Facilmente se pode arguir que, como país, estamos uma colcha de retalhos. Não de todo um traste, ou quase lixo a que (im)piedosamente nos empurram as agências internacionais de monitoria da evolução de indicadores macroeconómicos, mas uma colcha de retalhos e, como se não bastasse, curta e incapaz de cobrir a maioria dos moçambicanos que ficam inescapavelmente com os pés, tronco ou cabeça de fora, geralmente, em associação a equidistância dos círculos dos poderes para cada um.
Por mais que insistamos em regabofes de "visibilidade" nos maiores hotéis da capital, em celebrações de acordos de compromissos de exploração de recursos naturais nas bacias do Rovuma e de outros lugares mais, o essencial não está nas exibições tacanhas do que vamos entregar a predadores económicos que mal se compadecem com a nossa autoinfligida miserabilidade.
Apostar no avacalhamento dos recursos naturais, como estratégia de encaixe financeiro para conferir alguma liquidez e alento de ocasião, que aparente aliviar o sufoco nos desertos que ainda teremos que atravessar, não passa de levianos actos de oportunismo, sem genuíno compromisso com o todo e com as gerações vindouras, para não falar destas que inescrupulosamente se digladiam. Mais grave ainda é retomar negociatas e roteiros obscuros de utilização de recursos naturais que, em princípio, são de todos os moçambicanos e que deveriam servir aos melhores interesses e propósitos do país, a meio de uma salada de inconfessáveis desvios, como são as maracutaias das fatídicas dívidas, outrora ditas ocultas.
É claro que o país não deve parar até que estejam criadas condições ideais para avançar-se em qualquer direção. Na farta sabedoria popular, é lugar comum que o caminho se faz caminhando. Mas não nessa direcção! Uma das mais importantes partes dessa caminhada estaria em criar condições para que tenhamos mais inclusivas e consistentes deliberações sobre as formas de capitalização dos recursos naturais (e porquê não socioeconómicos e culturais) de que dispomos, particularmente na actual conjuntura de evidente erosão da significância do Estado.
Quando o Estado e Governos precedentes e subsequentes se confundem com indivíduos, indiciados, suspeitos, bandidos e detidos, da cúpula ministerial à presidencial, é caso de dizer-se que estamos em estado de sítio. Encalhados e encurralados nas teias das arquiteturas políticas que nós mesmo armamos, muito antes da barbárie em que embarcamos com essa história de construir um quarto andar, com este perfil de timoneiros políticos que o partidão escolheu.
Confesso que já não consigo descortinar vestígios identitários com essa entidade que um dia foi, expressou-se e agiu como reservatório de talentos e idoneidade engajados na mais positiva competição pela apresentação da melhor prestação individual e colectiva nos diferentes sectores. Ainda que tenhamos estado em permanentes conflitos e confrontos, nem sempre fomos reduzidos, como coletividade, aos piores exemplos de cultura política e governamental, de e sobre nós mesmos.
Se, em entrevistas, líderes políticos reconhecem que o fuzilamento era parte da praxe político partidária, as ressalvas conjunturais e escolhas ideológicas podem ser invocadas para dizer que nessa altura, era o prato que lhes era dado a servir, até como reflexo de vivências e experiências de onde, de empréstimo, tomavam tais preceitos ideológicos e práticas.
Hoje, tendo em conta os níveis de abertura, exposição e conhecimento sobre os conteúdos intrínsecos às diferentes opções ideológicas e de governação, não faz nenhum sentido que estejamos piores que nos períodos mais negros da nossa história recente. Tribunais populares, ainda que fossem só de nome, campos de reeducação, nas ignóbeis tragédias que representaram, começam a deixar de equipara-se com o terrorismo aleatório instaurado nesta conjuntura que se poderia considerar mais informada, consciente e exposta aos valores, termos e possibilidades de convivência em espaços assumidos democráticos.
