Fez esta semana, justamente a 11 de Agosto, seis meses depois que um dos nossos cronistas, João Candiane Candido, nos deixou. Não sei se para muitos este nome diz alguma coisa; mas posso assegurar que, para ‘uns tantos’, sobretudo os de idade adulta, saberão que se trata, nada mais, nada menos, de… Kandiyane wa Matuva Kandiya! Aquele mesmo que assinava uma coluna, para alguns algo controversa, no “Domingo”! Para esta grande figura da nossa praça pública perecida a 11 de Fevereiro, vai esta “missa pagã”!
João Candiane Cândido foi, sim, uma figura de peso no nosso espaço público! As suas opiniões tinhamo-las através das páginas do semanário “Domingo” semana sim, semana sim, até antes do seu silêncio! Primeiro, a sua crônica tinha o título de ‘Assombrações’, depois passou a ‘Leigo, Mas não Burro!’ Opinava sobre todos os assuntos. E não era de rodeios. Naquele seu espaço, ele pegava o “búfalo pelos chifres”, talvez daí ter sido apelidado, por alguns, de controverso. Foi Secretário Permanente no Ministério dos Recursos Minerais e Energia e, depois, membro da Autoridade Nacional da Função Pública (instituto que teve uma vida muito efêmera, foi extinta porque inconstitucional) e, por fim, vice-ministro da Mulher e Acção Social. Portanto, não estamos diante de uma figura qualquer…
Mas não decorre disto a “missa” que dedico a João Candiane Cândido, aliás, Kandiyane wa Matuva Kandiya! Decorre da relação de amizade e de empatia que mantive com ele.
Finais dos anos 80. Eu era também jornalista cultural no “Domingo”, além de generalista, coordenador da página ‘Ler & Escrever’. Por esta razão, tinha que frequentar eventos culturais. Por razões por explicar, não somente por mim, havia mais aviso e consequente relato de actividades culturais ocorrendo na cidade capital do que nas províncias; um dos menos mencionados e estudados desequilíbrios sociais - os acontecimentos que têm lugar na capital, mesmo não tendo aquela magnitude têm maior cobertura mediática, mas isso é outra história para discutir.
A sede da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) era onde ocorriam muitos “assuntos” culturais: palestras, debates, colóquios, conversas literárias, lançamentos de livros, e outras iniciativas que tais. O Kandiane era presença assídua e ruidosa. Numa dessas ocasiões, o debate era sobre “o que é literatura moçambicana e o que não é, versus, quem é o escritor moçambicano e quem não é…”, temas próprios dos momentos de transições políticas. Não posso reproduzir a posição do malogrado, já não me ocorre, mas interveio com vigor e apresentou as suas posições.
Assim íamos nos encontrando nesses eventos culturais. Não muito tempo passou, fiquei também coordenador das ‘Cartas dos Leitores’ e aí tive de entrar em contacto com muitos leitores assíduos do nosso jornal… o nosso João Candiane Cândido, o também falecido Gabriel Simbine e o igualmente perecido Job Mapepeto Mabalane Chambal (Deus os tenha)! Muitas foram as cartas do Kandiane e dos velhos Simbine e Chambal que publicámos nas páginas do semanário “Domingo”. Um desses dias, o Candiane traz consigo dois grandes volumes de textos dactilografados e pede para eu ler. Li até onde pude, eram muitos e, depois, recomendei-lhe para, ele próprio, seleccionar os que considera os melhores textos, agrupá-los por temas e reuni-los em draft de livro e depois trazer para voltar a apreciar. E veio a publicar os seus escritos em livros!
Depois do semanário “Domingo”, tive que ir trabalhar no Ministério dos Recursos Minerais e Energia, como assessor de comunicação! Quem encontro lá é, nada mais, nada menos, Joao Candiane Candido! Secretário Permanente do MIREME! Aliás, ele nunca tinha trabalhado em nenhum outro lugar antes da Alta Autoridade para a Função Pública e Ministério da Mulher e Acção Social. Lá diz um velho ditado popular, ‘trate bem as pessoas, independentemente de não estares ligado a elas, pois não sabes onde vais!’ Pois bem, e se tivesse destratado o Kandiyane enquanto dono e senhor das páginas do jornal, e ele interessado em publicar os seus escritos?...
