Quando os tamancos se comunicaram com o chão da terminal rodoviária da “junta” na periferia da cidade de Maputo, produziram um estrépito chamativo. O jovem que os calçava não se importou com os olhares folgazes de que era alvo.
Foi um dos últimos a desembarcar do autocarro interprovincial proveniente de Chókwè na província de Gaza.
Os seus admiradores miravam-no curiosos e deixavam escapar uma risada, o recém-chegado percebeu que criava impacto no seio das pessoas próximas.
- Onde apanho um chapa para a baixa? – questionou para um dos utentes da terminal rodoviária
Caminhou sereno segurando uma mala velha e pesada, usava um chapéu de palha com abas pequenas, a jaqueta de couro castanho desgastada e ligeiramente pesada descaía no ombro direito, exactamente do lado da mão que segurava a mala. A camisa de capulana com as cores amarelo e vermelho era suplantado pelo casaco, as calças eram de caqui verde-escuro.
Não demorou para embarcar no chapa, os passageiros abriram alas para deixa-lo passar admirando suas vestes, uma moça vagou o lugar e o ofereceu.
- Obrigado! - proferiu com um sorriso alegre no rosto.
O chapa marchava velozmente ultrapassando os outros carros, este malabarismo perigoso agradava a Carlos Wena que vinha pela primeira vez a cidade de Maputo com a mente repleta de sonhos que pretendia realizar. Vinha animado depois de receber o convite do seu primo que triunfara na grande metrópole.
O desembarque na baixa da cidade deixou-o atónito, olhava para cada canto da cidade intimidado pelos monstros de cimento que se erguiam por todo lado, os carros que circulavam velozmente dum lado para outro deixavam-no desorientado. Ficou parado por um tempo, estudando o ambiente que morava ao seu redor, temia dar um passo em falso que podia comprometer a sua chegada a grande cidade.
Posicionou a sua mala no chão, sentou sobre ela e procurou organizar as ideias, já passavam das 15h00.
Uma turba de petizes em gozo de férias escolares deu com o alegórico personagem de Carlos, pararam e olharam-no maravilhados, riam e trocavam conversa.
Já descansado pegou na sua maleta e iniciou a caminhada seguida de perto pelos meninos que multiplicaram as suas risadas agora que o viam em movimento.
A sua derradeira jornada seria até a casa do primo no bairro suburbano da polana caniço nos arredores da cidade.
Os meninos depois de consumirem momentos de alegria gratuita partiram para outras brincadeiras.
A vitrina com letras garrafais do nome do estabelecimento avivaram sua mente e recuperou uma imagem que guardava num canto especial da sua mente.
O jovem forasteiro entrou para o estabelecimento comercial, abeirou-se do balcão, descansou a sua mala no chão.
- Sim, se faz favor? Investiu o balconista.
Ainda distraído, o recém-chegado apreciou o ambiente que por ali morava durante um tempo e cabisbaixo falou para o balconista.
- Quero falar com o rei – disse convicto.
O balconista vigiou demoradamente o estranho cliente, e ainda perplexo perguntou:
- Como disse?
- Quero falar com o rei - repetiu o forasteiro seguro do que buscava.
Pela indumentária e o gesto meio aparvalhado, o atendedor ajuizou que o homenzinho devia estar desprovido de sanidade mental. Então decidiu embarcar na brincadeira.
- Meu senhor, somos um estado semipresidencialista, isto para dizer que temos um presidente que por coincidência foi reeleito a bem pouco tempo. – gabou-se o balconista dos seus dotes políticos.
- Mas eu quero falar com o rei! – insistiu sereno, o estranho cliente.
- Meu jovem, nós, a República de Moçambique não é uma monarquia. – frisou o balconista cada vez mais convicto dos seus saberes.
- Meu senhor, saiu na televisão a dizer que o rei chegou, até falam em inglês “the king is here” – assegurou Carlos sereno de que a sua explicação poderia elucidar o balconista.
Já meio irritado com a insistência parva do cliente, o atendedor procurou ignorar a investida do recém-chegado e deu atenção a um outro cliente.
Um curioso que destrinçava o diálogo entre o balconista e o pomposo cliente, processou a pretensão de Carlos, levantou-se e o abordou.
Depois de uma breve intersecção verbal, o curioso pousou teatralmente uma garrafa no balcão, Carlos abriu os olhos e largou um sorriso rasgado, segurou a garrafa que o ofereciam e agradeceu imensamente aquele anjo que soubera interpretar as suas aspirações.
- Eu sabia que o rei estava aqui! Afirmou felicíssimo – Muito obrigado mano.
E então bebeu, bebeu prazerosamente a cerveja.
África, a história consagrou-te como sendo o “Berço da Humanidade” e, paradoxalmente hoje te consideram “o novo continente”. Mas não é sobre este paradoxo que aqui pretendo dissertar. É a história que testemunhou desde muito cedo a apetência das potências imperialistas ávidas em explorar os seus recursos, o seu povo e toda uma riqueza que humana, cultural e intelectual.
É sem sombra de dúvidas um continente bafejado pela existência de enormes quantidades de recursos naturais que foram inicialmente vistos como uma bênção mas que muito cedo se tornaram numa maldição que adia o desenvolvimento pleno do continente. Esta maldição traduzida em guerras, genocídios, corrupção, má governação que perpetua a fome, a miséria, as desigualdades entre o povo e adia o grito de liberdade total e completa que tanto almejamos.
Foram mais de 500 anos de uma colonização que quase tudo tirou do chamado “novo continente”. 500 anos de uma epopeia imperialista desenhada e implementada pelo Ocidente e que iniciou com a procura de matéria prima para a incipiente indústria europeia e procura de novos mercados. Com a narrativa das supostas viagens dos descobrimentos a geografia mundial ganhou outra dimensão económica, religiosa, cultural e humana – a hegemonia do norte para o sul foi cimentada e o mundo passou a ser dominado pela palavra civilização que era apanágio do Ocidente imperialista. Seguiu-se ocupação efectiva e partilha de África decidida na célebre Conferência de Berlin onde o continente negro foi dividido em fatias e suas fronteiras redesenhadas ao sabor das potências capitalistas.
A ocupação e exploração de África não respeitou a dignidade da pessoa humana – na verdade ela violou os direitos fundamentais do homem e mostrou uma face arrogante e prepotente do homem branco que escravizou e desumanizou o homem negro; Não se preocupou com a cultura, com a religião nem com a ontologia do africano. Diga-se em viva voz que a escravatura foi um dos actos mais vis, desumanos e vergonhosos que o Ocidente carrega consigo até os dias de hoje. Milhões de homens foram levados em navios cargueiros, do seu habitat original e retirados das suas terras com destino incerto dentro do próprio continente negro, para América do Norte, do Sul (concretamente no Brasil), e espalhados pelas Antilhas Francesas e protectorados Ingleses para os campos de cultivo de cacau, cana-de-açucar, borracha, e outras matérias primas para alimentar a indústria e a economia ocidental.
Em nome da civilização, povos foram separados e culturas foram destruídas; novos hábitos, costumes e maneiras foram instituídas – desafiando o africano a negar sua origem, a envergonhar-se da sua cultura e a declinar seus traços identitários; O novo africano deveria ser instruído para poder fazer parte do mundo dito civilizado.
A civilização permitiu a instrução, a escolaridade e o acesso a um pensar mais elaborado, mais crítico e reflexivo. Um pensar interventivo, mais comprometido com a causa africana e com o direito a autodeterminação. Surge a primeira nata intelectual de afrodescendentes e africanos da diáspora com ideias claras sobre a libertação e independências de África.
