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Vem aí uma crise inflaccionária, com os preços dos principais bens e serviços subindo à catadupa. Em Abril, a inflação situou-se acima dos 7%. E o banco central manteve ontem a “prime rate” nos 15% (para a banca comercial; mas nesta para o mercado retalhista está acima dos 19%, demasiado puxado em tempos de crise).

 

A revista The Economist traz na sua última capa um título alarmista: uma crise alimentar sem precedentes está a bater às portas do mundo. Por causa da Rússia, eis a ladainha!

 

E nesse diapasão surgiu ontem o Senhor Blinken, com sua salvação americana:

 

"Países com grãos e fertilizantes significativos, bem como aqueles com recursos financeiros, precisam acelerar e fazê-lo rapidamente. Os Estados Unidos anunciaram mais de US$ 2,3 bilhões em novos fundos para assistência alimentar de emergência para atender às necessidades humanitárias globais desde a invasão da Ucrânia pela Rússia. Dada a urgência da crise, estamos anunciando outros US$ 215 milhões em nova assistência alimentar de emergência”.

 

Se parte desta mola chegar até nós, já se sabe para onde vai. O mais recente aprendizado foi a roubalheira impune dos fundos do Covid 19. A auditoria do Tribunal Administrativo a esses fundos foi posta na gaveta. Devia estar no Gabinete Central de Combate à Corrupção. As crises endinheiram nossas elites.

 

E Moçambique vai vegetando de entre choques externos sem nenhuma panaceia interna. Recentemente foi o calote, depois o Covid e agora os efeitos de uma guerra quente/fria entre imperialismos se degladiando.

 

Nos últimos meses, foi amplamente noticiado que tínhamos atingido um patamar de segurança alimentar, de não fome, em razão do SUSTENTA. Esse sucesso narrativo enfrenta agora o seu primeiro grande teste. Um grande teste ao ministro da "onda vermelha". Até que ponto o Sustenta pode minimizar os efeitos da crise alimentar global em Moçambique?

quarta-feira, 11 maio 2022 07:16

GULAMO KHAN, 70 ANOS

O Gulamo Khan faria hoje, 11 de Maio, 70 anos. Morreu aos 34 anos a 19 de Outubro de 1986. Quando entrei para a redacção da Rádio Moçambique, em 1984, onde debutaria como repórter, o seu nome constava na pauta dos jornalistas, mas ele estava destacado na Presidência, como adido de imprensa. A despeito, por vezes, via-o nos corredores da Rádio. Via-o sempre sorridente, afectuoso, acolhedor. Era uma das mais esplendorosas vozes de Moçambique. Os seus trabalhos como jornalista são documentos históricos. Entrevistas como as que fez a Fany Mpfumo ou Noémia de Sousa são certidões da nossa nacionalidade.

 

Mais tarde, na AEMO, primeiro, e nos Msahos, que eram memoráveis encontros de poesia no coreto do Tunduru, de que foi um dos fundadores, depois, conhecer-nos-íamos. O seu activismo cultural, não obstante as funções que tinha, era indúctil. O Msaho, a “Gazeta de Artes de Letras”, na vetusta revista TEMPO, com Luís Carlos Patraquim e Calane da Silva, ao tempo em que o Mestre Albino Magaia era director, a promoção da literatura, a Associação dos Escritores, quando Rui Nogar era Secretário Geral, entre outras actividades, fazem parte do seu intrépido activismo cultural.  

 

O Gulamo era um belo tribuno, um exímio declamador. Creio que José Craveirinha, seu amigo, não teve um outro de semelhante quilate a dizer-lhe a poesia. Para além de a dizer, o Gulamo foi responsável por divulgar poemas de Craveirinha que de outro modo seriam desconhecidos ou estariam perdidos. Vivíamos um tempo em que acreditávamos nas palavras e a poesia era o viático das nossas vidas e dos nossos sonhos. Hoje estamos, desfortunadamente, nos antípodas desse tempo. 