Devo confessar que tivemos uma relação de trabalho muito boa, talvez decorrente da relação de amizade que já tínhamos. Quase sempre, estávamos nós a discutir literatura e conhecimentos gerais. O senhor Secretário Permanente era uma pessoa de coração aberto, de muita candura. Sempre de sorriso na boca. Durante os cerca de três anos que trabalhei com ele, nunca ouvi alguém queixar-se de fosse o que fosse do senhor Secretário Permanente! O Kandiyane wa Matuva Kandiya era uma pessoa muito lida, com muita cultura geral, e continuava a ler avidamente. Grande conhecedor da bíblia, afinal, ele fora seminarista; falava dela com toda a facilidade do mundo, como podemos ver nos seus textos. Aquele senhor é um exímio contador de histórias! Muito conversador. Podia contar histórias uma semana inteira! Nos nossos conselhos coordenadores, ele era o contador-mor de histórias, apesar de que não tomava álcool!
Como referi, era um homem sem papas na língua! E talvez isto lhe tenha trazido uma grande incompreensão, de tal sorte que, quando foi nomeado vice-ministro da Mulher e Assuntos Sociais, um grupo de mulheres fez um abaixo assinado para a então ministra, Virgília Matabele, a protestar contra a nomeação dele para a posição de vice, acusando-o de agressão verbal e psicológica à mulher, intolerância contra a oposição política e linguagem menos própria. Num dos debates nos jornais com o falecido jornalista Machado da Graça, ele acabou chamando-o jocosamente de “beula” (o correspondente, em xangana, de machado)... e numa das suas últimas crônicas atacava vigorosamente a actual ministra da Cultura e Turismo por ter feito um concerto de música clássica no fim do ano, insinuando tratar-se de um estilo cultural estranho à cultura moçambicana!
Aqui fica uma breve homenagem a um homem, cuja passagem pelo mundo fez questão ele próprio de registar! Incluindo prenunciar a sua própria morte. Na sua última crônica, publicada a 7 de Fevereiro de 2021, sobre as tremendas perdas dos seus amigos devido à COVID-19, ele terminava dizendo: "Não sei se digo até breve ou até sempre” aos amigos falecidos. Certo, certo é que foi a sua última crônica publicada no semanário “Domingo”.
Fica aqui a Missa (Pagã), [roubando ao Fernando Manuel], ao João Candiane Cândido, ou Kandiyane wa Matuva Kandiya!
Até sempre, mais velho!
ME Mabunda
Quando informações vindas do exterior e amplamente divulgadas pela média independente indicavam a recuperação da vila-sede do distrito de Mocímboa da Praia pela Força Conjunta, formada por soldados moçambicanos e ruandeses, assistiu-se a uma corrida dualista acirrada pela reivindicação da autoria do sucesso. Se por um lado, o Ministério da Defesa de Moçambique com apoio aparatoso dos órgãos de comunicação estatais redobrou esforços tardios para reivindicar o protagonismo das Forças de Defesa e Segurança (FDS) no teatro de operações, estes esforços esbarram-se com uma crítica fundamentada da irreverência das tropas ruandesas. A verdade é que foram necessários quase 12 meses para expulsar o grupo extremista Ansar al-Sunna de Mocímboa da Praia (ocupada em Agosto de 2020), e que conquistas expressivas de aldeias passaram a ser notadas com a entrada no teatro de operações das forças ruandesas.
A este debate dicotômico juntam-se académicos, analistas e comentaristas, todos munidos de argumentos para defender uma das duas posições acima apresentadas. Uma autêntica campanha foi instalada para influenciar a opinião pública. “A quem atribuir o mérito pela recuperação de Mocímboa da Praia?”, não deve e não devia ser o principal objecto de análise neste momento, sobretudo para a comunidade académica e para o Estado.