Se antes vivíamos em tempos de incertezas controladas, em que "rusgas" e "denúncias" poderiam ditar sinistras jornadas e imprevisíveis destinos dos indivíduos, hoje confrontamo-nos com situações de imprevisibilidade acrescida para os que duma ou doutra forma se engajam em causas de interesse colectivo à margem da bênção do partido que confunde o Estado consigo mesmo.
Assim foi com Gilles Cistac, pelo "crime" de argumentar em torno da possibilidade de introdução de autarquias de múltiplos níveis, agora materializadas com a instituição das autarquias provinciais, para as quais partidos estabelecidos e nem tanto, concorrem no presente pleito eleitoral. Assim foi com uma dezena de militantes do mais expressivo partido na oposição. Assim foi com indivíduos que simbolizam o livre pensar, como José Macuane e Ericínio de Salema. Assim também foi com Anastácio Matavel, pacato cidadão que se desdobrava, nos interstícios da "política desinteresseira", em promover noções de consciência cívica, direitos e deveres dos cidadãos.
Muito para além das nossas zonas de conforto de onde teorizamos e filosofamos cidadania, indivíduos como Matavel, estão na linha da frente na árdua tarefa de contribuir para a inscrição e materialização dessas tão caras noções e valores de democracia e cidadania no imaginário social, enquanto a educação não chega para todos e enquanto tais princípios e valores não se tornam tão elementares e suficientemente banais e generalizados a ponto de serem classificados como "cultura política nacional".
Às vésperas de mais um pleito eleitoral, cá estamos nós, "a abeira dum ataque de nervos" incertos sobre os perfis dos candidatos presidenciais e/ou "cabeças de lista" que, a serem eleitos, irão representar-nos. Das estrelas e pulhas que compõem os elencos partidários propostos para as assembleias provinciais e nacional, mal falamos, com excepção de isoladas figuras por ousarem atravessar fronteiras que cativas lealdades partidárias mal as reconhecem fictícias e voláteis. Para a santa inquisição, é sacrilégio vestir bandeiras de cores outras, para além da vermelha, presumida guardiã da "generosidade" e, simultaneamente, que se presta à penosa tarefa de vigiar os "eunucos" e castrar qualquer, possibilidade de regeneração. Que delírio!
Na "recta final", cá estamos. Entre pobres manifestos e ostensivas manifestações, a campanha eleitoral traduziu-se em exaltações de fotogenia, fechamento e aberturas angulares de camearas, para além de um inenarrável número de mortos, potencialmente evitáveis, não fosse a obsessão megalómana em fazer vincar grandezas partidárias que, mesmo com intimações e transferências punitivas de funcionários públicos para lugares distantes das suas estruturas familiares, não passaram de formas de expressão lúdica e recreativa. Aos estrategas de plantão recomendaria, vivamente, o abandono da obsessão pelo impressionismo ondulado, que nesta campanha, confundiu-se com onda de sangue.
Surpreendentemente, as fragilidades e fragmentações dos azuis, ainda que levantem celeumas sobre a sua viabilidade como partido-governo, os níveis de insatisfação com o actual partido governante, bem como o descrédito sobre a sua capacidade de "purificação das fileiras" terão contribuído para uma expressiva mediatização de alguns dos seus porta bandeiras. Notória foi a entrada dos filhos e sobrinhos dos chefes nas linhas de frente das campanhas, prestando-se ao necessário papel de subverter os estereótipos das lealdades partidárias. Na sua aparente banalidade, não poderia haver melhor recurso de humanização do outro, e do "relaxamento", usando a linguagem parlamentar, da tradição de desumanização da oposição, qualquer que seja. O artificio da mimetização fotogénica dos rebeldes e revolucionários, a la Che e /ou a la Malema, com direito a "sungura music" parece ter contribuído para apimentar alguns desses espetáculos que, permearam a prestação de quase todos os partidos concorrentes. As diferenças de proeminência e visibilidade, ficam ao cargo das diferenças organizacionais e da pujança do capital financeiro ou capacidade de usufruir, indevidamente, dos recurso do Estado.
