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quinta-feira, 28 outubro 2021 14:55

Ungulani, o irreverente desarrumador de ideias

De cada vez que me debruço sobre a literatura moçambicana, de forma deliberada ou fortuitamente, parece impossível não mergulhar nesse imaginário de palavras e sons dos mais talentosos escritores moçambicanos e, claro, desse iconoclasta amigo Ungulani. Cultivo uma inqualificável empatia com a maior parte dos escritores da sua geração, também minha, porém, nutro especial e inquebrantável respeito e admiração pelas anteriores gerações de escribas.

 

Revisitando emblemáticos escritos na delícia do conforto de que proporcionam a alma, se tornou quase impossível escalonar as melhores obras, sob o risco de omissão de outras. São todos produto da emancipação deste país, do sonho azul da revolução e dessa esteira literária de combate. De um modo, ou de outro, devemos gratidão aos instauradores da literatura moçambicana, e que a transformaram num movimento único, assumido e memorável. Independente das épocas e períodos históricos, cada uma das gerações impregnou a manipulação da palavra e da imaginação, tatuou a resistência a escritos não panfletários e a renegação do seu próprio destino. Enfim, sem eles, não teríamos embarcado na sobriedade, credibilidade e honestidade. Na libertação do pensamento livre e descomprometido.

 

Cumpliciei com Francisco Cossa, Chico, nome mais familiar, ao longo de décadas. Por vezes, com mais proximidade, noutras, nem por isso. Nada que tenha beliscado esta amizade. Na panóplia de momentos pitorescos, nas tertúlias, no santuário de bebedores, guardamos inesquecíveis e insuperáveis momentos de inigualável convergência. Ele, como Mestre, e eu, como aprendiz. Uma amizade que se reconstruiu em irmandade, com esse implacável recurso à negação da fatalidade e do senso comum. Já nessa altura, ele demonstrava uma capacidade de imaginação e um poder efabulatório muito acima do normal. Estava escrito nas estrelas que ele terminaria escritor.

 

Não tardou que se agigantasse, e se transformasse em Ungulani. O Ba Ka Khossa. Esse trocadilho de nome, que representa um país e suas raízes literárias. Ungulani Ba Ka Khossa, esse talentoso homem de Inhaminga, região central de Moçambique, se assume como moçambicano de todas as províncias. Uma espécie de um gigantesco polvo, cujos tentáculos se confundem com as metástases da cultura de cada grupo étnico. Nesta convocação, o revejo como parte das minhas amizades iniciáticas. Formando como professor de história, com um substracto assente em obras literárias.

 

Ungulani foi céptico sobre os caminhos da literatura moçambicana num dado momento histórico. Sentia descaso com as autoridades, insensibilidade das escolas e instituições gestoras. Entendia que o rumo não seria a poesia fácil, despida de técnicas, rigor, e outros atributos convencionados. Fincava sua fé na prosa e na ficção. Mas, nunca perdeu as esperanças. Hoje, já fala da literatura moçambicana com paixão e optimismo. Poderia ser melhor, mas já sente um reviver do compromisso com o discurso sóbrio, com os escritos inspirados na tradição oral, com a exploração dessa originalidade Bantu e suas múltiplas línguas nacionais. Essas são as marcas que farão a identidade da nova vaga de escritores.

 

Eventualmente, nos conhecemos naquele invulgar movimento, anunciado por Samora Machel, a 8 de Março, que concentrou no Maputo jovens estudantes que se converteram em ousados professores circunstanciais. Anos mais tarde, reencontrei-o, assumindo postura burocrata no ministério da Educação e Cultura. Partilhava a sua sala com Ana Elisa Santana Afonso. Ela seguiu a carreira na UNESCO, Ungulani ficou-se por aqui e com seus livros. Na época, Ungulani e Ana Elisa ajudaram a resolver pepinos de colegas que não souberam ler e nem entender o sistema. A juventude não permitia outros entendimentos da revolução e nem imaginavam os riscos associados ao pensar e sonhar diferente.

 

Anos mais tarde, Ungulani já estava engravidado do consagrado Ualalapi. Esse livro se converteu num dos 100 melhores do século, no continente africano. Merecidamente. Esta foi a obra que exacerbou os entendimentos sobre as lanças dos guerreiros do Império de Gaza. Reavivou Gungunhane, sua astúcia e malícia, explorou o papel de suas esposas. Mas, foi o livro do apocalíptico império de Gaza com suas virtudes e defeitos e personagens que se imortalizaram.

 

Ainda nessa época, ele falava da sua paixão sobre o escritor colombiano Gabriel García Márquez. Essa apreciação pode ter ajudado a reafirmar um laço que estava escrito pelo destino. “Cem anos de solidão” é considerado o maior exemplo do género literário do designado realismo mágico. Gabriel Garcia Márquez retracta, no livro, eventos sobrenaturais, num tom objectivo e pragmático, enquanto, os normais e factos históricos, como pura fantasia.

 

Acredito, firmemente, que Francisco Khossa, o Chico, repensou no apelido Ungulani, como o próprio nome fictício do vilarejo Macondo, do livro de Márquez.  Mas, a Agustina Bessa-Luís e Jorge Amado nunca saíram do seu vocabulário. Para Ungulani, qualquer grande escritor precisa de ser um bom leitor.

 

Ungulani nunca se preocupou em defender a investigação histórica, mas tem na essência o mérito de lhe conferir credibilidade e prazer de leitura dessa narrativa histórica. Como historiador e escritor, Ungulani coloca todo o seu saber naquilo que produz e pretende transmitir, tornando a história em verdadeira representação literária e, ao mesmo tempo, em arte de encenação. Esta é a conclusão de um amigo comum, o Marcelo Panguana.  Mas, o Ungulani encerra, em si mesmo, várias facetas, estórias e personalidades. Um homem inspirado e, insofismavelmente, ligado às grandes leituras da sua época.