 

Num comovido e comovente texto (“Missiva póstuma para o Gulamo”), que serve de prólogo ao livro único (“Moçambicanto”) que se fez publicar, em Maio de 1990, há 32 anos, José Craveirinha, sem se arredar do tom pessoal e da pessoa próxima que o Gulamo era, escreve: “Trágico sarcasmo do Destino é ser eu, precisamente eu, o incumbido para falar de ti, Gulamo na edição do teu livro, o único: tu, Gulamo que, tão jovem, ligado à casa do Zé e da tua mamã Maria como a tratavas, por laços afectivos que te tornavam mais um filho, não escondias o porquê das tuas diligentes buscas e irreverentes “extravios” de quanto papel solto, rascunhos e escritos inéditos enferrujavam nas gavetas do descuidado Zé, correndo o risco fácil de se perderem de vez, o que seria – teu exagero afectuoso – um crime e uma perda. Autor dos “extravios” reclamavas a intenção de ser o fiel depositário que te caberia divulgar no “depois” do descuidado autor.”

 

O Destino, como lhe grafa Craveirinha, com maiúscula, zombou do “descuidado autor” e seria ele, na companhia do Albino Magaia, Calane da Silva e Júlio Navarro – todos desabrigados deste reino -, que cuidaram de organizar os papéis, encontrar ordem e fazer publicar a poesia de Gulamo Khan, quando este, no infortúnio colectivo que seria Mbuzini, não regressou de uma breve viagem à Mbala, na Zâmbia, onde fora acompanhar o Presidente.

 

Neste “Moçambicanto” houve por bem incluir uma mensagem da Mãe do Gulamo, Hawa Mulla. Mensagem lancinante esta, que termina dizendo: “Levaste as palavras da tua linda voz contigo, mas connosco ficou para sempre esta tua mensagem amiga.” Não há exagero de progenitora no adjectivo: Gulamo tinha das mais belas vozes que a nossa Rádio teve.

 

A voz era a extensão da sua personalidade. Leio-lhe, de novo, os poemas, da sua breve produção, reunida neste magro volume, com capa de Chichorro, ilustrações do Malangatana e do próprio Chichorro, e reavivo, na sua dicção, a sua belíssima voz. O livro inicia com o poema que lhe dá o título e é absolutamente encantador:  

 

céleres as águas

zambezeiam pela memória

das almadias do silêncio

 

nem o zumbido da cigarra

me entontece

 

nem o troar do tambor

me ensurdece

 

as vozes que são 

sulcos das nossas esperanças

 

Oh pátria

moçambiquero-te

neste alumbramento

e amar-te

devo-o à carne e ao nervo

deglutidos em revolta.

 

Poeta com timbre próprio, poeta com dicção própria, poeta com sintaxe própria, pese embora a sua obra tivesse sido um projecto inacabado, que a morte, abrupta, interromperia para sempre. Não sei se há aqui alguma premonição, mas não deixo de notar, nestes versos que cito a seguir, uma outra ironia trágica: “Sento-me na carlinga e fecho os olhos/ cheira a velho este Tupolev/ na penumbra”. A 19 de Outubro de 1986 estavam todos eles também num infausto Tupolev.

 

Poesia que se arrima indisfarçadamente num ideário, dela temos que assacar a circunstância temporal e histórica na qual é escrita: “Há uma lança lançada em Setembro”. Ou estes versos acutilantes: “assim exilados/ no ventre da Pátria/ lambemos o chão/ e o musgo ressequido”. Poderiam ser, estes últimos versos, sobre os tempos agoirentos de hoje.

 

Poeta em diálogo com a poesia de Craveirinha também (“Carta para José Craveirinha feita num 42º andar de Nova Iorque”: “Atenção irmãos/ Billy The Kid era um fanfarrão/ nem o whisky lhe aguentava a coragem/ tanta cagufa/ hoje sabemos que o grande chefe índio/ se suicidou com uma poção venenosa” (...) “E Langston Hughes não é parvo nenhum/ quando diz que é belo e que é a América/ Deviam tê-lo deixado na cozinha a/ comer os restos para ter juízo/ e não se meter com brancos// Também não é verdade que Joe Louis/ despenhou aos 2 minutos Max Schmeling/ pondo knock-ou Max Schmeling”).

 

Há, nisto, nestes versos, um claro diálogo, uma ineludível intertextualidade com o poema “Quando o José pensa na América” de Craveirinha. “E Agora, Zé? Agora, já, todos os membros/ da K. K. Klan sabem/ o que pensamos/ quando pensamos na América” (Gulamo Khan).

