As notícias, sobretudo as da televisão, são dominadas hoje pela tragédia da Ucrânia. Quando vi o atlas do musculado ataque russo divisei, entre outras regiões, Odessa, uma cidade ucraniana às margens do Mar Negro e um ponto estratégico neste conflito. O meu defeito de formação levou-me ao jornalista e escritor Isaac Babel, que eu lia na juventude e cuja história, igualmente trágica, terminou numa execução, aos 45 anos, em 1940, às mãos de Stalin e da Grande Purga. Ainda hoje tenho a memória vívida dos seus “Contos de Odessa”.
A despeito, a minha memória de Isaac Babel não sobreviveu à lembrança da saga de Isabel Bapalpeme, uma jovem guineense, de 29 anos, que viveu sozinha em Portugal durante anos, à espera de um transplante de pulmão, triste por estar apartada da mãe, desde 2014, a quem a embaixada portuguesa em Bissau lhe recusara visto apesar dos veementes apelos médicos.
Quando um jornal de grande influência denunciou a situação, as autoridades apressaram-se a conceder o visto à mãe de Isabel e aos irmãos menores e uma onda de solidariedade preencheu-lhe finalmente o vazio da casa em que vivia. Que tem a ver o destino desta guineense com aqueles que, no rigoroso frio da Ucrânia, se veem agora na situação de se transformarem em exilados? Aparentemente nada.
Acontece que Portugal fez uma declaração exuberante e o governo instruiu as embaixadas para conceder vistos a ucranianos e considerou-os bem-vindos ao país desde que o queiram. O gesto não merece censura, antes pelo contrário. No entanto, este altruísmo lusitano denuncia o desprimor ou a desestima com que o mesmo país lida com os africanos de quem declara serem de países irmãos. Perante as nossas tragédias, que incluem guerras e outros colossais infortúnios, nunca vi semelhante gesto dadivoso ou prodigalizador.
Há mais de um quarto de século redigi, para o jornal “Público”, um artigo intitulado “A cooperação pelintra”, onde mapeava as misérias desta nossa equívoca relação. Reitero o que então disse. Não me apetece voltar aos argumentos nem sequer alvitrar quem quer que seja. Anoto, neste dia em que a comoção ocidental é unânime sobre o desfortúnio da Ucrânia, a dissimulação ou a insinceridade que está na base das relações entre países.
A história dramática de Isabel é a metáfora de como Portugal trata (ou melhor: destrata) os cidadãos oriundos dos nossos países ou aqueles que deles são progênitos, para não falar dos nascidos em território português, párias ainda hoje e nunca verdadeiramente integrados. É isto resquício desse racismo iniludível, continuamente impugnado oficialmente, ou é produto da hipocrisia que domina a realpolitik?
Fica a pergunta retórica e uma convicção inabalável:
Brancos sim, pretos não!
Maputo, 24 de Fevereiro de 2022