 

A crítica literária tem sido muito complacente e assertiva para com o Ungulani. Ba Ka Khossa foi consagrado como contista de reconhecido mérito, amadurecido pela diversidade e abordagem na sua inquestionável produção literária. Ele se transformou em alguém que recorre ao metaforismo e à magia na recriação de personagens. Ungulani fará parte do distinto grupo dos mais nobres escritores do seu tempo, com essa capacidade de reconstruir, como ninguém, a saga que têm sido os anos de conflito armado no país.

 

Ungulani, fazendo alguma justiça é, igualmente, um devoto e apaixonado fiel de Luís Bernardo Honwana. Ele o considera o Pai da literatura moçambicana. Tem as suas razões e não ousamos questionar esta distinção. Aliás, também defende que a charrua é a melhor revista literária do mundo. Assim tem sido Ungulani, um destemido provocador, um desarrumador de ideias e um iconoclasta, como o define Nelson Saúte. Ungulani, enfim, será sempre o símbolo-mor da nossa geração, um desalinhado; alguém que pauta pela sublevação, desapegado dos ditames desta e outras épocas. Permanece alheio às lides do aparelho ideológico e discordante das ideias que reprimem a liberdade de criação.

 

Temos uma particularidade. Amamos o Niassa, a Sibéria moçambicana. Ele, porque passou algum tempo para se auto-educar, e eu porque aprendi a amar a natureza e seus animais. Acreditamos na magia deste pedaço de terra. Um dia, Niassa se converterá no melhor espaço do mundo. Quando não existir mais água, o lago vai matar a sede de toda humanidade e saciar a sua ganância. Até lá, seremos gratos por ter convivido, desfrutado e beneficiado dessa veia literária tão mordaz quanto profícua. (X)

domingo, 10 outubro 2021 14:32

Freddie Mercury era cantor tanzaniano?

Abdulrazak Gurnah foi anunciado hoje como Prémio Nobel da Literatura deste ano. A Academia Sueca prossegue, nestes últimos anos, a sua estratégia disruptiva em relação aos favoritos, laureando nomes totalmente inesperados. Sabia que hoje seria anunciado o vencedor deste ano e tinha a ideia de que o mesmo pudesse ser um autor oriundo de uma zona diversa daquela que acumula mais prémios: o Ocidente.

 

Eu diria que esse propósito não foi cabalmente cumprido. Gurnah nasceu, em 1948, no antigo Sultanato de Zanzibar e de lá saiu aos 20 anos, tendo feito a sua vida e a sua carreira no Reino Unido. É um escritor britânico. Parece-me um dislate quando se diz que se premiou um escritor tanzaniano. Quando ele nasceu, a ilha de Zanzibar nem sequer pertencia à Tanzania.  Existia a Tanganyika e o Arquipélago de Zanzibar, que teve sempre um estatuto e jurisdição colonial independente. E mais: aqueles que abandonaram a ilha na sequência da revolução, quase todos, nunca se identificam como tanzanianos. Sobretudo os de origem indiana. Eram e são cidadãos britânicos.

 

Este autor parece-me ser um caso semelhante ao de V.S. Naipaul, que ganhou o Nobel há precisamente 20 anos, e que nascera em Trindade e Tobago e sempre se viu britânico. Também chegou jovem e fez toda a carreira no Reino Unido. Foi provavelmente o mais virtuoso cultor da língua inglesa entre o século passado e este. Aliás, o intrépido V.S. Naipaul chegou a cortar com uma editora (a Secker) por esta ter redigido na contra-capa de um livro (“Guerrillas”) que ele era um “romancista das Índias Ocidentais”.

 

Esta tarde ligou-me uma jornalista da RTP a pedir a minha opinião sobre Gurnah. Disse-lhe que falaria na contra-corrente, como anoto agora. Qual era importância do tema colonial, que estava no centro da obra deste escritor? – quis ela saber. Pessoalmente – disse-lhe - não sou um entusiasta das temáticas coloniais e/ou das perspectivas pós-coloniais em voga na Europa. Creio ser uma forma ocidental de ver a História. Nós subscrevemos a perspectiva da libertação: luta de libertação e não guerra colonial, independência versus descolonização, pós-independência e não pós-colonial. Os africanos veem a História numa óptica divergente ou até mesmo antagónica.

 

Para mim não é importante destacar a origem ou querer forçar uma certa nacionalidade, mas sim a sua obra. E mais: não vejo, por conseguinte, neste prémio, uma distinção a um escritor africano. Nem sequer falo do facto de ele ser mestiço e não ver nisso um impedimento para o considerarem britânico. Coibo-me até de interrogar: será por essa razão (o facto de ele ser mestiço) que o querem forçosamente tanzaniano? Ele é britânico. Escreveu sempre no Reino Unido, foi lá publicado e consagrado. Na Tanzania ninguém o conhece e nem sequer é lá editado.

 

Vi, aliás, algures referido que depois de Wole Soyinka (Nobel em 1986) ele era o segundo escritor africano negro a ganhar o prémio. Outro disparate. Abdulrazak Gurnah não é negro. Não me parece sequer que isso seja importante, no caso. Nem creio ter sido esse o critério. Premiou a obra. A Academia, caso quisesse outorgar a láurea a um escritor negro africano, cuja escrita fosse de raiz marcadamente africana, tinha, quanto a mim, duas possibilidades: ou dar o prémio ao queniano e veterano Ngugi wa Thiong´o (eterno candidato) ou premiar Chimamanda Adije Ngozi, autora nigeriana, das mais brilhantes da nova literatura africana.

 

Pergunto-me, agora e a terminar, sem sequer fazer chacota: passa mesmo pela cabeça de alguém considerar Freddie Mercury – que é, curiosamente, o meu mais favorito cantor -, nascido também em Zanzibar, justamente dois anos antes de Abdulrazak Gurnah, um cantor tanzaniano?

