A entrevista está marcada para Chilembene, terra natal do presidente mais borbulhante da África, em todos os tempos, que pecava entretanto por pensar que as coisas deviam obedecer ao ritmo da sua loucura. É manhã solarenta de um domingo que pode estar a começar da pior forma, ou seja, Samora evoca a Deus desmentindo todos os Seus preceitos. Ele disse-me de frente, que Jehová nunca existiu. Chegou a afirmar, na sombra frondosa onde estamos sentados, de homem para homem, apesar de ele representar o símbolo maior do poder, que a bíblia era obra de paranóicos. Mas esse pensamento, claramente era um delírio.
Samora Machel passou a noite anterior ao nosso encontro numa cubata desguarnecida, dormindo na esteira de palha previamente preparada, completamente nu, sem travesseiro, respirando o perfume tóxico dos incensos trazidos por curandeiros ndawus de Nova Mambone. Era necessário que assim fosse, segundo soube do próprio durante a entrevista. O poder não se oferece, arranca-se, e ele sabia que estava cercado por bajuladores e gananciosos que nunca o quiseram na cadeira mais importante da governação, por o considerarem inculto e incapaz de dirigir um Estado moderno.
Fui alojado no mesmo lugar, noutra cubata, ao lado da que acolhia Samora, e pude aperceber-me que o homem passou toda a noite a balbuciar. Mas tive que fazer um esforço para me abastrair daquele pesadelo porque não era nada comigo. Eu fui ali apenas para entrevistar o Presidente da República, que me parece, desde o primeiro dia que o vi, um grande actor que mesmo assim, carece de descernimento. Ele é capaz de agir como um touro num supermercado.
Acordei muito cedo, na madrugada que ainda recebia as últimas gotas do luar. Espretei lá fora pelas frestas da casota, e vi Samora saíndo do seu casulo vestindo uma saiota vermelha, cingida no lombo por um cinturão de pano preto. Estava descalço. Atrás dele vinha uma mulher com seios enormes à mostra, segurando na mão esquerda um rabo de boi que ia introduzindo num recipiente que trazia noutra mão e chapiscava nas costas do Presidente, e eu fartava-me de rir perante aquele espectáculo ridículo. Nem parecia Samora Machel que rugia nos palanques, Independência ou morte!
Depois da “ducha” e do pequeno almoço, fui escolatado por dois brutamontes para o lugar onde vai decorrer a sessão de perguntas e respostas. Indicaram-me a cadeira onde devia sentar e reparei que não se diferia da outra que acomodaria o também apelidado “leão de Gaza”, embora esse epíteto pertencesse a Ngungunhana. E eu estou ali, sentindo com prazer o cantar do vento leve, enquanto espero pela sumidade do nosso tempo. Samora come na cubata, à mão, sentado na esteira com as pernas entreabertas. A panelinha de barro bruto, abastecida de xima e carne, está aconchegada muito perto dos testículos, que estão à mostra diante da mulher com os seios fartos e livres.
Serviram-me uma garrafa de água mineral importada da Rússia, para ir bebendo enquanto espero pacientemente pelo “boss”, e eu divirto-me com todo este cenário comandado pelo silêncio. Venero o silêncio. O silêncio é o melhor palco para amar. E o amor está acima de todas as coisas. “Vais amar o próximo, assim como de amas a ti próprio”.
Samora Machel sai da cubata vestindo, agora, o uniforme militar que o torna personagem destacável. É um leão saciado, pronto para novas batalhas. Mas contrariamente ao felino rei da selva que ruge depois de encher o bandulho, Samora ruge porque está com medo. Tem medo dos que lhe rodeiam.
Olho para ele e percebo que não está seguro. Titubeia na minha direcção. Parece um sonâmbulo que caminha para o fim, e eu levanto-me para saudar o ídolo das massas. Samora já não se envaidece. Muito menos embevece. Ele degenera. Está sitiado por um batalhão armado que o protege. Parece Ngungunhana quando estivesse ébrio, metia medo. Só que, Samora Machel, para além de meter medo, ele também está com medo. Não consegue responder às minhas perguntas. Delira em todo o tempo dizendo, A luta continua!
Quem não vive em Nampula ou quem vive há menos de dois anos pode não entender. Mas, é o seguinte: pelo menos até 2017, ano em que o edil Mahamudo Amurane foi barbaramente assassinado, a cidade estava repleta de flores. Haviam jardins e parques infantis na urbe. Haviam tulipas, orquídeas, rosas, bom-dia, calêndulas, camélias, línguas-da-sogra, rainha-da-noite, etecetera.