É inquestionável que a recuperação de Mocimboa da Praia reveste-se de uma importância geoestratégica, e não é minha intenção diluir tal relevância. No entanto, esta recuperação é ainda mais importante por abrir possibilidades para a compreensão mais ampla do extremismo no Norte de Moçambique. Durante um ano o Estado Moçambicano perdeu um pedaço da sua soberania; Mocimboa da Praia esteve sob gestão directa dos grupos extremistas que eventualmente, podem ter instalado um sistema de gestão territorial, uma lógica de organização social e produtiva; e ainda mais importante, a operacionalização das doutrinas fanáticas islâmicas - sharia (lei islâmica), cujos contornos e fundamentos são pouco conhecidos para além de breves mensagens propagandísticas difundidas pelos grupos. Adicionalmente, ao nível da literatura não existe consenso sobre as variáveis motivacionais que fazem com que os jovens adiram a grupos radicais, apesar de apontar factores de vária ordem, nomeadamente psicológica, ideológica, cultural, política e socioeconómica.
O território recuperado de Mocimboa da Praia é uma amostra importante para compreensão das variáveis que estruturam o fundamentalismo islâmico de/em Moçambique. Compreender estes aspectos é essencial para informar as soluções não militares que se pretendam desenvolver para fazer face ao avanço do extremismo violento. Há cada vez mais vozes que que defendem uma solução negocial para acabar com conflito, no entanto, estas pretensões esbarram com uma série de questionamentos: como identificar os interlocutores moçambicanos da contraparte terrorista; seus interesses e aspirações; que contrabalançam colocar na mesa de negociações em comparação aos incentivos para a radicalização; a natureza de cedências esperadas no campo político, social e económico por parte do Estado?
Até então, o manancial teórico e empírico de respostas às questões acima colocadas para além de ser limitado, baseia-se em estudos exploratórios, em progresso e premissas frágeis. A recuperação de Mocimboa da Praia representa uma janela de oportunidade para aprofundar este conhecimento e solidificar, ajustar e modificar as premissas que possam informar as soluções não militares para o conflito em curso. No entanto, isso só é possível com uma maior abertura por parte do Estado Moçambicano para a academia, os média, e outros actores relevantes nacionais e estrangeiros. Por outro lado, é extremamente importante que na análise deste fenómeno as ciências sociais comuniquem-se. As ciências políticas precisam de comunicar-se com a sociologia, a história, antropologia; a geopolítica com a economia; por aí em diante. Fica aqui o convite para um debate mais amplo, para lá das conquistas militares no teatro de operações.
O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, saiu a público esta quinta-feira, 5 de Agosto de 2021, e anunciou aos sul-africanos que ia proceder a remodelações governamentais e explicou as razões por que as ia fazer.
Disse ele, alto e bom tom, que o país, África do Sul, portanto, está a enfrentar grandes desafios, destacando-se a pandemia da COVID-19 e as recentes ondas de vandalizações e assaltos a bens públicos e privados nas províncias de Kwazulu-Natal e Johanesburgo e as suas consequências, e que o Estado não tinha dado as respostas adequadas que devia ter dado. E as mudanças visavam fortalecer o Estado para dar as respostas adequadas para o bem estar do cidadão e da África do Sul.
Outrossim, explicou que ia separar portfólios aglutinados num determinado ministério, o Ministério dos Assentamentos Humanos, Água e Saneamento do Meio. As ‘águas’ passariam a estar separadas do ‘assentamento humano’. Conforme explicou, a provisão de água no país é um assunto extremamente importante, complexo e bastante amplo que não se esgota no fornecimento de água aos domicílios, aos assentamentos humanos, mas que é um assunto crítico para as indústrias, agricultura, mineração e meio ambiente… ou seja, para a economia no seu todo. “A água é o mais crítico recurso natural do país. Segurança na água é fundamental para as vidas do nosso povo, para a estabilidade da nossa sociedade e para o crescimento e sustentabilidade da nossa economia”, argumentou Ramaphosa.
