A atender pelo testemunho de diferentes apóstolos, quando Jesus visitou o Templo de Jerusalém, cujo pátio estava repleto de comerciantes e cambistas que vendiam animais e cambiavam dinheiro romano por hebraico, num período em que a cidade estava repleta de peregrinos da páscoa, no único episódio considerado de uso de "força bruta" no evangelho de Cristo, Jesus teria usado de um chicote de cordas para expulsar “todos os que ali vendiam e compravam", derrubando as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores de pombas, teria dito: "Está escrito. A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a fazeis covil de salteadores” (Mateus 21:12-13). A versão de João, 2:15-16 inclui o colocar em debandada ovelhas e bois que ali se comercializavam.
Os vendilhões do templo, em narrativas bíblicas, representam o desvirtuar de uma certa escolástica e linha evangelista. Assim como nos questionamos sobre o tipo de "cultura e personalidade" que poderia levar alguém a usar do avião de combate como última arma que inclui como detonador o sacrifício da própria vida, como faziam os Kamikazes japoneses (no contexto da segunda guerra mundial); que tipo de "convicção religiosa" recorre ao corpo e a vida para a “destruição dos infiéis”, como os "homens e mulheres bomba", no contexto das narrativas sobre a "radicalização" Islâmica; também podemos questionar-nos sobre milhares de homens e mulheres que alimentam programas de fé salvacionista por via de “exorcismos" para a “esbelteza”, para a "abundância de cheques”, para o alinhamento dos, digamos, "tomates", ou até para ensaios de ressurreição, acompanhados por farta e "condigna" refeição, para saciar a fome de um ex-morto. Ainda me questiono se o que quereria fazer após uma eventual ressurreição seria degustar dos meus sofridos cozinhados, ler os livros que não tive oportunidade, resolver o dilema entre "Txilar e 2M" ou, simplesmente, proceder ao ritual de reverência ao meu improvável ressuscitador.
Nos dias que correm, conscientes e ricos de direitos e deveres, o único chicote viável para os diferentes tipos de vendilhões nos múltiplos templos e mercados da vida talvez ainda sejam o voto (na política), a educação e as próprias tecnologias de informação e comunicação que, se por um lado nos imbecilizam com "fake-news", "faith" e "fake-faith, também propagam visualizações e explicações sobre os detalhes acionados para a desqualificação de presumíveis milagres. Todavia, independentemente da revelação da “farsa", como bem disse Evans-Pritchard, a crença e explicação sobre o feitiço não se esgota porque um feiticeiro particular possa ter sido desmascarado. Em tal sistema de crenças, o problema é visto como sendo de um feiticeiro específico, que não é tão bom assim, ou até do enfeitiçado, que não sabia que havia contra-feitiços activos, com poderes superiores às do feiticeiro, considerado barato.
A áurea de sacralidade que acompanha vivências da religiosidade e espiritualidade é passível de ser observada por qualquer um que embarque em exercícios de reflexividade e postura relativista, sem que isso signifique qualquer reivindicação de verdades ou conhecimentos supremos. Religião, ciência e política são domínios de significações caracterizados por armaduras de estruturação relativamente diferenciadas que podem caber em noções de visões de mundo, um todo ou parte de sistemas cosmológicos.
O tráfico de ideias, sistemas de crenças e representações remonta a própria história da humanidade e, apesar da afeição ao fetiche das modernidades e coisas ditas pós-modernas, o que anima a experiência humana é essa contínua mobilidade, tensões, conflitos estruturantes e negociações entre domínios de alguma forma contíguos e/ou interdependentes.
A estas distâncias históricas, naturalizamos a coexistência de mesquitas, igrejas, templos, academias, parlamentos ou palhotas de curandeiros, não como meros edifícios mas, como espaços especialmente concebidos para o exercício e para experienciar formas particularmente expectáveis de estar e ser em cada um desses distintos espaços, ainda que elementos de um possam ser arrolados, invocados, instrumentalizados ou simbolizados entre e intra domínios.
Não raras vezes, cientistas ou candidatos a cientistas agradecem aos deuses por terminarem etapas rituais de legitimação como cientistas. Religiosos cultivam o conhecimento científico, o domínio dos cânones religiosos e, por vezes, não se distinguem de actores políticos em actos de pregação e vice-versa. O fascínio da vida emerge dessa complexidade e multiplicidade de domínios e espaços de transito e vivências que emanam das relações sociais.