 

José Craveirinha: “E além do mais o José também se lembra que Joe Louis na desforra/ pôs Max Schmeling K. O. logo ao primeiro round/ que Armstrong quando assopra o trompete/ os agudos dão resposta concludente/ às dúvidas sentimentais da Ku-Klux-Klan/ e o retórico par de Botas de Charlot”. 

 

O poema de José Craveirinha é longuíssimo e não caberia aqui todo, mas é um daqueles arroubos que fizeram a sua fortuna como poeta. Nesta “Carta” de Gulamo, eivada de ironia, aliás à boa maneira do Mestre, há ainda versos que esplenderiam à luz dos tempos ulteriores à sua escrita: “Sabes que mais? / É mentira o que dizem de Michael Jackson/ O puto não é negro é branco só que os / racistas”. 

 

Muito haveria a dizer, não fosse esta uma breve nota evocativa, do Gulamo Khan, no dia em que ele faria 70 anos. Releio o livro, perpassam pela  minha memória as imagens que guardo dele, lembro-o afectuosamente, recordo-me da última vez que o vi, sentado no banco do Jardim Tunduru, antes de um Msaho; lembro-o, ali, no coreto declamando as ínclitas “Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”, do José Craveirinha (numa dedicatória este escreveria: “Homenagem póstuma ao muito Amigo Gulamo que as descobriu e divulgou”); mas sobretudo ainda me empolga a lembrança do Gulamo a dizer o poema “Rumbas de violas no Comoreano” do nosso comum amigo e grande Poeta José Craveirinha. 

 

Que mais posso dizer e que não subscreva o lugar comum? Gulamo Khan foi outro dos nossos grandes intérpretes e hoje está exilado no território do esquecimento. Foi um tradutor do ser moçambicano e dos nossos anseios. Fê-lo com a sua voz quando a palavra exprimia assertivamente o nosso sonho individual e colectivo. Agora que vivemos o refluxo desse tempo e experimentamos a distopia desse encantamento e dessa aspiração comum, o seu nome subscreve o anátema da desatenção, do desapreço e da nossa endémica negligência. A Pátria é fecunda na arte da desmemória. A despeito, a voz de um poeta nunca se deixa obliterar.

 

Seremos amor o chão fértil”, escreveu Gulamo Khan num poema de verso único. Este brevíssimo poema poderia ser a súmula da sua vida e do seu destino indubitavelmente poético e do seu imperecível e pungente hino - “Moçambicanto”.

 

Zagaia forte e aguerrida

 

adeus malume.

 

(Gulamo Khan)

terça-feira, 10 maio 2022 09:51

Um desafio à Doutora Luísa Diogo

Gostaria de ouvir a opinião da Dra Luisa Diogo sobre a fiscalidade relativa às PMEs,  especialmente depois do COVID-19. Nossas PMEs foram arrasadas e muitas fecharam. Houve quem resistiu mas a carga fiscal manteve-se. O Governo nada fez para acarinhar as PMEs do ponto de vista fiscal, através duma moratória fiscal...dum perdão até, permitindo às empresas voltarem a operar. Um dos requisitos para as empresas obterem novas adjudicações é sua quitação fiscal estar em ordem. Mas com o COVID-19 houve quem prefeiu pagar salários e não impostos, tornando hoje a retoma complicada em termos de habitação fiscal para aceder a negócios. Infelizmente, ninguém discute estes assuntos, nem a CTA nem o IPEME. No caso de empresas jornalísticas, pior ainda. Seu silêncio é absurdo. A Dra Luísa pode abordar o assunto? Agradeço. Marcelo Mosse

segunda-feira, 09 maio 2022 09:48

La famba bicha!

Jeremias Nguenha morreu a 4 de Maio de 2007. Passam hoje 15 anos. Provavelmente ainda sejam ouvidas as suas famosíssimas músicas “Vada Voxe” ou “La Famba Bicha”, que são, quanto a mim, um dos mais inventivos diagnósticos da sociedade moçambicana e das suas patologias inultrapassáveis. Permanecem actuais. Actualíssimas. 

 

Era um artista extremamente irreverente e fazia uma arrojada e acerba crítica política e social. Nascera a 19 de Março de 1972, em Inhambane. Cantava em changana. Cantava enérgica e violentamente em changana. Morreu cedo, subscrevendo o anátema moçambicano, com apenas 35 anos. Deixou, no entanto, o seu génio criativo registado nas músicas que compôs e cantou. 