A rematar, anunciou que como parte das medidas críticas que estava a tomar para reforçar os serviços de segurança e prever a ocorrência de situações como as que acabavam de ter lugar em Kwazulu Natal e Joanesburgo, criava uma comissão para avaliar o grau de preparação e a deficiente resposta dada. O tal painel de experts vai examinar todos os aspectos e apresentar recomendacoes.
Eu aplaudo vivamente este procedimento: informar os concidadãos, ou o seu grupo de trabalho, colegas, subordinados, etc. que vai fazer algo; que vai proceder a alterações no xadrez por causa disto e daquilo. Partilhar com os cidadãos as inquietações e ou aflições que levaram à conclusão da necessidade de alterações na equipa. Comunicar aos concidadãos as expectativas em mente, no caso, fortificar o grupo, a instituição, ou o nosso Estado para fazer face a tudo que seja ameaça ao bem estar e estabilidade nacional e do cidadão.
Por fim, como gesto de grande humanidade, agradecer publicamente, sem rodeios, sem desprezo, nem desvalorização, aos titulares cessantes pelo contributo que deram para a consecução dos objectivos da instituição, do Estado ou dos compatriotas.
Gostaria que isto acontecesse no meu país! Que esta fosse a prática no nosso solo pátrio.
Gostaria que houvesse respeito, consideração, humanidade, sentido de gratidão e de ética para com os que são desnomeados, os que cessam funções! Para com as suas pessoas individuais, humanamente falando, mas também para com as suas famílias e amigos.
Mas também ainda, para com a sociedade em geral, para com os compatriotas na globalidade. Não somos mais chefes quando humilhamos o semelhante, sobretudo alguém a quem convidamos, de nossa livre e espontânea vontade, para dar o seu contributo numa determinada posição ou empreitada e procurou dar o seu melhor em resposta ao convite que lhe foi formulado! Agradecer é um dever humano, não é um favor.
Cá entre nós, o que temos assistido é bastante triste, roçando mesmo o desumano! Em todos os níveis da nossa gestão. Não é só ao mais alto apenas, mas a todos os níveis!
No ciclo governativo anterior, houve uma caricatura que circulou bastante nas redes e meios sociais. Retratava um dirigente, em casa, sentado na cadeira, que não queria ir para a cama deitar-se e a esposa, agastada, perguntava-lhe porquê não se queria deitar e ele respondia: não quero acordar não ministro!...
Ao longo destes tempos todos da nossa vida, vimos e ouvimos de tudo… ministros que são demitidos em comunicados de imprensa lidos na rádio, directores exonerados através de SMS’s, outros tantos responsáveis e dirigentes que ouvem que já não o são através dos seus próprios subordinados, muitas vezes da secretaria. Dirigentes que se pedem que entreguem as chaves dos gabinetes na tarde a seguir à sua exoneração… tanta desumanidade! Why?
Não podemos respeitar o outro ser humano? Pode já não servir para aquela posição ou interesses, mas não deixa de ser humano!
ME Mabunda
O ministro prontamente se insurgiu contra estas declarações, que considerou “não poder deixar passar em claro”. De acordo com Augusto Santos Silva, a questão não levanta quaisquer dúvidas: estamos perante “um bando de pessoas que sabemos constituírem uma tentativa de penetração e contaminação de toda a África Austral pela lógica fundamentalista, islamista, ligada ao chamado Estado Islâmico”. Portanto, para o governante, não está em causa, de forma alguma, o descontentamento e oposição face à ação do governo moçambicano e à delapidação dos recursos naturais em Cabo Delgado.
Augusto Santos Silva foi perentório: “É falso que haja grupos de insurgentes entre a população civil. É um insulto aos movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas, que, esses sim, tinham enraizamento na população civil, que eram protegidos pela população civil, sugerir que em Cabo Delgado agora o que há é oposição, que conta com o apoio da população civil e que se opõe a um governo opressor ou outras designações”. E acrescentou que está devidamente informado, mantendo-se em estreito contacto com o presidente moçambicano Filipe Nyusi.
Senhor ministro, não creio que seja entre as paredes do escritório de Nyusi que melhor se pode inteirar sobre todos os meandros deste conflito.