Na era do "triunfo do mercado" e, mesmo antes disso, qualquer uma das instituições sociais ou patrimônios humanos imateriais são passíveis de virar bens ou produtos disponibilizados nos diversos tipos de mercados, como simples "commodities", à mercê das mais elementares leis de oferta e demanda.
No “mercado científico”, por exemplo, vende-se de tudo um pouco. “Escolas de pensamento”, “linhas editoriais”, “(in)verdades científicas”, tecnologias provadas e improváveis, bugigangas que interpretam teorias e descobertas, a ideia de deleite pelo conhecimento de “torre de marfim”, fórmulas, palavrões e chavões, além do "turismo científico que se materializa entre conferências, seminários locais e globais que assumem contornos de verdadeiras passarelas de desfile de egos e vaidades, associadas a maleáveis noções de razoabilidade, razão, legitimidade e prestígio. Indivíduos fazem carreiras na academia, estabelecem alianças, adotam ou privilegiam “agendas” (ditas de conhecimento) e reproduzem-se, em termos de construção de si (simbólica e materialmente), assim como legam ideias e representações, passíveis, ou não, de serem capitalizadas e ou disputadas no "mercado de conhecimento" ou no que, em função da escola e praxe, configura uma verdadeira “indústria do conhecimento”.
O campo académico ou científico é passível de ser observado com a mesma aproximação ou distanciamento que podemos usar para qualquer outro campo, domínio ou indústria, se usarmos o jargão mercadológico de coisificação “das coisas”.
A política também configura mercado. Por ser demasiado óbvia a forma de estar, ser e transacionar no mercado político, desde a venda de ideias e ideologias no afã de cativar indivíduos ou multidões, propostas de gestão e governação, modelos de sistemas e toda uma série de produtos, subprodutos e aspirações que dispensam exaustão na sua caracterização. A política qualifica uma indústria, em sentido lato, onde até sonhos de “futuro melhor” se vendem ou impingem-se pela força da repetição, encantamento de líderes carismáticos, lealdades históricas que permeiam dimensões existenciais. No limiar, alguns indivíduos não se imaginam em vida plena fora dos laços e vínculos políticos partidários. A expressão, "eu sou político(a), não sei fazer outra coisa", proferida por figura pública em espaço privilegiado de antena nacional de TV é lapidar.
A percepção do domínio da religião e religiosidade como espaço de evocação e experimentação de formas particulares de ascetismo, teologias salvacionistas, evangelhos da prosperidade (e do bem estar), bem como territórios de articulação de significados e sentidos da vida, experimentação e vivência de níveis e dimensões diferenciadas de espiritualidade não impedem a visualização deste campo como espaço competitivo de negociação e mercantilização de narrativas de capital cosmológico, com potencial de contribuir para a inserção e localização de indivíduos e colectividades em sistemas relativamente abrangentes de definição e interpretação do "mundo" e da "realidade".
No brotar de cogumelos de tendas de promoções de milagres, não devemos perder de vista que a epifania da “salvação” manifesta-se de diversas formas e, apesar da dimensão súbita que parece acompanhar esse momento, obedece à roteiros sociais multidimensionais permeados por diversos sentidos, para não dizer razões, simbolismos e efeitos tacitamente apelativos e/ou coercitivos. O "festival de milagres" ostensivamente mediatizados nos últimos tempos não são novos e acompanham experiência humana como parte integrante de sistemas cosmológicos fechados e/ou fluídos. Visões de mundo reservam espaços privilegiados para as manifestações e expressões religiosas, independentemente da ocorrência de outras narrativas sociais, algumas das quais reivindicam, para si, lugar de ascendência (como a política, as religiões seculares ou a ciência).
A, simultaneamente, confortante e desconfortante multiplicação e mediatização de formas pregação, oração, incomoda pela visibilidade, ocupação de espaços de antena nos mídias modernos e pela e pela ousadia na apropriação de roteiros que assumem contornos lúdicos e instituintes de lugares de poder, como o atabalhoar do trânsito com sirenes e "motocadas" que, tanto quanto simbolizam a materialização do poder do Estado e, literalmente, suas "estruturas", concorrendo para a produção e reprodução das desigualdades sociopolíticas, abrem espaço para a cristalização, no imaginário social, de diferentes dimensões de reificação das premissas e versões conjunturais da "teologia da prosperidade". À posteridade, reservo a discussão sobre o “papa-móvel” e o aparato mobilizável nas digressões ou mobilidade papal.