 

Nguenha foi um artista carismático e popularíssimo. Isso devia-se, a meu ver, à sua música poderosa e às suas mensagens certeiras e veementes, mas também à sua imediata identificação com os mais desfavorecidos: a forma de vestir, a forma de se exprimir, a forma de dançar e as suas coreografias. A sua impetuosa denúncia social, sobretudo quando falava da pobreza ou das injustiças sociais, era uma resposta violenta à violência dos que sofriam e sofrem a exclusão, a pobreza e a marginalidade. 


Jeremias Nguenha tinha uma portentosa e magnética energia em palco e vê-lo actuar era um momento fortemente impactante. Vestia uniforme militar e tinha o cabelo sempre rapado. Andava com um exemplar da Bíblia. Era um provocador. As suas composições tinham metáforas e imagens virulentas: "obrigam-nos a pentear as nossas carecas” (tradução livre) é um dos seus versos mais profundos. O grande instigador era, antes de tudo, um grande poeta social e um magistral e intrépido cantor e actor. Ele não cantava apenas. Actuava no estrado. Era a voz dos esquecidos, dos desprezados, dos proscritos. 

 

Teve uma aparição fulgurante. As rádios tocavam-no regular e recorrentemente. Quando foi anunciada a sua morte, o choque foi inevitável. Mas parece que é o destino de grande parte dos artistas moçambicanos. Quantos talentos se perderam precocemente neste país? Quando estes (artistas) desaparecem sucede o silêncio e a escuridão sobre os seus percursos e suas vidas. Não são mais evocados, não são estudados, não existem biografias. Sabemos muito dos artistas estrangeiros e cultuamos o efémero entre nós. Pouco sabemos dos nossos melhores. 

 

Aliás, parece que a Pátria se regozija em ignorar os seus melhores intérpretes. Intérpretes num sentido mais extenso – de tradutores de um tempo e de uma sociedade. Como é este imenso e perseverante artista. Um cantor desassombrado e arrebatador. Jeremias Nguenha foi e é um dos melhores intérpretes do nosso destino individual e colectivo. Foi e é um dos maiores tradutores do devir moçambicano. 

 

La famba bicha!

Cada vez mais, a PGR, Beatriz Buchile, tem se agarrado ao somatório das quantias monetárias desviadas pelos predadores da corrupção em Moçambique para dar uma imagem dos malefícios que o fenómeno causa ao Estado.

 

No seu recente informe à Assembleia da República, ela relevou as cifras relativas ao ano transacto. Para “Carta”, essas cifras são disputáveis, porque não estão consolidadas. Elas foram arregimentadas para o informe na base dum pressuposto errado.

 

A PGR parte do princípio de que todos os casos em seu poder, abertos no passado pelo Ministério Público (MP), vão ser condenados, com sentenças transitadas em julgado. Mas os procedimentos da justiça desmentem esse pressuposto. Ou seja, hipoteticamente, nem todos os acusados pelo MP serão condenados. Logo, as cifras dos prejuízos causados ao Estado pela corrupção no ano passado são falíveis.

 

O pressuposto da PGR radica da sua obsessão condenatória. As acusações interpostas pelo Ministério Público devem ter uma única consequência: a condenação. Este é o “mindset” vigente.

 

Mas a realidade diz o contrário. Raramente um caso de corrupção é iniciado e terminado no mesmo ano. Não só unicamente pela lentidão da investigação, mas também pelos próprios procedimentos da Justiça. É sabido que casos condenados em primeira instância são objecto de recurso, os quais demoram anos a fio. Por outro lado, há condenações em primeiras instâncias cujos recursos obtêm parecer favorável do próprio Ministério Público, como se viu no caso LAM/Executive. O parecer do caso desmontou os pressupostos da condenação, afectado os argumentos da acusação do próprio Ministério Público.

 

Portanto, ao considerar valores do ano anterior, a PGR invalida todo o “modus operandi” da Justiça, agarrando-se, como dissemos, num paradigma errado.