Eis que na década 50 dos anos 1900, como corolário da segunda Grande Guerra, assistimos ao retorno dos filhos da terra que ensaiaram os primeiros modelos de independências do continente africano. Ainda que de forma incipiente e tímida, a pesada herança da negritude e do pan-africanismo de primeira geração empurrava a nata pensante à tão sonhada e desejada acção outrora sugerida no célebre Congresso Pan Africano realizado em Manchester em que George Padmore com a famosa afirmação – “É altura de passarmos da teoria à prática”. A partir de 1960 assistimos a uma saga independentista que culminou com a libertação de vários países africanos no jugo colonial, incluindo Moçambique e Angola (duas ex colónias Portuguesas alvo de cobiça durante a Conferência de Berlin e resultado do audacioso Mapa cor rosa).
Uma intelectualidade genuinamente africana e altamente comprometida com os ideais do pan-africanismo, da negritude, do renascimento negro e do empoderamento negro, representada por Kwame Nkrummah, Leopold Senghor, Jomo Kenyata, Ahmed Sekou Touré e mais tarde por Julius Nyerere, Agostinho Neto, Amilcar Cabral, Samora Machel e outros proeminentes lideres, fez eco ao sonho de Marcus Garvey, Malcom X, Luther King, William Du Bois, Aimé Cesaire e outros notáveis teóricos, e fez-nos acreditar que o sonho da autodeterminação podia ser real. A conquista das independências significou muito para os africanos, e gerou uma euforia e expectativa enorme em torno presente e do futuro.
Severino Ngoenha (in Das Independências às Liberdades), num rasgo filosófico-político em que se discorre o processo de legitimação e apropriação da Filosofia pelos africanos tendo como base a racionalidade do africano, passando pelo processo de conquista das independências em África e culminando com uma crítica mais elaborada pela corrente hermenêutica, analisa os ganhos, as perdas e os desafios destas independências. As independências africanas, a meu ver criaram menos liberdade e mais asfixia aos povos. Mudaram-se os actores coloniais e passaram a ser perpetradas atrocidades entre africanos. Vivemos um pouco de tudo, mas não conhecemos o sabor da liberdade.
É de todo inegável a dimensão psicológica que a saga independentista da década 60 causou no povo africano; Houve uma exacerbada expectativa em torno dos países recém independentes e ensaios embrionários de autogoverno, autodeterminação e muitas dúvidas sobre a real capacidade dos estados africanos vingarem na ausência do colono. Os perigos do neocolonialismo muito cedo se fizeram visíveis e em poucos anos muitos países africanos estavam sob graves conflitos internos e guerras civis que devastaram sobremaneira a ainda débil estrutura estatal. Os anos que se seguiram as tão almejadas independências, foram anos de solidificação das ideias nacionalistas, mas também foram anos em que assistiram-se a de conflitos internos nos estados, guerras devastadoras, genocídios e destruição sem precedentes.
Conquistamos as independências mas não conseguimos construir estados capazes de se auto-governarem. E quando conseguimos ensaiar a ideia de um estado fomos muito cedo abafados e aniquilados.
A velha fórmula romana – divide et impera – (dividir para reinar) foi usada para fragmentar ainda mais os estados e abrir as portas ao neocolonialismo na sua versão de ajuda externa e construção da democracia em África. Uma democracia diga-se desajustada ao modelo africano e de certa forma forçada e imposta pelos senhores de Bretton Woods para estados em claras dificuldades económicas. A pressão externa, a situação económica frágil e algumas sanções e interferências externas, abriram uma nova página na relação África e o mundo.
Entre o servilismo a Bretton Wood e a nova Rota da Seda
Gorada a tentativa de ter independências totais e completas, onde nem politica nem economicamente conseguimos ter uma solidez e robustez que permitisse o crescimento e desenvolvimento alicerçados no sonho integrado do pan-africanismo, pouco ou nada restava a África a não ser aderir às Instituições de Bretton Woods e beneficiar-se de empréstimos financeiros, políticas de restruturação económica, e toda gama de ajuda externa provida pelo Ocidente.
Volvido mais de meio século após a conquista das independências, a nova relação entre África e o mundo é basicamente assente na concessão de recursos abundantes em África à multinacionais do ramo extractivo – e África voltara a ser pilhada novamente, mas de forma mais assaz e agora com consentimento dos seus líderes que a pela sua ambição individual e a troco de muito pouco, perpetuam os corredores da corrupção, do nepotismo e da má governação que por cadeia estão atrelados a pobreza extrema, fome generalizada, doenças, péssima qualidade de educação e saúde.
África continua a despertar a apetência das multinacionais ocidentais que lucram com a exploração do recursos, fragilizam a nossa economia com falsos incentivos e adiam o “take off” do nosso continente.
Com a emergência e afirmação no panorama mundial do gigante asiático – a China – com o seu ambicioso projecto denominado “A Nova Rota da Seda”, África entra uma vez mais na equação. A China está presente nos cinco continentes e investiu cerca de US$ 1,9 trilhão. Isso equivale, por exemplo, a 13 vezes o valor do Plano Marshall, utilizado pelos Estados Unidos na reconstrução da Europa durante a guerra fria.
Governos altamente endividados, economias super dependentes da ajuda externa, e estados quase capturados tanto pelo FMI e Banco Mundial, ponderam piscar os olhos a China e entrar na chamada rota, hipotecando uma vez mais os sonhos de milhões de africanos. O capitalismo selvagem ocidental e o comunismo mascarado de Pequim fazem a partilha dos recursos de África e nós africanos uma vez mais apenas lamentaremos e nos socorreremos na famosa teoria da maldição de recursos.
Os recursos em si não são uma maldição mas também não são uma bênção quando mal explorados; Quando explorados de forma não integrada e não planificada eles podem ser a causa de guerras e instabilidade de vária ordem.
No geral os modelos de governação que adoptamos, as políticas económicas e sociais que desenhamos tem se mostrado pouco ajustadas às realidades dos nossos países.
Celebramos mais um aniversário de um continente africano. Mais um aniversário debaixo de lamentações. Mais um aniversário em que os traumas do ontem geraram o medo do hoje se sobrepõem a esperança do amanhã. Em África o amanhã mete medo porque nunca sabemos se ele chegará, e se chegar não sabemos como encará-lo porque não o planificamos. E os anos vão passar, as gerações vão se renovar, mas se a nossa mentalidade continuar a mesma, o nosso continente continuará a ser o que sempre foi – um palco onde todos dançam menos os donos da casa.
E chega de procurar culpados lá fora para a nossa fraca prestação. Os culpados somos nós e nós sabemos o que deve ser feito para que África seja aquele lugar em que reine a paz, a prosperidade, a harmonia, onde a autodeterminação é respeitada, onde os valores, as línguas, as tradições, as religiões e todo mosaico étnico e cultural façam parte do rendez-vous das nações.
Por Hélio Guiliche (Filósofo _ Docente Universitário)
A debilidade luminosa era por conta do crepúsculo vespertino por isso muitos aldeãos regressavam de seus afazeres quando repentinamente, dos céus, um zumbido alterou a constância sonora habitual e um piscar intermitente de cor vermelha capturava toda a atenção dos autóctones da aldeia do posto administrativo de Muene, província da Zambézia.
Despoletou-se um tumulto na aldeia com os habitantes seguindo o voo do objecto voador não identificado.
Múltiplos juízos eram emanados da boca dos populares ante o estranho voador que ocupava o céu da sua terra.
O maioral da aldeia foi comunicado da presença do intruso aéreo que sobrevoava a cabeça dos seus súbditos criando pânico entre estes. Expediu a devida ordem e o monitoramento foi seguido pelos seus ajudantes de campo.
Não demoraram para convocar o maior atirador para seguir o trajecto do estranho objecto, este embarcou na perseguição armado de seu instrumento de caça.
O sonido da diminuta aeronave fazia-se sentir com maior intensidade e a luz descontínua riscava o céu azul do território.
Um dos ajudantes do campo apresentou-se ante o régulo e reportou o que testemunhavam no terreno.