 

Maputo, 7 de Outubro de 2021

Falar da vida e obra de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre José Maria dos Santos é, e será sempre um exercício que exige elevada capacidade de abstração para narrar todo um percurso e uma trajectória (caracterizados por suas incansáveis lutas, suas vitórias e porque não suas derrotas), e todos eventos que caracterizaram a odisseia religiosa, educacional e humanística desta que é uma figura incontornável na história do nosso vasto Moçambique. Para não pecar por soberba, e não perder de vista o objectivo deste texto de agradecimento, enaltecimento e despedida, focar-me-ei apenas no cerne - Um Homem ao serviço de muitas causas.

 

A Época Medieval é cronologicamente considerada o período mais longo da História da Humanidade (com mais de 1000 anos). Período este que viu florescer o surgimento das primeiras Universidades no mundo. Nesta época, a Filosofia e a Teologia viveram de forma única a rivalidade entre a fé religiosa e a razão científica; um conflito que opunha a religião à ciência e desafiava a cada instante a tentativas de conciliação e harmonização destes dois domínios do saber sem necessariamente anulá-los, numa fórmula traduzida na fé alicerçada na razão e, na razão que ajudaria a perceber a fé. (Intellectus quaerens fidem, et fides quarens intellectum.

 

Um dos mais brilhantes e notáveis pensadores da época em alusão foi São Tomás de Aquino - (figura que desempenhara tremenda influência na cosmovisão teológica e educação de Sua Eminência O Senhor Cardeal Dom Alexandre), que durante o seu percurso académico foi instruído por Alexandre Magno (Ou Alexandre o Grande). Curiosamente, o nome Alexandre, mestre de Tomás de Aquino é o nome de baptismo do Senhor Cardeal - Aproximações e coincidências que corroboram para ideia da grandeza do nome em referência.

 

De certo, nestas breves linhas será complicado trazer o espelho dos 103 anos em que o Cardeal viveu e fez viver, disseminando a fé, espalhando a esperança, semeando amor, educando o seu povo e proliferando ensinamentos. E nesses 103 anos teve o prazer de colher os primeiros frutos da sua incansável luta por uma sociedade mais capaz, mais justa e intelectualmente emancipada. E são esses frutos que devem se encarregar de assegurar e alargar o escopo do outrora iniciado.

 

Dom Alexandre foi muito mais do que uma figura religiosa e eclesiástica destacada, e comprometida na causa do bem estar social, do crescimento, da coesão no seio da Igreja Católica e do catolicismo em Moçambique, do Ecumenismo vibrante e da difusão da mensagem de Deus por todo o lado e em várias línguas. Para ele a fé tinha o poder de quebrar barreiras e unir povos (sejam eles considerados civilizados ou indígenas), e para isso as línguas nativas serviram de veículo e ferramenta estratégica de penetração e evangelização nas comunidades.

 

Foi um incansável peregrino da paz; astuto e apaixonado amante pela ideia de uma educação para todos e em todos níveis. Sua filosofia e ideia transformadora era clara – somente investindo mais e expandindo a educação se poderia criar bases sólidas para emancipar e desenvolver a nação, e consequentemente sonhar com um Moçambique mais inclusivo e mais próspero. Daí a sua luta assaz contra a pobreza absoluta e o seu compromisso vincado com a formação sistemática do Homem.

 

Sua grandeza transcende a imagem que muitos de nós temos – Patriarca da Igreja, primeiro Sacerdote e Bispo moçambicano. Na verdade Dom Alexandre foi um cultor, um educador visionário e um humanista douto com visão ampla da realidade do país e com cega convicção de que a educação do homem conduziria à libertação e à emancipação das mentes dos moçambicanos.

 

Dos vários momentos de partilha, fossem eles na Universidade, na Igreja e nos Seminários bem como em eventos vários públicos e privados, algo deliberadamente se repetia, entre a preocupação presente e os sonhos futuros: o paradoxo entre a riqueza do país e a incapacidade de transformar essa riqueza em algo útil para os moçambicanos. Segundo ele, Moçambique não é um país pobre; muito pelo contrário, é muito rico e mal explorado. O problema reside na falta de preparo e no défice enorme de conhecimento e precisa de mentes para transformar sua riqueza no bem-estar de todos.

 

As lentes visionárias do futuro, a crença na mudança de paradigma social, económico e educacional, e a transversalidade primeiro do seu pensamento, e depois da sua acção fizeram de Dom Alexandre José Maria dos Santos uma das figuras de Moçambique Contemporâneo de maior destaque, com projectos e obras transgeracionais que vão desde a formação de Padres dentro e fora do país, passando pela intermediação do conflito entre a FRELIMO e a RENAMO que culminou com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz (1992), à formação de vários quadros superiores em várias áreas e domínios do saber.

 

Dom Alexandre, fora um dos mais sagazes impulsionadores das artes liberais e ciências do espírito no país, e desafiou centenas de jovens estudantes universitários e seminaristas (fazendo uso de ferramentas éticas, teológicas, filosóficas, e humanísticas) a pensarem com liberdade intelectual, e de forma crítica e analítica contribuírem para edificação de um Moçambique melhor. Fora um cultor do saber Ser, saber Estar e saber Fazer. Fora acima de tudo alguém muito preocupado com as questões éticas e com a dimensão da dignidade humana– ditames estes herdados da Filosofia Escolástico-Medieval de São Tomás de Aquino.

 

E é sobre estes e outros feitos de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre, que nós, a geração do hoje devemos assentar a nossa reflexão e acção. Replicar vivamente sobre as gerações vindouras e incutir a necessidade permanente de pensar no Outro; Uma reflexão centrada no homem concreto como um fim e não como um meio. Viver e ensinar a criação de modalidades e estratégias de desenvolvimento do que fora iniciado por Dom Alexandre.

 

A coragem para iniciar novos e ambiciosos projectos, a ideia viva e prática do altruísmo, o espírito de criar e buscar novas realidades, e o desejo de ver um país mais educado, desenvolvido e próspero são algumas das licções práticas que Sua Eminência o Cardeal Dom Alexandre nos deixa. Foi mais de um século de um Homem talhado para a vida do bem estar do próximo. Saibamos viver e honrar os seus feitos, os seus ensinamentos e imortalizar sua obra fazendo do nosso país uma referência no rendezvous civilizacional.

