

 

Depois de matar saudades da sua família, “Bruno” decide mudar de vida. O que ele não percebe é que não basta querer e é preciso poder. Refém do seu passado e com problemas que lhe atrasam o futuro o Mulato ou "Mullas" como lhe chamam os bradas regressa ao mundo do crime. 

 

Mesmo apesar de ter tentado procurar trabalho, a emergência de querer resoluções volta a arrastá-lo para aquilo que hoje em dia chamamos de DNA. O que ele acha que sabe fazer e se sente confortável. Crime. Aquela que podia ser a sua a mais fácil tarefa torna-se no seu maior problema. 

 

RESGATE aborda de forma nua e crua uma situação que parece não ter fim na vida real. Os raptos. Talvez por isso o crowdfunding para o filme tenha sido mais efetivo do que ser apoiado por marcas que não se querem associar ao maior tabu do país, mas que leva famílias de norte a sul ao desespero e são desembolsadas milionárias quantias em prol da liberdade! Antagónico, não é? 

 

"Bruno", o protagonista e ator de primeira viagem revela-se um especialista em atividades criminosas. Com o seu ar contrariado, doce e perdido acaba por se tornar a peça principal dos raptos, o que contrasta com o speed do seu amigo de infância que o resgata para o seu novo ou velho presente. 

 

Presente envenenado, já que a quadrilha que acompanha acaba por cometer erros de amador. À medida que a história se vai desenrolando na terra vermelha transporto-me para qualquer outra cidade europeia. Podia ser Paris e os seus arredores ou os Banlieues onde as oportunidades também são escassas e rapidamente a pressa pode ser fatal. 

 

É o que me agarra ao filme. Mickey Fonseca mostrou o seu país, mas saiu dele. Não almeja o perfil hollywoodesco, mas é filme para salas de cinema em todo o mundo.  A abordagem contemporânea e o slang/calão utilizado é local, mas o problema é global. Toca na ferida de uma globalização que não acompanha mentalidades. 

 

Os diálogos e os momentos de humor fazem-nos relaxar no meio da tensão e a nós, moçambicanos, faz-nos sentir em casa. Posso arriscar que todos, um dia, conhecemos ou tivemos contato com uma das personagens deste filme e que já nos questionámos o porquê da escolha desse caminho. 

 

A banda sonora pode ajudar a dar respostas, uma vez que foi produzida a dedo. Podemos chamar-lhe homemade. Detalhes que tornam RESGATE ainda mais especial. Juntam-se os temas de Azagaia, o rapper que coloca o Povo no Poder, pois é do Povo que se fala.”

 

segunda-feira, 16 dezembro 2019 06:57

Gatunos de bom coração

 

Na semana passada ficamos a saber que um cota amoroso e bem educado ofereceu ao seu sobrinho uns três carrões de alta cilindrada e uma alta vivenda na "Djuz". No princípio deste ano também ficamos a saber que um jovem bondoso e de bons costumes comprou meia dúzia de carros topo de gama e ofereceu aos seus bradas. O mesmo puto ofereceu um "senhor-carro" à namorada e ainda quis amavelmente oferecer uma mansão à uma amiga que acabava de conhecer há uns dias lá "nazeropas".

 

Isso - sim - é amor ao próximo. Valorizar quem te valoriza. Os "Indivíduos" estão a dar boas lições de moral a sociedade e nós estamos a fingir que não estamos a ver nada. As últimas referências de bondade que este país ainda guardava com muito sacrifício foram recolhidas à cadeia. E isso é muito feio. Já não se pode praticar um gesto de bondade neste país. Já não se pode nutrir afecto por um ente querido.

 

No fundo no fundo esses nossos gatunos são boas pessoas. Esse amor é demais. É muita ternura, muita fofura. Já estou a desconfiar que talvez nem são gatunos. As tantas nem roubaram, só levaram emprestado por tempo indeterminado sem autorização prévia.

 

Não podemo-nos esquecer desses irmãos nas próximas campanhas de solidariedade. Os gajos podiam acabar com os problemas do Idai em dois tempos. No futuro vão assessorar malta I-Ene-Gê-Cê e Cruz Vermelha. Essa cena de desviar donativos vai acabar. São muito sérios os gajos. Vão transformar aquele xilindró numa faculdade onde se desenvolvem competências para oferecer bens alheios.

 

É preciso desenvolver muita coragem e demasiada cara-de-pau para sair por aí fazendo beneficência com dinheiro roubado aos pobres. Muito diferente do Robin dos Bosques que roubava da nobreza para dar aos pobres. "Eni-wey", pelo menos tentaram. Os gatunos devem ter um conceito de caridade diferente do tradicional.

