O Rui Nogar faz hoje 90 anos! É um dos nossos grandes poetas. Homem apaixonado por causas sociais, pelos homens do seu tempo e pela condição humana. Um extraordinário poeta. Um ser humano de excepção. Autor escasso e, no entanto, fundamental. Não só o seu “Silêncio Escancarado” (magnum opus), que deveria um dos nossos breviários. Ou “Nove Hora”, esse poema arrebatador, que o Mutumbela Gogo encenou.
A sua poesia, como queria Gabriel Celaya, é uma arma carregada de futuro. As suas metáforas, as suas imagens, o seu poder e a sua excelência de exegeta. Um grande tribuno. Um belíssimo declamador. Um amigo e um camarada de ofício. Um homem bom. Disse-me ele numa entrevista: “Não me interessa que seja ou não considerado poeta. O que me interessa é que eu seja considerado homem que se preocupa com os outros homens da sua época”.
O Rui é, no entanto, um dos mais deslembrados. Moçambique, sublinhe-se, cultiva a arte do esquecimento. Diverge dos seus melhores. Há, entre nós e sobre nós, uma ideia maniqueísta da história e da memória. O país não se revê nos seus poetas. A cultura é um parente pobre. Não passa da sua condição de apêndice. É elevada para os momentos de celebração. Quando nos queremos ufanos. Sobretudo nos comícios.
Este é um ano pródigo para a literatura moçambicana: celebramos os 100 anos de José Craveirinha; os 90 anos de Rui Nogar e de Rui Knopfli. Luís Bernardo Honwana fará, em Novembro, 80 anos de vida. O Albino Magaia faria, este mês, 75 anos. O Gulamo Khan, nascido em Março e morto em Mbuzini, faria 70 anos. E se quisermos um escritor mais próximo, da minha geração, há o Suleiman Cassamo, que faz 60 anos em Novembro.
Isto poderia ser um bom pretexto para lembrar que o Estado tem obrigações e função indeclinável numa política activa do livro e da leitura. As obras de autores como Rui Nogar deveriam ser adquiridas obrigatoriamente pelo Estado e distribuídas por bibliotecas escolares e públicas, como a Biblioteca Nacional, ou as provinciais, distritais e municipais, ou ainda pelas casas da cultura e outras associações e organizações culturais sem fins lucrativos. Uma sociedade não se constrói sem cultura e não há sociedades sãs sem cidadãos livres, cultivados e esclarecidos, política, social e culturalmente.
Ler estes autores, celebrar estes escritores, festejar suas vidas e conhecer as suas obras é uma obrigação de cidadania. Hoje celebro Rui Nogar, que nasceu a 2 de Fevereiro de 1932 e morreu a 11 de Março de 1993, aos 61 naos. Foi o primeiro secretário-geral da AEMO e acolheu, amparou e albergou aquela que seria a mais importante geração de escritores logo a seguir à independência – a geração da “Charrua”. Foi muito mais do que isso. Um homem da sua época e de todas as épocas. Militante na clandestinidade, companheiro de prisão de José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana e Malangatana Valente Ngwenya. Um combatente pela liberdade. Um intrépido combatente pela nossa liberdade. Para mim, continua vivo. Faz hoje 90 anos!
Viva Rui Nogar!
Um livro intitulado Descentralização em Moçambique – Filosofia da Reforma, o Presente e o Futuro, da autoria do Doutor Albano Macie, docente universitário, conselheiro do “Constitucional” proposto pela bancada parlamentar da Frelimo e, mais importante, um dos mais destacados autores materiais da revisão constitucional de 2018, está nas bancas há um mês, não estando, por motivos que desconheço, a suscitar debates públicos, como seria de supor, sobretudo pelas propostas que faz quanto à constitucionalmente aprazada eleição de administradores distritais e assembleia distritais a partir de 2024. O autor, que integrou a equipa de diálogo político entre o Governo e a Renamo, por indicação do Presidente da República, Filipe Nyusi, partilha algo interessante: “Do próprio processo de diálogo político, o distrito tinha sido esboçado como delegação de província, mas no último instante tornou-se numa entidade descentralizada, projectada para 2024”. Quando faltam pouco mais de dois anos para as eleições de 2024, num momento em que o ‘modelo bicéfalo’ que pressupõe a coabitação entre o Conselho Executivo Provincial, com o governador à cabeça, e os Serviços de Representação do Estado na Província, sob a égide do secretário de Estado, ainda se mostra gerador de conflitos, pelo menos em potencial, e de difuldades acrescidas de acesso aos serviços públicos por parte do cidadão, sobretudo por conta da sobreposição de competências, ou mera ausência de clareza quanto ao campo de cada um desses dois órgãos provinciais, Macie parece ser muito a favor de uma reforma constitucional, em sede da qual o distrito deixaria de ser entidade descentralizada para passar a ser “delegação da governação descentralizada provincial”. Reconhece que isso “poderia representar um recuo, mas um descompasso mais seguro e eficaz. Portanto, retomar-se-ia o modelo inicial do processo de diálogo político”. Os dados estão lançados. Vamos ao debate, para que possamos serenamente ponderar no que seja melhor para o país, ou fingimos estar tudo bem, para, no fim do dia, transferirmos as disfuncionalidades que estão a ser expostas ao nível da província para o de distrito? Mais: se se elegerem assembleias e administradores distritais em 2024, com que território, que não esteja sob a alçada de entidades democraticamente eleitas, ficarão a Assembleia Provincial e o governador de província? Duvido da sustentabilidade da mera descentralização de competências, mas sem soluções funcionais quanto ao território!
(Parte II e Conclusão)
Patrício Langa* & Jorge Ferrão**
A decisão pelo estabelecimento do ensino superior, nas colónias Portuguesas de Angola e Moçambique, foi, por um lado, tomada com muita hesitação e sob pressão interna dos colonos nessas províncias do ultramar colonial, e, por outro lado, externa, particularmente, pelas Nações Unidas, devido ao intensificar dos movimentos reivindicativos das independências dos povos Africanos que já tinham na independência do Gana em 1957, sob liderança do carismático Kwame Nkrumah, uma fonte de inspiração.