 

Obrigado e até sempre Cardeal Dom Alexandre

 

Por: Hélio Guiliche (Filósofo)

quinta-feira, 30 setembro 2021 13:25

Paulo Freire e a Pedagogia da Revolução

Setembro tipifica os virginianos marcados pela objectividade e organização. Os que, de forma incessante, revisitam a perfeição. Este tem sido o apanágio no mês de todos os recomeços. Coincidentemente, o mês em que líderes das lutas de libertação nas colónias portuguesas, em África, viram a luz do mundo. Samora Machel de Moçambique, Agostinho Neto de Angola, e Amílcar Cabral da Guiné-Bissau. A estes virginianos, se junta o filósofo e educador Paulo Freire, brasileiro, porém, com um coração e uma intelectualidade espalhada pelos países, falsamente assumidos, como falantes da língua portuguesa.

 

Paulo Freire, o pedagogo brasileiro, e que se revestiu de utopias para a revolução anticolonial, envolveu-se, de forma profunda, no processo de descolonização das colónias portuguesas, estudando profundamente a gestação desses movimentos de libertação e, mais importante, teorizando sobre esses processos políticos e pedagógicos que se estabeleceram na década 60 e 70.

 

Paulo Freire capitalizou a experiência de ter convivido com os povos da Guiné-Bissau; por um lado, por ter estudado todas as obras de Amílcar Cabral e, por outro lado, por ter tido contacto directo ou indirecto com outros revolucionários da época. Existem algumas evidências de sua passagem por Moçambique e, em particular, por ter lido e abordado o posicionamento humanista de Eduardo Mondlane e, igualmente, desfrutado da visão política, acção militar do MPLA e desse romantismo poético de Agostinho Neto.

 

Ainda neste emaranhado de coincidências, não nos equivocamos sobre a forma como estas lideranças, incluindo o próprio Paulo Freire, inspiraram-se e foram influenciadas por Frantz Fanon, o psiquiatra, filósofo e militante anticolonial da ilha Martinica; autor das obras “Os Condenados da Terra” (1961) e “Pele Negra, Máscaras Brancas” (1952), e que marcou gerações de activistas de direitos civis.

 

Fanon foi crítico do momento histórico colonial, dos processos de alienação e da presença colonial nos países africanos. Adoptou o título de alienação e liberdade ou patologias da liberdade, para se referir a inevitável necessidade da libertação de África. Essa seria a única forma de afirmação das identidades e dos ideias da emancipação. Verdade que Fanon era radical. Aliás, como se transformaram em radicais os movimentos negros fora do continente africano. Fanon estava seguro das formas impostas pelo colonialismo, as suas subjectividades e como usaria o conhecimento, e a própria cultura, como elementos que perpetuariam a presença colonial e criariam divisões entre a sociedade africana. Para ele esta actuação subjectiva conduziria, inclusivamente, a perpetuação desse colonialismo muito para além das independências, se a leitura correcta não fosse  dimensionada.

 

Paulo Freire, embebido de uma postura mais latina, enraizado na vivência brasileira, incorporou inúmeras destas reflexões de Fanon e, sobretudo, dos movimentos da negritude, que começaram por surgir nas Antilhas, no próprio Brasil e nos EUA, fundamentalmente. O movimento da negritude permitia a revalorização da herança ancestral africana e contribua para que o negro tivesse uma auto-imagem positiva de si próprio, para além de propiciar maior visibilidade as suas acções e teorias.

 

Paulo Freire explora este momento e as experiências de sua interacção com os líderes africanos e retracta de forma inspiradora, nas suas principais obras, nomeadamente, “Educação como prática da Liberdade” (1967), e “Pedagogia do Oprimido” (1968). Convenhamos que Paulo Freire poderia ser indexado como um pan-africanista que ressurgia desse sentimento de solidariedade e consciência de uma origem comum entre os negros do Caribe e dos Estados Unidos e que lutavam contra a violenta segregação racial.

 

No seu livro “Pedagogia do Oprimido”, que é considerado como o terceiro livro mais citado em publicações académicas de ciências sociais no mundo, Freire revela, de forma inequívoca, o seu entendimento profundo sobre a objectividade e subjectividade desse movimento protonacionalista ou nacionalista, alicerçado na educação como factor dinamizador, assente na cultura como o alicerce que dinamizaria e engendraria uma nova fórmula de revolução, de libertação do povo e de transformação dos países africanos.

 

Nesta condição, e concomitantemente, Paulo Freire transformou-se, ele próprio, no grande teórico das experiências educativas das regiões libertadas da guerra colonial e modernizou, inclusivamente, a sua estrutura conceptual. Esta é a maior contribuição que, eventualmente, deu aos movimentos de libertação. Portanto, na sua interpretação, os processos de libertação e emancipação dos povos e países africanos, estes não passariam apenas pela via de acção e combate armado, mas, e sobretudo, por uma visão sobre a educação e cultura como imperativos e elementos indissociáveis.

 

Paulo Freire advogava, na sua teorização, uma educação que libertasse corações e mentes, e que colocasse aquele que aprende como sujeito produtor do próprio conhecimento, contrariando métodos mais retrógrados e que induziam, apenas, a repetição infinita de enunciados. Parece ponto assente que colocar o educando no centro do próprio ensino configurava a práxis que respaldava os programas de alfabetização dos guerreiros e dos jovens recrutados ou que aderiam a luta. Eventualmente, pelas teorias de Freire, estas práticas educativas e revolucionárias se converteram na base dos programas de alfabetização de adultos, quer no Brasil, como nos nossos países que adoptaram Freire como um orientador educacional de excelência.