Ainda que seu líder não aparente estar a baixar a crista, um dos mais articulados e coerentes candidatos desta maratona, o aparente declínio do partido do galo parece ilustrar, não apenas a reconfiguração de forças no cenário político nacional e soa como uma última performance de um proeminente actor político cujas escolhas e fluxo dos acontecimentos terão desgastado parte do seu capital e limitado as probabilidades de triunfo, pelo menos aos patamares de escala nacional. Como se tivesse que carregar o carma pela imperícia na lide com gigantesco finado edil de Nampula. Pelo que leio, talvez a memória do seu muito honroso mano a mano com o ciclone Idai poderá salvar-lhe a honra.
Enfim... vão-se os anéis, ficam os dedos, que se esperam mais prestativos aos tocar a tinta indelével, riscar em papéis e inebriar-nos em vaga sensação de escolha. Em qualquer que recaiam as nossas, vossas escolhas, o processo eleitoral, descredibilizado que é, ainda é o legítimo caminho para comunicar e, eventualmente, inscrever as nossas aspirações alto e bom tom. A meio de sistémicos desencontros, que não percamos de vista que, por enquanto, Moçambique é feito e se faz com estes mesmos trapos, uns mais desgastados que outros, uns menos briosos que outros, mas que, se levados à sério, podem ser capitalizados para continuarmos a costurar essa colcha de retalhos que, ainda que não nos baste, cobre-nos como dá.
Aos arruaceiros, vestidos a rigor ou não, aos ladrões de votos e urnas, tenho a dizer que têm mais uma preciosíssima oportunidade de se redimirem, no dia 15 e período subsequente, fazendo a coisa certa e deixando que as consciências, vontades e liberdades de todos os moçambicanos fluam e sigam o seu curso, como é de dever, como é de direito.
O assassinato bárbaro do activista social Anastâcio Matavel pelas mãos de membros do Grupo de Oprações Especiais confirmou a existência dos famigerados esquadrões da morte no seio das próprias Forças de Defesa e Segurança.
Vai daí que a hierarquia policial decidiu criar uma Comissão de Inquérito para apurar a verdade dos factos. À partida, parece ser essa uma medida louvável mas seria tamanha ingenuidade da minha parte chegar a essa conclusão.
A criação dessa Comissão do Inquérito parece-me problemática. Acho ser crucial questionar a sua composição: todos os integrantes dela são membros da Polícia da República de Moçambique. A pergunta que não cala é como é que a Polícia se pode auto-investigar, sobretudo, porque membros da corporação praticaram um crime hediondo.
Neste sentido, parece-me que uma saída seria ou de se constituír uma Comissão de Inquérito mista ou um Comissão de Inquérito independente. A PRM não tem credibilidade para ser árbitra onde já é jogadora. Até porque há muito que ela é sistematicamente acusada de abrigar esquadrões de morte no seu seio, sem que houvesse uma resposta célere e transparente para abordar as acusações. Se desta vez ela decidiu agir, é provavelmente porque foi apanhada com a mão na botija.
Sendo assim, como é que ela pode ser objectiva, ou melhor, como é que a Polícia pensa que poderá convencer a sociedade moçambicana de que o inquérito será conduzido de forma objectiva? É que se ela já foi acusada de abrigar esquadrões de morte e nunca se pronunciou sobre isso, ou se fê-lo, foi para desmentir as alegações, vai ser difícil convencer os moçambicanos de que fará uma investigação rigorosa e pormenorizada.
A razão disso é que não parece que os assassinos estivessem a agir fora de uma sub-cultura de abuso de autoridade, corrupção e impunidade. Esta não é uma percepção da realidade, mas aparentemente é a própria realidade no seio da Polícia. É verdade que não se pode acusar toda a polícia de corrupta e criminosa, mas os corruptos e criminosos dentro dela têm tanta influência sobre como a sociedade a vê, que a inferência é de que ela é corrupta e criminosa.
Sendo que, para a corporação afastar qualquer suspeita de que o inquérito resultará num encobrimento e impunidade para os mandantes do crime, seja necessário ou adiconarem-se juizes e criminologistas ou criar-se uma totalmente independente da corporação.