As flores pressentiram a burla. Quando o cota Vahanle ganhou as eleições intercalares, na segunda volta, logo em seguida as flores murcharam começando pelas que se encontravam no próprio pátio do seu gabinete e residência. As flores sabiam do engodo. Com a nova vitória do tio Vahanle, de 15 de Outubro de 2018, as flores que ainda deram o benefício da dúvida ao presidente morreram de vez... de angústia. As plantas que exibiam sete-vidas, da avenida do Trabalho (da meia-via à padaria Sipal), despediram-se logo antes da tomada de posse do edil. Nós vimos isso, mas não entendemos.
Já li algures artigos científicos que afirmam que crianças e cachorros conseguem ver pessoas más. Pressentem. Lêem almas. Vêem energias negativas. Mas eu acho que as plantas também têm o seu próprio horóscopo. Lêem a mão de quem cuida delas. Esperemos apenas a confirmação.
Quem vivia aqui certamente que viu. As flores que mais mostraram musculatura e esperança exacerbada foram as do Jardim Parque. Até Janeiro do ano passado as pessoas tiravam fotos de casamento ali. Hoje, até "molwenes" têm medo de entrar ali. Até a vedação se foi.
As flores do gabinete e da residência do Governador ainda estão ali, mas entediadas pedindo socorro aos transeuntes e sentinelas. Mas ninguém as escuta. Nós não temos a capacidade de entender a língua das flores - o floriguês. Aquelas plantas estão a definhar lentamente. Estão a dar o último adeus aos munícipes, o que Amurane não teve a oportunidade de fazer.
Se o tio Vahanle estivesse num país onde o meio ambiente é assunto sério, talvez hoje estaria na prisão. A inoperância da edilidade é um feitio de formação de quadrilha para delinquir. Dói a alma! Dá raiva!
As flores sabiam do seu genocídio. Hoje, quem encontrar uma flor saudável na cidade de Nampula (que não seja num quintal particular) que dê um beijo, tire uma foto e publique. Essa flor merece uma medalha e estátua. "Wariya wa Wamphula", era uma vez.
Será que o edil Vahanle tem falta de assessoria? Aqueles quadros - jovens e velhos - que vejo por ali não o podem assessorar? Não estamos a falar de máquinas para trabalharem com lixo e buracos. Estamos a falar de dar água as flores. Custa alguma coisa?!
- Co'licença!
Em Moçambique, uma estrada em péssimas condições elimina a vida de um veículo e salvaguarda a dos seus ocupantes. Por sua vez, uma em boas condições e por conta de acidentes, elimina a vida de ambos, a do veículo e a dos ocupantes. Neste contexto, não sei se faz algum sentido (atenção o próximo Orçamento de Estado) pedir que o Governo melhore as condições de transitabilidade das estradas. Alinhar nessa diapasão não será o mesmo que o Governo defender a eutanásia (morte assistida) ou, no mínimo, que esteja em curso, um projecto oculto e selectivo de eliminação de certas franjas da sociedade.
O intróito vem a propósito da elevada sinistralidade nas estradas moçambicanas, em particular na N4, aqui citada apenas por razões de proximidade. Igualmente, o intróito vem a reboque do recente debate parlamentar na antiga metrópole, Portugal, referente a despenalização ou não da eutanásia.
Tenho dito, em privado, que graças a manifesta incapacidade do Governo em melhorar a qualidade das estradas que o nível de sinistralidade não é maior e a população moçambicana não é inferior aos actuais 28 milhões. A tal incapacidade ainda concorre para desestimular a compra de automóvel, contribuindo assim para um ambiente são quanto a poluição atmosférica. De per si, isto já seria o suficiente - barata e ao alcance dos moçambicanos – para se apostar como uma fórmula/estratégia rumo ao desenvolvimento sustentável. As Nações Unidas agradeceriam imenso por este contributo imensurável do país ao mundo.
Mas, infelizmente, fora melhor denominação, esse não é o entendimento. Do debate nacional sobre a sinistralidade, emergem várias soluções que recaem sobre a (i) fiscalização, a (ii) infra-estrutura e o (iii) comportamento humano. A primeira, porque à troco de alguma cifra o regulador deixa passar o infractor (automobilista). A segunda, porque a melhoria não previra um separador físico entre os dois sentidos. A terceira, porque o automobilista se fez à estrada embriagado e o peão sem respeitar as regras ou os pontos de travessia.
Dito isto, pergunto: haverá algum interesse para que assim continue? No mínimo e pelo resultado (elevada sinistralidade), a contínua insistência governamental na melhoria das estradas nacionais alimentam severas desconfianças em relação aos reais interesses do Governo. Em tese, e perante os factos, o Governo aposta os parcos recursos dos contribuintes na criação de condições para o luto das famílias dos próprios contribuintes. Um assunto para perguntar: ajudar o outro a morrer, não será um crime?