O ano de 1960 e subsequentes viram mais de 13 colônias africanas a ascenderem à independência. O ambiente interno, na colônia, como o externo, não era favorável ao status quo. Assim, o regime foi forçado a adoptar medidas de reforma do Estado, incluindo no sector da educação. No seu âmago, as reformas não visavam alterar o carácter colonial do regime, mas mistificá-lo ideologicamente com um rosto mais humanista, particularmente em relação ao tratamento oferecido às populações nativas não brancas.
As ideias do luso-tropicalismo, isto é, da celebração da miscigenação racial e cultural atribuída pelo Antropólogo Brasileiro, Gilberto Freyre, ao carácter idiossincrático do colonialismo Português, foram inicialmente rejeitadas por Portugal, nos anos 30 e 40 do Estado Novo. No entanto, o luso-tropicalismo passou a ser ideologia do Estado colonial implementada nos anos 60, particularmente, através de reformas propostas por Adriano Moreira, ministro Português do ultramar, como forma de mitigar a crescente contestação ao regime colonial fascista e ao status quo.
A pergunta fundamental sobre o estatuto e o papel do ensino superior na sociedade mostra-se aqui relevante. Numa altura em que Portugal ainda sonhava com água para a manutenção do status quo, é legítimo questionarmo-nos sobre para que projecto de sociedade a nova universidade estava a ser criada? Que função social a nova universidade iria cumprir? Seria a nova universidade o laboratório, por excelência, do experimento luso-tropicalista, no contexto das colônias africanas? A quem, então, o regime Salazarista iria confiar a gestão das novas instituições de ensino superior em Angola e Moçambique, sabendo do potencial que as universidades podiam representar para o despertar da consciência nacionalista e da necessidade de transformação profunda da sociedade? Parte das respostas a estas questões encontram-se nas lideranças que Portugal identificou para conduzir os desígnios das novas universidades em Angola e Moçambique.
Os Primeiros Reitores da EGUM e ULM 1962-1970/6
José Veiga Simão (JVS) foi o primeiro de três reitores coloniais, e aquele que mais tempo permaneceu no posto, quase oito anos, entre 21 Agosto 1962 e 15 de Janeiro de 1970. A sua saída da reitoria foi por via de uma promoção à Ministro da Educação Nacional. Simão foi um exímio equilibrista entre a academia e a política, granjeando simpatia em ambos os campus. Nascido em Portugal, em 1929, veio a falecer em Lisboa em 2014. Cedo formou-se em ciências físico-químicas na Universidade de Coimbra (UC), em 1951, com uma licenciatura e, depois, seguiu para o doutoramento em física nuclear na prestigiada Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
De reitor da Universidade de Lourenço Marques (ULM), passou ao cargo de Ministro da Educação Nacional até à altura da Revolução dos Cravos que destronou o regime fascista em Portugal. Entre 1974 e 1975, foi embaixador de Portugal nas Nações Unidas e, mais tarde (1983-1985), deputado da Assembleia da República Portuguesa pelo Partido Socialista. Recebeu vários Doutoramentos Honoris Causa, incluindo um pela actual Universidade Eduardo Mondlane (UEM) que, quanto a nós, só pode ter sido resultado da amnésia histórica dos proponentes em relação ao papel de Simão na perpetuação mistificada e demagógica do status quo do regime fascista e colonial.
Os cerca de oito anos do mandato de Simão, definiram o carácter colonial da ULM, mas sempre envolto num discurso demagógico reformista. Simão foi sucedido em 1970 e, ao que tudo indica, por seu delfim escolhido a dedo, Vitor Pereira Crespo (1932-2014), cujo reitorado foi apenas de dois anos, até Janeiro de 1972. Crespo viria, mais uma vez, a tomar o lugar de Simão, desta vez, como Ministro da Educação Nacional.
Tal como Simão, Crespo tinha formação de base em ciências físico-químicas, tendo feito o doutoramento em Química na Universidade de Berkeley, Califórnia em 1962. Para além da gestão universitária, foi Director Geral do Ensino Superior no Ministério de Educação Nacional (1972-1973) e, posteriormente, Ministro, Crespo, foi deputado e Presidente da Assembleia da República (1987-1991), pelo Partido Social Democrata (PSD).
Entre Janeiro de 1972 e 25 de Abril de 1974, altura do golpe de estado em Portugal, que colocou fim ao regime fascista de Salazar, José Alberto da Gama Fernandes de Carvalho assumiu o leme da ULM. O derradeiro reitor da ULM foi o terceiro de nome José, desta vez, José Marques Correia Neves entre 25 de Abril de 1974 e Janeiro de 1976. Geólogo de formação, rumou para o Brasil onde fez carreira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), após abandonar Moçambique com o advento da independência.
Neves assistiu à génese da EGUM e a sua elevação ao estatuto de universidade em 1968, passando a designar-se ULM. A confiança do leme de uma instituição de ensino superior nova na colónia, num contexto volátil, de crescente contestação ao regime fascista de Salazar, tinha que recair sobre figuras que inspiraram alguma tranquilidade ao regime. Com efeito, o pecado original da submissão dos reitores das IES públicas, mesmo quando a retórica sugere o contrário, tem origens coloniais, com a tentativa de mistificação da inclusão social e democrática.
Cada reitor tornou-se e manteve-se em função da habilidade de servir ao regime e à liderança política. Apenas em sistemas democráticos, nos quais a governação universitária se emancipou das pressões políticas modernas, como nos Estados Unidos da América e na Europa, vemos líderes de IES públicas sucederem-se sem um lobby directo com o regime político do dia.
O presidente dos EUA, seja este republicano ou democrata, exerce quase nenhuma influência na nomeação ou demissão de reitores das universidades americanas. Com isto não queremos sugerir que o acto de nomeação seja meramente académico e não político. O Estado vê na autonomia efectiva do sistema universitário uma das condições da sua própria existência e credibilidade. Não quer isto significar que as políticas públicas do sector e a gestão das instituições, particularmente as públicas, não estejam sujeitas ao beneplácito das autoridades do Governo. Todavia, no caso da ULM, a nomeação do reitor tinha a mão directa do Ministro do Ultramar e do Governador da Província, sendo o reitor membro do Governo colonial.