- Derrubem imediatamente esse engenho voador! - asseverou convicto Carlos Mabassa, o líder. O assessor, dali emitiu um assovio comunicando os que seguiam na vanguarda das ordens dadas pelo régulo.
Descodificado a ordem pelo segundo ajudante de campo que seguia na dianteira da perseguição, este passou a autorização para o fisgador.
Processada a ordem, o caçador interrompeu a correria e parou, fincou o pé esquerdo descalço no solo e o direito ligeiramente um pouco atrás, empunhou a sua arma de arremesso já com a bala no receptáculo, aldeãos ladearam-no, o atirador esticou o seu instrumento de caça até perder toda a elasticidade, mirou o obejcto a ser abatido e disparou, a bala percorreu em movimento rectilíneo uniforme a uma velocidade de vinte cinco metros por segundo atingindo uma das hélices da pequena aeronave, esta perdeu momentaneamente a estabilidade aerodinâmica, o piloto tentou equilibra-la ao mesmo tempo que o segundo tiro alcançava a segunda hélice, toda a estabilidade foi pelos ares e o obejcto voador iniciou o seu processo de despenhamento.
Um hurra colectivo enalteceu a pontaria do caçador de Muene e a celebração atingiu o auge quando os populares alcançaram o local com os destroços do objecto abatido.
O ajudante mor recolheu os destroços com ajuda de seus conterrâneos e todos foram ao encontro do régulo.
O operador do veiculo voador perdeu o controlo remoto quando este desapareceu da tela, eram precisamente 16h45, registou as coordenadas do último contacto estabelecido com a pequena aeronave e de seguida reportou ao seu superior. O chefe prontamente autorizou as buscas que se efectuaram juntamente com as autoridades administrativas da região.
O operador de voo e seu colega juntaram-se ao chefe do posto e mostraram para este no mapa o local onde o aparelho tinha desaparecido.
Logo que o chefe do posto reconheceu o local da queda embarcaram em duas motas todo terreno e dirigiram-se a aldeia de Muene.
Batuques mesclados com a vozearia popular davam ritmo as averiguações feitas pelo régulo e seus conselheiros. Os destroços da aeronave eram circundados pelos aldeãos que não arredavam pé.
Um homem ligeiramente mais baixo no segundo círculo, espreitou por cima do ombro do outro e então pode ver distintamente o estranho obejcto.
- É isso que chupa nosso sangue! – gritou convicto o homem e não demorou para ganhar um coro concordante.
- Chupa sangue, chupa sangue. – gritavam eufóricos os aldeãos.
Ficou activado uma vontade popular de vingança contra todos os militantes daquela actividade maligna.
O som das motorizadas foi entibiado pelo brado dos aldeãos e não demoraram para alcançar o cerne das contestações.
O chefe do posto de Muene abordou o régulo e apresentou os seus acompanhantes.
- Estes são do INGC – introduziu-os ao régulo.
- Este é o nosso drone. - reconheceu prontamente Anselmo o operador.
- Então são estes que nos chupam sangue. – vociferou um dos aldeãos.
Despoletou-se instantaneamente um tumulto com os aldeãos segurando Anselmo pelos colarinhos enquanto outros efectuavam o devido julgamento, a autoridade do régulo e do seu conselho não se fazia sentir.
O colega de Anselmo quando se apercebeu do pandemónio saltou para a garupa da sua motorizada e partiu de rompante do local deixando o seu colega entregue a sua própria sorte.
O chefe do posto intercedia junto do régulo para libertar o funcionário do INGC que afinal apuravam os melhores locais para o reassentamento dos aldeãos de Muene que muitas vezes eram vítimas das cheias.
Mas estas alegações não serviram para conseguir libertar o homem que era severamente punido pelos aldeãos que ora esbofeteavam, ora esmurravam-no.
Quando o chefe do posto percebeu que as suas autoridades não salvariam o funcionário do INGC, decidiu chamar pelo comandante da polícia de Muene.
Tiros foram disparados para dispersar a população e libertar Anselmo do severo castigo que sofria.
Nas minhas aulas de sociologia e de educação gosto de introduzir uma distinção entre facto bruto e facto institucional proposta por uma filósofa analítica Britânica, Gertrude Elizabeth Margaret Anscombe. Na verdade, esta distinção tornou-se mais conhecida pelos trabalhos de um outro filósofo, o norte-americano, John Rogers Searle que admiro, bastante, pela simplicidade da sua escrita mesmo tratando-se de assuntos complexos.
A distinção básica vai assim. Os factos brutos são todos aqueles cuja existência independe do que nós sentimos ou pensamos. Existem em si mesmos, e se auto explicam. Existem porque existem. Muitos fenómenos físicos e da natureza são assim. Monte Binga existe independentemente do que sentimos ou pensamos sobre aquele acidente geológico. Por seu turno, os factos institucionais são todos aqueles que resultam da acção humana e das convenções sociais. Todas as instituições sociais, tais como família, escola, beijo, namoro, moeda, abraços, enfim, tudo que ganhou sentido de existência pela acção social seria facto institucional.
A coisa pode ser ainda um pouco mais complicada. Por exemplo, alguns factos mostram-se dependentes de outros. Imaginem uma nota qualquer do nosso Metical. É, simplesmente, um papel, decorado. No entanto, essa nota de papel pode valer 500 Meticais e isso é explicado em função das nossas preferências como humanos, dos valores, crenças e concepções instituições que sustentam a noção de sistema da nossa moeda nacional.
O vírus, que supostamente causa uma síndrome respiratória aguda, está lá. É um facto bruto, isto é, um dado objectivo que se está nas tintas para o que nós sentimos, pensamos, ou deixamos de sentir e pensar. O Vírus não liga a mínima para a nossa cultura, moral e convenções sociais. Ao contrário, os fatos sociais ou institucionais têm a sua existência dependente da concertação social. Se o vírus é um facto bruto, já o COVID-19 é um facto social pois trata-se de uma enfermidade convencionada e designada através de um sistema internacional de classificação de síndromes respiratórias. É, portanto, um facto institucional. Co - de corona, em espanhol, porque o vírus tem a forma de coroa, Vi de vírus – e D de Doença, em inglês, e 19 – pelo ano da sua descoberta, pelos humanos, em 2019. Como se pode depreender sem a ação humana concertada não existe COVID-19. Mas existe o vírus!
O novo coronavírus, que é uma versão nova da família de vírus com formato de coroa, trouxe a ciência e alguns especialistas de volta para o cerne dos debates na esfera pública. Numa altura em que estava a entrar na moda seguir a onda da anti-ciência e do anti-intelectualismo, que se proclamava a sociedade da pós-verdade, a descrença nos factos, a invenção dos factos alternativos, ou das Fake News (notícias falsas), o que exigia fact checks (apurar os factos), que inunda(ra)m vários países onde os líderes populistas zombavam da ciência – o COVID-19 força-nos ao retorno à ciência. Os Estados Unidos de Trump, e o Brasil de Bolsonaro são, neste sentido, exemplos paradigmáticos de países com líderes adversos à verdade factual, e que de alguma forma continuam a peleja contra o bom-senso, a coerência e, de certa forma, a ciência.
Em muitos países, como Moçambique, médicos e epidemiologistas que o público, em geral, não conhecia passaram a desfilar nas telas das TVs que nem estrelas de Holly, Bolly e Nolly wood. O Dr. Ilesh, do Instituto Nacional de Saúde (INS), passou a ser o nosso Dr. Fauci local! Alguns, senão todos mesmo, países criaram comissões técnicas-científicas maioritária ou totalmente constituídas por médicos, epidemiologistas, virologistas, biólogos, especialistas de saúde pública e áreas afins.
Estes cientistas estabeleceram o Anscombeano e Searleano facto bruto. Existe novo vírus! A ciência e a técnica foram instantâneas, neste caso, pois já existia acervo de conhecimento suficiente para identificar e diagnosticar a origem do vírus em humanos. Os estudos sobre vírus corona não eram inéditos. Os bioestatísticos associaram-se aos especialistas anteriores e fizeram projeções da propagação predizendo surto, epidemia e a planetária pandemia.