 

O recurso à absolvição do antigo PCA da LAM, José Viegas, insere-se nesse paradigma errado. Assim como a insistência acusatória que levou à condenação de Paulo Zucula e Mateus Zimba. Este caso é um “bluff” de mau gosto da justiça em Moçambique, que revela um Ministério Público desesperado em ver “peixe graúdo” nas grades por corrupção, quando, no caso vertente, esse peixe devia estar fora de uma rede de arrasto que se faz opaca aos ditames da Justiça.

 

É inverosímil! Mateus Zimba recebeu dinheiro limpo da Embraer, como “prémio” da transação Embraer-LAM. Seu papel no negócio foi dúbio, como se provou, mas a condenação por lavagem de dinheiro não faz sentido. Só faria sentido se o Ministério Público tivesse demonstrado que o dinheiro da Embraer era dinheiro sujo...para Zimba poder lavá-lo.

 

Quanto a Paulo Zucula, sua condenação a 10 anos é completamente contraproducente. Ele recebeu pagamentos de Zimba no âmbito de um projecto imobiliário desenvolvido em Vilankulo, que hoje é uma das celebridades turísticas daquela cidade. Tudo feito abertamente. Limpinho...limpinho!

 

É de crer que todos estes três protagonistas de uma Justiça que, às vezes, se apresenta persecutória, como neste caso, sejam absolvidos em superior instância. Se houver justiça limpa! O Supremo ainda tem juízes de elevada integridade. E neles reside essa esperança. (Marcelo Mosse)

sexta-feira, 25 fevereiro 2022 06:54

UCRANIANOS SIM, GUINEENSES NÃO!

 

As notícias, sobretudo as da televisão, são dominadas hoje pela tragédia da Ucrânia. Quando vi o atlas do musculado ataque russo divisei, entre outras regiões, Odessa, uma cidade ucraniana às margens do Mar Negro e um ponto estratégico neste conflito. O meu defeito de formação levou-me ao jornalista e escritor Isaac Babel, que eu lia na juventude e cuja história, igualmente trágica, terminou numa execução, aos 45 anos, em 1940, às mãos de Stalin e da Grande Purga. Ainda hoje tenho a memória vívida dos seus “Contos de Odessa”.


A despeito, a minha memória de Isaac Babel não sobreviveu à lembrança da saga de Isabel Bapalpeme, uma jovem guineense, de 29 anos, que viveu sozinha em Portugal durante anos, à espera de um transplante de pulmão, triste por estar apartada da mãe, desde 2014, a quem a embaixada portuguesa em Bissau lhe recusara visto apesar dos veementes apelos médicos.

 

Quando um jornal de grande influência denunciou a situação, as autoridades apressaram-se a conceder o visto à mãe de Isabel e aos irmãos menores e uma onda de solidariedade preencheu-lhe finalmente o vazio da casa em que vivia. Que tem a ver o destino desta guineense com aqueles que, no rigoroso frio da Ucrânia, se veem agora na situação de se transformarem em exilados? Aparentemente nada.


Acontece que Portugal fez uma declaração exuberante e o governo instruiu as embaixadas para conceder vistos a ucranianos e considerou-os bem-vindos ao país desde que o queiram. O gesto não merece censura, antes pelo contrário. No entanto, este altruísmo lusitano denuncia o desprimor ou a desestima com que o mesmo país lida com os africanos de quem declara serem de países irmãos. Perante as nossas tragédias, que incluem guerras e outros colossais infortúnios, nunca vi semelhante gesto dadivoso ou prodigalizador.

 

Há mais de um quarto de século redigi, para o jornal “Público”, um artigo intitulado “A cooperação pelintra”, onde mapeava as misérias desta nossa equívoca relação. Reitero o que então disse. Não me apetece voltar aos argumentos nem sequer alvitrar quem quer que seja. Anoto, neste dia em que a comoção ocidental é unânime sobre o desfortúnio da Ucrânia, a dissimulação ou a insinceridade que está na base das relações entre países.


A história dramática de Isabel é a metáfora de como Portugal trata (ou melhor: destrata) os cidadãos oriundos dos nossos países ou aqueles que deles são progênitos, para não falar dos nascidos em território português, párias ainda hoje e nunca verdadeiramente integrados. É isto resquício desse racismo iniludível, continuamente impugnado oficialmente, ou é produto da hipocrisia que domina a realpolitik?

 

Fica a pergunta retórica e uma convicção inabalável:

Brancos sim, pretos não!


Maputo, 24 de Fevereiro de 2022

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