A Universidade de Coimbra (UC) granjeou respeito ao nível da Europa como um centro de conhecimento com alguma autonomia académica e intelectual. Era na Universidade de Coimbra e na Universidade Técnica de Lisboa (UTL) que o governo recorria para buscar quadros para gestão e implementação das suas políticas coloniais, incluindo as relativas ao ensino superior. Entretanto, era também para a universidade onde se refugiavam os desavindos, por alguma razão, com as políticas do status quo.
Marcelo Caetano, por exemplo, considerado um dos políticos reformistas do regime fascista e colonial de Salazar, fracassadas as tentativas de convencer o regime a ser mais condescendente, dialogante e menos beligerante no assunto da independência das colónias, após fracassada a tentativa de convencer Eduardo Chivambo Mondlane a integrar o governo de Salazar, retomou a sua cátedra na universidade de Coimbra. Portanto, a Universidade de Coimbra teve sempre uma relação ambivalente com o regime fornecendo os quadros para a manutenção do mesmo, mas também servindo de refúgio da actividade política directa.
O regime colonial procurou encontrar quadros e intelectuais, com habilidade de mistificar a continuidade da Portugalidade nas colónias, projectando um discurso de inclusão e alargamento das oportunidades educativas para os colonos e para os nativos, desde que assimilados à cultura Portuguesa.
A universidade criada e gerida em Moçambique pelos seus primeiros quatro reitores era uma universidade branca na sua composição demográfica e colonial na sua ideologia. Portugal, sob pressão das Nações Unidas e dos seus aliados, particularmente os Estados Unidos da América, insistia na integridade territorial e política entre a metrópole e os territórios do ultramar. Os documentos oficiais insistiam na ideologia de construção de uma sociedade multirracial, e pluricultural. Este discurso, no entanto, também era articulado pelas lideranças da ULM, mas não correspondia à realidade, como iremos abordar mais adiante ao falar da composição do corpo discente, docente e técnico administrativo.
O Currículo colonial
Um ano após da criação da EGUM, através do Decreto-Lei 45180, de 5 de Agosto de 1963, os “Ministérios do Ultramar e da Educação Nacional - Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes” promulgam o regime de funcionamento da nova IES. O artigo 8 do decreto indicava os cursos a serem ministrados, nomeadamente: a) Curso de Ciências Pedagógicas; b) Curso Médico-Cirúrgico; c) Curso de Engenharia Civil; d) Curso de Engenharia de Minas; e) Curso de Engenharia Mecânica; f) Curso de Engenharia Electrotécnica; g) Curso de Engenharia Químico-Industrial; h) Curso Superior de Agronomia; i) Curso Superior de Silvicultura; j) Curso de Medicina Veterinária. Os cursos de medicina e de veterinária teriam uma parte leccionada na colónia e uma outra parte na metrópole.
Com excepção das ciências pedagógicas, que visavam formar professores, nenhum curso visava formar pensadores críticos. Ironicamente, os cursos promovidos pelo regime colonial, na altura, actualmente são misticamente designados na sigla inglesa – STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) – e promovidos pelo governo como prioritários para o desenvolvimento do país. Como se pode depreender pelos cursos aprovados, a universidade teria mais um carácter politécnico que propriamente universitário.
A universidade não foi criada para ser um lugar para promoção do pensamento crítico, típico de uma sociedade aberta e democrática. A universidade colonial era um instrumento, um veículo operativo para massagear e mistificar a continuidade de uma sociedade colonial cuja distribuição de oportunidades (incluindo as educacionais) era em função da origem social. O currículo e as áreas de estudo permitidas resumiam-se a aqueles que, na percepção do regime, permitiriam formar quadros úteis para o projecto colonial.
O Corpo Discente, Docente e Técnico Administrativo
O corpo discente da EGUM e, mais tarde, da ULM era, fundamentalmente, constituído por estudantes brancos. Imagens fotográficas de antigos estudantes e membros da Associação Académica de Moçambique são bastante ilustrativas do tipo de composição demográfica da universidade colonial. Se o corpo discente era quase que na generalidade branco, não se podia esperar diferente do corpo docente e do Corpo Técnico e Administrativo (CTA).
A nossa hipótese de trabalho para dar conta da ausência de uma população (negra) nativa na nova universidade segue a linha de pensamento do politólogo ugandês Mahmood Mamdani sobre a constituição de minorias pelos Estados coloniais. Com efeito, segundo Mamdani, o projeto colonial e imperial tinha um substrato ideológico de uma missão civilizadora. Dois mecanismos principais permitiam o processo civilizatório pelo Estado colonial, por um lado, a introdução de um quadro regulatório (leis do Estado) e códigos de conduta sobre como ser cidadão civilizado (neste caso Português) e, por outro lado, um sistema educacional de matriz colonial para educar os membros da sociedade.
Através destes processos, igualmente, descritos por Eduardo Mondlane, em Lutar por Moçambique, cria-se uma minoria de cidadãos colonos e nativos assimilados, educados e civilizados no padrão cultural colonial. Estes nativos assimilados, como diria Franz Fanon, de Peles Negras e Máscaras Brancas, que julgam pensar, agir e sentir como o próprio colono branco, servem de intermediários entre a metrópole e a colónia, na administração da colónia. A universidade serve assim de instrumento de reprodução da estrutura e estratificação social da sociedade colonial.
A educação rudimentar para os nativos e todo um conjunto de barreiras educacionais fez com que, até finais da década de 1960, apenas uma porção insignificante de negros tivesse frequentado o ensino liceal ou técnico de modo a que reunisse os requisitos mínimos necessários para estarem aptos ao ingresso no ensino superior. Com efeito, o ingresso ao ensino superior era baseado em exames de aptidão feitos na universidade de Coimbra.