Pelos vistos não é crime. E aqui entra o debate sobre a eutanásia em Portugal. Dele, retive o essencial - através da seguinte frase: “O suicídio não é um crime em nenhum país. Parece-me um pouco ridículo que seja crime ajudar alguém a fazer uma coisa que não é crime.” (Philip Haig Nitschke, activista pela morte assistida ao jornal português expresso do dia 20 de Fevereiro corrente). Neste sentido, e extrapolando para a realidade moçambicana, quem se faz à estrada ao volante e embriagado ou que não cumpra as regras de travessia é um suicida. E o suicídio em Moçambique também não é crime, tanto para quem o cometa e por arrasto, para quem o ajude nessa empreitada trágica.
Todavia, e perante a insistência governamental em aprovar e executar anualmente um Orçamento de Estado que aposte e priorize a melhoria das estadas, não me admira que um dia, os defensores dos direitos humanos processem o Estado por reiterada tentativa de genocídio.
Estou aqui, desde a semana passada, a vasculhar os meus apontamentos da faculdade para ver onde se encaixa o valor-notícia do espectáculo artístico do arguido Paulo Zucula. Não entendi bem qual era o alcance da notícia. Mostrar que o antigo ministro sabe tocar guitarra? Mostrar que ele faz caridade ensinando outros detentos a dedilhar a guitarra? Mostrar que ele é homem-do-bem? Mostrar que ele é um cara benevolente?
Não apanhei a intenção até agora. Quem convidou a imprensa? Os serviços penitenciários? Os advogados? O próprio "gatuno"? Os familiares?
Está muito difícil para mim entender. Paulo Zucula é um arguido como tantos outros que andam nas prisões deste país. E ele não foi preso porque plagiou uma música de dono. Nem porque roubou uma guitarra. Ele e mais dois comparsas foram indiciados da prática de sobrefaturação num valor estimado em 400 mil dólares. Zucula é acusado de ter aceite subornos enquanto membro do Governo para facilitar a aquisição de duas aeronaves da companhia estatal de aviação. Sem contar também que Zucula é acusado de ter recebido valores que variam entre 135 mil dólares e 315 mil dólares para facilitar a adjudicação de obras do Aeroporto de Nacala, na província de Nampula, à construtora brasileira Odebrecht. Sendo menos poético: Zucula pode ter delapidado o país. Ou seja, é um potencial gatuno. Não é brincadeira, não!
Por isso, eu acho que fazer uma cobertura jornalística pomposa do espectáculo musical de um punhado de prisioneiros liderados pelo antigo ministro é brincar com coisas sérias. É tentar ludibriar o povo, uma vez que até àquele dia Zucula ainda aguardava julgamento. Ainda não tinha sido condenado, e não foi até agora. Aliás, o julgamento começou uns dias depois daquele "show" de bom-moço. Que implicações terá aquela campanha beneficente no julgamento?
E se a moda pega?! E se cada prisioneiro quiser o seu espaço de antena?!
E se a Helena solicitar uma cobertura para mostrar que sabe imitar Zena Bacar? E se as suas colegas de cela pedirem cobertura para mostrarem que sabem "tsovar" como Zaida Chongo? E se o Ndambi quiser mostrar que sabe jogar golf? E se o Rosário quiser mostrar que sabe jogar xadrez? E se o Mazoio quiser exibir que é um grande trompetista? E se o Chang quiser mostrar que é um autêntico Bethoven? E se o Nhangumele quiser mostrar que sabe tocar chocalhos? Quid juris?
Não sei o que os manuais dizem sobre isso. Só sei dizer que existem muitos detentos talentosos, desde artistas plásticos, músicos, atletas até acrobatas. Se antes de cada julgamento, quisermos exibir os dotes de cada arguido teremos de montar um "The Gatuno's Channel" com o orçamento do Estado. Matéria é que não vai faltar. Até Manuel Escurinho fez curso de árbitro na cadeia, era arbítrio do campeonato penitenciário... ninguém mostrou.
E agora, quid juris?
- Co'licença!
"Temos feito progressos significativos nos últimos três anos na nossa luta contra a corrupção, apesar do cepticismo de pessoas com registos questionáveis", disse o presidente na quinta-feira da semana passada. "Reforçamos a estrutura legal para combater a corrupção, com a ajuda do parlamento, aprovando a Lei de Proteção a Testemunhas, o Gabinete da Lei de Promotoria Especial, a Lei do Direito à Informação e uma Lei das Empresas que fornece um quadro para um registo de propriedade benéfico".
"O governo aumentou as alocações orçamentais para todas as instituições de prestação de contas do Estado", incluindo o Parlamento, o judiciário, o Auditor Geral e o Gabinete do Promotor Especial, disse o presidente ao parlamento.