 

Neste centenário, revemos a relação que Paulo Freire estabeleceu com Amílcar Cabral. Esse líder marxista e que, de acordo com Freire, fizera uma leitura africanizada de Marx, para arquitectar a dimensão e visão da luta de libertação anticolonial que conduzia. Ambos defendiam que não existia ninguém mais culto do que o outro, pois, as culturas eram paralelas, distintas e que se complementavam na vida social e cultural.

 

Nos nexos estabelecidos entre os dois pedagogos e libertadores, destacamos a avaliação negativa que acreditavam estar patente nos modelos e práticas coloniais de educação, porque o povo não deveria apenas compreender, abstractamente, a interacção das forças por detrás do desenvolvimento da sociedade, mas, antes, deveria formar uma pátria anticolonial, colocando a resistência numa espécie de expressão cultural.

 

Cultura em Cabral, Freire até em Fanon era, então, um denominador comum e dos mais importantes, quer na luta como na formação dos guerreiros. Seria impossível combater a presença colonial, renegando os valores culturais e não permitindo a aculturação das práticas sociais existentes.

 

Esta interacção e trajectória de Paulo Freire, junto dos líderes revolucionários africanos, ficará eternamente associada ao desenvolvimento teórico dos programas de educação nos nossos países. Deste modo, celebrar o seu centenário equivale a ressignificar a educação no século XXI, mesmo considerando as vicissitudes e os graves problemas estruturais, equidade e de auto-estima. Recordá-lo, neste centenário, parece ser obrigatório, proporcional e muito apropriado. É, igualmente, oportuno recordar as lições mais importantes como a de que “o educador se eterniza em cada ser que educa” ou que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção”.

 

Como defensor da descolonização e da reafirmação determinista e criativa, as teorias educativas de Freire continuam a fazer sentido, sobretudo, quando argumenta que deveremos formar para a autonomia. Eventualmente, esse  é seu maior legado. Os nossos países vivem ancorados em métodos ortodoxos e pouco evolutivos. A educação continua refém da ausência de investimentos e os professores cada vez menos valorizados e sem auto-estima.

 

Nestes tempos que se esfacelam os fundamentos de perspectivas de novos pactos em favor de novos entendimentos, e diante da crise na educação, um novo contracto social mais equitativo e abrangente será um marco referencial fundamental para se virar a história da consolidação das nossas independências.

 

Freire, Machel, Neto e Cabral, como testemunhas de um tempo, ainda podem ser lidos como um libelo contra o esquecimento, alheamento insensível para os fundamentos da libertação e moralização da sociedade. Que neste seu centenário, tão envolto em controvérsia no seu próprio Brasil, Paulo Freire possa voltar a ser fonte de inspiração que auxilie na união de esforços, recursos e talentos para enfrentarmos a batalha por um lugar ao sol e no trilho do progresso e desenvolvimento. (X)

terça-feira, 28 setembro 2021 09:13

Comandante de Ordem e Segurança Precisa-se!

O comandante do Ramo da Ordem e Segurança da Polícia da República de Moçambique, Paulo Chachine, fez notícia há dias a partir da Escola de Sargentos da Polícia “Tenente General Oswaldo Assahel Tazama”, em Metuchira, distrito de Nhamatanda, em Sofala.

 

Não foi por menos. Segundo dado a conhecer, o efectivo do Departamento da Polícia de Trânsito de Manica está “em capacitação” por trinta dias naquela instituição de formação. Presume-se que sejam todos os membros da Polícia de Trânsito da província de Manica. Quando se diz efectivo, está-se a dizer exactamente isso.

 

Até aqui tudo normal, pelo menos parece. Capacitação é um modus operandi de instituições sérias e que pretendem aprimorar cada vez mais o seu desempenho; de tempo a tempo, mandam os seus membros para refrescamento de memória.

 

No entanto, a “capacitação” ganha outro sentido quando ficamos a saber que ela decorre do facto de ao longo de todo o Corredor da Beira haver irregularidades diversas na actuação dos agentes no terreno, que vão desde extorsão a automobilistas, negociações de multas com os multados, recolha e apreensão de cartas de condução dos condutores e retenção de veículos sem justa causa, entre outras. Há poucas semanas camionistas de vários países da Região, incluindo do nosso, amotinaram-se na fronteira de Machipanda, protestando vigorosamente contra as más actuações dos polícias de Trânsito moçambicanos.

 

A Imprensa cita o comandante da Ordem e Segurança da PRM a dizer que aqueles agentes  “Não estão a ser punidos. A presença dos agentes visa apenas a reciclagem. Há muitas reclamações sobre a forma como temos estado a agir e interpelar o cidadão ou motoristas. Temos que nos preparar para melhor realizarmos as nossas actividades.” E, como que a explicar melhor, acrescentou: “Não é novidade para ninguém que alguns agentes têm interpelado pessoas ou condutores e pedem uma Coca-Cola ou 50 e 100 meticais. Vamos fazer o esforço de mudarmos e melhorar a nossa qualidade e atitude.” Mais adiante, rematou: “Não se deve orgulhar quando andam com carteiras cheias de cartas de condução e sem saber porque levaram os documentos. Em caso de infracções devem apenas passar as multas e deixar o condutor seguir viagem com a sua habilitação.”

 

Custa a acreditar que estas palavras possam estar a sair da boca de um comandante! Puro comandante! Menos ainda de um comandante da Ordem e Segurança! Difícil ainda é acreditar que estamos dentro de uma corporação policial, uma instituição com o monopólio de garantir a lei, ordem, segurança e estabilidade do cidadão e do país!

 

Os polícias não são admitidos nas fileiras policiais porque estão aptos? Formados devidamente, bem treinados, bem preparados técnica e intelectualmente? Se não estão, então por quê estão lá? Se as suas actuações não decorrem de deficiente preparação, mas de incúria ou incapacidade, por que não os demite e manda para casa?