Os edifícios morais, como obra do homem, ainda que exibam bases estruturais relativamente perenes, são feitos de materiais maleáveis, suscetíveis e permeáveis à recriações, mimetismo e decalques de códigos e linguagens conhecidas (e novas), esticando os limites dos parâmetros mais genericamente estruturantes, ao mesmo tempo em que acomodam convicções e oportunismos de indivíduos e grupos.
A batalha pela comunhão de "juízos de valores" (não reduzida à simples homogeneização) em vários domínios, com particular destaque aos campos político e religioso, é longa e passa pela problematização das nossas concepções sobre moralidade, ética, direitos e deveres de indivíduos e colectividades, em contexto em que parece predominar o "estado de natureza".
Investigações sobre as formas como os eleitores reagem à propaganda política e campanhas políticas tem grandes implicações para estrategas políticos, arquitectos do financiamento político e engenheiros do voto. Nos Estados Unidos, as pesquisas recentes focalizam mais sobre efeitos imediatos dos meios de comunicação de massa sobre as intenções de voto. Porém, quão longos são estes efeitos? Esta é uma questão pouco trabalhada tanto lá como cá em Moçambique.
Para determinar o poder persuasivo das campanhas político-eleitorais os pesquisadores Seth J. Hill, James Lo, Lynn Vavreck e John Zaller das universidades de Califórnia, Mannheim, Los Angeles respectivamente analisaram os dados sobre os efeitos de propaganda política sobre a intenção de voto para as eleições presidenciais de 2000 e 2006 bem como as eleições locais.
Para a eleição de 2000, eles usaram um conjunto de dados que consistem em 12.000 entrevistas telefónicas colectadas pela National Annenberg Election Survey (NAES) entre 01 de Setembro e o dia da votação. Os dados para as eleições de 2006 vieram do Cooperative Congressional Election Study (CCES) de uma pesquisa conduzida pela Internet ao longo de Outubro e Novembro de 2006. Essas pesquisas, combinadas com os dados de votação permitiram os autores explorar os efeitos a curto e longo prazo de publicidade e propaganda política sobre a preferência do candidato e se ela se traduziu ou não em alguma acção política; portanto, eleição do candidato.
Dentre tantas conclusões, o estudo concluiu o seguinte:
Os autores observam que os resultados têm uma série de implicações práticas. A curta duração dos efeitos de persuasão significa por outro lado a limitação do poder do dinheiro para comprar indefinidamente um grande número de votos que alguns considerariam positivo.
O título não é originalmente meu. É do economista e psicólogo americano, Herbert A. Simon, um dos primeiros académicos a descrever com precisão a relação entre informação e atenção.
Todos os dias – e já não é novidade dizer isso, somos inundados com informações. Do controle remoto à pesquisa do Google; do Twitter ao Facebook; dos jornais eletrónicos ao aplicativos variados; do WhatsApp ao Instagram, é tudo uma miríade de informação que circula à velocidade estonteante, potenciadas pela internet.
Na economia de informação em que nos encontramos, somos ou compradores ou vendedores de informação, ou mesmo as duas coisas, ou, na pior das hipóteses, recetores ou difusores da mesma. Fazemos isso de graça, à custo próprio.
Num artigo publicado em 1997, Simon já notava naquela altura de que “... a informação consome a atenção dos seus destinatários. Assim, quanto maior for a informação recebida, menor é a atenção prestada”. O que o autor queria dizer era que para que a informação fosse decifrável e compreensível, é preciso que os indivíduos dediquem tempo e atenção para decifrá-la e compreendê-la.
Simon, prossegue, “atenção é a ferramenta psicológica que usamos para descartar informações irrelevantes, de modo a que possamos nos concentrar no que é importante para nós. À medida que os nossos recetores não param de receber informação diversa e de forma intrusiva, a nossa atenção se torna cada vez mais tensa e desafiada” [cf: Simon, H. A. (1971) "Designing Organizations for an Information-Rich World" in: Martin Greenberger, Computers, Communication, and the Public Interest, Baltimore. MD: The Johns Hopkins Press. pp. 40–41].