Portugal não tinha como, do nada, inventar negros qualificados para frequentar o ensino universitário, pois muitos destes eram, por desígnio do sistema, eliminados pela estratificação do próprio sistema educacional para brancos, assimilados e nativos que durante décadas criou barreiras para impedir a educação dos nativos. É, em parte, por estas razões, que apesar de uma retórica para reforma do sistema educacional, a nova universidade nasce e continua, fundamentalmente, branca e colonial até ao êxodo massivo dos colonos com o advento da independência em 1975. Os brancos e os poucos negros assimilados que decidiram permanecer no país após a independência, tornaram-se a elite académica e intelectual da universidade e do país com a missão de construir uma nova universidade para a servir ao desenvolvimento do país independente.
Conclusão
O primeiro decenário do ensino superior em Moçambique (1962-1972/5) foi da instalação sob pressão da primeira instituição de ensino superior, fundamentalmente, com o intuito de amainar a crescente contestação interna (dos colonos progressistas), dos nativos (independentistas) e a pressão externa das Nações Unidas e dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em particular, os Estados Unidos da América (EUA) sob o regime fascista e o Estado Novo de Salazar.
As sucessivas lideranças da ULM cumpriram o papel de assegurar o trabalho da mistificação ideológica, através de um discurso de integração dos territórios do ultramar com a visão de uma Portugalidade como nação multirracial e pluricultural. No entanto, na prática, esta retórica não se refletia na composição demográfica do corpo docente, discente e técnico administrativo da ULM, até 1976, um ano após a proclamação da independência de Moçambique por via de insurreição armada.
O currículo e as áreas de estudo da ULM eram estabelecidos por dispositivos normativos (decreto-lei, portarias), controlados pelas autoridades coloniais, a partir da metrópole. Com forte inclinação para cursos das ciências naturais e tecnológicas, a ideia da formação superior era a de preparar quadros para administração colonial dos territórios do ultramar e não para formar uma possível intelligentsia subversiva, dai a total ausência de cursos nas áreas das ciências sociais e humanas.
Com o acelerar da Guerra colonial, e o advento da Revolução dos Cravos, que colocou término ao regime fascista de António Salazar, a gestão da ULM foi praticamente de crise e transição. José Veigas Simão foi praticamente o único reitor que fez quase dois mandados de 4 anos entre 1962 e 1970, quando foi promovido a Ministro da Educação Nacional. Os sucessivos reitores tiveram reitorados relativamente curtos de cerca de dois anos, sendo Vitor Pereira Crespo (1970-1972), José Alberto da Gama Fernandes de Carvalho (1972-1974) e José Marques Correia Neves (1974-1976).
Todos reitores coloniais estavam, de uma ou de outra forma, relacionados a figura de JVS e, provavelmente, tenham sido por este sugeridos como seus sucessores. Quase todos tinham alguma relação de afiliação com a Universidade de Coimbra ou com a comissão Técnica de criação da ULM, cujos quadros também provinham da Universidade Técnica de Lisboa.
Em suma, a universidade colonial em Moçambique representou o início titubeante do ensino superior, mas, acima de tudo, também representou um esforço das autoridades coloniais de manutenção ideológica do status quo. A independência de Moçambique do colonialismo Português, em Junho de 1975, veio encerrar o primeiro decénio e abrir espaço para uma nova realidade do ensino superior que iremos abordar no período de 1972/5- a 1982.
*Patrício Langa. Professor de Sociologia do Ensino Superior
**Jorge Ferrão. Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
Por José P. Castiano & Jorge Ferrão
A narrativa teológica de Desmond Tutu teve profundas mudanças nos anos 70, como resultado da sua confrontação com as temáticas levantadas pela African Theology e Black Theology. Para Tutu, havia uma posição não negociável: Teologia, como qualquer outra área do conhecimento humano, tinha que ser contextualizada. Dito de forma mais simpática, ela deveria tomar em conta as condições concretas e contextuais em que viviam os seus crentes. Nenhuma teologia deveria ter a prerrogativa de ser “universal”. A Teologia Negra tinha a ver com um interesse existencial do negro, pelo facto de este estar diariamente entre a vida e a morte: se Deus era todo-poderoso, por que seria que Ele permitia o sofrimento, somente, de uma parte do seu rebanho, os negros?
Tutu era defensor incansável de que a luta pela libertação cultural da Igreja deveria incluir a formação dos missionários porque, segundo ele, em África, antes de alguém tornar-se pastor ou padre, tinha, antes, que se converter ao cristianismo ocidental e à sua cultura. Por outra, antes de missionarem, tinham que negar a sua africanidade, incluindo a mudança de nomes tradicionais para, assim, obterem nomes verdadeiramente cristãos no acto do baptismo ou da ordenação.
Este princípio da dependência da mensagem da teologia para os seus crentes estava tão claro para Tutu que ele achava que, como exemplo, enquanto nos anos 70, na Europa, se discutia nas universidades se «Deus existe?» ou mesmo em alguma literatura se proclama a «Morte de Deus!», “a nossa população — escrevia Tutu — não duvida da existência de Deus e ela sabe perfeitamente bem o que quer dizer Deus. Ela (a população) não precisa ser convencida que Deus é bom e omnipotente”[1]. O exercício linguístico de saber se Deus existe ou não poderia ser interessante para o Ocidente, mas tornava-se “irrelevante” para os povos africanos, acrescentava.
De facto, aspectos da vida pessoal de Tutu, conjugados com o contexto, influenciaram para que a sua Teologia sofresse profundas transformações. Desde 1972, Tutu assumiu, em Londres, a posição de director da divisão africana do Theological Educational Fund. O seu trabalho era emitir pareceres ao Fundo Teológico sobre estudantes de teologia provenientes da África Subsaariana e para as instituições religiosas onde poderiam estudar. Num momento em que muitos países africanos completavam uma década de independência, as lutas armadas de libertação nas colónias portuguesas estavam praticamente na sua fase final e, no seu país de origem, o sistema do apartheid se encontrava ao rubro, Tutu na sua qualidade de promotor dos recursos humanos para a Igreja Anglicana, viajava por vários países africanos, tais como Zaire, a Nigéria, os Camarões, o Gana, a Serra Leoa, Quénia, Uganda, etc. Em três anos, visita mais de 20 países subsaarianos tipificados por uma diversidade de condições políticas. Isto permite-lhe obter uma perspectiva das narrativas religiosas e, sobretudo, contrapô-las com as respectivas condições políticas em cada caso. Nesses países já proliferavam, nos seminários católicos, fortes discussões sobre as condições e possibilidades de uma teologia africana.