O governo e o próprio Partido Socialista mantêm boas relações com o governo moçambicano e questionam, à partida, qualquer informação que o Bloco de Esquerda apresente, por mais bem fundamentada que seja. Mas, senhor ministro, ouça o que têm a dizer as populações, as organizações, os investigadores e ativistas que estão no terreno.
Pode começar com a análise pertinente de um dos mais conceituados investigadores em Moçambique, João Feijó, coordenador técnico do Observatório do Ambiente Rural (OMR), sobre o discurso do presidente Filipe Nyusi à nação, “lido a partir de teleponto e sem direito a perguntas”, no passado domingo.
João Feijó explica as debilidades deste comunicado, em que não foi abordada “a complexidade do problema, nomeadamente a capacidade de mobilização e capitalização, por parte dos grupos violentos, do descontentamento local em relação ao Estado”. O representante do OMR lembra que “inúmeros relatórios de pesquisa vêm apresentando evidências de fenómenos de exclusão social num cenário de penetração agressiva do capital, onde situações de pobreza extrema coexistem com uma emergente sociedade de consumo”.
Aproveite para se inteirar das preocupações levantadas pela intervenção militar da tropa ruandesa, liderada pelo temível Major General Innocent Kabandana, conhecido por “exterminar opositores de Kagame”, e o recurso a empresas mercenárias.
Para um conhecimento mais detalhado da situação no terreno, tem ainda disponíveis vários estudos do Observatório do Mundo Rural, nomeadamente sobre a caracterização e organização social dos insurgentes e sobre as origens do conflito.
O fundador e diretor do Centro de Integridade Pública(link is external), Edson Cortez, também explica o elevado grau de recrutamento interno, apontando que “a pobreza e falta de oportunidades que se sentem na região norte podem ter funcionado como catalisador para que jovens fossem aliciados e se juntassem a estes grupos”.
O alerta do diretor Instituto de Estudos Sociais e Económicos de Moçambique vai exatamente nesse sentido: O Al Shabaad aproveita-se de jovens em situação de desespero e sem perspetivas. Não se pode negar isso”, diz Sergio Chichava.
Mas o senhor ministro nega.
O briefing do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CCD) sobre como “Negociar com Extremistas Violentos em Cabo Delgado" também é de extrema utilidade. O CCD clarifica que a Organização Extremista Violenta (OEV) em Cabo Delgado está mais alinhada “com um grupo criminoso violento do que com um grupo terrorista/insurgente - particularmente dadas as suas fontes de influência e financiamento, e a falta de uma estratégia política, religiosa ou de base ideológica clara”. E enfatiza que, “se as negociações com a OEV em Cabo Delgado forem bem concebidas e geridas, serão um instrumento vital para reduzir a violência e os abusos de direitos humanos”.
Senhor ministro, não ignore as advertências dos Médicos Sem Fronteiras, que denunciam “restrições significativas” à resposta humanitária e apontam que “o atual enfoque no ‘terrorismo’ serve claramente os interesses políticos e económicos daqueles que intervêm em Moçambique”, à custa de “salvar vidas e aliviar o imenso sofrimento” do povo. Acompanhe as declarações do diretor executivo da Amnistia Internacional em Portugal, que assinala que a região é marcada pela pobreza extrema, apesar da riqueza dos recursos naturais atualmente explorados por multinacionais, e que “esta injustiça social, esta revolta, é terra fértil para fenómenos como o terrorismo”.
E não se esqueça de ler a carta que foi endereçada ao seu governo, em janeiro deste ano, por 30 organizações da sociedade civil, entre as quais Amnistia Internacional, Cáritas Portuguesa, CIDAC, Comissão Nacional Justiça e Paz, Conferência Episcopal Portuguesa e Conselho Português para os Refugiados, em que é deixado um apelo aos meios de comunicação social, pedindo que “informem sobre a crise humanitária de Cabo Delgado e investiguem as diferentes causas desta violência, evitando leituras parcelares” e é realçado “o papel da sociedade civil moçambicana e, em particular a de Cabo Delgado”, com quem trabalham.