 

Mas, pelas declarações do comandante, está claro que estamos perante actos criminosos. Extorsão, expropriação de cartas de condução sem motivos aceitáveis, retenção de automobilistas por largo tempo são, sem ‘a’ nem ‘b’, actos de corrupção. Na qualidade de “comandante do Ramo de Ordem e Segurança”, Paulo Chachine devia punir exemplarmente estas atitudes e não apelar para que “A nossa actividade tem de estar em linha com o juramento e cumprindo as normas… É necessário pensar o que temos que fazer para melhorar a nossa imagem.”

 

Claro como a água: o Sr. Paulo Chachine não sabe quais são as funções de um comandante de Ordem e Segurança!

 

Pior ainda quando, falando na mesma cerimônia, que era de abertura oficial da tal “capacitação”, o “digníssimo” revela que há agentes da PT que fazem xitiques semanais de cinco mil meticais! Confesso que nunca tinha ouvido falar de tal façanha. Segundo ele próprio se questionou, se os tais agentes não são criadores de gado ou de frango, como é que se comprometem a tal exercício de fazer xitique semanal nesse montante? Revelou ainda que há outros tantos agentes que se fazem à rua sem estarem escalados, “à procura de caril”! “Onde se procura esse caril na via pública? É possível fazer-se xitique semanal de cinco mil meticais? E no fim de semana aparece o dinheiro e até dizem… trabalhei para o xitique!”

 

Incrivel! No lugar de procurar, encontrar e punir disciplinar e criminalmente esses polícias… só papo! Só reciclagem ou capacitação! Mas, não está sozinho o homem: o seu chefe, o comandante geral, é um dos grandes oradores que país tem, mas disciplinar os agentes prevaricadores nada! É uma escola.

 

O que está a fazer aquele senhor como Comandante do Ramo de Ordem e Segurança?

 

Tirem-no, por favor!

 

ME Mabunda

domingo, 12 setembro 2021 10:24

História de um esquecimento*

Obrigado por me receberem neste encontro. Parabéns aos organizadores destas Jornadas. Moçambique pode ter orgulho na sua intervenção face à COVID 19. Conheço muitos países que se reclamam ricos e desenvolvidos que não foram capazes de sujeitar os interesses políticos e partidários às razões da ciência. Os governantes moçambicanos escutaram os cientistas e seguiram os seus conselhos. E isso é uma tripla vitória: para a ciência, para a governação e para o país. Seria bom que para outros assuntos os dirigentes do país voltassem a aceitar os conselhos da ciência, da arte e da cultura. Venho falar-vos não como biólogo, mas como escritor. 

 

E como escritor, fascina-me o fenómeno do esquecimento. Tenho, para mim, que o esquecimento nem sempre resulta de um lapso. A maior das vezes é uma construção narrativa. Quando nos esquecemos, nós raramente falhamos. Raramente tropeçamos no vazio. Em vez disso, o que acontece é que nós construímos uma outra narrativa por baixo da qual enterramos os tempos que nos causaram medo, enterramos os episódios em que não fomos vencedores. Somos dotados de uma amnésia selectiva que nos desvincula dos grandes sofrimentos. 

 

Às vezes, e isso é o mais triste e mais comum, não existe uma narrativa de substituição. Esquecemos porque, pura e simplesmente, regressamos à nossa velha rotina. Em pouco tempo somos devorados por um quotidiano de pequenas crises e grandes sobrevivências. Mais cedo do que pensamos, voltará a acontecer um outro desastre que nos irá, uma vez mais, apanhar de surpresa. Estaremos, de novo, improvisando respostas de emergência. Estaremos, uma vez mais, desprevenidos perante o previsível. É pena que assim seja. 

 

Na realidade, a lembrança é uma espécie de vacina: prepara nos para lidar com algo que reconhecemos como já vivido. Eu trago uma pergunta simples para esta sessão. E a pergunta é a seguinte: como é que daqui a uns anos iremos recordar a presente pandemia? Essa pergunta pode ser formulada de forma mais directa: será que, depois da COVID 19, vamos criar o novo normal ou vamos regressar ao velho anormal? A melhor maneira de imaginar o futuro depois da COVID 19 é lembrar como, nas anteriores pandemias, a promessa de um novo tempo foi ou não foi cumprida. Pode-se fazer uma pergunta simples: quem ficou a ganhar na longa lista das pandemias: foi a memória ou o esquecimento? Façamos um rápido balanço. Vou saltar por cima das incontáveis pandemias que assolaram a humanidade. E vou escolher apenas a gripe espanhola que, segundo a OMS, continua a ser o maior desastre da história da saúde humana. 

 

Vale a pena, pois, revisitar o ano de 1918, o ano da chamada Gripe Espanhola. Em três surtos sucessivos a Gripe Espanhola matou em todo o mundo 50 milhões de pessoas apenas num ano (dez vezes mais do que a COVID 19 matou em dois anos). Esta pandemia veio junto com a Primeira Guerra Mundial que causou a morte de outras 38 milhões de pessoas. Os governos europeus decidiram esconder a realidade brutal desta doença para não desmoralizar nem os soldados na frente de combate nem as famílias que esperavam que esses soldados voltassem a casa. 


O nome "Gripe Espanhola" não vem do local onde teve início o contágio, mas sim do facto de a imprensa espanhola ter dado especial atenção à doença. A Espanha não estava envolvida na guerra, a imprensa de Espanha não sofria de censura em relação à doença. Se estamos a falar em esquecimento é preciso começar por dizer que a maior parte dos médicos que tratavam os doentes da Gripe Espanhola em 1918 já se tinham esquecido da uma outra pandemia que vinte anos antes tinha atingido gravemente a Europa. Nessa altura, em princípios dos anos de 1890, os hospitais europeus ficaram superlotados de pacientes atingidos pela chamada Gripe Russa. 