A atenção é um poderoso ativo em todos os relacionamentos que deve ser gerida com atenção acrescida. Devemos aplicar alguma disciplina a forma como gerimos a informação ou enfrentar o risco de ter nossa atenção e nossos relacionamentos, sequestrados pela força de maus hábitos.
Li no jornal a Carta um longo texto da autoria de um tal Edgar Barroso, tentando desmontar um texto meu intitulado Reflexão em torno do atual Pânico moral no qual, a partir do conceito cunhado pelo sociólogo sul-africano Stanley Cohen, tento transpor à situação e ao atual humor social. Não irei repetir a descrição, dado pode ser acedido a partir do seguinte endereço: http://bit.ly/2Xi3fVB
"Pânico moral" é um conceito de sociologia cunhado por Stanley Cohen, em 1972 – [cf: Cohen, S. (2011). Folk devils and moral panics. Routledge.], para definir a reação de um grupo de pessoas baseada na falsa ou empolada perceção de que o comportamento de um determinado grupo, normalmente uma minoria ou uma subcultura, é perigoso e representa uma ameaça para a sociedade no seu todo. O termo tem sido amplamente adotado tanto pelos meios de comunicação de massa quanto no uso cotidiano para se referir à reação social exagerada causada pelas atividades destes determinados grupos e/ou indivíduos, invariavelmente vistos como grandes preocupações sociais e a reação da mídia amplia esse "pânico" que os cerca.
Existem, de acordo com o Cohen, quatro fases para a construção do pânico moral, nomeadamente:
Mais ainda, Stanley Cohen mostrou que os órgãos de comunicação de massa eram a principal fonte de conhecimento do público sobre comportamentos desviantes e problemas sociais. Ele argumentou ainda que o pânico moral dá origem ao diabo público, através da etiquetagem das ações e dos indivíduos.
De acordo com Cohen, a comunicação social (e agora as redes socais também) desempenham uma ou todas três principais funções para a consolidação do pânico moral.
Para terminar, importa falar das características do pânico moral. São cinco, nomeadamente:
EPIFENÓMENO: fenômeno secundário que ocorre ao lado ou paralelamente a um fenômeno primário, ou simplesmente, subproduto de um fenómeno.
Às vezes, e para o nosso caso (moçambicano), os pânicos morais manifestam-se em forma de epifenómenos, caracterizados por “ondas de indignação” coletiva ou mesmo seletiva, que de forma sucessiva se substituem, à medida que elas vão caindo no esquecimento.
Enquanto grande parte do debate público e de movimentos de advocacia ancorar-se à volta de “pânicos morais” e epifenómenos, dificilmente estes chegarão a lado algum, senão a letargia e resignação. O pânico moral anda de mãos dadas com a etiquetagem e o medo.
O advento das redes sociais propicia a difusão do pânico, do medo, de rumores e de notícias falsas, levando a que as pessoas tomem atitudes congruentes a essas mesmas notícias em tempo real, mesmo que posteriormente tais notícias ou pânicos se revelem falsas.
A característica mais perigosa com a qual o mundo cibernético deve agora lidar chama-se decadência da verdade, caracterizada pela supremacia da opinião sobre os factos: o cinismo, o anti-intelectualismo bem como a emergência de subculturas e contraculturas; crescente divergência sobre factos e interpretações analíticas sobre os mesmos, indefinição da linha entre opinião e facto, abundância em termos de quantidade e disponibilidade e consequente maior influência da opinião e experiência pessoal sobre facto e o declínio da confiança em fontes e factos anteriormente respeitados.
Isto tudo contribui para que os cidadãos não sejam capazes de pensar fora do âmbito de emergência em que se encontram, contribuindo para uma esfera pública em permanente ebulição.
Referências
Arbesman, S. (2012). Truth decay: the half-life of facts. New Scientist, 215(2883), 36-39.
Cohen, S. (2011). Folk devils and moral panics. Routledge
Rich, M. D. (2018). Truth decay: An initial exploration of the diminishing role of facts and analysis in American public life. Rand Corporation.
Compreender os moçambicanos é uma tarefa que ainda não iniciou
É minha forte intuição que a academia moçambicana, principalmente dos ramos da psicologia, comunicação e ciência política ainda não dedicaram a necessária atenção para compreender a cosmovisão dos moçambicanos. Este pode, provavelmente, ser a causa que justifique o desencontro entre a academia e sua produção com a política e suas respostas.