O epidémico vírus, estabelecido como facto bruto, logo teve a metamorfose socio-antropológica ao se transmutar num facto social e depois num facto social total. O facto social total (FST), aqui, é uma dádiva de Marcel Mauss, sociólogo e antropólogo francês, ao léxico das ciências sociais. O FTS descreve uma actividade que tem implicações em todas as dimensões da realidade social, entre as quais, nas esferas económica, jurídica, política, demográfica e religiosa. Diferentes esferas da vida social e psicológica são entrelaçadas e passam a designar-se de FST. Um facto social total é tal que ele informa e organiza as instituições e práticas aparentemente bastante distintas.
Foi o que se assistiu em pouco tempo com o vírus. Da natureza para a sociedade, do laboratório do virologista, passando pelo crivo clínico analítico epidemiológico e de áreas especializadas afins, as implicações nas diferentes esferas da vida foram transformadas dum facto bruto, epidemiológico, para um objecto antropossociológico e, em última análise, num FST.
Paradoxalmente, e, particularmente em Moçambique, as equipas de especialistas, tanto que aconselham o governo, como as que dão a cara ao público nos briefings à imprensa, são maioritariamente da área biomédica[1] e epidemiológica. E, talvez, até faça sentido. Esta observação não deve ser entendida como uma crítica a estes especialistas. Aliás, muitos especialistas da área biomédica têm consciência da necessidade de múltiplas perspectivas e uma abordagem interdisciplinar de fenómenos multidimensionais como é o COVID-19.
Não disponho de informação precisa, mas parece que as figuras proeminentes que aparecem como membros da comissão técnico-científica, que aconselha o chefe de estado, são, predominantemente, médicos e ex-ministros da saúde. Constam também médicos especialistas de renome, alguns mais conhecidos pela sua prática na profissão médica, ou em funções administrativas e de docência em instituições de saúde e ou afins.
A identidade profissional primária, de alguns, não é necessariamente a de cientista e investigador. Uma simples pesquisa bibliográfica revela que alguns não publicam, há mais de uma década, nada de relevância científica nas suas áreas de especialidade ou actuação profissional. Portanto, a comissão é mais tecno-política do que técnico-científica. A César o que é de César. Mas, este é apenas, um reparo periférico no argumento que não visa pôr em causa a competência e experiência profissional dos membros da comissão.
Os selecionados, apesar de não conhecermos os critérios, podem ser o que temos de melhor naquelas áreas no nosso país. Representam a nossa prata de casa, e merece todo respeito e consideração, pois, com certeza, dão o seu melhor para aconselhar o chefe de estado a tomar decisões. Seria ainda de maior apreço e utilidade pública se fossem apresentadas em relatório as premissas que sustentam as conclusões apresentadas pelo chefe de estado.
Por exemplo, para a conclusão, é melhor decretar o estado de emergência e o confinamento de nível 3, que considerações foram tomadas, com que dados, que cenários se anteviam? Só assim, outros especialistas, teriam a possibilidade de contribuir para o debate com algum conhecimento de causa e desta forma enriquecer ainda mais o trabalho da nossa comissão. A ideia não é ter todos especialistas na comissão, mas alargar o espectro. Tudo que vemos é, sempre, uma parte do todo.
O espaço reservado ou conquistado por alguns especialistas dos estudos sociais são as telas da TV nas horas habitualmente consagradas para comentaristas de plantão, especialistas da doxologia - isto é, gente com paleio para tudo até para a opinar sobre a falta de opinião. Esses que emprestam má reputação às ciências sociais e humanas porque pontapeiam qualquer noção de razão e rigor analítico.
Países como a Alemanha e a Suécia, a título de exemplo, têm entre os epidemiólogos, filósofos, sociólogos, e outros cientistas das áreas sociais não como figuras decorativas das comissões técnico-científicas, para lidar com o que se entende na percepção popular como impactos sociais, termo inapropriado, mas como membros imprescindíveis na formulação e definição do problema e das possíveis soluções do COVID-19 como FST.
A prática do confinamento e da distância física, como intervenção de contenção da propagação do vírus, parece resultar de considerações analíticas de vertente epidemiológica. Mas, a sua efetividade na sociedade, requer considerações de análise social completamente ausentes da equação analítica actual.
Para que problema o confinamento é uma solução? Se a resposta for, simplesmente, para evitar a propagação do vírus e achatar a curva de gauss até janeiro de 2021, como já ouvimos num dos briefings à imprensa pelos técnicos do INS, então, isso revela um grave problema de reducionismo epidemiológico.
O confinamento como solução, epidemiológica, encerra tantas outras dimensões sociais que podem se tornar o novo problema. É caso para dizer que uma solução, simples, pode se tornar-se num problema complexo. E quase assistimos a isso quando o confinamento e o distanciamento físico, recomendado epidemiologicamente, se tornou num prolema de governação de algumas cidades devido aos protestos que gerou por se terem ignorado outras dimensões do problema e a efectividade da solução.
Não admira, pois, que algumas sugestões dos comentaristas de plantão da TV, para forçar o confinamento, enfatizem o recurso a violência em nome do estado de emergência, que até já fez vítimas mortais por excesso de zelo por agentes da polícia. Esta violência do estado remete para dimensões da análise política do estado e da sua relação com princípios e valores da vida, da dignidade e da cidadania no contexto democrático, ausente no léxico analítico epidemiológico e dos cientistas sociais 4x4 da TV.
Supostos cidadãos tratados como marionetes, estatísticas, conglomerados em assentamentos informais, na luta quotidiana pela resiliente produção da sua existência, em condição de precaridade social, entre outras comensurações, refletem as condições estruturais de um país e dum continente atrelado ao sistema global em condição subalterna. Este olhar remete não só para a dimensão epidemiológica glo-cal, como para dimensões da análise social, económica, política, cultural, urbana, glo-cal ausente na nossa equação epidemiológica local.
A lógica epidemiológica é, generalista, isto é, parte do princípio que o vírus não tem vida própria e afecta quem se movimenta. Daí a mensagem global – uma medida para todos (one-size-fits-all) – fica em casa. Mas para alguns, ficar em casa, no contexto local, é morrer da cura, e não da doença. O que confere existência e reprodução ao vírus é a lógica (bio) sociológica, isto é, a forma como entra no corpo humano e se move de pessoa para pessoa. Esse processo envolve estudos de mobilidade local e transnacional, biossegurança, educação, e, por aí, em diante. Não existe área da análise social que não pudesse ser convocada para emprestar maior inteligibilidade e clareza ao debate público e melhor informar as opções e decisões políticas.
A forma como as pessoas vivem não obedece a princípios epidemiológicos, mas a uma série de factores e condições sociais que definem a possibilidade produzirmos a nossa existência. A nossa existência não é apenas biológica, mas biopolítica. A biopolítica é o campo da interseção entre a biologia (neste caso condição epidemiológica) e a política – a administração das nossas vidas.
Essa administração, no meu entender, se traduz na relação entre os detentores legítimos do poder de gerir os nossos corpos e interesses, por via da representação, e o nosso direito de exigir dignidade na forma como somos e nos queremos organizar, administrar. Tudo isto dá conteúdo a nossa cidadania, até mesmo a decisão de como queremos morrer tem que ser negociada, considerando os valores, direitos e obrigações. Essas considerações vão para além das estatísticas e projeções infecto epidemiológicas.
Em Moçambique, há deficit de análise e de conhecimento das ciências sociais e humanas nas decisões do governo sobre o COVID-19. Por se tratar da saúde (pública) prevalece a falsa ideia de que o epidemiológico se sobrepõe ao sociológico. Num país onde físicos (nucleares) são conferidos poder em instituições estratégicas do conhecimento, por articular desprezo pela lógica social dos fenómenos, não admira que se continuem a tomar decisões políticas com efeitos sociais e económicos severos, numa lógica quase exclusivamente epidemiológica, mas sociologicamente míope. O COVID-19, é, por excelência, um fenómeno social total e precisa ser abordado como tal.