"Cerca de quarenta ou mais personalidades de alto nível estão atualmente perante os tribunais sob várias acusações de corrupção e outras estão em processo. Gostaria de repetir que, se forem apresentadas evidências de corrupção, ninguém será poupado, independentemente da posição ou filiação política. Ninguém está acima da lei. Esse é o verdadeiro significado de igualdade perante a lei ", concluiu o Presidente no seu discurso ao Parlamento na quinta-feira, 20 de Fevereiro.
Infelizmente, não foi o Presidente moçambicano falando ao parlamento moçambicano. Em vez disso, foi o Presidente Akufo-Addo, dando o seu discurso sobre o Estado da Nação ao parlamento do Gana. O discurso foi transmitido ao vivo pela rádio e milhões o ouviram dizer "ninguém está acima da lei".
Seria maravilhoso se o Presidente de Moçambique pudesse fazer tal discurso ao parlamento. E seria emocionante se o parlamento moçambicano, em apenas dois anos, pudesse aprovar quatro leis anticorrupção importantes. Quando é que ouviremos o presidente moçambicano a falar as palavras de outro presidente africano: "se forem apresentadas evidências de corrupção, ninguém será poupado".
Joseph Hanlon em Accra, Gana
O 14 de Fevereiro, o dia dos namorados, já passou, mas as suas incidências ainda se fazem sentir por estas bandas da capital da Pérola do Índico. Desta vez por conta de um florista que ameaçara um seu cliente assíduo da data em apreço e de outras ocasionais. A ameaça: executar uma acção extra-legal ou judicial contra o seu cliente, a quem acusa de ser um devasso social.
O histórico: no dia 14, desloquei-me ao estabelecimento do florista para os devidos efeitos. No local deparei-me com um alvoroço total. Pela primeira vez, e diante do citado cliente, o solícito florista se recusava a vendê-lo as habituais flores bem como a respectiva entrega às destinatárias. O alvoroço recheou toda a hora do almoço, período das rosadas visitas do cliente assíduo . A desordem foi tanta a ponto do florista fechar o estabelecimento.
Em pouco tempo da minha estadia no local deu para perceber a querela: o florista queria dar um “BASTA” ao modo de vida de “Don Juan” do seu cliente. Isto depois de quase duas décadas de préstimos inestimáveis e a ponto de se sentir cúmplice e abusivamente usado pelo histórico cliente. Este, todos estes anos, recorrera aos serviços do florista para presentear a sua “Rosa” (o jeito carinhoso que ele trata a mulher) e a toda prole da sua concubinagem, que até não lhe caía mal na imagem de bem sucedido. Aliás, e ao que parece, um direito constitucional que o florista não se importava em auxiliar o seu cliente na sua materialização. Isto foi até ao passado dia 14 de Fevereiro. O dia em que a nova concubina a ser presenteada - passando a pertencer ao harém do seu cliente - era a filha caçula do florista. Não havia nenhuma dúvida, pois o endereço do cartão das flores era o da casa do florista.
No auge do alvoroço, fui um dos convidados - pelo florista - a ver as provas que sustentavam a acusação. Até então nunca vira um arquivo metodicamente organizado. Uma sistematização comparável só a da Alemanha dos tempos do III Reich. Cada concubina tinha a sua ficha, contendo os dados pessoais e outro tipo de informações adicionais. Em cada ficha os anexos de fotos, vídeos, gravações áudio dos pedidos das flores e a de indicação do nome e endereço das destinatárias, as cópias dos cartões que acompanhavam as flores e por ai em diante.
O passado securitário do florista foi uma vantagem na organização meticulosa do arquivo. E desta vez, um outro tipo de vantagem do seu passado securitário, amiúde, e a par da abertura de um processo judicial, era por ele avocado. À margem do bate-boca, e a propósito da querela “florista vs assíduo cliente”, o recente debate em torno da penalização da invasão a privacidade quase que resvalava em pancadaria entre os restantes clientes.
Infelizmente e por razões de compromissos inadiáveis, tive que deixar o estabelecimento num momento de impasse quanto ao desfecho da querela, sobretudo, à luz do debate sobre a penalização ou não da invasão de privacidade. Haviam dois grupos. Um que defendia o florista, reforçando o argumento (a coesão e paz social) em torno da acusação: o cliente assíduo é de facto (e gravata) um devasso social. E o outro grupo que defendia o cliente, acusando o florista de devassa da vida privada. Quid Juris?
Enquanto deixava o estabelecimento e para relaxar a briga liguei o auricular e na rádio tocava uma música brasileira. Era a música de Jorge Aragão, mas cantada por Emílio Santiago. Estava no fim e dizia: “Malandro! /Só peço favor/De que tenhas cuidado/As coisas não andam/Tão bem pro teu lado/Assim você mata/A Rosinha de dor...”