No Zaire, os debates teológicos eram, vivamente, influenciados pelo dilema entre a fidelidade à política do Coronel Joseph-Desiré Mobutu da authenticité, e a fidelidade às doutrinas teológicas europeias. Na sua qualidade de “presidente”, Mobutu tinha obrigado às cerca de 80 missões e igrejas protestantes existentes no Zaire a juntarem-se numa só Igreja Nacional, a chamada Eglise du Christ au Zaire. A par disso, concedeu um reconhecimento oficial a poucas igrejas católicas e à Igreja de Jesus Cristo na Terra fundada pelo profeta Simon Kimbangu, esta última baseada na “doutrina indígena”, ou seja, praticando curas tradicionais. Uma das “orientações” da authenticité era a africanização da liturgia e das lideranças das igrejas.
Na Nigéria, Tutu confronta-se com a já crónica divisão entre católicos e muçulmanos, sendo estes maioritariamente do Norte do país. Tutu visita o país ainda antes da recuperação da guerra de Biafra. Pela primeira vez, ele se confronta com a necessidade de fundamentar um diálogo teológico entre as duas grandes religiões, daí a sua proposta para a criação de um Centro de Estudos para o Islão e para o Cristianismo na Universidade de Ibadan.
As viagens de Tutu incluíram, extensivamente, a África Austral em países como Tanzânia e Moçambique, para além de Zâmbia, Rodésia (hoje Zimbabwe), Suazilândia e Malawi. Sobre Moçambique, Tutu declarava que a política da assimilação era bem mais discriminatória que o apartheid dado que enquanto neste havia “clareza” das fronteiras entre negros e brancos, nas condições da assimilação, os negros que só poderiam ser dirigentes do seu povo, assim que estivessem a ser “seduzidos” para aceitarem as condições de ser branco ou assimilados. Values and personhood lies in whiteness. What blasphemy! — escreveria Tutu no seu relatório sobre Moçambique.
Nestas viagens, Tutu entra em contacto com a nata da academia e da teologia africanas do seu tempo, particularmente, nas universidades de Makherere (Uganda), Fourah Bay (Serra Leoa) e de Nairobi (Quénia). Nesta última tem encontros com Odera Oruka e com Ali Mazrui. Os encontros fortificaram suas convicções a favor da Teologia da Libertação latino-americana, com cujos líderes e teóricos Tutu mantinha contactos.
Um outro factor importante que, mais tarde, “formatou” as ideias de reconciliação de Tutu foram os contactos permanentes que ajudou a desenvolver e manter entre os negros da África do Sul e dos Estados Unidos. Alabama era o destino dos negros sul-africanos, desde o século XIX, em viagens facilitadas pela fixação dos missionários, primeiro da American Board, na zona da África Austral. Líderes do ANC, como John Langalibalele Dube, A. B. Xuma, Isaka ka Seme e outros receberam a sua educação na Tuskegee Institute em Alabama, uma instituição fundada por Booker Washington.
Assim, os debates sobre a libertação dos escravos, protagonizados principalmente por Washington e Du Bois, em torno do Black Souls, influenciaram-se mutuamente com os debates em torno da Teologia Negra e Teologia Africana, ao qual Tutu, mais tarde se mete no meio, principalmente após as viagens aos EUA, em 1973, por ocasião duma conferência sobre a Black Theology. Nesta conferência, participara John Mbiti que, na altura, ataca a African Theology como sendo a versão africanizada da Black Theology. Tratava-se, segundo Mbiti, de uma teologia praticada pelos negros americanos e não tinha legitimidade para qualquer adaptação ao contexto africano porque, na sua base, estariam o ódio, a amargura e o sofrimento dos escravos.
Por isso, ela expressava-se nos termos de um Deus negro, Igreja negra, libertação negra e tudo o mais “negro” possível. Este tipo de teologia baseia-se, acrescentaria Mbiti, na consciência sobre a cor negra. E, na óptica de Mbiti, nas escrituras sagradas, não se encontra nada sobre esta cor. Este tipo de Teologia poderia adaptar-se muito bem para o caso da África do Sul, onde os negros teriam o mesmo grau de “amargura” e “ódio” contra o branco, por causa do sistema do apartheid, mas não seria este o caso para o resto da África.
Naturalmente que Tutu defendeu a possibilidade da adopção da Teologia Negra, não tanto pela expressão black, senão, com base nos escritos do seu compatriota Steve Biko, como forma de mostrar o engajamento no repúdio à arrogância da Teologia Ocidental que foi produzida, principalmente com Paulo e suas epístolas, com a pretensão de ser universal. Segundo Alain Badiou, os esforços de Paulo consubstanciaram-se em evitar que o cristianismo se reduzisse a ser apenas uma seita judaica, por via da Ressurreição (Cfr. Badiou: São Paulo: A Fundação do Universalismo. Ed. VS, 2018).
Tutu viria a articular a sua teoria da reconciliação baseada nesta nova problematização da Teologia Negra Africana, algo assemelhada à política de reconciliação de inspiração de Mandela. O fim do apartheid na África do Sul, com a eleição de Nelson Mandela como o primeiro presidente negro, marca o triunfo, na sua plenitude religiosa e política, do espírito da reconciliação.
Desmond Tutu, bispo anglicano e Prémio Nobel da Paz, preside uma Comissão da Verdade e Reconciliação cujo princípio, uma justiça restaurativa, nos oferece exemplo, pelo menos por enquanto, da corporificação do espírito de reconciliação num contexto em que se devia evitar, a todo custo, o temido banho de sangue pós-apartheid.
Tutu declara que há um outro tipo de justiça, cujo propósito central não pode ser punitivo; deve ser sim restaurativo, dedicado à “cura” das feridas. Ela tem como o centro a humanidade do causador das mais vis atrocidades. Este tipo de justiça acredita, diz-nos Tutu, na bondade essencial de todas as criaturas de Deus e que, na base dela, existe, em todos, a possibilidade latente de se tornarem bons e justos. Portanto, os perpetradores das injustiças devem ser reabilitados e não, em primeira linha, punidos ou ostracizados pela comunidade.