A termos uma opção enquanto sociedade, a segunda seria melhor para garantir independência visto que não haveria uma ligação hierárquica entre os investigadores e a Polícia; seria adequada porque teria o potenticial de juntar todas as evidências para determinar quem mais esteve envolvido e quais foram as motivações e sugerir recomendações; também seria transparente porque os procedimentos e a tomada de decisões seriam conhecidas; entre outros. Crucialmente, essa Comissão de Inquérito independente devia ter o poder legal de forçar a corporação a cooperar com a investigação.
Este seria um primeiro passo para se expurgar as maçãs podres da corporação – o ideal é que tal Comissão fosse percurssora de uma instituição independente para investigar os abusos e cultura de impunidade no seio da Polícia. A PRM já teve tempo mais do que o suficiente para se reformar e já é altura de se lhe dar uma ajudinha nesse sentido: precisamos de um organismo independente similar ao Provedor de Justiça, mas com dentes para morder, de modo a que monitorar as actividades da nossa Polícia.
A longo termo, a medida seria benéfica para a própria corporação porque melhoraria os padrões de desempenho dos agentes, levaria a Polícia a agir com maior transparência e accountability. Afinal, a nação quer ver uma PRM mais protectora dos direitos humanos dos cidadãos, mais próxima ao povo, e mais firme e implacável no combate ao crime.
Só uma Polícia que é responsabilizada, respeita e protege os direitos humanos será capaz de construir boas relações com as comunidades, e posicionar-se melhor na prevenção e combate ao crime. Sendo que, os esquadrões de morte não caberiam nessa Polícia.
A galopada empreendida pelo pequeno veículo 970cc para vencer a elevação era enorme, sentia-se que todos os cavalos estavam laborando para serpentear os contornos de asfalto em direcção ao monte-mor. Preguei fundo no acelerador senti o carro bufar pelo tubo de escape, gasosa em combustão olhei para o painel, observei o quanto de combustível estava sendo consumida pela ingreme elevação. Queria chegar logo ao destino para rever a pequena vila.
Viajava na companhia de um amigo que tagarelava ofuscando a minha liberdade de descobrir a paisagem constituída por moitas acastanhadas, vegetação fulminada pelos raios solares, prova irrefutável que a estiagem habitava implacavelmente a região sul do país.
Aquiesço de vez quando para fazer perceber ao meu companheiro que não está em soliloquio.
Um declive ingreme confere a viatura mais velocidade, alivio o pé do acelerador, depois coloco o manípulo das mudanças em neutro e relaxo ambos o pés e poupo a gasosa.
Atingimos 100 km/h, um baque de ar fresco sacode-me o rosto e refresca viajem. Ainda estamos longe de alcançar o destino que fica a 70km da cidade de Maputo.
Ganhamos mais altitude em relação ao nível do mar, noutra galopada para vencer mais uma elevação acentuada, a velocidade caiu para 40km/h, o som da voz do meu colega impunha-se ao som libertado pelo motor do carro.
Galgamos a última subida com apoio do pequeno veículo, depois de um estrondoso potenciar do motor atingimos finalmente o cume do monte-mor.
Dois postos de tubo galvanizado de 1.50m de altura agarravam uma placa rectangular que hospedava em letras garrafais “ vila da Namaacha”.
Logo depois descubro pequenos edifícios lambidos com poeira de areia saibrosa conferindo o tom avermelhado aos edifícios.
Vejo garotos suados empurrando carrinhos de mão com bidões de cor amarela e branco e mamanas segurando baldes e bidões.
Desembarcamos, alisei o capô do carro como se passasse a mão pela crina do alazão que dirigia
a montada que puxava a charrote que nos levou até ao topo do monte. Senti pela sola do sapato que o amago do solo estava ao rubro.
Revi a igreja e lembrei-me dos crentes catolicos que durante do mês de Maio escalam a vila na sua peregrinação em busca benesses divinas no santuário da nossa senhora de Fátima, mas depois, durante o resto do ano esquecem a vila para usufruem dos auxílios angariados.