 

Mas é muito amor, gente. É muita bondade. Com aqueles "Indivíduos" na cadeia é país que perde. São os únicos protótipos de "bondade" que ainda restam no mundo. "Indivíduos" que resistiram às intempéries do egoísmo e da ganância. Gajos em vias de extinção. Bons samaritanos. Antes que desapareçam de vez deviam lançar livros e dar palestras sobre benevolência. Oferecer carros de luxo a um menino folgado e mimado é muita ousadia. É obra.

 

- Co'licença!

quinta-feira, 12 dezembro 2019 06:37

Dois Copos

O diâmetro da base opaca do copo era menor que a do topo, o copo estava assente numa mesa rectangular de pinho, o conteúdo interior borbulhava até desaguar na superfície espumante, a frescura do líquido dourado transpirava deixando a parte externa deste completamente ensopada.

 

O proprietário do recipiente olhava meditabundo sem se importar com o barulho produzido por outros clientes que conviviam procurando fazer-se ouvir ante a música ensurdecedora expelida por potentes colunas.

 

Momentos de regressão inolvidável assaltaram a sua mente, um sorriso inocente errou-lhe pelos lábios ainda sequiosos.

 

Segurou o copo, sentiu o frescor fluir corpo adentro animando o seu estado de espírito; era a primeira vez em um ano que tinha o privilégio de usufruir de um momento especial, não demorou, deu um gole.  

 

- Ahh! – estalou a língua.

 

Depois num trago prazeroso eliminou o que ainda restava da cerveja.

 

Buscou a servente, submersa num mar de gente segurando acrobaticamente uma bandeja com inúmeros copos.

 

Quando a capturou com o olhar, levantou a mão direita com o dedo indicador erecto, a moça voltou a perder-se para retornar instantes depois com outro copo.

 

Enquanto aguardava ansiosamente que outro copo chegasse desequilibrou-se devido a estrutura deficiente do banco onde se encontrava sentado, movimentou-se para esquerda com o propósito de equilibrar-se, este movimento fez com que o guarda que se posicionava no limiar do bar o fuzilasse com um olhar inquiridor, mas quando percebeu que o seu vigiado não constituía ameaça manteve-se na posição de o controlar a partir da porta.

 

A servente pousou o copo na mesa, ele não demorou a segurar e a levar para a boca, tragou sofrivelmente, limpou a barba de espuma, a animação que morava no seu ser redobrou.

 

Depois levantou-se e caminhou calmamente em direcção à porta onde estava o guarda, estendeu ambas as mãos e este algemou-o, depois cobriu as mãos com uma camisola.

 

Iniciaram a caminhada de regresso a penitenciária localizada num dos bairros da cidade. Enquanto caminhavam, a movimentação popular fazia-se sentir com os citadinos aglomerados nas paragens, muitos dos que aguardavam o seu momento de embarcar, estavam submersos nos seus telemóveis. Invejo-os pela liberdade que usufruíam, mas estava grato pelo momento de liberdade prematura que lhe permitiu beber dois copos.

 

“ Museu vazio” – gritou um cobrador de chapa.

 

Não demoravam para chegar, quando adentraram para o recinto prisional, o recluso verteu lágrimas de saudades dos breves momentos em que foi um homem livre. O guarda prisional acompanhou-o até a sua cela e libertou-o das algemas.

 

António Murrada cumpria a sua pena de prisão de dois anos devido a posse ilegal de “soruma”.

 

Dias antes da liberdade provisória, António era hostilizado pelo seu verdugo que de forma implacável infligia pesado castigo, mas Murrada procurava a todo custo cumprir com as normas da cadeia para não sofrer a punição que o seu carrasco prazerosamente impunha.

 

Mas o guarda penitenciário Rafael Salgado, apossado por um agente maligno encontrava sempre motivos para castiga-lo. Havia dias de cacetadas injustificadas e outros de serviço pesado.

 

Num desses dias Salgado apresentou-se imponente em frente à cela de Murrada e pediu que o acompanhasse, o prisioneiro resmungou, seu carrasco alvejou-o com olhar incisivo fazendo com que o recluso obedecesse.

 

Quando chegaram ao destino, o guarda penitenciário indicou-lhe o trabalho que deveria efectuar.

 

- Desculpa chefe, mas eu limpei as latrinas ontem, hoje é dia de outro – bradou serenamente.

 

- Preso cento e vinte – cumpra ordens!.