A comunidade tem, aos olhos da justiça restaurativa, o dever de reintegrar os que cometeram estas atrocidades. Tutu chega a declarar que uma ofensa (racial neste caso) deve ser considerada como um “distúrbio do equilíbrio social”. Por isso, o processo da restauração deve permitir que o ofensor e a vítima se reconciliem e a paz seja restabelecida. Era preciso buscar um ponto reconciliatório dentro das mesmas narrativas religiosas, ou seja, do interior da chamada espiritualidade originária africana (ubuntu). Algo que fosse tão engenhoso a ponto de evitar o que lavaria à uma derrota de todos: a guerra ou um “banho de sangue”, como se dizia. Neste caso, o espírito reconciliatório corporiza-se em forma de “princípio” que todos deveriam seguir, de um “consenso” ao qual supostamente todos deveriam aderir; enfim, um “compromisso” que todos deveriam acreditar: amnistia individual sim (não a uma amnistia geral), mas a troco da verdade, ou seja amnesty for truth, na verdade de “toda verdade”. E afirmaria Tutu, em 1998, perante Kerry Kennedy, activista americano para os Direitos Humanos:
“Nós não deveríamos temer confrontar-nos com as pessoas naquilo que eles fizeram de mal. Perdoar não significa tornares-te num tapete (na porta) para as pessoas limparem as suas botas [sujas]. O nosso Deus é muito indulgente.” (Cfr. Tutu, D. 2011: God is not a Christian, p.38).
A justiça restaurativa que parecia a única alternativa de “resolver” o problema dos que tinham medo de assistir o inferno ainda nesta vida, ela, porém, adiavam as convulsões sociais porque a «bomba social», esta que a justiça restaurativa, a todo custo, pretendia evitar que detonasse (e conseguiu), permaneceria latente, exibindo o seu fumo e potência ameaçadora, de tempos em tempos. Faltava o principal da justiça restaurativa: a justiça económica – ou seja a tal economic freedom do EFP de Julius Malema. As injustiças sociais continuariam a ser o problema na RSA.
Quanto a nós, a partir desta janela do Índico: é justo adiantar que o problema estava mal identificado: não era nem o branco, nem o negro; não o de confiar na bondade humana que há em todos nós, mas sim desconfiar o mal que também há em nós todos; o problema era a estupidez humana. E estúpidos encontramo-los em toda parte e de todas as cores.
O que também falhou é o modelo do “purgatório terrestre”; ele nunca havia de funcionar porque as almas feridas neste mundo vivem de verdade; elas sentem ainda a falta do pedaço de terra retirado, o emprego que falta, o piso da bota dos novos senhores, o sabor de um pão mal amassado ou ainda uma educação superior ainda não descolonizada e nem des-racializada. As greves dos estudantes universitários na África do Sul são uma prova disso. Os estudantes exigiam, no fundo, uma des-racialização da universidade e, consequentemente, de toda a sociedade.
A Igreja deve ser chamada a reformular a sua profecia consoante as dificuldades e os problemas das pessoas viventes, de carne e osso! E esses são os problemas para a nova Teologia dos Pobres. Estes que ainda não saboreiam os frutos da Rainbow Nation. Pois, que irá reinventar esta nova teologia reconciliatória, na qual os pobres terão o seu Banquete, não somente platónico, senão numa mesa real. God was not a Christian, indeed! (X)
[1] Cfr. Allen, J. (2006): Rabble-Rouser for Peace. The Authorised Biography of Desmond Tutu. Rider. London, Sydney, Glenfield, South Africa, India. p.136.
Para este natal, irremediavelmente, não desfrutaremos do comovente e eloquente sermão do Padre Giuseppe Frizzi. Ele fez outras opções. Será o orador de honra para uma outra plateia distinta, onde se encontra o Beato José Allamano, Beata Irene Stefani e outros de privilégios santificados, calmarias abençoadas e eternas redenções e dos seus colegas combatentes crónicos Namúlicos: Franco Gioda e Francisco Lerma Martínez.
Nesta ausência anunciada de Padre Giuseppe Frizzi, sobram as lembranças, as memórias de um irreverente pensamento filosófico, de um crítico linguístico e abnegado defensor da cultura Macua-xirima. A tríade Frizzi, Gioda e Lerma engajou-se para a personalidade cultural do povo Macua. Nas nossas preces, recordaremos das missões de Mitucué, Cuamba, e Maúa. Faremos uma noite de consoada, no seu centro de investigação Macua-Xirima, relendo o seu dicionário Xirima-português, a gramática de alfabetização, a antologia bilíngue da biosofia e biosfera xirima, e louvaremos o Senhor com os livros de Canto feitos por ele como Mavekelo ni Itxipo (Oração e Cantos). E contemplaremos a beleza da arte Macuana que nos conduz ao mistério da encarnação que ele, traduzindo o Evangelho de João “E o Verbo se fez carne” (João 1, 14), na língua Macua todos repetirão: “Muluku ahipaka Muthu”- num acto de memória e memorial que toda a criatura possa louvar a Deus em todo tempo e lugar.
Louvar a Deus sim, diz o Padre Frizzi, mas na sua própria identidade cultural. Onde o africano-Macua é Cristão sem deixar de ser africano Macua. Porque o espirito de Deus já se manifestou antes do missionário chegar naquela cultura africana-Macua. É nesta lógica dialógica que o padre Giuseppe Frizzi coloca-se na esteira de Justino, filósofo e mártir (Logos seminal), Karl Rahner (Os cristão anónimos), José Filipe Couto (a Salvação dos não Cristão) e Raimon Panikkar (O Cristo desconhecido do Induísmo). Por isso, para Frizzi, a missão é recolha e não é semear. Ser missionário é viver com o povo através do instrumento linguístico performativo é um autêntico agir comunicativo com a cultura. A cultura aprende-se, vive-se e precisa fazer-se parte integrante da cultura. É isto que o padre Frizzi foi. Tornou-se macua entre os macuas. Viveu macuano entre os macuas e valorizou a personalidade da cultura macua entre os macuas e para os macuas e de consequência para a humanidade inteira.