Patrício Langa
Sociólogo
[1] Constam-me que fazem parte quase todos, senão todos, ex-ministros da saúde, mais alguns médicos especialistas. Por acaso alguém tem a lista completa dos membros da comissão?
Imagina alguém mandar um careca fazer totó. E, por sua vez, este tentar mesmo convencido que não se fazem penteados sem cabelo. O novo coronavírus não só está a revelar as ideias preconcebidas que muitos têm da ciência, como volta a colocar no cerne a questão da relação entre o poder, a ciência e o papel das universidades, particularmente em contextos intrinsecamente autoritários, mas com fachada discursiva democrática.
Uma das mentes artísticas mais criativas que Moçambique teve foi a do falecido músico Jeremias Nguenha. Considerado um músico de intervenção e crítico do poder, Nguenha numa das suas músicas, “La famba bicha?” (A fila anda?), insinua que o governo manda-nos pentear a careca, (ma hi fenhissa Pandla), em alusão à ideia de que as suas ações governativas, paradoxalmente, perpetuam a miséria.
Nguenha refere-se aos lamentos comuns de cidadãos que clamam pela intervenção do governo para resolver os problemas da vida, da cesta básica ao desemprego, do transporte, da saúde, e por aí em diante. Este tipo de clamor patenteia uma conceção política paternalista que se tem do estado e do governo e que subalterniza a ação pró-ativa do indivíduo na prossecução do seu bem-estar dentro dos limites do contexto legal e institucional garantidos pelo estado.
O que proponho nesta breve reflexão, pelo contrário, é ilustrar que a excessiva mão interventiva do governo na vida da universidade, em particular a pública, e a conceção popular e instrumentalista da ciência, pode ser uma combinação perniciosa e perpetuar a miséria da universidade como instituição capaz de produzir conhecimento na medida em que pode impedi-la de cumprir com a sua função primordial de impulsionadora da ciência.
A noção de ciência, neste caso, não é apenas aquela hoje pouco propalada cujo interesse é intrínseco a ela própria, um fim em si mesmo, isto é, a produção do conhecimento para o (auto) esclarecimento. Mesmo quando concebida na sua versão mais aplicada, assente na ideia instrumental de resolução de problemas da sociedade, a ciência, ainda assim, não obedece a urgência de expedientes políticos imediatistas.
O novo coronavírus dá-nos algumas lições sobre o tempo da ciência. Todo mundo quer uma vacina para ontem. Mas esta, ou outra terapia qualquer, só vai surgir quando cumpridos todos os preceitos necessários da descoberta e/ou invenção técnico-científica. Isso é inexorável e não há tempo político que vai alterar esse facto.
A ciência opera dentro do seu próprio caos normal expurgando os ruídos da pseudociência, da urgência de expedientes políticos, em regimes democráticos ou autoritários, populistas ou circunspectos. O regime da ciência é a prossecução incessante da objetividade pelo método sujeito a falibilidade das premissas num perpétuo exercício de tentativa e erro.
A inaptidão de dar respostas instantâneas aos problemas da vida não é devido à insensibilidade, incompetência ou insubordinação dos cientistas. Antes, pelo contrário, é inerente ao próprio processo do que define a ciência como um tipo conhecimento que procede pelo método.
Quase todo cientista gostaria de descobrir a solução, seja ela a vacina ou outra forma de conter ou mesmo eliminar o novo coronavírus imediatamente. Mas isso, infelizmente, não depende apenas da boa-vontade, por maior que esta seja.
A maior parte das invenções da ciência que tiveram impacto significativo na solução de grandes ameaças à existência humana – por exemplo, doenças como a tuberculose, que dizimaram milhares de pessoas – surgiram, se não por acaso, de programas de investigação, de investimento intelectual e financeiro avultado, mas que, acima de tudo, se definiram pelo tempo da ciência e não pelo tempo da política.
O tempo da ciência não é igual ao tempo da (urgência) política. As descobertas científicas, mesmo quando instantâneas, sempre foram imprevisíveis e contra a corrente do pensamento e do tempo politicamente correto. A ciência vive e convive com e da incerteza, enquanto a política transaciona a certeza.
A nossa universidade seria mais universidade se não recebesse recados – directos ou indiretos – do Presidente da República e do seu governo sobre o que fazer ou não fazer, mesmo quando em tempo de emergência.
A capacidade de uma universidade fazer seja o que for de forma significante para a ciência, e deste modo para a sociedade, é diretamente proporcional a sua autonomia de decidir o que, quando e como fazer, sem receber orientações (ordens) do poder.
Aliás, quanto mais recados e orientações a universidade receber do chefe de estado e do governo menos universidade ela se torna e menos capacidade terá de produzir ciência – que, eventualmente, poderia ser de alguma serventia para o governo e para a sociedade.
A relação perniciosa entre a autoridade política, a autonomia e liberdade académica não ocorre apenas entre a universidade e o governo. Dentro das próprias universidades, em Moçambique, prevalece um modus operandi e uma lógica perversa na qual a autoridade hierarquicamente estabelecida através das estruturas do poder académico, desde os reitores até aos chefes de departamentos, quer se impor como saber.
Agora, faço aqui um parêntesis para dizer que, a tendência de os governos solicitarem a intervenção da universidade na solução de problemas práticos existe desde que a universidade surgiu como instituição.
A preeminência do discurso neoliberal intensificou essa tendência e, em muitos casos, condicionou o financiamento da universidade à sua submissão a agendas políticas imediatistas, muitas vezes, perniciosas a universidade.
No seu discurso de 29 de Abril, no qual o chefe de estado prorroga a estado de emergência devido a doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19), deixou um recado no sentido de “Promover uma maior participação das instituições de ensino superior e de pesquisa no combate a esta pandemia”.
O que o presidente queria dizer com esse recado é algo que só podemos conjeturar. Não houve elaboração. Houve determinação. Em termos práticos, o que é que a universidade e as instituições de pesquisa devem passar a fazer ou deixar de fazer? Como seria ou será feita a promoção da sua participação no combate a pandemia? Como no primeiro discurso que decretou o estado de emergência, o presidente descreveu a floresta e deixou para o governo a hermenêutica tarefa de descrever as árvores da floresta, através da especificação das medidas de confinamento social.
Pode ser que o governo, através do ministério que tutela o ensino superior, ainda nos venha com os detalhes de como será feita a promoção acima aludida. A história, porém, mostra, que devido a nossa cultura política e académica, assente na submissão a autoridade do poder político e administrativo confundido como autoridade do saber, sempre que o presidente ou qualquer membro do governo envia recados às Instituições de Ensino Superior (IES) sobre o que devem fazer, esses atos de autoridade e de exercício de poder criam uma série de externalidades negativas para as instituições.
Um simples anúncio da visita do chefe de estado à universidade é capaz de paralisar a instituição por meses para que esta se envolva em atos preparativos da visita. Vimos isto com todos os chefes de estado desde o barbudo até o atual. Diante duma eminente visita precedem-se semanas, meses de dubiedade e quebra de rotinas da vida académica com danos incalculáveis, que, paradoxalmente, contrapõem a capacidade de a instituição responder as expetativas inflacionadas de resultados práticos do próprio poder.
É frequente esses anúncios de visitas ou recados sob como as IES devem se portar nunca serem acompanhadas de um cheque. As IES devem se desdobrar em manobras orçamentais para poder efetuar realocações de última hora para poderem deixar a impressão de que fazem o que de facto não fazem. Organizam-se exposições de “estudos”, e toda uma encenação teatral para dar a impressão ao chefe de que a universidade, com efeito, é e faz o que uma universidade “normal” faz.