 

Olhou furioso para Salgado, todo o seu nervosismo ficou condensada nos olhos injectados de sangue. Depois de cumprir a nefasta tarefa regressou para o seu domicílio prisional acompanhado do seu fiel verdugo.

 

Num dia pela manhã, quando António Murrada tomava o seu banho de sol no quintal da prisão era vigiado severamente pelo guarda Salgado que o fitava sem desarmar.

 

De repente uma queda aparatosa do guarda Rafael Salgado levantou um reboliço no quintal prisional, ninguém se aproximava da vítima estatelada que esperneava e esbracejava, os seus colegas que estavam longe demoravam a chegar.

 

Quando todos chegaram, guardas e reclusos ninguém se prontificou a socorrer a vítima pois estavam reféns das suas superstições.

 

Quando Murrada percebeu do que acontecia correu para socorrer a seu implacável verdugo que sofrera um ataque epilético, o socorrista introduziu um pedaço de pano entre os dentes para evitar que este mordesse a língua e colocou a cabeça da vítima na lateral porque este se babava.

 

Quando as autoridades médicas chegaram, o primeiro socorro já tinha sido acautelado, recolherem o enfermo, colocaram numa maca e procederam a retida do recinto prisional em direcção ao hospital central de Maputo.

 

Comentaristas não remuneráveis entre reclusos e guardas debatiam a pronta intervenção de Murrada que apesar de massacrado socorrera o seu mais directo inimigo.   

 

No dia seguinte o pequeno herói da penitenciária foi chamado a presença do director.

 

- Caro senhor António, estou imensamente grato pela atitude e préstimos oferecido ao nosso colega – afirmou o director. – Graças a sua intervenção o nosso colega escapou.

 

Murrada manteve-se firme e calado.

 

- Gostaríamos de recompensa-lo, diga-me o que deseja?

 

Não demorou para que o recluso levantasse a mão direita e esticasse dois dedos, indicador e o mediano.

 

- O que significa esses dois dedos, recluso Murrada?

 

- Dois copos - respondeu por fim – e logo acrescentou. – De cerveja.

 

- Muito bem, irei pedir a um dos guardas que comprem uma garrafa – afirmou o director.

 

- Desculpe senhor director, mas o meu pedido não está completo.

 

- Diga.

 

- Gostaria de beber os dois copos como um homem livre.

Do tribunal distrital de Brooklyn, cidade de Nova Iorque, Estados Unidos da América, ficamos a saber, segundo a acusação americana, que Jean Boustani  um gestor sénior de uma empresa estrangeira relacionada com as ditas dívidas ocultas é um Robin Hood de avesso. Este ficou famoso por tirar dos ricos para dar aos pobres. Por sua vez, Boustani, entre outros, por ter sido acusado (e já absolvido) pelos americanos de tirar dos pobres (moçambicanos) para dar aos ricos de várias nacionalidades, incluindo a moçambicana. 
 
 
E o que Boustani tem a ver com a ajuda ao desenvolvimento (o apoio dos países ricos aos países pobres iniciado com o pós-independências, sobretudo de países africanos)? 
 
 
A luz e concluindo o que um antigo líder mundial (já falecido e creio de nacionalidade israelita) disse um dia e a propósito do que podemos apelidar de "bostanismo" -  subtrair dos pobres e dar aos ricos – o seu modus operandi é o mesmo da ajuda ao desenvolvimento. Segundo o tal líder esta ajuda consiste em tirar dos pobres dos países ricos e dar aos ricos/elites dos países pobres. E no circuito deste exercício sobressaem os “beltranos da vida" que pululam dos dois lados: o do doador e do doado. 
 
 
A literatura sobre a ajuda ao desenvolvimento atribui a esta mais fracassos do que sucessos e já passam mais de seis décadas. No mesmo trajecto se encontram as boas intenções de Boustani em ajudar Moçambique com o seu alegado projecto de protecção marítima. Por idêntico modus operandi e efeitos o Jean Boustani foi levado à barra do tribunal. E em relação aos protagonistas da ajuda ao desenvolvimento: quem ou a quem cabe leva-los à barra do tribunal?  
 
 
Certa vez, a respeito dos "beltranos da vida", num convívio de celebração - entre os beltranos do Norte e os do Sul – por ocasião do início de mais um projecto (taxa de sucesso) do apoio externo ao desenvolvimento, um dos "beltranos do Sul" tomou a palavra - em representação de um consórcio também regional e receptor da ajuda - para agradecer aos visitantes por mais uma "taxa de sucesso". Em seguida fez uma caracterização do circuito (exógeno e endógeno) do sistema da ajuda ao desenvolvimento, sobretudo como os protagonistas, de fora e de dentro, incluindo ele, tiravam proveito do que chamou de  "benesses do sistema" no lugar de males do sistema. 
 