O alvoroço que outrora habitava a vila devido a movimentação transfronteiriça deixou de existir, passando aquele corredor a ser percorrido de forma esporádica.
Depois de uma breve visita à vila conferenciei com um residente que em jeito de desbafo vomitou o mal estar que a vila enfrentava.
“ Não temos água por conseguinte as machambas não produzem, a cascata esta seca, já não temos turistas, enfim vivemos entregues a nossa própria sorte”
Magiquei mil e uma soluções para os problemas que enfrentavam. Poderiam começar por proferir preces junto ao santuário, não precisavam peregrinar, já lá estavam. Poderiam pedir por um furo, aliás muitos furos para desaguar em todos bairros.
Visitamos um gigante da industria hoteleira ali implantado, quando transpusemos a soleira de acesso descobrimos que estavam numa penumbra não achámos nenhuma vivalma, fizemos soar as nossas vozes, só depois um funcionário meio ensonado atendeu-nos. Enteiramo-nos da funcionalidade do hotel, dos 64 quartos de todos os tipos não tinham nenhum hospede e possuíam cerca de 40 e tal funcionários.
Depois da breve visita efectuada aquela que outrora fora uma instancia turistica, partimos calcorreando pelas ruas da vila.
As palpitações aceleradas demostravam o cansaço adquirida pelo corpo, freei a caminhada e o meu amigo imitou, estavamos sedentos.
Olhei em meu redor e descobri uma barraca. Perguntei se vendiam água.
- Só temos água da Namaacha! – replicou a vendedeira.
- Peço duas.
Um sorriso irónico moldou o meu rosto, olhei para o meu companheiro este bebia inocentemente a sua água.
Olhei entristecido para a estatua da nossa senhora de Fátima e tacitamente pedi absolvição para a alma do povo da Namaacha e solicitei numa silenciosa oração.
“ Haja água nossa senhora” amém.
O inverno no planalto de Chimoio confere uma brisa fria mesmo ao meio dia, por isso muitos citadinos andavam já armados para se protegerem do abaixamento da temperatura que se ia agudizando a medida que o tempo passava.
Consegui uma boleia que me levou até a terminal interprovincial de autocarros. Não andei dez metros quando um angariador de passageiros abordou-me, questionando se ia viajar para Beira, quando anui ele logo encaminhou-me para um autocarro que supostamente estava prestes a partir.
Antes de embarcar averiguei o preço da passagem que concordei, protestando somente pelo preço que cobravam pela bagagem que não achei nada justo, para cada trouxa cobravam o mínimo de cem meticais, assim o passageiro pagava quase a metade da passagem por pessoa no trajecto Chimoio-Beira.
A minha contestação não foi assimilada, logo tive que submeter-me. Embarquei, tomei o lugar que me indicaram, o pequeno autocarro que parecia ter uma lotação de quarenta passageiros estava quase lotado, as bagagens ficavam na parte traseira do interior e a que lá não cabia ficava no corredor, quando os assentos laterais ficaram ocupados, os gestores do machimbombo abriam então os diminutos assentos do corredor que quase descansavam por cima da trouxa dos viajantes.
O angariador a cada vez que trazia um passageiro e o acomodava largava uma suposta piada:
- Não vale comer sua sardinha com mandioca, sem servir ao seu colega senão o seu vizinho vai-lhe desejar mal.- ai gargalhava ele mesmo.
Percebia-se que tentava amainar a impaciência dos viajantes que estavam aborrecidos pela demora e largavam suas justas reclamações.
Por fim o machimbombo arrancou.
- Até que enfim. – desabafou um dos passageiros.
A atapetada via permitia que o veículo deslisasse ganhando velocidade, algumas janelas abertas permitia-nos desfrutar de uma frescura que aliviava o cansaço que nos consumiu durante longas horas de espera. Ainda pela janela divisava moitas verdejantes que constituíam a bela paisagem resguardado por um sol luzidio conferindo uma coloração espetacular ao céu.