Passado o simulacro teatral durante a visita, a universidade volta a sua vida desusada de lugar de instrução onde a autoridade do docente se impõe ao estudante por via das aulas. A pesquisa é uma miragem. Mas também, é comum as universidades, pressionadas, prometerem, em nome da ciência, cumprir funções e operar prodígios anticientíficos como transformar uma ilha, com potencial turístico e de conservação, num laboratório de revolução agrária.
A pesquisa para lidar com problemas como o novo COVID-19, então, na conceção popular de ciência, como instrumento para solução de problemas imediatos, e com o tipo de investimento que se requer, calculado em milhares de milhões de dólares, é simplesmente uma ilusão no nosso contexto, não importa que tipo de promoção se pensa fazer de acordo com o recado do chefe.
Um centro de biotecnologia de uma IES nacional, querendo mostrar pro-atividade na investigação Covid-19@versitária lançou-se numa aventura de fazer um inquérito de opinião online sobre o COVID-19. O inquérito tinha sérios problemas metodológicos não só por conter perguntas tendenciosas, mas pelo facto também de qualquer um que acedesse ao link do mesmo, na China ou a cochinchina, podia responder. Portanto, a população e a base da amostra não permitem nenhuma fiabilidade dos dados e estava, a partida, comprometida. No entanto, não me surpreenderia que o resultado desse inquérito fosse objeto de consideração para tomada de decisões.
O problema é mais grave ainda do que se pode pensar. Noutros contextos, centros de biotecnologia, como esse, ou têm equipas multidisciplinares que envolvem especialistas que dominam estudos sociais, incluído os procedimentos estatísticos para inquéritos, ou cingem-se a fazer estritamente o que é de sua competência e domínio. Mas a sede de mostrar que se faz algo para responder a expectativa dos políticos internos e externos a universidade expõe o caricato e este ainda é celebrado como investigação com epíteto de científico.
O financiamento à pesquisa nas rúbricas do orçamento do estado para as IES públicas é nulo. O pouquíssimo que se faz de investigação é com base em fundos externos de programas de cooperação internacional ou mobilizados por meia dúzia de docentes e investigadores também sujeitos as sevícias do poder arbitrário e discricionário dos seus chefes imediatos no que tange a gestão dos fundos de pesquisa. Este aspeto é uma montra microcósmica do problema estrutural da relação entre a ciência e o poder exacerbado por um contexto institucional que propícia a arbitrariedade do poder administrativo na academia sobre a autoridade científica.
O novo coronavírus oferece uma ocasião sui-generis para desnudar e expor fenómenos e comportamentos sociais que noutras circunstâncias requereriam muita destreza para os elucidar. Se por um lado pode ser (ir)realista esperar que as IES produzam a ciência para combater a pandemia, devido as condições estruturais nas quais operam, por outro lado, é preciso reconhecer que mais do que as limitações de ordem financeira, o maior obstáculo reside na incapacidade destas se libertarem do efeito perverso que a relação direta com a autoridade política, no geral, e administrativa a nível institucional, em particular, impõe.
Um testamento disto é a forma como, em Moçambique, o poder político, concretamente o governo se relaciona com as IES, em particular as universidades públicas. Não há dúvida que a universidade pública em Moçambique é, em quase todos sentidos, totalmente dependente do governo.
Desde a decisão da sua criação, passando pelos orçamentos para seu funcionamento até as ações mais básicas que definiriam a imprescindível autonomia institucional e liberdade de pensamento, como uma condição existencial, a universidade espera, recebe e age em função das orientações superiores do governo.
Esta condição de dependência da universidade não é apenas por comissão do governo, mas por omissão, demissão e submissão das suas lideranças aos pejamentos da política partidária. E não se submetem por falta de consciência da perversão, mas por uma questão de sobrevivência e manutenção nas posições de poder.
O carácter de instituição de conhecimento sucumbe a lógica dum poder que transvia a própria forma de estar da universidade, tornando a como outras instituições do estado, que agem, estritamente, em função das diretrizes do governo, mesmo naquelas funções que por definição compete a universidade elucidar ao governo.
A ligação da universidade com o governo corporiza uma dimensão problemática da relação entre o poder e a ciência. Em Moçambique, pensa-se e age-se como se quem detivesse o poder o fizesse por ciência. Por outras palavras, confunde-se poder com saber. Até o adágio segundo o qual o saber é poder, no nosso contexto tem outro sentido. Poder é saber, e essa tem sido a nossa perdição.
Por isso, paradoxalmente, não é a universidade que aconselha o governo, em nome e com base na ciência, pelo contrário, é o governo na sua sacrossanta erudição, radicada no poder, que financia, aconselha e ordena a universidade. Não há ciência, digna desse epíteto, que resista a esta lógica.
A relação do poder (político) com o saber é mistificada. Não sei qual é a origem desta constelação. Suspeito que seja mais uma daquelas heranças dos tempos gloriosos da revolução, que nos ensinaram a venerar o chefe como o sábio.
Aquele “é ou, não é?”, retórico, não era de quem tinha dúvidas (apanágio da mente ciente da falibilidade), mas de quem buscava o conforto nas massas para aderir as suas próprias convicções. O coro popular “éeee” era o aceno de quem não tinha outra opção senão concordar com o chefe, porque ser chefe em Moçambique é sinónimo de saber.
Quem ousaria dizer: - não éeee! Esse não é, de discórdia pensante, ficaria esmagado no uníssono estrépito concordante da massa popular: éeeee! Ou seria identificado e punido pelo ingressado forçado nas listas de reacionários ontem bilibilizados[1], ou hoje mutilados em seus membros inferiores.
Estou ciente que só alguns, concidadãos meus, entenderam as seções alegóricas do texto. O que quero dizer é que por razões históricas e que me parecem associadas a uma das heranças da revolução socialista em Moçambique a relação com o saber passou a ser desvirtuada com a ideia de que o chefe é o todo clarividente e tem acesso privilegiado ao saber.
Esta relação ocorre em todos os níveis da sociedade onde a estrutura de poder e da relação do poder com o saber de manifesta. Na família, é suposto o pai saber mais que todos, incluindo a esposa e os seus descendentes. Portanto, um poder e saber androgénico e gerontocrático. No bairro, o chefe do bairro quarteirão, e das dez (10) casas pode e sabe mais que os seus concidadãos. Na universidade, a hierarquia administrativa superior pode e sabe mais que os docentes, investigadores e toda uma legião de estudantes. Na faculdade, o diretor é a incarnação do monarca da academia. Na sala de aula, o docente é o próprio soberano do saber.
Em Moçambique ser chefe é, praticamente, sinónimo de saber. A ideia de consulta, aos especialistas e aos pares, é, muitas vezes, uma questão teatral de legitimidade de rebanho e de ilusão democrática da busca de consenso deliberativo. É uma espécie de um “é ou não é”, onde ninguém ousaria dizer, discordante: - não é, sob pena de virar Capim! Aqui também só alguns Mozes entenderam a metáfora!
A relação do poder com o saber, em Moçambique, lembrar-me a famosa série “As Aventuras do Barão de Münchhausen”, colecionadas por Rudolph Erich Raspe e publicadas em Londres em 1785. O Barão de Münchhausen foi um personagem Alemão que se contrabalança entre a realidade e a fantasia em seu cosmos próprio, onde enfrenta os mais diversos perigos, e faz fugas impossíveis. Uma das estórias mais conhecidas relata a fuga dum pântano do qual o Barão se afundara em cima do seu cavalo, tendo conseguido retirar-se ao puxar a própria peruca. Orientar as IES moçambicanas a combater o COVID-19, sem (re)pensar e considerar as condições institucionais de funcionamento, os parcos recursos de investigação, e a relação de e com o poder, é mandar fazer totó a quem não tem cabelo sem emprestar uma peruca!
Esta gente manda-nos pentear a careca, como dizia o nosso saudoso músico!