Frizzi foi Missionário da Consolata, muito ousado, engajado e sobretudo, soberbo amante da língua macua-xirima. Escreveu um dia que, em África, se perpetra a extinção de uma das espécies de fauna e flora, mas do ponto de vista antropológico seria, ainda, mais trágico constatar que se esta marginalizando e condenando à morte todo o capital das inúmeras línguas maternas, porque consideradas atraso de vida e inúteis, elas parecem significar um impedimento ou condicionante para uma entrada da localidade e oralidade na modernidade, como se essa globalização enfatizada, implicasse, necessariamente, a exclusão da localidade, da oralidade e de sua história.
O Doutor e investigador Giuseppe Frizzi pode não ter sido dos mais aclamados e famosos padres que chegou, viveu, trabalhou e seguiu para o encontro com o Senhor, em Moçambique. Porém, convenhamos, foi um dos que mais pesquisou, bebeu dos capitais antropológicos guardados na oralidade e converteu-se num militante e combatente consequente e apaixonado pela riqueza linguística e cultural dos macuas-xirimas. Nessa oralidade redescobriu expressões axiomáticas de quase todas as flexões macuanas existentes, Niassa, Nampula, Zambézia e Cabo Delgado. Pode-se afirmar, sem reticências, que G. Frizzi fez uma revolução copernicana à filosofia Africana com os seus conceitos de “Biosofia e biosfera Macua-xirima” para buscar os segmentos e fragmentos da mesma cultura africana-Macua Xirima, sem os próprios filósofos africanos aperceberem-se, pois introduziu um modo de filosofar no silêncio onde a dialéctica é dialógica e não a hodierna forma de filosofar que é uma autêntica dialéctica conflitual. E nesta forma, Frizzi coloca-se na linha traçada por Fabien Eboussi Boulaga, segundo a qual a filosofia africana deve ir além dos conflitos, e buscar a cultura africana como base para o próprio filosofar.
Giuseppe Frizzi, à semelhança de tantos outros missionários da Consolata, pregou e evangelizou esse distante e esquecido Niassa. De origem italiana, nascido a 14 de Maio de 1943, mas que nunca quis, sequer fazer alarido, era e identificava-se como moçambicano e falava, regra geral, em macua com quem lhe cruzava o caminho e tornou-se Moçambicano, portanto, é Moçambicano. Entrou para o Instituto das Missões da Consolata em 1954, tendo sido ordenado sacerdote em Dezembro de 1969. Foram mais de 52 anos de serviço bíblico e, principalmente, de pesquisa da sua língua favorita o macua-xirima.
Dizia, com frequência, que os estrangeiros se enamoravam da língua macua, portanto, seria incompreensível que isto não acontecesse com os donos desta cultura e desta língua, que em sentido contrário assumiam, em muitos casos, uma atitude passiva e até de indiferença. Vivia preocupado e assombrado com o facto de quase todas as traduções, pesquisas etnográficas e etnológicas publicadas serem feitas, grosso modo, por missionários e missionárias, agentes pastorais da igreja. Isto, dizia, tinha um valor cultural imensurável, porém, sem sinais evidentes de continuidade destas pesquisas e estudos pelos donos da língua.
Em 1998, o Presidente Joaquim Chissano visitou o distrito de Mauá, Niassa, e travou contacto com o Padre Giuseppe Frizzi, no coração do seu centro cultural e bibliotecário designado CIMX. Uma espécie de santuário de repositório de pesquisas que nunca publicou. Este centro realizava palestras, cursos, traduções e publicações em xirima. Não tardou para que o Presidente constatasse que o Padre vivia em condições difíceis. Pareceria alheio ao essencial e ao conforto. Uma espécie de ser aculturado, que dormia numa esteira e tinha o mínimo de conforto. O padre explicou que ele adoptara aquele modelo de vida, desde que havia chegado a Moçambique, em 1972 depois de ter obtido o doutorado em Exegese Bíblica em Múnster - Westfália, Alemanha, mesma universidade onde doutorou-se o Padre José Filipe Couto em Teologia.
A sua preocupação, explicou ao Presidente Chissano, era que as igrejas mostravam uma sensibilidade linguística e pastoral bem superior que todos os empreendimentos do Estado juntos. Deveria ser o Estado que se deveria preocupar com a política linguística, com o ensino bilíngue e com a valorização do património linguístico de que o país era possuidor, porque para o Frizzi a língua é o veiculo cultural de identidade de uma cultura e de um povo. Em outras palavras, podemos dizer que Frizzi concorda com o filósofo Martin Heidegger quando diz que a língua é o pastor do ser, e com o antropólogo maliano Amadou Hampâté Bâ que afirma que a língua em África é criadora e a palavra recria a cultura dentro do processo histórico cultural.
Durante o período da guerra civil, e até a actualidade, afirmava que as publicações litúrgicas, catequéticas, bíblicas e científicas, além da sua específica tarefa, haviam sido responsáveis pelo trabalho de alfabetização de adultos, novamente, bem superiores aos empreendimentos das instituições públicas. Milhares de homens e mulheres haviam aprendido a ler e a escrever, a sua própria língua, e até em português, frequentando a catequese na língua local. Parecia uma utopia metodológica funcional.
Foi durante esta visita que ousou provar ao Presidente que não se deveria olhar para Moçambique artístico como limitado às esculturas Macondes, e um pouco mais. Existiam outras expressões artísticas e culturais como as esculturas e pinturas Macua-xirima, que embelezam igrejas, museus e habitações em Moçambique e no estrangeiro. A sensibilidade artística xirima quer sob a perspectiva sintética, como simbólica e monumental, recordava o romântico medieval que conquistava os interessados pela arte. Mas, o valor mais importante residia nos provérbios que ele considerava como possuindo um valor de literatura oral, sapiencial e poética. Era, então, essa dignidade estética e consistente da oralidade macua.