 

Os europeus mais pobres que, naquela altura, emigraram em massa para os Estados Unidos da América foram acusados de trazer essa doença para o chamado Novo Mundo. É curioso como os países se esquecem da sua própria história e hoje a maior parte dos que protestam contra a migração são filhos e netos de emigrantes. O drama da gripe espanhola não ocorreu apenas na Europa. Curiosamente, a Gripe Espanhola foi escondida pela mesma razão que a fez disseminar pelo mundo: a Primeira Guerra Mundial. Milhares de soldados de todas as geografias foram transferidos para outros continentes. E as consequências foram explosivas. Só na Índia, 17 milhões de pessoas morreram. Em África dois por cento da população desapareceu. Na África do Sul a história da Gripe Espanhola está bem registada. 

 

Em Setembro de 1918 dois navios de guerra vindos da Inglaterra chegaram a Cape Town transportando 2000 soldados sul-africanos negros. Esses soldados estavam a ser repatriados depois de passarem um ano nos campos de batalha de França e da Bélgica. Actuavam apenas em serviços de apoio logístico já que a lei sul-africana da altura proibia os negros de usar armas. Algumas dezenas desses soldados vinham infectados e foram encaminhados para as suas terras de origem. 

 

O resultado foi o seguinte: em menos de dois meses morreram 300 000 sul africanos. (Lembremo-nos que em dois anos da COVID 19 morreram 83 000 sul africanos). Durante a Gripe Espanhola, seis por cento da população do país desapareceu em menos de dois meses. A África do Sul foi uma das nações mais atingidas do mundo. O mesmo drama aconteceu no Quénia que perdeu 150 000 pessoas em menos de nove meses. Este número de vítimas equivalia a 6 por cento da população total do país. (É preciso lembrar que agora, com a COVID 19, morreram 4800 quenianos). O Gana viu morrer 100 000 dos seus cidadãos. Na Tanzânia, dez por cento da população foi dizimada, mas o drama teve repercussões ainda maiores porque à doença se juntou uma seca e a fome que matou outras milhares de pessoas.

 

Em Moçambique não encontrei registos da pandemia nem há censos precisos e abrangentes do conjunto da população na primeira metade do século 20. Sabemos apenas que em 1950 a colónia de Moçambique tinha 6,5 milhões de habitantes. Se aplicarmos a taxa de mortalidade dos países vizinhos a uma população que poderia variar entre 4 a 4.5 milhões de habitantes poderemos deduzir de forma muito grosseira que Moçambique terá perdido naquela pandemia entre 100 000 a 200 000 pessoas. 

 

As duas únicas referências especificas relacionadas com a situação sanitária em Moçambique em 1918 são as seguintes: - "No Final da Grande Guerra de 1914-1918, foi aberto o Cemitério de São José de Lhanguene com o objectivo de acorrer aos enterramentos em massa das muitas centenas de indígenas vitimados pela epidemia pneumónica. “ (A Pandemia da Gripe Espanhola em LM 1918, Alfredo Pereira de Lima, no site The Delagoa Bay World) - a segunda referência tem a ver com portugueses que saíram de Moçambique num navio chamado “Moçambique” em 1918. O navio saiu de Lourenço Marques com 952 passageiros que estavam distribuídos em quatro classes. A mortalidade na 4.ª classe, na qual se encontravam mais de 500 soldados, foi superior a 30%. Nas restantes, em que viajavam sargentos, oficiais e civis, foi de 7,2%. 

 

Quem relata este episódio é um médico português chamado Ricardo Jorge que deu o nome ao Instituto de Saúde Ricardo Jorge em Portugal, com quem o nosso Instituto Nacional de Saúde mantém um acordo de cooperação. Na altura, Ricardo Jorge era comissário-geral do governo na luta contra a epidemia e deixou escrito o seguinte comentário: Não tenho nenhuma dúvida: Os vírus não atingem toda a gente da mesma forma. Os mais pobres pagam a pior fatia da crise". E foi isto que consegui para Moçambique. 

 

No nosso caso, existe mais do que um esquecimento. Não há registos escritos que apoiem quem se queira lembrar da pandemia em Moçambique. Falamos de uma amnésia generalizada dos factos públicos. Mas este esquecimento atinge a área médica e a pesquisa científica. Equipes de investigação de laboratórios do Exército dos EUA iniciaram o estudo da etiologia da Gripe Espanhola por volta de 1951. 

 

A razão fundamental para conduzir esse estudo não era a curiosidade científica, mas aquilo que se entendia como segurança militar. Um projeto super secreto referido com o nome de código Project George fez com que fossem exumados corpos de soldados norte-americanos que tinham sido enterrados nas terras geladas do Alaska. Buscavam-se os segredos genéticos do vírus da Gripe Espanhola. Os dirigentes americanos consideravam esse projecto como sendo de máxima segurança nacional porque receavam que os soviéticos estivessem fazendo a mesma pesquisa a partir dos milhares de soldados que jaziam congelados nas tundras da Sibéria. Essa investigação acabou sendo suspensa e ficou em estado dormência até que, em 1997, um vírus similar ao da gripe espanhola matou uma criança em Hong-Kong. Então a pesquisa voltou a ganhar um caráter de urgência. 

 

Uma das equipes que liderou esta segunda fase da pesquisa foi o Instituto de Patologia das Forças Armadas de Washington liderada por um tal Jeffery Taubenberger. Em 1997, este cientista escreveu o seguinte sobre a gripe espanhola: “não foi o vírus que, na maior parte das vezes, causou a morte. O que foi fatal foi a resposta do corpo da pessoa infectada, resposta conhecida como tempestade ou cascata de citoquinas”. Isto soa familiar? Soa familiar para alguns, mas para a maior parte das pessoas foi como se esta relação causal entre vírus e doença tivesse sido descoberta agora. Disse no início que ia falar sobre esquecimento. 

 

Deixei de lado esquecimentos mais antigos, deixei de lado as pandemias mais antigas mesmo que já tenhamos esquecido que foi a resposta a esses antigos surtos que nos trouxe algumas práticas que pensamos recentes: - a máscara - o distanciamento e o confinamento - a quarentena Estas medidas têm séculos de existência. O escritor Boccaccio já fala de algumas destas práticas no livro "Decameron" escrito em 1350. Contudo, seis séculos depois estas condutas surgem para a maior parte das pessoas como uma novidade. 