Patrício Langa
Sociólogo
[1] Referência a música de Simião Mazuze (aka Salimo Mohamed) Bilibiliza sobre os campos de reeducação dos “reacionários” da revolução e da companha operação produção contra “indolentes” urbanos.
Em recentes comunicações à nação, o Presidente da República prolatou a obrigatoriedade de quarentena de 14 dias para todos cidadãos vindos de países com transmissão activa do COVID 19 e proibiu a organização e realização de eventos com, primeiramente, mais de 300 pessoas e mais recentemente com mais de 50 pessoas; suspendendo e restringindo desta forma inusitada direitos fundamentais, tal como os direitos à liberdade de circulação (art. 55/2 CRM) e à liberdade de reunião (cfr. art. 51 CRM). Estranha-se que estas medidas restritivas e limitantes de direitos fundamentais tenham sido tomadas pelo Presidente da República em violação da própria Constituição, precisamente por não ter cumprido com as exigências formais nela consagradas, como a necessidade de declaração de Estado de Emergência (cfr. art. 72/1 CRM) e o dever de especificar a duração das referidas medidas e a base legal em que assenta (cfr. art. 72/2 CRM) – sem olvidar que o meio usado para comunicar tais medidas não encontra qualquer respaldo legal no elenco dos actos normativos em vigor. Tomás Timbane frisou com algum eufemismo e benevolência que estávamos «A caminho do Estado de Emergência» (TIMBANE, Tomás, Post do Facebook de 20/03/2020). Este percurso sinuoso em direcção ao Estado de Emergência, que estranhamente mereceu o silêncio da comunidade jurídica pátria - eventualmente pela nobreza dos seus objectivos ou pelo pânico que se apossou de muitos de nós - não deve ser aplaudido no contexto de um Estado que se pretende que venha a ser de «democrático de Direito». Deve sempre preocupar-nos que nessa «Caminhada para o Estado de Emergência», quem jurou garantir o respeito pela Constituição, a viole; sobretudo com uma justificação implícita alicerçada no célebre pensamento de Nicolau Maquiavel que «Os fins justificam os meios».
Este prelúdio inconstitucional «A caminho do Estado de Emergência» convocava a preocupações antecipadas relativamente ao anunciado momento da declaração formal do Estado de Emergência.
Porquanto, a declaração do Estado de Emergência, implicando restrições de direitos e liberdades individuais constitucionalmente garantidos, não remete a actuação dos poderes públicos para o mundo da arbitrariedade e muito menos para uma espécie de “zonas libertadas do Direito”. A Constituição da República não é suspensa durante esse período, ela permanece em vigor, tanto mais que é nela que reside a fonte de legitimidade, os fundamentos e os limites do Estado de Emergência.
Como sublinha Jorge Miranda a propósito «Não há em cada Estado, duas Constituições aparelhadas – Uma Constituição da normalidade e uma Constituição da necessidade; há uma só Constituição, assente nos mesmo princípios e valores; embora com regras adequadas à diversidade das situações» (MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 431). Na linguagem de Canotilho, trata-se no fundo de submeter as situações de emergência à própria Constituição, «constitucionalizando» o recurso a meios excepcionais necessários, adequados e proporcionais, para se obter o restabelecimento da normalidade constitucional (CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 1085).
Por isso, não estando em causa a necessidade da declaração do Estado de Emergência, era sobretudo o respeito pelos formalismos e limites constitucionais, e pelos imperativos da proibição do excesso que mais nos preocupam.
O nosso texto constitucional determina que a actuação dos poderes públicos em contexto de Estado de Emergência deve «em todo o caso» respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se nomeadamente quanto à extensão dos meios utilizado e quanto à duração, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional. Neste contexto, podemos estabelecer um paralelismo com a relevante preocupação que vem vazada no Decreto 2/A-2020 de 20 de Maio de 2020 (regula a aplicação do Estado de emergência decretado Pelo Presidente da República portuguesa) nos seguintes termos: «Estas medidas devem ser tomadas com respeito pelos limites constitucionais e legais, o que significa que devem, por um lado, limitar-se ao estritamente necessário e, por outro, que os seus efeitos devem cessar assim que retomada a normalidade» .
Como corolário, a Constituição moçambicana vinca que um dos principais limites para a actuação dos poderes públicos no Estado de Emergência é o princípio da proporcionalidade que demanda o respeito pelos seus 3 subprincípios, designadamente: (i) idoneidade (as medidas restritivas usadas sejam virtualmente aptas a alcançar o fim visado); (ii) necessidade (dos meios idóneos disponíveis e igualmente aptos para prosseguir o fim desejado, deve-se recorrer àquele que virtualmente assegure o menor sacrifício para os visados) e (iii) proporcionalidade em sentido estrito (diz respeito à justa medida das coisas, ao equilíbrio e à ponderação necessárias para se alcançar uma relação de adequação entre os bens e interesses em colisão, mais especificamente entre o sacrifício imposto ao cidadão pela restrição e o benefício por ela prosseguido) - NOVAIS, Jorge Reis, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pp. 162 e 163.
A Constituição da República de Moçambique também estabelece outros limites específicos, tais como a proibição do Estado de Emergência limitar ou suspender, em qualquer caso, direitos intangíveis como o direito à vida, à integridade pessoal (entenda-se integridade psicossomática do cidadão), à capacidade civil e à cidadania, à não retroactividade da lei penal, o direito à defesa dos arguidos e à liberdade de religião (cfr. art. 294 CRM). É nosso entendimento que estes são uma espécie de «núcleo duro mínimo» de direitos fundamentais que, em caso algum, podem ser sacrificados em situações de Estado de Emergência. Porém, tal não significa que não possam existir outros direitos fundamentais dos cidadãos a salvaguardar nesse mesmo âmbito, tendo em conta a natureza do motivo excepcional que conduziu à decretação do Estado de Emergência. Tanto mais que a Constituição obriga a que na declaração do Estado de Emergência sejam especificadas e devidamente fundamentadas as liberdades e garantias cujo exercício é suspenso ou limitado (cfr. art. 290/2 CRM)
Com efeito, tendo em conta a natureza de menor gravidade do Estado de emergência no âmbito dos chamados estados de excepção, tomando ainda em linha de conta que a calamidade pública que o fundamenta é de origem biológica (não envolve qualquer tipo de agressão efectiva ou eminente ou de perturbação da ordem constitucional), cremos que em abstracto não se justificariam restrições ou limitações à uma panóplia muito ampla de direitos fundamentais dos cidadãos não relacionados com a prevenção do contágio comunitário pelo COVID 19. Exemplificativamente, o direito à liberdade de expressão, liberdade de imprensa e de informação; a restrição ou limitação das prerrogativas funcionais dos Advogados; o direito à inviolabilidade da correspondência e do domicílio; o direito ao sigilo das comunicações; o direito à impugnação de actos violadores de direito dos cidadãos, o direito de acesso aos tribunais, só para citar alguns considerados relevantes.
Hoje, dia 30 de Março de 2020, o Presidente da República comunicou à nação moçambicana que vai declarar o Estado de Emergência no nosso País, como medida de reforço das acções de prevenção do COVID-19. Esta modalidade de Estado de Excepção entra em vigor a 1 de Abril de 2020 e terá a duração de 30 dias, De entre as medidas anunciadas pelo Chefe do Estado, como âmbito do Estado de Emergência, destacam-se a limitação de circulação de pessoas e bens em todo o território nacional, assim como a limitação da entrada de pessoas nas fronteiras terrestres, aeroportos e portos, exceptuando-se para razões de interesse do Estado, transporte de bens e mercadorias por operadores devidamente credenciados, e situações relacionadas com a saúde. O Presidente da República também anunciou a quarentena obrigatória para todos os cidadãos que tenham viajado para fora do país, ou que tenham estado em contacto com casos confirmados de COVID-19, assim como a proibição de quaisquer actividades públicas ou privadas, como actividades desportivas, religiosas, culturais, recreativas e de outra índole que concentrem multidões no mesmo recinto, exceptuando questões inadiáveis do Estado ou sociais. O Presidente da República anunciou ainda a fiscalização dos preços de bens essenciais para a população, incluindo os necessários para a prevenção e combate à Pandemia; assim como a introdução da rotatividade do trabalho ou a adopção de outras modalidades em função das especificidades do sector público ou privado (https://www.presidencia.gov.mz/por/Actualidade/Presidente-da-Republica-declara-Estado-de-Emergencia, acedido a 30 de Março de 2020).