Com outros missionários no distrito de Mauá e, em particular, com o Padre Francisco Lerma, seu melhor amigo, dedicou-se ao estudo da língua e da cultura Macua-Xirima e criou o Centro de Investigação Macua-Xirima. Em 3 de Dezembro de 2009, a Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma conferiu-lhe o doutoramento honoris causa em Missionologia. Nesta ocasião falou sobre as ínguas ocidentais, comparando ao macua-xirima. Era o princípio de um teorema namúlico , em tonalidade feminina, matriarcal e nocturna lunar. Uma espécie de antropologia do domínio do masculino sobre o feminino. Para ele, era uma simbiose sinergética dos dois hemisférios antropológicos.
Por ser de uma cultura não sexista, esta língua tinha a possibilidade de apresentar uma proposta complementar a comum concepção do religioso e do teológico. Padre Frizzi participou no processo para a beatificação da Irmã Irene Stefani na apresentação do milagre: da multiplicação da água (1989), e que foi o motivo pelo qual a irmã foi beatificada. Padre Giuseppe Frizzi não foi jamais referenciado como milagreiro, porém, seus feitos, sem dúvidas, fizeram dele um dos maiores responsáveis pelos novos percursos e itinerários teológicos e linguísticos, não só possíveis, mas, também, imensamente desejáveis. Também nunca foi mencionado como filósofo, mas as suas obras contribuíram para a mudança do paradigma filosófico africano.
Para os Macuas o dogma é: Ninkhuma Onamúli! Onamúli Innotthikelawo! -Do Namúli viemos! Ao Namúli regressaremos! Portanto, o padre Giuseppe Frizzi encontra-se no Namúli onde sempre foi crónico e sempre desejava regressar ao Namúli sendo um Macua fiel. E cada macua onde quer que ele se encontre deve saber que do Namúli viemos e ao Namúli regressaremos! Por isso, como ele, só podemos dizer : Pwiya relihani Africa! Amém Aleluia
Nas primeiras duas décadas do século XIX, a ciência conseguiu obter uma quantidade incalculável de conhecimento sobre a psicologia e, convenhamos, sobre a biologia dos humanos. Mas, esse património não está ao alcance da maioria dos cidadãos. Todavia, se por um lado, as elites políticas e económicas são detentoras desse conhecimento e usam-no conforme sua conveniência; por outro, a maioria das pessoas continua alheia e negligenciada. É só observarmos como a neurociência é usada para incrementar as vendas e para influenciar politicamente as tendências de voto e controlar o comportamento humano. É evidente que a ignorância facilita a acção do poder sobre a sociedade.
As estratégias de manipulação, em larga escala, têm o pressuposto da manutenção do controle sobre as massas e do poder. Reduzir, no máximo, a capacidade analítica e crítica e, principalmente, a autonomia da maioria das pessoas. Estas são algumas das constatações de Noam Chomsky, que estuda as estratégias de manipulação em massa.
Pensando nestas posturas, nos populismos e populistas, na manipulação de informação, que assolam o mundo, em diferentes escalas e situações, torna-se recomendável reler 1984, um dos mais aclamados livros de George Orwell. Em abono da verdade, este livro é uma narrativa recomendável, tendo sido, inclusivamente, considerado como uma das melhores obras para entender a manipulação de massas e o controle da vida das pessoas. 1984 não é, apenas, a mais reconhecida, mas uma das mais fascinantes descrições desse fenómeno que se ramificou, um pouco, por todos os quadrantes, nos últimos tempos. Não é por acaso que as edições europeias voltam a publicar hoje, em massa, e a ganhar dinheiro com isso. É porque, em todo o Mundo há aquilo que o filósofo Rob Riemen chama eterno retorno do fascismo.
George Orwell, numa espécie de ficção utópica e distópica, reflectiu o que poderia ocorrer numa sociedade altamente vigiada, sobretudo, quando essa obsessiva vigilância transforma-se numa forma de controlar as pessoas e as suas liberdades individuais. Em 1984, o autor descreve um Estado autoritário que impõe um regime de vigilância sobre a sociedade. Para o efeito, foi criado um partido designado “Ingsoc” que impunha essa vigilância à praticamente todas as pessoas. Ninguém ficava imune a essa cerrada vigilância.
O lema do partido era “guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força”. Concomitantemente, existia um Ministério da Verdade, que advogava a infalibilidade partidária, portanto, nunca errava. Depois, o Ministério da Paz, responsável pela guerra, o Ministério da Fartura, responsável pela economia e, finalmente, o Ministério do Amor, cuja responsabilidade recaía no controlo da população através da espionagem.
Na descrição, a população vivia em silêncio. Era uma forma de estar, e muito conveniente. Era uma espécie de coragem para o silêncio, que tipifica a maioria das pessoas, que preferem um resguardo do que colaborar com propostas e ideias para fortalecer as suas sociedades e países. Era uma espécie de dar voz ao silêncio, num modelo de silêncio do período da inquisição, quase roçando a cobardia. Esta é postura de muitos que, mesmo querendo dar uma opinião, qualquer que seja, encontram todos os receios para assim não o fazer.
A estes silêncios, se juntou uma certa tendência para a paralisia da acção social. Portanto, se consolida uma espécie não de silêncios, mas de uma certa coragem necessária para exercer o direito a voz do silêncio. Exige-se coragem para o silêncio e para a inacção. Paradoxos de um pós-modernismo amorfo.
A voz e a coragem do silêncio nos recordam até da razão populista. Quer dizer, redefinir e ressignificar estes silêncios, inactividades e os populismos que usam o discurso democrático com outros propósitos. Estes são os silêncios que não se conseguem opor à manipulação, pois, este transformou-se num método de construção retórica do povo e do político, do inimigo e dos fiéis, enfim, de todas estas construções sociais que poderiam ser designadas por “ideologias” de coragem para os silêncios e para a paralisia à acção social.
Cooptamos a liberdade em nome de princípios e regras que só nós mesmos acreditamos e fazemos delas indiscutíveis. Ganhamos crenças de que as nossas teorias são as melhores e as únicas possíveis. Na realidade, falamos muito e escutamos pouco. Nasce aqui este debate sobre a coragem para o silencio, tão necessária como treinamento pedagógico para assistirmos o erro sem ter que falar. Quer o silêncio, como o próprio populismo viraram essa forma complexa de articulação de demandas em determinada formação social e da representação simbólica designada vazio. (X)