Trinta minutos depois da partida e com toda a animação que desfrutávamos eis que me apercebo da desaceleração empreendida pelo motorista, esquivo os corpos que obstruíam a minha linha de visão e procuro descobrir pelo vidro para-brisas o empecilho que causava o afrouxamento.
Intrometeu-se na via um sujeito que pelo traje era um agente da polícia de trânsito, o pequeno machimbombo parou por completo e o motorista fintou os passageiros e as bagagens para poder desembarcar levando consigo uma pequena pasta plástica do formato a4 que com certeza possuía no seu interior os documentos do veículo. Levou perto de cinco minutos e voltou a tomar o seu lugar e então reembarcamos.
As conversas voltaram a animar a viajem, escutava uma e outra mas a paisagem que se oferecia confiscava o meu ser e a minha atenção.
A única variante rácica no autocarro era um jovem asiático, talvez de origem paquistanesa, comerciante com certeza, este debatia com o seu colega de assento sobre a religião onde dizia com convicção que para a sua religião Jesus não era filho de Deus mas sim um simples profeta. Este debate captou minha atenção.
Um infante chorou e a progenitora calou-lhe pousando o seio na sua boquinha, voltamos a ouvir o som do motor e cada um voltou a embarcar em suas divagações. Já não ouvia o debate, não sei se era pelo som potenciado pelo machimbombo ou se já tinha cessado.
Uma nova desaceleração, não levei muito tempo para conferir um chui de trânsito que quase perdia a sua presa por distração, mas foi a tempo de precipitar-se para o meio da estrada e sinalizar triunfante a paragem do veículo. O mesmo procedimento foi executado pelo conformado motorista.
Foram somados mais cinco interregnos por conta dos agentes da autoridade de trânsito e cada um tinha o cunho de subtração empreendida pelos demónios de azul e branco que sugavam a receita do transportador.
Um refrão de descontentamento soava pela voz dos passageiros cada vez que a nossa viajem era interrompida pelas autoridades de trânsito.
Uma pequena insurreição estava prestes a iniciar e se não aconteceu foi porque não surgiu um potencial líder.
Continuamos a viajem agastados pela atitude oportunista dos agentes de trânsito que nos atrasavam a cada paragem autorizada pela sua ganancia.
- São uns verdadeiros sanguessugas uniformizadas e autorizados pelo estado. – quase gritou um passageiro – pronto estava encontrado o potencial líder.
- Barriga alimentada pelo dinheiro do povo – conferiu outro – pronto o adjunto também estava encontrado. Faltaria talvez a eleição por voto directo.
Alcançamos finalmente município de Dondo e o pequeno autocarro continuou rolando com uma velocidade média e só reduzia quando a placa de limite de velocidade para dentro de localidade mostrava 60km/h.
Solicitações de paragem foram encomendadas amiúde e descia um e outro passageiro.
Adentramos para a área de jurisdição do distrito da Beira.
- Cobradura¹ paragem Inhamissua - anunciou humildemente o cidadão asiático.
Gargalhamos todos, até o pequeno infante soltou momentaneamente o seio da mãe e mostrou uma careta alegre.
cobradura- corruptela do português paquistanês para dizer cobrador
Os políticos moçambicanos opinam que a campanha eleitoral é um momento de festa, mas a presente tem sido tudo menos festa. Ela já provocou mais de 30 mortos. Grande parte das mortes resultam de acidentes aparatosos de violência eleitoral, o que significa elas podiam ter sido evitadas.
Dez pessoas morreram pisoteadas após um comício no dia 11 de Setembro, em Nampula. O passado fim de semana também foi trágico: mais militantes e simpatizantes morreram num acidente de viação em Songo, Tete, a regressar de um outro comício - é verdade que até aqui os acidentes limitaram a bater as portas da Frelimo, mas isso pode acontecer com qualquer outro partido.
Antes do início da campanha, a PRM anunciou que estava pronta para garantir a segurança durante o processo eleitoral. Daí que, se perguntar não ofende, como é que a corporaçao tem estado a garantir a segurança dos membros, simpatizantes e seguidores dos partidos políticos nas campanhas?