 

Voltemos para a pandemia de 1918 para reiterar que esse drama foi incomparavelmente mais grave do que aquele que estamos a viver agora. O balanço é terrível: em apenas um ano um em cada três seres humanos morreu. 1 Os dois terços que sobreviveram estavam 1 Penso que há aqui um erro do autor. A população do mundo em 1918 é estimada em cerca de 1,8 mil milhões de pessoas. Aceitando que morreram 50 milhões de pessoas, a percentagem de mortes seria de menos de 3 por cento, cerca de um décimo do referido pelo autor. absolutamente certos de uma coisa: que a humanidade nunca se iria esquecer daquela tragédia. 

 

A verdade é que esquecemos. Não houve uma intenção deliberada de apagar esse tempo. Houve, sim, outras urgências, outras rotinas, outras tragédias. Mas houve a chegada da chamada “idade de ouro” dos antibióticos, houve uma outra narrativa que afirmava o poderio absoluto da tecnologia, uma narrativa que celebrava a nossa espécie como dona absoluta da natureza e do futuro. Nos dias de hoje, a humanidade está absolutamente convencida que o drama da COVID 19 nunca mais será esquecido. Não sei se amanhã perante um Juiz sentado no tribunal da história os nossos netos não recorram à já célebre resposta: “não me lembro, Meritíssimo.” 

 

Há também a ideia ingénua que o mundo vai mudar radicalmente depois desta pandemia. Algumas coisas vão mudar. E vão mudar para melhor. Mas não sou optimista em relação a transformações de fundo. Aquilo que insistimos em chamar o “novo normal” será, em grande parte, a continuação do “velho anormal”. 

 

Eis algumas tendências que estamos já a ver que se vão manter em todo o mundo: 

 

- Vai-se continuar a desvalorizar a importância da prevenção nas estratégias de saúde a nível nacional e internacional.

 

- Vai-se manter o domínio de um modelo económico que colocou o Mercado no trono e secundariza o papel do Estado. 

 

- Vai permanecer inalterada a tendência de privilegiar a medicina privada, mantendo fragilizado o sector público que será incapaz de sustentar um justo e eficaz Sistema Nacional de Saúde. 

 

- vai-se manter a marginalização da Organização Mundial de Saúde e das instituições internacionais que podiam assegurar um comando central para as próximas pandemias (num mundo que se proclamava globalizado e no qual se esperava uma intervenção unitária o que aconteceu foi que cada região assumiu as suas próprias normas, os seus calendários). 

 

- vai-se manter uma chocante falta de solidariedade humana e os países ricos continuarão a virar as costas aos apelos para partilharem recursos com os mais pobres (é revelador o facto do único país que enviou ajuda para Moçambique em temos de recursos humanos ter sido curiosamente um país pobre, chamado Cuba).

 

- vai-se manter uma agenda da investigação científica baseada em interesses de lucro das grandes companhias farmacêuticas.  

 

- vamos continuar a fazer de conta que muitas das nossas escolas não deveriam ter que ser fechadas durante a pandemia porque, em rigor, nunca antes deveriam ter sido abertas. Essas escolas não reúnem as mais básicas condições de higiene. E o mesmo se pode dizer para grande parte dos transportes públicos, dos mercados, dos ginásios, das instituições públicas.

 

- vai-se manter a ideia de que a saúde diz respeito aos médicos, hospitais e Ministérios da Saúde. Vamos esquecer que a prestação de cuidados de saúde é uma tarefa de toda a governação, uma tarefa de toda a economia e toda a sociedade. 

 

Em suma, nós sabemos quais as lições a recolher. Mas não somos donos das respostas. Assim que surgir a próxima epidemia iremos reagir como se fosse algo inesperado. A COVID poderá ser daqui a umas dezenas de anos uma lembrança vaga, tão vaga como é agora a recordação da Gripe Espanhola. Recordo-me de uma carta que, há um ano e meio, uma centena de intelectuais e artistas africanos dirigiu aos dirigentes políticos do continente. 

 

Essa carta sugeria que se deixasse de olhar África como uma eterna vítima, um continente cuja sobrevivência dependerá sempre da compaixão dos outros. E apelavam para que houvesse uma forma mais criativa de desenharmos os nossos próprios sistema de saúde. Os intelectuais e artistas africanos apelavam para que se introduzissem rupturas radicais nas formas de governação dos nossos países. 

 

E que os africanos deixassem de medir o progresso dos nossos países por indicadores que são ditados pelos chamados “países doadores” como é o caso das taxas de crescimento económico. E que apostassem fortemente em políticas públicas de educação e de saúde que não servissem apenas uma pequena minoria que está mais ocupada no roubo dos bens do Estado do que na promoção de um futuro melhor. Daqui a uns anos a grande pergunta não será se continuaremos a usar máscara e iremos precisar de novas vacinas. A grande pergunta será se teremos escolas com água e casas de banho, se teremos melhores hospitais, melhores transportes públicos e uma vida melhor para a grande maioria do nosso povo. 

 

Chego ao final desta intervenção e preciso de ser verdadeiro com o sentimento que aqui me trouxe e que não é derrotado nem pessimista. Tenho não apenas a esperança, mas a certeza que irão ocorrer mudanças positivas. O que quero dizer é que não vai ser apenas por causa do fim da epidemia que iremos mudar. Serão precisas outras mudanças de fundo, outras vontades, outras formas de governar. A questão é uma outra, bem mais urgente e mais profunda. A questão é que iremos mudar porque não temos escolha. Ou mudamos todos ou não haverá futuro para ninguém. Neste sentido, o futuro é parecido com a vacina. Ou há futuro para todos ou seremos todos vencidos pelo passado.  

 

*Intervenção nas Jornadas Científicas do Instituto Nacional de Saúde – 08.09.21.

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