Já agora, leia também a declaração dos bispos católicos de Moçambique(link is external), que sublinham que o “estado de coisas faz crescer e consolidar a perceção de que por de trás deste conflito há interesses de vária natureza e origem, nomeadamente de certos grupos de se apoderarem da nação e dos seus recursos”. E que afirmam que “é fácil aliciar pessoas, cheias de vida e de sonhos, mas sem perspetivas e que se sentem injustiçadas e vítimas de uma cultura de corrupção, a aderirem a propostas de uma nova ordem social imposta com a violência ou a seguir ilusões de fácil enriquecimento que conduzem à ruína”.
Ouça os alertas do bispo Alberto Arejula, presidente da Comissão Episcopal de Justiça e Paz, que lança “um olhar crítico aos projetos de gás e petróleo” e destaca que “a vitória militar não seria uma resposta à complexidade da situação de Cabo Delgado”. E tenha em consideração a opinião do ex-bispo de Pemba, Luiz Fernando Lisboa, que, questionado sobre o que está a acontecer em Cabo Delgado, foi perentório: “Recursos, multinacionais e guerras”.
Peço-lhe ainda que não silencie as vozes de Quitéria Guirengane, presidente da Rede de Mulheres Jovens Líderes, de jornalistas como Fátima Mimbire, de jovens ativistas como Cídia Chissungo, que há muito tentam contrariar a campanha de desinformação sobre a situação em Cabo Delgado. E a de quem nasceu, cresceu e trabalha em Pemba, como Abudo Gafuro Manana, membro fundador da Kuendeleya, uma associação inter-religiosa de jovens de Pemba que ajudou no desembarque e assistência aos primeiros deslocados que chegaram à capital da província; ou de Fidel Terenciano, professor e investigador da capital de Cabo Delgado, cujo estudo demonstra que a maioria dos jovens que saíram do garimpo ilegal de Montepuez aliaram-se aos grupos de insurgentes. Ambos traçam o retrato de uma província mergulhada na pobreza, onde os jovens não têm futuro, não têm oportunidades, onde não existem espaços de participação democrática e onde as populações, as organizações da sociedade civil, os investigadores não são tidos nem achados no que respeita à resolução dos seus próprios problemas.
Aconselho vivamente a que subscreva o boletim informativo Mozambique News Reports and Clippings, da responsabilidade do jornalista e investigador Joseph Hanlon, que foi repórter da BBC em Moçambique entre 1979 e 1985 e continua a escrever sobre o país. Ficará com um panorama bastante detalhado no que respeita aos interesses em jogo em Moçambique e às consequências da “cultura de impunidade” que se instalou no país. Recomendo-lhe também que dedique algum tempo a ler e ouvir as análises do historiador moçambicano Yussuf Adam, que aponta caminhos que não passam por responder ao terror com terror.
Se todo este manancial de informação não lhe despertar qualquer interesse, se optar ficar pelas letras gordas da imprensa, garanto-lhe que também encontra facilmente títulos muito sugestivos nos media: Moçambique: Polícia retém 15 pessoas por suspeita de recrutamento pelos insurgentes; Insurgência em Cabo Delgado: Como travar o recrutamento em Nampula?; Moçambique: padre e investigador alerta para recrutamento de crianças pelos combatentes; Insurgência em Cabo Delgado: Niassa continua local de recrutamento dos grupos terroristas; Guerra em Cabo Delgado e jovens sem futuro, entre as preocupações da IMBISA(link is external)
De qualquer forma, senhor ministro, o que nós não podemos deixar passar é que um legítimo representante da República Portuguesa integre a campanha de desinformação sobre o que se passa em Cabo Delgado. Que procure silenciar as vozes da população, das organizações da sociedade civil, de investigadores e jornalistas.
O que não podemos deixar passar, senhor ministro, é que, mais uma vez, as relações diplomáticas e os interesses económicos e geoestratégicos se sobreponham aos direitos humanos. E que a comunidade internacional continue a assobiar para o lado.