Tenho em mim que a tarefa de garantir a segurança e protecção dos membros, simpatizantes e seguidores dos partidos políticos não é apenas da PRM. Sendo que, como é que os partidos políticos organizam a sua logística de protecção e segurança? Ou será que o fazem na perspectiva de apenas garantir a protecção e segurança dos seus líderes?
De todas as formas, tanto a PRM como os partidos políticos devem nos dizer como é que a protecção e segurança dos seus membros, simpatizantes e seguidores é feita. Os políticos não devem pensar em apenas encher os recintos onde vão realizar comícios. Devem também saber como controlar as multidões. Devem também garantir o transporte dos membros e simpatizantes com toda a segurança necessária.
Todos os que organizam eventos sabem que existe uma série de requisitos a se ter em conta, relacionados com a seguranca dos presentes, sejam os oradores/artistas/ ou o publico/particantes. Temos visto a polícia a acompanhar as marchas e passeatas no sentido de garantir o cumprimento dos mesmos requisitos. Sabe-se que há entradas/saídas em caso de emergência. No caso dos camiões, sabe-se que não estão apropriados para transporte de pessoas, dai o Estado ter criado o infame My Love II.
Mas mais do que isso, essas mortes todas parecem simptomáticas de um Estado onde a vida e dignidade humana são precárias. Precariedade implica viver socialmente, isto é, o facto de que a vida humana está sempre nas mãos de uma outra; implica uma dependência em relação à pesoas conhecidas e desconhecidas, e principalmente, ao Estado. O que quer dizer que é responsabilidade do Estado, dos partidos políticos, garantir a segurança e protecção das pessoas sob sua guarrida.
Sendo que, dizer que uma vida é precária, o que é verdade para a maioria dos moçambicanos, é dizer que a possibilidade dela ser sustentada depende fundamentalmente em condições sociais e políticas. Que políticas de protecção e segurança da vida humana existem no país?
Por isso, não podemos continuar a medir palavras. Há que assacar responsabilidades. Não me simpatizo com o discurso de pacto de sangue que está a dar de falar nas redes sociais. Esse discurso tem o condão de isentar quem de dever de qualquer responsabilidade nessas mortes evitáveis. Por exemplo, quem foi que fez transportar pessoas de cerca de 150 quilometros do local do comício? Quem era o motorista e para quem trabalhava? De quem é a responsabilidade moral e social de garantir que os mortos tenham funerais condignos, que os feridos tenham tratamento condigno, de que as famílias enlutadas sejam recompensadas devidamente?
Enquanto humanos entramos num contrato com o Estado de modo a garantir-nos protecção. Neste sentido, como é que o Estado deve agir para garantir que os direitos dos cidadãos que pereceram e ficaram feridos nesses trágicos acidentes sejam ressarcidos? O que a Procuradoria Geral da República está a fazer? Já intentou algum processo com vista a criminalização dos envolvidos? Para onde se dirigem as famílias enlutadas e os feridos para serem ressarcidas?
Acidente é acidente, dirão alguns. Mas enquanto humanos temos que nos preparar ao máximo para os evitarmos, minimizar os seus danos, e assacarmos responsabilidades junto dos culpados. Para já, devíamos ter vergonha de descrevermos as nossas campanhas eleitorais como momento de festa. Outrossim, até prova em contrário são um momento de dor e luto.
O país testemunhou recentemente a assinatura de mais um acordo de paz entre o governo e a Renamo, numa cerimónia com toda a pompa e circunstância. Não era para menos: alguns chefes de estado africanos (antigos e actuais) estiveram presentes, altos dignatários, membros do clergo, entre outros.
Os textos das declarações dos principais assinantes e compromisso com a paz soavam como se escritos pelo mesmo grupo de conselheiros. Enfim... ironicamente ninguém parece ter notado que mais ao norte da Praça da Paz, há uma insurgência cujas dispersão geográfica e frequência crescem a olhos vivos. E a tinta ainda nem havia secado do papel quando um grupo dissidente da Renamo, um dos signatários, distanciou-se do acordo, ameaçando voltar às matas.