 
E para fechar a sua intervenção pediu um "tchim-tchim” em nome de mais e mais projectos em benefício das comunidades mais carenciadas, acrescentando de que tais comunidades mandavam um abraço de eterna gratidão. No momento do brinde ainda clamou um suculento “Is a good system, comrades”, arrancando aplausos e gulosos goles dos homólogos, internos e externos, presentes na celebração.  
 
 
Por estes dias sinto este episódio nos olhares da pérola do índico e suponho que semelhante "tchim-tchim" tenha sido feito - algures e pelo mundo fora - a reboque da recente absolvição de Boustani. Ademais e para a História ficará registado a inquietação sobre quem foi absolvido em Brooklyn: o Boustani ou a bosta do sistema? 
quarta-feira, 11 dezembro 2019 12:41

Thsala... flagelada na janela da alma

Pode ser que ela tenha abdicado de viver, caso contrário não estaria a suicidar-se todos os dias com o veneno do seu próprio afastamento. Já não frequenta a sociedade, diferentemente de outros tempos, quando tudo dependia das suas vontades. Não tem coragem de sair de casa, para absorver a atmosfera espiritual proporcionada pelo contacto com as pessoas. Tem medo de rever ao espelho o rosto, por demais degradado pelo fumo e pela bebida de nunca acabar. Os dentes estão queimados pelo rapé que passou a mascar depois de todas derrotas, por isso tornou-se relutante em sorrir para os interlocutores que em algumas – poucas -  ocasiões a abordam no seu casulo, para matar a saudade de uma amiga muito doce. Porém, repugna estar no seu convívio. Está constantemente a cuspir uma saliva espessa que nos vai enojar. Mesmo assim, no meio daquela decomposição toda, Thsala mantém acesa a luz da sinceridade.

 

Há muito que não a via. Sentia tremendamente a falta de uma pessoa com quem podesse conversar sem tabus, e essa pessoa, numa cidade alagada de  preconceitos, é Thsala. Eu queria velejar com palavras espontâneas, esquecendo momentaneamente todas as quedas que tenho tido, e nenhuma outra pessoa podia me acolher para isso, que não fosse Thsala. Thsala é a própria escala diatónica, onde residem todas as notas para se compor uma belíssima canção de amor.

 

Fui para lá, sabendo de antenão que a minha amiga estava naquelas condições. Cheguei a pensar em passar por um botle store e pegar uma garrafa de qualquer coisa para ela, mas a minha consciência não me deixou. Quis levar a guitarra.... também nada! Guitarra para quê, se Thsala é o conservatório em si, onde terei à disposição todos os instrumentos! Então não levo nada, senão as garrafas vazias de oxigénio que trago dentro de mim. E voltarei de lá abastecido, com ar suficiente para voltar a voar e reocupar o espaço que me é reservado na órbita das minhas imaginações.

 

Thsala cuspiu para o lado, todo o tabaco molhado pela saliva, quando me viu entrar no seu espaçoso quintal, depois de pedir licença.  Senti náuseas, mas já não podia retroceder. Percebi o embaraço que lhe apossou. Inclinou-se, desajeitada,  para cobrir o cuspo com as mãos, também flageladas pelo tabaco, como os seus dentes. Ela não consegue olhar para mim porque sabe que naquele rosto já não há candura. Esvaiu-se completamente, para dar lugar às ruinas.

 

Fui buscar uma cadeira, e ao voltar vi a mulher compactando com os pés, o “aterro” que tinha feito com as mãos sobre o lago de saliva espessa e massa de tabaco. Ela continua a não olhar para mim, e sem falar para dizer seja o que for. E tudo isto é um sismo que cabe a mim desvanecer.

 

- Thsala, meu amor, vim te ver!

 

- Vens ver um farrapo?

 

Thsala voltou a cuspir. A boca segrega muita saliva, e ela, envergonhada, não tem como evitar aquilo.

 

- Desculpa, meu bem.

 

Levantou-se e disse que ia à casa de banho. A roupa que usa está lavada. Engomada. Os chinelos ainda estão no rítmo. Mas tudo isso vai-se diluir num corpo desmoronado, e se partirmos do princípio de que o rosto é um pouco a janela da alma, então Thsala entrou em última derrocada.

 

Fiquei um tempo interminável à espera que a minha amiga voltasse. Debalde! Quem veio é a empregada, para me dizer que Thsala não está bem. Pede desculpa.

 

- Ela disse para o senhor voltar outro dia.