Podemos dizer com alguma segurança que esta selecção dos direitos, liberdades e garantias afectados (limitados ou restringidos) pela declaração de Estado de Emergência obedeceu aos imperativos constitucionais. Ou seja, estas medidas adoptadas, no contexto da declaração do Estado de Emergência - tendo em conta os interesses colectivos supremos em jogo e a finalidade a atingir - parecem-nos adequadas, necessárias e estritamente proporcionais.
Não obstante, pode-se gerar alguma celeuma jurídica na aparente contradição entre a proibição contida no texto do artigo 294° da Constituição da República que proíbe que a declaração do Estado de Emergência limite ou restrinja a liberdade de religião e o facto do Presidente da República ter anunciado a proibição de actividades religiosas que concentrem multidões no mesmo recinto. Esta medida de carácter excepcional e temporário pode ser interpretada no sentido que a declaração de Estado de Emergência limitou a liberdade de religião dos cidadãos, em violação da intangibilidade desse direito fundamental assegurada pela norma constitucional acima citada.
Sem embargo do Decreto Presidencial que regulamenta a aplicação do Estado de Emergência poder vir a detalhar especificamente o que se deve entender por concentração de “multidões” no mesmo recinto para a prática de actividades religiosas, permanece a dúvida se as missas ou outros eventos presenciais de cariz religioso estarão proibidas durante a prevalência do Estado de Emergência ou se podem realizar-se presencialmente mediante a observância de certos cuidados de distanciamento dos presentes e só com um número limitado de pessoas. Ficaria, porém, a questão de saber: qual seria o número de pessoas presentes que seria considerado aceitável? Para esses fins quantas pessoas constituem uma multidão? A generalidade e indeterminação da expressão “multidão”, usada neste contexto, não ajuda ao fácil entendimento do sentido decisivo da medida. Essa formulação vaga de uma medida concreta muito importante para a consecução dos objectivos da decretação do Estado de Emergência, pode comprometer o sucesso dos fins almejados ou até mesmo gerar interpretações distintas sobre o alcance da proibição tornar-se um convite à arbitrariedade interpretativa, com todas as consequências negativas que adviriam dessa comfusão. Teria sido preferível maior clareza e concretude no anúncio desta medida.
Todavia, tendo em conta a finalidade da declaração do Estado de Emergência (o reforço das acções de prevenção ao COVID 19), não nos arrepiaria que tal medida implicasse a proibição temporária da realização presencial de missas e de outros eventos de cariz religioso. E, em nosso entender, essa eventual proibição não colidiria com limitação contida no citado artigo 294° da Constituição da República e nem com os limites estabelecidos pelo princípio da proporcionalidade. Proibir excepcional e justificadamente a realização de celebrações de cariz religioso e outros eventos presenciais de culto, para evitar os efeitos trágicos da propagação do Coronavírus através da aglomeração de pessoas em missas e outras celebrações presenciais de carácter religioso, não significa limitar ou restringir a liberdade de religião; visto que neste caso o Estado não estaria a impedir os cidadãos de professarem as suas crenças religiosas. Tanto mais que tais cultos ou celebrações poderão ser temporariamente acompanhados pelos fieis através de meios electrónicos audiovisuais, como acontece, por exemplo, com as recentes missas do Papa Francisco que, pelas mesmas razões, são actualmente transmitidas por via televisiva - julgamos que quando as coisas se passam desta forma, nem a própria liberdade de culto parece ficar afectada, visto que continua a haver culto religioso, deixando apenas de ser presencial.
À frente, depois de conhecermos as medidas decretadas pelo Presidente da República ao abrigo da declaração do Estado de Emergência, acreditamos que o desafio maior residirá, daqui em diante, na actuação das forças de defesa e segurança nas acções de fiscalização do cumprimento destas medidas. A nossa preocupação tem que ver com a habitual cultura brutalidade policial e militar contra os cidadãos exercida em tempos de normalidade constitucional; pressagiando-se um agravamento nesta inédita situação de excepcionalidade constitucional. Algumas imagens violentas que nos chegam através das redes sociais mostram intervenções policiais e militares violentas e desproporcionais contra os cidadãos que alegadamente violaram as regras de confinamento obrigatório na Índia. Tais filmagens revelam uma actuação brutal das forças de segurança, numa clara violação do direito à integridade psicofísica dos respectivos cidadãos. Também daqui, da vizinha África do Sul, chegam-nos imagens chocantes de membros das forças armadas a imporem sevícias e outros tratamentos cruéis e degradantes a cidadãos que aparentemente violaram o confinamento obrigatório.
Lá como cá, todo o cidadão tem o direito à vida e à integridade física e moral e não pode ser sujeito à tortura ou outros tratamentos cruéis ou desumanos. Cá e lá a declaração de Estado de Emergência não deve limitar ou suspender o direito do cidadão ao respeito pela sua integridade psicofísica – aliás, em todo os Estados democráticos que se pretendem de Direito, o respeito pela dignidade da pessoa humana é um valor superior do ordenamento jurídico; caracterizando-se antes de mais como um imperativo civilizacional.
Em adição, cabe-nos frisar que o princípio da proporcionalidade como mecanismo de controlo dos excessos cometidos pelos poderes públicos não só intervém, numa primeira linha, para aferir se as restrições e limitações dos direitos fundamentais impostas pela declaração do Estado de Emergência são adequadas; como também, num segundo momento, para se assegurar que as restrições impostas por essa declaração, no domínio da respectiva fiscalização e controlo, devem limitar-se ao necessário para assegurar os fins perseguidos e para salvaguardar o exercício de outros direitos e interesses dos cidadãos constitucionalmente protegidos.
Deste modo, o ordenamento constitucional impõe proporcionalidade nas medidas excepcionais declaradas, assim como demanda proporção na actuação dos poderes públicos para a salvaguarda do cumprimento das imposições decretadas.
Aqui chegados, e quase a terminar, pedimos emprestadas as palavras do Presidente da República de Cabo Verde, Professor Jorge Carlos Fonseca, quando a propósito da declaração do Estado de Emergência naquele país lusófono assegurava o seguinte: «A nossa Democracia continuará, pois, em funcionamento e todos os direitos, liberdades e garantias não abrangidos pela suspensão continuarão em plena vigência […] o estado de emergência, decretado de acordo com a Constituição e em nome dela, não implica, pois, um qualquer apagão democrático».
Em suma: esteve bem o nosso Presidente da República ao estabelecer estas medidas constitucionais, excepcionais e temporárias, de resposta à necessidade de prevenção da propagação do COVID 19. A nosso ver, tais medidas decretadas são adequadas, necessárias e proporcionais.
Contudo, inquieta-nos a seguinte questão: estarão os demais poderes públicos à altura das suas responsabilidades de fiscalização e controlo do cumprimento dessas medidas de excepção? Estão preparados para actuar neste contexto extraordinário sem provocarem um curto-circuito constitucional?
O futuro próximo melhor dirá!
NOTA: Este artigo faz parte de uma iniciativa em que vários juristas, sociólogos,economistas, antropólogos, jornalistas, cientistas políticos e activistas sociais se juntaram para escrever sobre o significado do Estado de Emergência, uma decisão inédita em Moçambique e em grande parte do mundo.